Mostra-se irrelevante para efeitos do disposto no artigo 79.º, n.º 4, da LPCJP, a potencial eventualidade de o projecto de vida da criança (a quem foi aplicada medida de acolhimento residencial), passar pela sua confiança e apoio junto do pai, com a fixação da respectiva residência junto deste na localidade onde o mesmo passou a residir há mais de três meses.
1. Em 12.07.2019, o Ministério Público junto da Comarca de Lisboa Norte (Vila Franca de Xira – Procuradoria Instância Central – Família e Menores) intentou acção de promoção e protecção a favor de AA, nascido a ... de ... de 2016 e residente no Beco ..., n.º ..., ...., na ..., pedindo que “Atenta a gravidade da situação vivenciada por AA junto do progenitor” fosse aplicada, de imediato, a medida de “Acolhimento residencial”.
2. Por decisão proferida em 12.07.2019, o Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, aplicou, a título cautelar, ao menor AA a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, pelo período de seis meses.
A criança foi acolhida na casa de acolhimento “...”, sita em ..., no dia 24 de Julho de 2019, conforme havido sido determinado por despacho de 17.7.2019.
3. Esta medida cautelar de promoção e protecção aplicada foi sendo sucessivamente revista e prorrogada enquanto prosseguiam diligências tendentes à aplicação da medida definitiva.
4. Por decisão de 12.03.2020, foi aplicada, a título principal, medida de acolhimento residencial, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro, pelo período de um ano, com revisões trimestrais. Realizaram-se sucessivas revisões da medida de promoção e de protecção de acolhimento residencial, mantendo-se a mesma em vigor ao longo dos anos.
5. Foi proposta a medida de confiança a instituição com vista a adopção, tendo o tribunal decidido, por acórdão de 29.4.2024, não aplicar tal medida e manter a de acolhimento residencial, a qual veio a ser periodicamente revista, mantida e prorrogada.
6. Por despacho de 4.09.2024, o Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (juiz ...) proferiu despacho declarando o tribunal territorialmente incompetente para os ulteriores termos do processo e determinou a remessa dos autos para o Juízo de Família e Menores de Castelo Branco, por ser o competente nos termos do artigo 79.º, n.º 4 da Lei da Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante LPCJP).
Fundamentou a decisão no facto de o único projecto de vida do menor, em alternativa ao acolhimento residencial, assentar “no eventual retorno ao agregado do pai, se este adquirir as necessárias condições para o efeito.”.
Aduziu que “o pai reside, há mais de três meses em Castelo Branco – sendo essa também a residência do AA, que tem a sua residência fixada junto do pai”, pelo que “importa promover a proximidade entre o pai e o filho – havendo que avaliar o quanto antes as respetivas condições/disponibilidades” e que “importa confiar a subsequente tramitação às entidades que se encontram mais próximas do contexto de vida do progenitor.”.
7. Por despacho de 28.10.2024 foi declarado prejudicado aquele anterior despacho por terem surgido dúvidas sobre se o pai do menor continuaria a residir, efectivamente, na zona de Castelo Branco. Foi prorrogada a medida de acolhimento residencial até 30.04.2025.
8. Em 22.04.2025, o mesmo Juiz ...do Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira procedeu à revisão da medida de acolhimento residencial e prorrogou-a por mais 6 meses.
9. Em 29.04.2025 foi determinado pelo mesmo tribunal que, após transito, se remetessem os autos para o Juízo territorialmente competente, uma vez que “o pai do AA, junto de quem foi fixada a residência e ainda hoje o único potencial projeto de vida para o filho, passou a residir em Lagares da Beira, em data não concretamente apurada anteriormente a 3 de Fevereiro de 2025”.
10. Recebidos os autos no Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi proferido despacho, em 21.5.2025, que declarou o tribunal incompetente em razão do território por considerar competente para o efeito o Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira – Juiz ..., para onde, após trânsito em julgado, determinou que os autos fossem devolvidos.
Argumentou que “a criança não reside, nem nunca residiu em Oliveira do Hospital, sendo o factor de conexão estabelecido a partir da sua situação e não do progenitor – sendo que o único fundamento invocado na decisão para a remessa dos autos resulta na residência daquele em Oliveira do Hospital, sem alterar a situação da criança que se mantém a beneficiar de acolhimento residencial”.
11. Em 23.6.2025, o Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital pediu a resolução do conflito ao Tribunal da Relação de Coimbra, para onde determinou a subida dos autos.
12. Em 15.7.2025, o Tribunal da Relação de Coimbra ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 110.º, do Código Processo Civil (doravante CPC).
13. Cumprido o n.º2 do artigo 112.º do CPC, o Ministério Público, em seu douto parecer, pronuncia-se no sentido de se julgar competente para prosseguimento do presente processo de promoção e protecção o Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira – Juiz ...
II – Apreciando e decidindo
1. De acordo com o artigo 109.º, n.º2, do CPC, verifica-se a existência de um conflito negativo de competência quando dois tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão.
Acresce que, conforme decorre do n.º3 do artigo 109.º do CPC, a existência de uma situação de conflito de competência pressupõe que as decisões em confronto tenham transitado em julgado.
No caso, o Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte e o Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital atribuem-se mutuamente competência, negando a própria, para conhecerem deste Processo de Promoção e Protecção.
Configura-se, assim, um conflito negativo de competência, nos termos do artigo 109.º, n.º 2, do CPC.
Por estarem em causa decisões com a área de competência de diferente tribunal da Relação cabe ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a competência para resolução de conflito, por ser este o Tribunal superior com hierarquia imediata sobre os juízos conflituantes – artigo 110.º, n.º2, do CPC.
2. Em causa está acção reportada a procedimento de jurisdição voluntária regulado pela Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) e, subsidiariamente pelo CPC, permitindo que a situação possa ser objecto de apreciação, tendo em linha de conta a ponderação das circunstâncias concretas do caso.
3. Das decisões em conflito e dos elementos disponíveis nos presentes autos, verifica-se que AA se encontra a viver na “...”, sita em ..., desde o dia 24 de Julho de 2019, ao abrigo da medida de acolhimento residencial.
4. Nos termos do disposto no artigo 37.º, da LPCJP, “1 – A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
(…) 3 – As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses”
Entre as medidas de promoção e protecção previstas no artigo 35.º, da LPCJP, encontra-se a de acolhimento residencial (cfr. n.º 1, alínea f)).
Dispõe o artigo 79.º da LPCJP – que define a competência territorial para a aplicação das medidas de promoção de direitos e protecção das crianças e jovens em perigo, que:
“1 – É competente para a aplicação das medidas de promoção e proteção a comissão de proteção ou o tribunal da área da residência da criança ou do jovem no momento em que é recebida a comunicação da situação ou instaurado o processo judicial.
2- Se a residência da criança ou do jovem não for conhecida, nem for possível determiná-la, é competente a comissão de proteção ou o tribunal do lugar onde aquele for encontrado.
(…) 4 – Se, após a aplicação de medida não cautelar, a criança ou o jovem mudar de residência por período superior a três meses, o processo é remetido à comissão de proteção ou o tribunal do lugar onde aquele for encontrado.
5 – Para efeitos do disposto no número anterior, a execução de medida de promoção e proteção de acolhimento não determina a alteração de residência da criança ou jovem acolhido.
(…) 7 – Salvo o disposto no n.º 4, são irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente ao momento da instauração do processo.”
Decorre, pois, do referido preceito que é territorialmente competente para a decisão de aplicação de medidas de promoção e protecção o tribunal da área de residência da criança ou do jovem no momento em que o processo é instaurado, sendo irrelevante eventuais modificações de facto ocorridas após a instauração do processo, apenas relevando a mudança de residência da criança ou do jovem por período superior a três meses após a aplicação da medida, sendo certo que, se a medida de promoção e protecção aplicada corresponder à de acolhimento residencial, esta não determina a alteração da residência da criança ou do jovem.
No caso, AA encontra-se a beneficiar da medida de acolhimento residencial, que tem vindo a ser sucessivamente mantida pelo Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira – Juiz 2.
A residência, fixada à data da aplicação da medida, é na ..., “..., n.º ..., ....”
Não ocorreu qualquer alteração geográfica atendível quanto à situação vivencial da criança com relevância para a conexão entre a área da sua residência ou do lugar onde centra a sua vida e a da competência do tribunal.
A criança não reside nem nunca residiu em Lagares da Beira.
A propósito, deve realçar-se que o seu progenitor muda com muita frequência de residência, o que está reflectido nos autos.
De notar que o próprio Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira, por despacho de 4.9.2024, determinou a remessa do processo ao Juízo de Família e Menores de Castelo Branco por entender ser o competente, uma vez que o pai da criança ali residia há mais de três meses; logo em 28.10.2024 tal despacho foi declarado prejudicado por terem surgido dúvidas se o pai da criança ali continuaria a residir. E antes de 3 de Fevereiro de 2025 já o mesmo estava a residir em Lagares da Beira.
Pese embora não esteja excluída a possibilidade de reintegração familiar da criança junto do pai, a residir, cremos, ainda em Lagares da Beira, o certo é que não ocorreu qualquer alteração em virtude da aplicação da medida de acolhimento residencial ou após a aplicação desta medida.
Na realidade, não houve qualquer mudança efectiva de residência da criança que importe considerar para efeitos do disposto no artigo 79.º, n.º 4, da LPCJP, não sendo suficiente para a fixação dessa residência a potencial eventualidade de o projecto de vida da criança passar pela sua confiança e apoio junto do pai, com a fixação da respectiva residência junto deste na localidade o mesmo onde passou a residir há mais de três meses.
Nessa decorrência, há que concluir que o tribunal territorialmente competente para a tramitação dos autos é o Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.
5. Nestes termos, decide-se competente, territorialmente, para tramitação do Processo de Promoção e Protecção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte– Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira – Juiz ....
Sem custas.
Notifique e comunique ao Ministério Publico e aos tribunais em conflito (artigo 113.º n.º 3, do CPC).
Lisboa, 29 de Julho de 2025
Graça Amaral