I - A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, de forma complementar, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa, conforme consagrado no CPP, que no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.
II – O regime de impedimentos, escusas e recusas aplicável aos juízes é igualmente aplicável aos magistrados do Ministério Público que intervêm no processo penal, com as necessárias adaptações.
III - Constitui pressuposto do pedido de recusa, como prescreve o n.º 1, do artigo 43.º, que o magistrado visado tenha intervenção «no processo» onde o mesmo é formulado, isto é, num concreto processo.
IV - O Procurador-Geral da República pode ser recusado em processo penal, como está expressamente previsto no n.º 2, do artigo 54.º, do CPP, quando dirija efetivamente o processo ou quando intervenha nos termos da lei processual penal como imediato superior hierárquico do magistrado que o conduz.
V – A nomeação de magistrado do Ministério Público ao abrigo do artigo 92.º, n.º1, do EMP, situa-se no domínio das competências gestionárias do Procurador-Geral da República, pelo que não configura uma intervenção no processo - não tem a natureza de ato processual -, nem tem a virtualidade de colocar o magistrado nomeado num relação de imediata relação de dependência hierárquica relativamente ao Procurador-Geral da República que se sobreponha à relação com os seus imediatos superiores hierárquicos.
VI - O poder gestionário de nomear qualquer magistrado do Ministério Público para coadjuvar ou substituir outro magistrado a quem o processo esteja distribuído não pressupõe a emissão de quaisquer diretivas ou instruções sobre a intervenção processual do magistrado, que goza de normal liberdade de ação e de autonomia, sendo certo que os pressupostos legais do exercício de tal poder - “sempre que razões ponderosas de complexidade processual ou de repercussão social o justifiquem” – assentam em razões de maior eficácia.
VII - Constatando-se que, no período de 22.11.2014 a 12.09.2019, o visado pela recusa não representava a Procuradoria-Geral da República, o que se possa extrair de comunicados emitidos pelo Gabinete da Procuradora-Geral da República então em funções é manifestamente insuscetível de determinar o sentido da decisão quanto ao presente incidente de recusa, que visa concretamente o atual Procurador-Geral da República – que desses comunicados não é responsável.
VIII - A contextualização das palavras proferidas, no conjunto de uma entrevista em que o visado se pronunciou contrário à diminuição dos direitos dos arguidos, quanto ao respeito dos direitos fundamentais e à necessidade de verificar se futuras alterações do regime processual penal não violam a presunção de inocência, não permite ajuizar sobre qualquer intencionalidade por parte do visado que seja motivo de suspeição.
IX - O deferimento de um pedido de reenvio prejudicial não está subordinado à sua mera solicitação, estando antes dependente da sua utilidade processual, que se afere pela apreciação judicial sobre a necessidade de ser proferida uma decisão de direito comunitário para dirimir uma questão que seja necessária para a decisão do litígio.
I – RELATÓRIO
1. Por referência ao Processo n.º 122/13.8..., tramitado no Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., AA veio deduzir incidente de recusa do Procurador-Geral da República «para intervir no dito processo como superior hierárquico dos Procuradores da República que constituem a “equipa” do Ministério Público nomeada para o respetivo Julgamento e como responsável direto pela nomeação dos referidos Magistrados para essa “equipa” e função», com pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, invocando os seguintes fundamentos (transcrição):
«Deduz este incidente, nos termos e para os efeitos dos artigos 43.º a 46.º do Código de Processo Penal, por remissão do artigo 54.º n.º 1, por considerar suspeita (no sentido do n.º 1 do artigo 43.º) a intervenção do Magistrado visado como superior hierárquico dos Procuradores da República que constituem a equipe do Ministério Público nomeada para o respetivo Julgamento e como responsável direto pela nomeação dos referidos Magistrados para essa “equipa” e função.
O motivo sério e grave que determina a suspeita e que se mostra, objetivamente e subjetivamente, adequado a gerar desconfiança sobre a intervenção do Magistrado visado e dos Procuradores da República por ele escolhidos e nomeados para representarem o Ministério Público no Julgamento em causa, é a afirmação “Devemos dar oportunidade a AA para provar a sua inocência.”,
feita pelo Magistrado aqui visado ... semana antes da data designada para início da Audiência de Julgamento deste processo, numa entrevista que deu como Procurador-Geral da República, a propósito precisamente do julgamento, marcado para 3 de julho.
Suscita, designadamente, a desconfiança de que a intervenção do Magistrado visado neste processo e nesse julgamento e a dos Procuradores da República que constituem a “equipa” por ele escolhida e nomeada e sobre os quais tem e exerce poder hierárquico direto, seja pautada pela descoberta da verdade e pela realização do direito, “à charge et à décharge”, e obedeça a critérios de estrita objetividade;
E a suspeita de que a intervenção do Magistrado visado e dos Procuradores que representam o Ministério Público no Julgamento viola e continuará a violar a presunção de inocência.
Considera mesmo que o prosseguimento do julgamento nestas condições, com a intervenção do Magistrado visado sobre os Procuradores da República que lhe estão hierarquicamente subordinados o pode constituir um abuso do processo se o tribunal não tomar medidas concretas para evitar qualquer aparência de preconceito contra o arguido.
Vejamos os factos em que a questão assenta:
1. No dia ... de junho de 2025, o Magistrado aqui visado, numa entrevista que deu, como Procurador-Geral da República, afirmou a propósito do início do julgamento marcado para dia 3 de julho, o seguinte: “Devemos dar oportunidade a AA para provar a sua inocência.”
2. O Magistrado visado é o superior hierárquico direto dos Procuradores da República que representam o Ministério Público no julgamento deste processo;
3. E foram por ele nomeados especialmente para o efeito.
Importa recordar a este respeito que
4. Ao abrigo do disposto no artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, a Procuradoria-Geral da República emitiu ... comunicados sobre o presente processo criminal, em 22.11.2014 (dois nesta data), 16.2.2015, 22.4.2015, 8.6.2015, 8.7.2015, 9.7.2015, 20.8.2015, 3.9.2015, 4.10.2015, 7.10.2015, 15.10.2015 (dois nesta data), 23.12.2015, 29.3.2016, 13.7.2016, 20.7.2016, 13.9.2016, 18.1.2017 (três nesta data), 22.2.2017, 24.2.2017, 17.3.2017, 18.3.2017, 26.4.2017, 10.10.2017, e 12.9.2019, referindo os factos investigados, os crimes alegadamente cometidos, os meios de prova e de obtenção de prova obtidos e a obter e outros atos processuais ocorridos, como a dedução da acusação e a aplicação de medidas de coação.
5. Nenhum dos comunicados fez qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos.
Disposições nacionais suscetíveis de se aplicar no caso concreto:
1. Nos termos do artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, o MP pode fazer comunicados públicos sobre um processo criminal quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação para “garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública.”
2. Nenhuma norma expressa do direito positivo português impõe ao MP a obrigação de que nas declarações públicas sobre um determinado processo criminal proferidas ao abrigo do artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, faça menção à presunção de inocência dos arguidos até ao trânsito em julgado, nem prevê vias de recurso efetivas em caso de violação da referida obrigação, nem sanções processuais no processo dos arguidos prejudicados pela referida violação.
3. O artigo 102.º do Lei n.º 68/2019, de 27.8.2019, que aprova o Estatuto do Ministério Público, prevê que os magistrados do Ministério Público não podem fazer declarações ou comentários públicos sobre quaisquer processos judiciais, salvo, quando autorizados pelo Procurador-Geral da República, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo.
4. Não são abrangidas pelo dever de reserva as informações ou declarações que, em matéria não coberta por segredo de justiça ou por sigilo profissional, visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente o de acesso à informação, ou que se destinem à realização de trabalhos técnico-científicos académicos ou de formação.
5. As informações ou declarações referidas no número anterior, quando visem garantir o acesso à informação, são preferencialmente prestadas pela Procuradoria-Geral da República ou pelas procuradorias-gerais regionais.
Exposição das razões relativas à interpretação do direito da União e o nexo entre esse direito e a legislação nacional aplicável
Há dúvidas razoáveis sobre se a disposição do artigo 4.º, n.º 1 e 3, da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais são compatíveis com a legislação nacional por força da qual um órgão de liderança do MP, como uma Procuradoria-Geral da República, pode emitir sucessivos comunicados oficiais para a imprensa sobre um específico processo criminal, antes do trânsito em julgado da respetiva decisão final, referindo os factos nele investigados, os crimes alegadamente cometidos pelos arguidos, meios de prova e de obtenção de prova obtidos e a obter e outros atos processuais ocorridos no referido processo (como a dedução da acusação e a aplicação de medidas de coação), sem qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos.
Há dúvidas razoáveis sobre se as disposições dos artigos 4.º e 10.º da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais são compatíveis com a omissão da legislação nacional de quaisquer vias de recurso efetivas contra os comunicados oficiais para a imprensa da Procuradoria-Geral da República em caso de violação por estes comunicados do direito previsto no referido artigo 4.º, bem como a omissão de quaisquer sanções processuais da conduta violadora do direito previsto no artigo 4.º no processo dos arguidos prejudicados pela referida conduta;
E se o artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, o artigo 4.º n.ºs 1 e 3 da Diretiva 343/2016, os artigo 47.º e 48.º n.º 1 da Carta de Direitos Fundamentais e o Princípio do Primado do Direito da União, devem ser interpretados no sentido de que obrigam os tribunais nacionais a recusar um Procurador-Geral da República que, em entrevista pública nas vésperas do início do julgamento de um processo criminal específico, afirma que se deve dar a um dos arguidos desse processo a oportunidade “para provar a sua inocência”, tendo nomeado a equipa de magistrados do MP que intervém no referido julgamento e que lhe são hierarquicamente subordinados.
A dúvida grave que se coloca é a de saber se as referidas disposições do direito da União admitem uma interpretação segundo a qual são compatíveis com a obrigação de implementação da disposição sobre “referências em público à culpa” os comunicados oficiais para a imprensa emitidos por uma Procuradoria-Geral da República sobre um específico processo criminal, antes do trânsito em julgado da respetiva decisão final, sem qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos,
Esta dúvida grave convoca também o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais que deve ser interpretado à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos obre o artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que veda a publicação de comunicados públicos sem qualquer menção à reversibilidade da situação processual dos arguidos e à sua presumida inocência até trânsito em julgado da condenação (Allenet de Ribemont c. França, 10 de fevereiro de 1995, §§ 38 e 41, Fatullayev c. Azerbeijão, n.º 40984/07, 22 de abril de 2010, § 159, e G.C.P. c. Roménia, n.º 20899/03, 20 de dezembro de 2011, § 60). Para o Tribunal de Estrasburgo, é particularmente gravosa a publicidade dada à acusação e aos despachos de aplicação de medidas de coação sem qualquer ressalva da presunção de inocência dos visados.
Como já sublinharam os três estudos sobre a implementação do artigo 4.º e 10.º da Diretiva (UE) 2016/343 em Portugal (estudos da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Universidade de Bolonha para a Comissão Europeia e do FORUM PENAL – Associação de Advogados penalistas), o direito nacional não implementou estas disposições, encontrando-se pendente um processo por infração contra Portugal da Comissão Europeia a este propósito.
É muito duvidoso que as referidas disposições da Diretiva (UE) 2016/343 possam comportar uma interpretação que admita comunicados oficiais públicos de uma Procuradoria-Geral da República sobre um específico processo criminal, não ressalvando a presunção da inocência dos arguidos até ao trânsito em julgado da decisão final, sem que a legislação nacional preveja quaisquer vias de recurso efetivas contra os referidos comunicados públicos oficiais em caso de violação por estes comunicados do direito previsto no referido artigo 4.º, nem preveja quaisquer sanções processuais da conduta violadora do direito previsto no artigo 4.º no processo dos arguidos prejudicados pela referida conduta.
E é seguramente muito duvidoso, também, que as referidas disposições da Diretiva (EU) 2016/343 possam comportar uma interpretação que admita que um Procurador-Geral da República faça declarações públicas em que se presume que a culpa do arguido já está provada antes do julgamento iniciar e que cabe ao arguido provar a sua inocência durante o julgamento.
Sobre as mesmas, escreveu Vital Moreira: “Infelizmente, não se trata de um lapsos linguae, mas de uma genuína expressão da cultura penal que prevalece no MP quando se trata de acusar políticos, segundo a qual, feita a acusação, é aos próprios arguidos que incumbe provar a sua inocência, assim invertendo o «ónus de prova» e negando o princípio constitucional da presunção de inocência - e o seu corolário, o princípio in dubio pro reo, ou seja, absolvição em caso de dúvida razoável -, que é uma das grandes heranças da revolução constitucional contra o Antigo Regime e o «princípio inquisitorial», tornando-se um esteio essencial do Estado de direito em matéria penal.”
A resposta às referidas questões é necessária para permitir ao tribunal nacional proferir, à luz do direito da União, a sua decisão no âmbito do litígio no processo principal sobre os efeitos processuais dos referidos comunicados da Procuradoria-Geral da República e declarações do Procurador-Geral da República no referido processo.
Com base nas referidas dúvidas razoáveis devem ser colocadas ao Tribunal de Justiça as seguintes perguntas prejudiciais:
– Devem o artigo 4.º, n.º 1 e 3, da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional (como a do artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP) por força da qual um órgão de liderança do MP, como uma Procuradoria-Geral da República, pode emitir comunicados para a imprensa ou fazer declarações públicas sobre um específico processo criminal, antes do trânsito em julgado da respetiva decisão final, referindo os factos nele investigados, os crimes alegadamente cometidos pelos arguidos, meios de prova e de obtenção de prova obtidos e a obter e outros atos processuais ocorridos no referido processo (como a dedução da acusação e a aplicação de medidas de coação), sem qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos?
– Devem os artigos 4 e 10 da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais ser interpretados no sentido de que se opõem à omissão da legislação nacional de quaisquer vias de recurso efetivas contra os comunicados oficiais do MP ou as declarações públicas de um Procurador-Geral da República em caso de violação por estes comunicados ou estas declarações do direito previsto no referido artigo 4.º, bem como à omissão de quaisquer sanções processuais da conduta violadora do direito previsto no artigo 4.º com efeitos no processo dos arguidos prejudicados pela referida conduta?
– Devem o artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, o artigo 4.º n.ºs 1 e 3 da Diretiva 343/2016, os artigo 47.º e 48.º n.º 1 da Carta de Direitos Fundamentais e o Princípio do Primado do Direito da União, ser interpretados no sentido de que obrigam os tribunais nacionais a recusar um Procurador-Geral da República que, em entrevista pública nas vésperas do início do julgamento de um processo criminal específico, afirma que se deve dar a um dos arguidos desse processo a oportunidade “para provar a sua inocência”, tendo nomeado a equipa de magistrados do MP que intervém no referido julgamento?
A este respeito, da decisão prejudicial solicitada, o Requerente tem presente o seguinte:
No âmbito de um reenvio prejudicial, o Tribunal de Justiça só pode interpretar o direito da União nos limites das competências que lhe são atribuídas (Acórdão de 11 de julho de 2024, Hann‑Invest e o., C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21, EU:C:2024:594, n.º 30 e jurisprudência referida).
O âmbito de aplicação da Carta de Direitos Fundamentais, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está definido no seu artigo 51.º, n.º 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros, quando aplicam o direito da União, confirmando esta disposição a jurisprudência constante segundo a qual os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União se destinam a ser aplicados em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora delas (Acórdão de 11 de julho de 2024, Hann‑Invest e o., C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21, EU:C:2024:594, n.º 31 e jurisprudência referida).
A decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária ao julgamento da causa» a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio (Acórdão de 11 de julho de 2024, Hann‑Invest e o., C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21, EU:C:2024:594, n.º 40 e jurisprudência referida), podendo ser necessária uma resposta a questões prejudiciais para poder fornecer aos órgãos jurisdicionais de reenvio uma interpretação do direito da União que lhes permita resolver questões processuais de direito nacional antes de poderem decidir sobre o mérito dos litígios que lhes foram submetidos (Acórdão de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o., C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931, n.º 48 e jurisprudência referida).
As questões prejudiciais que, deste modo, visam permitir a um órgão jurisdicional de reenvio resolver in limine litis dificuldades de ordem processual, como as relativas à sua própria competência para conhecer de um processo nele pendente ou, ainda, os efeitos jurídicos que devem ou não ser reconhecidos a uma decisão jurisdicional que potencialmente obsta ao prosseguimento da apreciação desse processo pelo referido órgão jurisdicional, são admissíveis por força do artigo 267.º TFUE [Acórdão de 13 de julho de 2023, YP e o (Levantamento da imunidade e suspensão de um juiz) C-615/20 e C-671/20, EU:C:2023:562, n.º 47 e jurisprudência referida].
O órgão jurisdicional nacional é obrigado a explicitar, na própria decisão de reenvio, o quadro factual e regulamentar em que se insere o litígio no processo principal e a dar as explicações necessárias sobre as razões da escolha das disposições do direito da União cuja interpretação solicita, bem como sobre o nexo que estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio que lhe foi submetido [v., neste sentido, Acórdão de 4 de junho de 2020, C.F. (Fiscalização Tributária), C-430/19, EU:C:2020:429, n.o 23 e jurisprudência referida].
Portanto, o pedido de decisão prejudicial deve conter, além disso, a exposição das razões que levaram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar-se, no âmbito desta questão, sobre a interpretação das disposições do direito da União, para que o Tribunal de Justiça possa apreciar em que medida uma resposta à referida questão é necessária para permitir a esse órgão jurisdicional proferir a sua decisão no âmbito do litígio no processo principal.
Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (o tribunal e o Estado português) existirá posto que se encontrem cumpridos cumulativamente determinados pressupostos, a saber: que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta; que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares; que esteja esgotado o prazo de transposição.
Encontrando-se operativo o efeito direto vertical das Diretivas convocadas, não tem qualquer aplicação à situação dos autos o princípio da interpretação conforme, também designado efeito indireto – traduzindo-se tal princípio numa imposição de interpretação do direito nacional orientada no sentido da sua conformidade com o Direito da União, com vista a, tanto quanto possível, a atingir os objetivos visados por este – uma vez que, aplicando-se diretamente o Direito da União, nenhum direito nacional haverá a interpretar (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 2.8.2022, processo 53/19.8GACUB-B.E1). Não se verificando os requisitos do efeito direito vertical, os tribunais nacionais devem respeitar o princípio da interpretação conforme que exige que façam tudo o que for da sua competência, tomando em consideração todo o direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, a fim de garantir a plena eficácia das diretivas e alcançar uma solução conforme ao objetivo por ela prosseguido (Acórdão de 24 de janeiro de 2012, Maribel Dominguez, C-282/10, ECLI:EU:C:2012:33, n.º 27).
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, as questões submetidas a título prejudicial não são idênticas a qualquer outra questão sobre a qual o Tribunal de Justiça já se tenha pronunciado, nem a resposta a essas questões pode ser claramente deduzida da jurisprudência, pelo que a resposta às questões submetidas a título prejudicial suscita uma dúvida razoável (a contrario, acórdão do STJ, de 29.11.2022, ECLI:PT:STJ:2022:2426.21.7T8VCT.C.S1.25, e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.5.2025, processo nº 273/21.5TELSB-D.L1-9).
As questões prejudiciais referem-se à Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho de 9 de março de 2016 relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (de ora em diante, Diretiva (UE) 2016/343).
A Diretiva (UE) 2016/343 tinha de ser transposta para o direito nacional até 1 de abril de 2018.
A implementação desta Diretiva tem suscitado vários problemas, como concluiu a Comissão Europeia (Report from the Commission to the European Parliament and the Council on the implementation of Directive (EU) 2016/343 of the European Parliament and of the Council of 9 March 2016 on the strengthening of certain aspects of the presumption of innocence and of the right to be present at the trial in criminal proceedings, COM/2021/144 final).
Também a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia apresentou as suas conclusões críticas do processo de implementação em nove Estados, com base em 123 entrevistas com advogados de defesa, juízes, procuradores, policiais e jornalistas de Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Alemanha, Itália, Lituânia, Polónia e Portugal (Presumption of Innocence and related Rights. Professional Perspectives. Report, 31.3.2021).
É particularmente instrutivo o relatório sobre a situação em Portugal: “Presumption of
Innocence: procedural rights in criminal proceedings. Social Fieldwork Research (FRANET)”, da autoria de Conceição Gomes, Paula Fernando, Carolina Carvalho e Marina Henriques, com data de 18.8.2020, que, no seu sumário executivo, concluiu o seguinte: “The interviewees emphasized the absence of an efficient, transparent and ethical relationship between the judicial system and the media that has several negative consequences.[…] Finally, the interviewees reported major limitations on possible reactions to presenting defendants as being guilty.”
Num outro estudo conduzido pela Universidade de Bolonha para a Comissão Europeia, concluiu-se no tocante ao processo de implementação da Diretiva (UE) 2016/343 em Portugal que “[…] the number of implementation deficiencies identified in relation to this Directive [2016/343] cannot be said to be large: they concern only Article 4 (1) and (2), Article 5 (1), Article 8 (2) (a) and (4), and Article 9. However, some of the deficiencies identified can be said to be serious.” Em relação aos remédios da legislação nacional concluiu-se que “[a]part from the rights that have not been implemented into the Portuguese legal system – which by definition have no associated legal remedy –, the breach of the rights provided in the Directive is, in our opinion, subject to “effective remedies” as envisaged in Article 10 of the Directive, even though such remedies are not always the same […].” (Cross-Justice n. 847346, Portuguese Report, da autoria de Miguel Costa e Pedro Caeiro, com data de 22.6.2022, pp. 68-69).
O FORUM PENAL – Associação de Advogados Penalistas publicou um “Comentário à Directiva 2016/343/UE relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal”. A propósito da implementação do artigo 4.º da Diretiva, o FORUM PENAL concluiu o seguinte: “Apesar de o ordenamento jurídico português consagrar já o dever de os magistrados judiciais e do ministério público se absterem de emitir quaisquer juízos no decurso das declarações de arguido em audiência e o dever geral de reserva das autoridades envolvidas na investigação e julgamento dos processos criminais (que limita as declarações ou comentários públicos sobre processos a situações excecionais e devidamente autorizadas), o efetivo cumprimento dos deveres que resultam desta norma da União Europeia implicará, provavelmente, ajustes legislativos para acomodação de uma proibição expressa de referências à culpabilidade do suspeito ou do arguido, quer no processo, quer em quaisquer declarações públicas das referidas autoridades.” (“Comentário à Directiva 2016/343/UE relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal”, p. 2).
Na sequência destes estudos e em face da inércia do Estado português, em 12.2.2025, a Comissão Europeia decidiu dar início a um processo por infração contra Portugal, enviando uma carta de notificação formal, por não ter transposto a Diretiva (UE) 2016/343.
Desconhece-se se o Estado português respondeu à dita carta.
Tramitação acelerada do pedido de reenvio
O órgão jurisdicional de reenvio pode pedir que o pedido de reenvio prejudicial seja submetido a tramitação acelerada, nos termos do artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.
O artigo 105.º, n.º 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz-relator e o advogado-geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.
Esta tramitação acelerada constitui um instrumento processual destinado a responder a uma situação de urgência extraordinária (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C-497/20, EU:C:2021:1037, n.o 37 e jurisprudência referida)
TERMOS EM QUE,
Requer as Vossa Excelências decidam, na procedência deste requerimento, recusar a intervenção do Procurador-Geral da República para intervir no julgamento deste processo, como superior hierárquico dos Procuradores da República que constituem a “equipa” do Ministério Público nomeada para o respetivo Julgamento e como responsável direto pela nomeação dos referidos Magistrados para essa “equipa”.
POR SE LHE AFIGURAR NECESSÁRIO A PERMITIR AO TRIBUNAL NACIONAL PROFERIR A SUA DECISÃO NESTE INCIDENTE À LUZ DO DREITO DA UNIÃO, REQUER, MAIS – ao abrigo do disposto nos artigos 267.º do TFUE, 4.º parágrafo, 105.º e seguintes do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e 23.º-A do Estatuto do Tribunal de Justiça – , SE DIGNEM VOSSAS EXCELÊNCIAS:
1. Decidir o Reenvio do presente processo para o Tribunal de Justiça da União Europeia, a título prejudicial, colocando ao Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais (antes indicadas):
Devem o artigo 4.º, n.º 1 e 3, da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional (como a do artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP) por força da qual um órgão de liderança do MP, como uma Procuradoria-Geral da República, pode emitir comunicados para a imprensa ou fazer declarações públicas sobre um específico processo criminal, antes do trânsito em julgado da respetiva decisão final, referindo os factos nele investigados, os crimes alegadamente cometidos pelos arguidos, meios de prova e de obtenção de prova obtidos e a obter e outros atos processuais ocorridos no referido processo (como a dedução da acusação e a aplicação de medidas de coação), sem qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos?
Devem os artigos 4 e 10 da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais ser interpretados no sentido de que se opõem à omissão da legislação nacional de quaisquer vias de recurso efetivas contra os comunicados oficiais do MP ou as declarações públicas de um Procurador-Geral da República em caso de violação por estes comunicados ou estas declarações do direito previsto no referido artigo 4.º, bem como à omissão de quaisquer sanções processuais da conduta violadora do direito previsto no artigo 4.º com efeitos no processo dos arguidos prejudicados pela referida conduta?
Devem o artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, o artigo 4.º n.ºs 1 e 3 da Diretiva 343/2016, os artigo 47.º e 48.º n.º 1 da Carta de Direitos Fundamentais e o Princípio do Primado do Direito da União, ser interpretados no sentido de que obrigam os tribunais nacionais a recusar um Procurador-Geral da República que, em entrevista pública nas vésperas do início do julgamento de um processo criminal específico, afirma que se deve dar a um dos arguidos desse processo a oportunidade “para provar a sua inocência”, tendo nomeado a equipa de magistrados do MP que intervém no referido julgamento?
2. E se dignem solicitar ao Tribunal de Justiça da União Europeia a tramitação acelerada desse incidente de reenvio prejudicial.»
2. Em conformidade com o disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), aplicável por força do artigo 54.º do mesmo diploma, o Procurador-Geral da República emitiu pronúncia em que formula as seguintes conclusões:
«1. Não existe qualquer intervenção processual e funcional do Procurador-Geral da República no âmbito do NUIPC 122/13.8....
2. Não proferindo os magistrados do Ministério Público quaisquer decisões em relação aos direitos do arguido - pois as intervenções dos magistrados do Ministério Público são sempre escrutinadas pelos juízes que julgam o caso, particularmente a juíza que dirige a audiência - não se vislumbra, sequer, que seja possível admitir, em abstrato, que o arguido possa, alguma vez, suscitar a recusa com fundamento na "imparcialidade" dos magistrados do Ministério Público do julgamento.
3. Os magistrados do Ministério Público, subordinados ao princípio da legalidade e objetividade, têm autonomia técnica e independência no exercício das suas funções.
4. Estes só respondem perante o seu imediato superior hierárquico, no âmbito da cadeia hierárquica, e não diretamente ao Procurador-Geral da República.
5. Não é permitido duplo grau de intervenção hierárquica.
6. Não se encontram preenchidos os requisitos para o requerido reenvio prejudicial, nomeadamente porque a iniciativa depende da existência de dúvidas por parte do juiz da causa, situação que não se verifica.
Em face do exposto, não se vislumbrando a existência de fundamento legal para o invocado incidente de recusa (art. 54.º e 43.° do CPP), deverá o mesmo ser indeferido por manifestamente infundado.»
3. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Elementos a considerar:
1.1. Ao abrigo do disposto no artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, a Procuradoria-Geral da República, Gabinete da Procuradora-Geral da República, emitiu ... comunicados sobre o processo criminal comummente designado de “..., em 22.11.2014 (dois nesta data), 16.02.2015, 22.04.2015 (23.04.2015), 8.06.2015 (9.06.2015), 8.07.2015 (9.07.2015), 9.07.2015 (10.07.2015), 20.08.2015 (21.08.2015), 3.09.2015 (4.09.2015), 4.10.2015 (5.10.2015), 7.10.2015 (8.10.2015), 15.10.2015 (16.10.2015 - dois nesta data), 23.12.2015, 29.03.2016 (30.03.2016), 13.07.2016 (14.07.2016), 20.07.2016 (21.07.2016), 13.09.2016 (14.09.2016), 18.01.2017 (três nesta data), 22.02.2017, 24.02.2017, 17.03.2017, 18.03.2017, 26.04.2017 (27.04.2017), 10.10.2017 (11.10.2017), e 12.09.2019 (13.09.2019)
[disponíveis em https://www.ministeriopublico.pt/...; em alguns casos existe uma diferença de um dia entre a data constante da listagem e a que consta no comunicado, situações em que se indicam as duas datas (a que consta do comunicado entre parêntesis)].
1.2. O atual Procurador-Geral da República, BB, tomou posse desse cargo em ...de 2024.
1.3. Em 28.11.2024, o Procurador-Geral da República proferiu despacho com o seguinte teor:
«Pelo despacho da Senhora Procuradora-Geral da República, de 3 de dezembro de 2018, foi designado o Senhor Procurador-..., Dr. CC para integrar a equipa encarregada de assegurar a representação do Ministério Público na fase de instrução, que então decorria, e na fase de julgamento que viesse a ter lugar, no processo com o NUIPC 122/13.8...
Acontece que o Senhor Procurador-..., Dr. CC, que, entretanto, se jubilou, foi designado para assegurar o julgamento do processo conhecido como «...».
Mantendo-se as exigências decorrentes da complexidade, especificidade e repercussão social da factualidade objeto do sobredito processo, no uso da competência conferida ao Procurador-Geral da República pelo disposto no n.º 1 do artigo 92.º do Estatuto do Ministério Público, e com a concordância do próprio, designo o Senhor Procurador-..., Dr. DD para assegurar a representação do Ministério Público na fase de julgamento do processo com o NUIPC 122/13.8...
No decurso da fase de julgamento deste processo manter-se-á a intervenção do Senhor Procurador-... Dr. EE e, se tal se revelar necessário, dos demais magistrados que participaram na investigação e na instrução do processo em termos a definir, em concreto e de forma articulada, entre estes magistrados.
(…).»
1.4. Em 9.12.2024, o Procurador-Geral da República proferiu despacho com o seguinte teor:
« Pelo meu despacho de 28 de novembro 2024, foi designado o Senhor Procurador-..., Dr. DD para assegurar a representação do Ministério Público na fase de julgamento do processo com o NUIPC 122/13.8...
O presente processo reveste-se de especial complexidade, sendo que estava previsto ser o Senhor Procurador-Geral Adjunto, Dr. CC a assegurar o julgamento, sendo coadjuvado pelos magistrados do Ministério Público que elaboraram a acusação.
Acontece que se prevê, a breve prazo, o início do julgamento relativo ao processo, conhecido como ....
Prevê-se que o julgamento do processo n.º NUIPC 122/13.8... seja trabalhoso, de particular litigância e complexidade, pelo que designo, nos termos do artigo 92.º n.º 1 do Estatuto do Ministério Público o senhor Procurador da República Dr. FF para participar no julgamento, coadjuvando o Dr. DD.
A investigação e acusação foi deduzida no DCIAP, nela tendo tido intervenção vários magistrados do Ministério Público, conforme decorre da assinatura da mesma.
Considero que alguns dos magistrados que assinaram a acusação - ainda hoje no DCIAP - devem assegurar o apoio que lhes for solicitado pelos Drs. DD e FF na realização do referido julgamento, estando presentes nos interrogatórios, em julgamento, dos intervenientes.
Assim, para além do senhor Procurador-... GG, já nomeado, determino que as senhoras Procuradoras da República HH e II estejam disponíveis, para participação no julgamento, sempre que tal lhes for solicitado pelos magistrados designados para a realização do mesmo.
0 Senhor Procurador-... Dr. CC assegurará o apoio em julgamento se estiver disponível e não estiver em funções no julgamento da ... (sem data prevista para o início do julgamento).
O Senhor Procurador-..., Dr. DD e o senhor Procurador da República Dr. FF deixam de ter distribuição e passam a ficar afetos a este processo a fim de prepararem, desde já, o julgamento.
(…).»
1.5. Numa entrevista ao programa "J...... ....", da Rádio ..., em ........2025, com a duração de 1h16:05, o Procurador-Geral da República disse, a dada altura (36:32) “penso que o ... AA sempre disse que queria ser julgado neste processo para provar a sua inocência, portanto acho que devemos dar essa oportunidade ao ... AA para provar a sua inocência, isso a ele e a todos os cidadãos”.
*
2. Apreciação
2.1. O artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o princípio fundamental da independência dos tribunais, estabelecendo que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei, princípio que exige a independência e imparcialidade dos juízes.
Sem isenção e imparcialidade dos juízes não se alcança o direito ao processo equitativo que a CRP garante a todos os cidadãos (artigo 20.º), constituindo a imparcialidade do Tribunal um requisito fundamental do processo justo (artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).
A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, de forma complementar, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa, conforme consagrado no CPP, que no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.
Dispõe o artigo 43.º, n.º 1, 2 e 4, do CPP:
«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verifiquem as condições dos nºs 1 e 2.»
Por sua vez, estabelece o artigo 54.º, integrado no título II:
«1 - As disposições do capítulo vi do título i são correspondentemente aplicáveis, com as adaptações necessárias, nomeadamente as constantes dos números seguintes, aos magistrados do Ministério Público.
2 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao superior hierárquico do magistrado em causa e por aquele apreciados e definitivamente decididos, sem obediência a formalismo especial; sendo visado o Procurador-Geral da República, a competência cabe à secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
3 - A entidade competente para a decisão, nos termos do número anterior, designa o substituto do impedido, recusado ou escusado.»
Quer isto dizer que o regime de impedimentos, escusas e recusas aplicável aos juízes é igualmente aplicável aos magistrados do Ministério Público que intervêm no processo penal, ainda que com as necessárias adaptações.
Constitui pressuposto do pedido de recusa, como prescreve o n.º 1, do artigo 43.º, que o magistrado visado tenha intervenção «no processo» onde o mesmo é formulado, isto é, num concreto processo.
O Procurador-Geral da República pode ser recusado em processo penal, como está expressamente previsto no n.º 2, do artigo 54.º, do CPP, quando dirija efetivamente o processo ou quando intervenha nos termos da lei processual penal como superior hierárquico do magistrado que o conduz (acórdão do STJ, de 8.03.2006, Colectânea de Jurisprudência, Acs. do STJ, XIV, I, 204, referindo-se expressamente, porém, à fase de inquérito).
2.2. O artigo 219.º, n.º 1, da CRP, atribui ao Ministério Público as funções de representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, de participar na política criminal definida pelos órgãos de soberania, de exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
O modelo de Ministério Público traçado na CRP assenta, no essencial, nos princípios da autonomia, da hierarquia e da responsabilidade (artigo 219.º, n.ºs 2, 3 e 4, da CRP).
A “autonomia”, nos termos do artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público (EMP, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto), refere-se aos demais órgãos do poder central, regional e local, caracterizando-se pela vinculação do Ministério Público a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos seus magistrados às diretivas, ordens e instruções previstas no Estatuto.
Tem como órgão superior a Procuradoria-Geral da República, presidida pelo Procurador-Geral da República que é nomeado e exonerado, sob proposta do Governo, pelo Presidente da República.
Concretizando as funções do Procurador-Geral da República, prescreve o artigo 19.º, do EMP, que lhe compete:
«1 - Compete ao Procurador-Geral da República:
a) Presidir e dirigir a Procuradoria-Geral da República;
b) Representar o Ministério Público nos tribunais referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º;
c) Requerer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma.
2 - Como dirigente da Procuradoria-Geral da República, compete ao Procurador-Geral da República:
a) Promover a defesa da legalidade democrática;
b) Dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério Público e emitir as diretivas, ordens e instruções a que deve obedecer a atuação dos respetivos magistrados;
c) Emitir, em especial, as diretivas, ordens e instruções destinadas a fazer cumprir as leis de orientação da política criminal, no exercício da ação penal e das ações de prevenção atribuídas ao Ministério Público;
d) Convocar o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República e presidir às respetivas reuniões;
e) Informar o membro do Governo responsável pela área da justiça e a Assembleia da República da necessidade de medidas legislativas tendentes a conferir exequibilidade aos preceitos constitucionais;
f) Representar o Ministério Público nas relações institucionais com o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e as organizações internacionais para que seja designado por lei ou convenção internacional;
g) Intervir hierarquicamente nos inquéritos, nos termos previstos no Código de Processo Penal;
h) Fiscalizar superiormente a atividade processual dos órgãos de polícia criminal, nos termos do presente Estatuto;
i) Determinar superiormente os critérios de coordenação da atividade processual no decurso do inquérito e de prevenção levada a cabo pelos órgãos de polícia criminal que assistirem o Ministério Público, quando necessidades de participação conjunta o justifiquem, nos termos da lei;
j) Determinar, de acordo com o disposto na alínea anterior, diretamente e quando necessário, a mobilização e os procedimentos de coordenação relativamente aos órgãos de polícia criminal chamados a coadjuvar o Ministério Público no decurso de inquérito;
k) Participar nas reuniões do conselho coordenador dos órgãos de polícia criminal, nos termos previstos na lei;
l) Inspecionar ou mandar inspecionar a atividade e funcionamento do Ministério Público, designadamente dos seus órgãos e secretarias, e ordenar a instauração de inquérito, sindicâncias e processos criminais ou disciplinares aos seus magistrados;
m) Propor ao membro do Governo responsável pela área da justiça e à Assembleia da República providências legislativas com vista ao incremento da eficiência do Ministério Público e ao aperfeiçoamento das instituições judiciárias ou a pôr termo a decisões divergentes dos tribunais ou dos órgãos da Administração Pública;
n) Informar o membro do Governo responsável pela área da justiça e a Assembleia da República acerca de quaisquer obscuridades, deficiências ou contradições dos textos legais;
o) Intervir, pessoalmente ou por substituição, nos contratos em que o Estado seja outorgante, quando a lei o exigir;
p) Superintender os serviços de inspeção do Ministério Público;
q) Dar posse aos magistrados do Ministério Público, nos termos do presente Estatuto;
r) Exercer, na Procuradoria-Geral da República, os poderes administrativos e financeiros idênticos aos que integram a competência ministerial;
s) Estabelecer os objetivos estratégicos do Ministério Público e homologar as propostas de objetivos processuais de todos os órgãos e departamentos do Ministério Público;
t) Elaborar o relatório anual de atividades do Ministério Público e proceder à sua apresentação institucional, bem como à sua divulgação pública;
u) Apresentar à Assembleia da República e ao membro do Governo responsável pela área da justiça o relatório bianual sobre execução da lei de política criminal;
v) Garantir a produção estatística relativa à atividade do Ministério Público, promovendo a transparência do sistema de justiça;
w) Apreciar os recursos hierárquicos dos atos administrativos praticados por magistrados do Ministério Público;
x) Exercer as demais funções que lhe sejam atribuídas por lei.
3 - As diretivas a que se referem a alínea b), que interpretem disposições legais, e a alínea c) do número anterior, bem como as relativas ao cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 11.º, são publicadas na 2.ª série do Diário da República, sem prejuízo do registo documental interno de todas as demais diretivas, ordens e instruções.
4 - Em aplicação do disposto na alínea h) do n.º 2, o Procurador-Geral da República, velando pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e pelo cumprimento dos pertinentes deveres legais, por si ou nos termos da alínea e) do artigo 101.º, ordena periodicamente auditorias, sindicâncias ou inquéritos aos serviços dos órgãos de polícia criminal, destinados a fiscalizar o adequado cumprimento e efetivação das atribuições judiciárias e as inerentes condições legais do seu exercício, podendo emitir diretivas ou instruções genéricas sobre o cumprimento da lei.
5 - É apresentado até ao dia 31 de maio de cada ano o relatório de atividade respeitante ao ano judicial anterior.
6 - O Procurador-Geral da República é apoiado, no exercício das suas funções, por um gabinete.
7 - A estrutura e composição do gabinete do Procurador-Geral da República são definidas em diploma próprio.
8 - Os atos administrativos praticados pelo Procurador-Geral da República são impugnáveis perante o Supremo Tribunal Administrativo.»
Trata-se de atribuições de natureza diversa que relevam da diferente qualidade em que intervém: como presidente da Procuradoria-Geral da República, exercitando os poderes que lhe são conferidos, além do mais, para promoção e defesa da legalidade democrática e de direção, coordenação e fiscalização da atividade do Ministério Público, e como representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal de Contas.
Os magistrados do Ministério Público são responsáveis e hierarquicamente subordinados, consistindo a responsabilidade em responderem pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das diretivas, ordens e instruções que receberem (artigo 97.º, n.ºs 1, 2 e 3, do EMP).
Prevendo em relação a certas categorias de magistrados a titularidade de poderes próprios de uma relação hierárquica, o artigo 14.º do EMP, sob a epígrafe “Direção e hierarquia”, procede a uma indicação taxativa dos magistrados do Ministério Público que «no exercício das suas funções detêm poderes de direção, hierarquia e, nos termos da lei, intervenção processual…». Têm tais poderes o Procurador-Geral da República [al. a)], o Vice-Procurador-Geral da República [al. b).], os Procuradores-Gerais Regionais [al. c], o diretor do DCIAP [al. d)], o diretor do departamento central de contencioso do Estado e de interesses coletivos e difusos [al. e)], o magistrado coordenador de Procuradoria da República de comarca [al. f)]; o magistrado coordenador de Procuradoria da República administrativa e fiscal [al. g)]; o diretor do departamento de investigação e ação penal (DIAP) regional [al. h)]; o diretor do DIAP [al. i)]. Os procuradores da República que dirigem procuradorias e secções dos DIAP detêm poderes de hierarquia processual, bem como os poderes que lhes sejam delegados pelo imediato superior hierárquico.
Também os superiores hierárquicos têm de agir no respeito pelo princípio da legalidade e da objetividade no âmbito da ação penal, assistindo sempre aos magistrados subordinados o dever de não acatarem ordens ou instruções ilegais e de exercerem o direito de objeção de consciência, assim se garantindo aquilo a que deve reconduzir-se o núcleo essencial do respeito pela autonomia interna desta magistratura (cf. artigos 97.º, n.ºs 1, 2 e 3; 100.º, n.º 3 e 104.º, n.º 3, do EMP).
Quando confrontados com uma ordem ilegal provinda da hierarquia, os magistrados do Ministério Público não só não lhe devem obediência, como, mais do que isso, devem recusar o seu cumprimento. Nisto se evidencia a sua caracterização como magistrados, que se distingue substancialmente dos agentes administrativos em geral. «São magistrados porque, além de serem portadores de poderes de autoridade, fundamentalmente, se encontram especial e irrestritamente subordinados à lei, em caso algum podendo fazê-la ceder perante a hierarquia: “Os magistrados do Ministério Público devem recusar o cumprimento de diretivas, ordens e instruções ilegais (…)” (art.100.º/3 do EMP)» (Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in “DIREITO PROCESSUAL PENAL”, OS SUJEITOS PROCESSUAIS, p.150).
Entre as competências do Procurador-Geral da República conta-se a prevista no artigo 92.º do EMP, com a epígrafe “Representação especial nos processos criminais”, que no seu n.º1 prevê: «Nos processos criminais, o Procurador-Geral da República pode nomear qualquer magistrado do Ministério Público para coadjuvar ou substituir outro magistrado a quem o processo esteja distribuído, sempre que razões ponderosas de complexidade processual ou de repercussão social o justifiquem.»
A nomeação de magistrado do Ministério Público ao abrigo do citado artigo 92.º, n.º1, situa-se no domínio das competências gestionárias do Procurador-Geral da República, pelo que não configura uma intervenção no processo - não tem a natureza de ato processual -, nem tem a virtualidade de colocar o magistrado nomeado num relação de imediata relação de dependência hierárquica relativamente ao Procurador-Geral da República que se sobreponha à relação com os seus imediatos superiores hierárquicos (cf. acórdão do STJ, de 8.03.2006, supra citado).
2.3. Como já se disse, o regime de impedimentos, escusas e recusas aplicável aos juízes é igualmente aplicável aos magistrados do Ministério Público que intervêm no processo penal, ainda que com as necessárias adaptações.
Refere Paulo Dá Mesquita (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama et alii, 2.ª edição, Tomo I, p. 605) que a razão para esta equiparação “assenta na assunção do papel do Ministério Público que, no processo, se afirma vinculada ao princípio da objetividade (art. 53.º), associado ao princípio da legalidade, bem como a sua obrigação de investigar «à charge» e «à dècharge» (art. 262.º) e ainda a legitimidade para recorrer no exclusivo interesse da defesa (art. 401.º)”.
Por conseguinte, o regime legal sobre impedimentos, recusas e escusas deve ser interpretado com respeito da especificidade do Ministério Público, o que impõe, nos termos do artigo 54.º, n.º1, uma aplicação com as adaptações necessárias decorrentes das diferenças funcionais e estruturais entre Ministério Público e judicatura, avultando o particularismo de o Ministério Público ser uma magistratura de ação, à qual é conatural a oficiosidade, e também de promoção ou postulação, ao passo que o juiz integra uma magistratura que se pode designar de “reativa”, porquanto é chamado a resolver as questões que outrem lhe coloca.
A intervenção do Ministério Público no âmbito do processo penal é multifacetada, pela polifuncionalidade que assume no processo, destacando-se a variação entre o posicionamento como autoridade judiciária que dirige a fase de inquérito - o Ministério Público encerra em si um poder/dever sobre o objeto do processo e a sua prossecução, sendo responsável pelo ato decisório final dessa fase - e o que assume em incidentes judiciais daquela fase e nas fases processuais presididas por juiz.
Na fase de inquérito, que lhe compete dirigir (artigo 263.º do CPP), o Ministério Público atua como autoridade judiciária que exerce poderes de decisão e de conformação processual; nas fases posteriores, da competência do juiz, o Ministério Público não tem poderes decisórios, ainda que não seja, em rigor, parte no processo, a não ser que se tome o conceito num sentido puramente formal e instrumental, já que não prossegue no processo penal interesses particulares, “mas atua orientado exclusivamente pelo fim objetivo da realização do direito” (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. I, 2.ª edição, 2022, p. 244. Cf. igualmente o ponto 10 do preâmbulo do CPP vigente e o Acórdão do STJ n.º 2/2011, Diário da República, 1.ª série, N.º 19, de 27 de janeiro), obedecendo em todas as suas intervenções processuais a critérios de estrita objetividade, competindo-lhe colaborar com o tribunal na descoberta da verdade (artigo 53.º, n.º1,do CPP).
Exemplificando, no regime de impedimentos estabelecido pelo artigo 40.º do CPP está em causa a tutela da imparcialidade funcional específica do juiz, pelo que a respetiva previsão não é aplicável ao Ministério Público: a intervenção como magistrado do Ministério Público em diferentes fases processuais não é, de per si, geradora de qualquer impedimento, não existindo qualquer obstáculo legal a que o magistrado do Ministério Público que dirigiu o inquérito e formulou a decisão de acusar, com base na avaliação que fez da existência de indícios suficientes da prática de crime pelo arguido, seja o mesmo que, nas fases seguintes, nomeadamente em julgamento, assuma a responsabilidade de sustentar a acusação que deduziu (cf. acórdão do STJ, de 17.01.2007, processo 06P4597, disponível, como outros que sejam citados sem diversa indicação, em www.dgsi.pt).
Há quem sustente que o incidente de recusa de magistrado do Ministério Público que intervém num concreto processo só pode ter lugar na fase de inquérito, por só aí se justificar a cautela e a garantia de imparcialidade e objetividade de quem tem a condução de uma fase processual de que é o “dominus” (cf. o referido acórdão do STJ, de 8.03.2006).
Quando particularizamos a intervenção do Ministério Público na fase de inquérito não queremos significar que as questões de suspeição não se possam colocar nas restantes fases do processo penal.
Porém, é na fase de inquérito que a recusa do concreto magistrado do Ministério Público que intervém no concreto processo ganha maior acuidade, em função dos poderes de direção, conformação e decisão que, nessa fase, pertencem ao Ministério Público, justificando especial cautela na garantia da imparcialidade e da objetividade de quem tem a responsabilidade pela condução do processo – objetividade e imparcialidade que caracterizam o estatuto de autonomia do órgão que, por sua vez, constitui a garantia de direitos fundamentais dos destinatários das suas decisões, postulada, além do mais, pelos princípios da igualdade e da legalidade.
Nas fases posteriores, a garantia de atuação imparcial coloca-se em termos diferentes, pois o Ministério Público não tem poderes decisórios e a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos intervenientes processuais está, nessas fases, a coberto da garantia judicial.
2.4. Revertendo ao caso em apreço, importa recordar que constitui pressuposto do pedido de recusa, conforme já exposto, que o magistrado visado tenha intervenção «no processo», isto é, num concreto processo.
Já se disse ser possível o incidente de recusa do Procurador-Geral da República, conforme está expressamente previsto no artigo 54.º, n.º2, do CPP, quando dirija efetivamente o processo ou intervenha no processo nos termos da lei processual como imediato superior hierárquico do magistrado que conduz o processo.
In casu, a nomeação de magistrado do Ministério Público para o julgamento em causa, e bem assim da respetiva equipa de apoio (cf. supra em II, 1.3. e 1.4.) efetuada ao abrigo do artigo 92.º, n.º1, do EMP, emana de um poder de gestão do Procurador-Geral da República, não revestindo a natureza de ato processual praticado no âmbito do NUIPC 122/13.8... e não alterando a cadeia hierárquica no Ministério Público.
É certo que essa cadeia hierárquica culmina no Procurador-Geral da República, mas tal não significa que o mesmo, em razão do exercício do mencionado poder gestionário, tenha passado a ser superior hierárquico direto da equipa que assegura o julgamento no NUIPC 122/13.8... (cf. artigo 14.º, 75.º e 84.º do EMP), com desconsideração dos imediatos superiores hierárquicos. O poder gestionário de nomear qualquer magistrado do Ministério Público para coadjuvar ou substituir outro magistrado a quem o processo esteja distribuído não pressupõe a emissão de quaisquer diretivas ou instruções sobre a intervenção processual do magistrado, que goza de normal liberdade de ação e de autonomia, sendo certo que os pressupostos legais do exercício de tal poder - “sempre que razões ponderosas de complexidade processual ou de repercussão social o justifiquem” – assentam em razões de maior eficácia.
Acresce que, sendo o Ministério Público uma magistratura hierarquicamente organizada, os seus magistrados estão vinculados aos princípios da objetividade e da legalidade e mantêm autonomia técnica no exercício das suas funções (artigo 3.º do EMP), estabelecendo a lei limites em relação ao exercício de poderes diretivos (cf. artigo 100.º do EMP).
Não existindo qualquer intervenção processual por parte do Procurador-Geral da República no âmbito do NUIPC 122/13.8..., pois o exercício do poder gestionário de nomeação ao abrigo do artigo 92.º, n.º1, do EMP, não se reveste dessa natureza, e bem assim não sendo o mesmo superior hierárquico direto da equipa que assegura o julgamento, não se vislumbra qualquer fundamento para o incidente de recusa contra aquele deduzido (cf. acórdão de 8.03.2006, supra citado) - que é, assim, manifestamente infundado.
2.5. Ainda assim, não deixaremos de avançar, sinteticamente, como se passa a expor de seguida.
2.5.1. Tendo em vista o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, o requerente coloca em causa o teor de diversos comunicados emitidos ao abrigo do disposto no artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, pela Procuradoria-Geral da República, Gabinete da Procuradora-Geral da República, sobre o processo criminal comummente designado de “..., a saber: em 22.11.2014 (dois nesta data), 16.02.2015, 22.04.2015 (23.04.2015), 8.06.2015 (9.06.2015), 8.07.2015 (9.07.2015), 9.07.2015 (10.07.2015), 20.08.2015 (21.08.2015), 3.09.2015 (4.09.2015), 4.10.2015 (5.10.2015), 7.10.2015 (8.10.2015), 15.10.2015 (16.10.2015 - dois nesta data), 23.12.2015, 29.03.2016 (30.03.2016), 13.07.2016 (14.07.2016), 20.07.2016 (21.07.2016), 13.09.2016 (14.09.2016), 18.01.2017 (três nesta data), 22.02.2017, 24.02.2017, 17.03.2017, 18.03.2017, 26.04.2017 (27.04.2017), 10.10.2017 (11.10.2017), e 12.09.2019 (13.09.2019).
Diz o requerente que em nenhum dos comunicados fez-se qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos e expõe dúvidas quanto à compatibilidade da legislação nacional “por força da qual um órgão de liderança do MP, como uma Procuradoria-Geral da República, pode emitir sucessivos comunicados oficiais para a imprensa sobre um específico processo criminal, antes do trânsito em julgado da respetiva decisão final, referindo os factos nele investigados, os crimes alegadamente cometidos pelos arguidos, meios de prova e de obtenção de prova obtidos e a obter e outros atos processuais ocorridos no referido processo (como a dedução da acusação e a aplicação de medidas de coação), sem qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos” e os artigos 4.º, n.º 1 e 3, 10.º, da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais.
Convoca também o requerente o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais, à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) sobre o artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, invocando as decisões proferidas em Allenet de Ribemont c. França, 10 de fevereiro de 1995, §§ 38 e 41, Fatullayev c. Azerbeijão, n.º 40984/07, 22 de abril de 2010, § 159, e G.C.P. c. Roménia, n.º 20899/03, 20 de dezembro de 2011, § 60.
2.5.1.1. No processo Allenet de Ribemont c. França (n.º 15175/89) estava em causa uma conferência de imprensa do Ministro do Interior, do Diretor da Polícia Judiciária da sede da polícia de Paris e do Chefe do Departamento de Investigação Criminal, transmitida por duas estações de televisão francesas, em que, sendo questionados sobre o caso do assassínio de um antigo ministro, ocorrido dias antes, aqueles responsáveis designaram Allenet de Ribemont, - “sans nuance ni réserve”; “without any qualification or reservation” - como um dos instigadores do homicídio, o que se traduziu numa declaração de culpabilidade daquele cidadão.
No processo Fatullayev c. Azerbeijão (n.º 40984/07) estava em causa a declaração de um procurador-geral produzida poucos dias após o início das investigações, na qual indicou, inequivocamente, um jornalista - “sans nuance ni réserve”; “without any qualification or reservation” - como tendo elaborado um artigo que continha uma ameaça de terrorismo.
No processo G.C.P. c. Roménia (n.º 20899/03), o TEDH destacou que deve ser feita uma distinção fundamental entre a declaração de que alguém é meramente suspeito de ter cometido um crime e a declaração clara de que um indivíduo cometeu o crime em questão, a importância da escolha das palavras e a necessidade de analisar a declaração no contexto das circunstâncias específicas em que foi feita (Butkevičius v. Lituânia, n.º 48297/99), reconhecendo que o artigo 6.º/2 da CEDH não pode impedir as autoridades de informarem o público sobre as investigações criminais em curso, mas exige que o façam com toda a discrição e cautela.
No caso, as declarações questionadas foram produzidas pelo Ministério Público que procedia às investigações, o Ministro do Interior e o Procurador-Geral da Roménia, num contexto independente do próprio processo penal, feitas numa altura em que a investigação criminal relativa ao requerente tinha acabado de ser iniciada. A declaração do Procurador-Geral da Roménia expressou a sua convicção de que «há 99% de hipóteses de o requerente também ser enviado a julgamento» e que o requerente «tinha feito mais do que isso». O TEDH aceitou que tal declaração, considerada no seu conjunto, podia ser interpretada como uma mera afirmação de que havia provas suficientes para sustentar uma acusação contra o requerente e, assim, justificar a abertura da investigação criminal contra ele. Porém, quanto às declarações feitas pelo procurador que procedia às investigações e pelo Ministro do Interior romeno, o TEDH entendeu que continham uma formulação que equivalia à declaração expressa e inequívoca de que o requerente tinha cometido crimes.
No caso em apreço, os comunicados emitidos ao abrigo do disposto no artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, pela Procuradoria-Geral da República, relativos à designada “..., informam, essencialmente, sobre: a ocorrência de detenções; a ocorrência de buscas; a constituição de arguidos; a aplicação de medidas de coação; a alteração de medidas de coação; a arguição de nulidade de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação; a autorização de acesso aos autos a todos os intervenientes processuais; a interposição de recurso; a prolação de diversos despachos da Procuradora-Geral da República sobre prazos para a conclusão da investigação e a sua prorrogação; a prolação do despacho final; a apresentação de requerimento de recusa de juiz.
Referem-se aos factos em causa no processo mediante fórmulas como “investigam-se suspeitas de (…)”, “no qual se investigam suspeitas da prática de (…)”, “se mostram consolidados os indícios recolhidos”, etc.
O que sobressai, para além das diferenças que se possam identificar entre o teor dos comunicados em questão e a factualidade presente nos mencionados arestos do TEDH, é a circunstância de o requerente invocar comunicados emitidos entre 22.11.2014 e 12.09.2019 (13.09.2019), sem cuidar da circunstância de o recusado ter tomado posse como Procurador-Geral da República apenas em ... de 2024.
Todos os comunicados foram emitidos pela “Procuradoria-Geral da República”, “Gabinete da Procuradora-Geral da República”, ou seja, pelos Gabinetes das antecessoras do atual Procurador-Geral da República.
Admitindo-se que fossem colhidas junto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), onde corria a investigação, informações pertinentes para a redação dos comunicados, dúvidas não há de que a responsabilidade pelo teor e emissão dos mesmos pertenceu ao Gabinete da Procuradora-Geral da República na altura em funções.
Por conseguinte, constatando-se que, no período de 22.11.2014 a 12.09.2019, o visado pela recusa não representava a Procuradoria-Geral da República, o que se possa extrair dos mencionados comunicados na sua relação com o princípio da presunção de inocência é manifestamente insuscetível de determinar o sentido da decisão quanto ao presente incidente, que visa concretamente o atual Procurador-Geral da República – que desses comunicados não é responsável.
2.5.2. Invoca o requerente uma entrevista do Procurador-Geral da República, em 25.06.2025, em que o mesmo teria afirmado, a propósito do início do julgamento marcado para dia 3 de julho, o seguinte: “Devemos dar oportunidade a AA para provar a sua inocência.”
Alegando que o visado é “o superior hierárquico direto dos Procuradores da República que representam o Ministério Público no julgamento deste processo”, o requerente considera violada a presunção da sua inocência e suspeita a intervenção do visado e dos magistrados que representam o Ministério Público no julgamento.
Como já se disse em 2.4., a nomeação de magistrado do Ministério Público para o julgamento em causa, e bem assim da respetiva equipa de apoio, efetuada ao abrigo do artigo 92.º, n.º1, do EMP, corresponde ao exercício de um poder gestionário do Procurador-Geral da República, não tendo a natureza de ato processual praticado no NUIPC 122/13.8... e não afetando a cadeia hierárquica no Ministério Público, razão por que não se vislumbra que suspeição possa gerar tal nomeação como fundamento para o incidente de recusa contra aquele deduzido.
Ainda assim, está em causa uma entrevista, a todos disponível na internet, concedida ao programa "J...... ....", da Rádio ..., em ........2025, com a duração de 1h16:05, em que o Procurador-Geral da República disse, a dada altura (36:32) “penso que o ... AA sempre disse que queria ser julgado neste processo para provar a sua inocência, portanto acho que devemos dar essa oportunidade ao ... AA para provar a sua inocência, isso a ele e a todos os cidadãos”.
Constata-se que, a partir de 32:50, um dos jornalistas questiona o entrevistado sobre o tempo decorrido desde o início do inquérito, dedução de acusação e o momento previsto para o início do julgamento, perguntando: “O senhor procurador-geral acredita que a administração da justiça chegará de facto a uma decisão final neste processo?”
O visado neste incidente, depois de terminar a resposta a uma pergunta anterior, afirma, a partir de 35:01: “Sobre esta questão da, sobre esta questão, é assim, eu espero que todos os processos que nós acusamos cheguem ao seu fim e tenham, que se faça justiça digamos, a justiça faz-se em julgamento e é isso que nós sempre quisemos, mas disse bem, nos parâmetros que referiu, começou em 2013, fizemos diligências em 2014 e ao fim de três anos de diligências tínhamos a acusação feita, nós eramos acusados de não fazer a acusação e para espanto nosso e agora meu, já passaram oito anos e ainda não passamos desta fase e portanto o Ministério Público na altura foi muito criticado e acho que não posso deixar de dizer isso, nós fizemos o nosso papel apesar de ser um megaprocesso e de me apelidarem o pai dos megaprocessos, nós conseguimos fazer em três anos uma acusação daquele âmbito e tamanho, portanto algo não correu bem.”
Em 36:02, o entrevistado é interrompido por um dos jornalistas, que o questiona sobre se a morosidade – mais de dez anos desde o início do processo – não é um exemplo de ineficiência do processo penal nos casos de criminalidade económico-financeira. A partir de 36:25, a questão é assim respondida: “Exatamente, é uma ineficiência em termos gerais, mas não nos acusem a nós deste processo, nós somos os primeiros e eu penso que o ... AA sempre disse que queria ser julgado neste processo para provar a sua inocência, portanto acho que devemos dar essa oportunidade ao ... AA para provar a sua inocência, isso a ele e a todos os cidadãos, que é isso que nós queremos.”
Mais adiante, um dos jornalistas, ainda a respeito da morosidade dos processos, refere a possibilidade de limitar legalmente a possibilidade de interpor recursos, nomeadamente na fase de inquérito, o que foi respondido, a partir de 38:51: “(…) eu acho, primeiro ponto, sou contra a diminuição dos direitos dos arguidos, portanto tudo deve passar por forma a que os arguidos possam assegurar a sua defesa (…) de princípio penso que isso é uma norma constitucional que nós devemos respeitar e que eu respeito e quero (…).”
Ainda sobre a possibilidade de limitação de recursos em fase de inquérito, o ora visado refere, a partir de 50:41, que “pode haver violação de direitos fundamentais e não parece que o inquérito possa continuar com a prática de atos ou despachos que violam direitos fundamentais (…) é ver que solução é que se propõe, só depois do texto feito é que nós conseguimos ver se efetivamente nos permite garantir os direitos”, e a partir de 52:54, que “quero ver a solução, não é, porque se violar princípios de inocência, também sou contra isso (…).”
Visto o teor da entrevista na sua integralidade e consideradas as palavras questionadas no respetivo contexto, a partir de uma análise serena e desapaixonada, não vislumbramos que as mesmas suportem o juízo de que o Procurador-Geral da República pretendeu impor ao requerente o ónus da prova da sua inocência, ou que tais palavras possam fundar qualquer suspeição de que se pretende, de algum modo, limitar ou condicionar o direito de defesa do requerente e a sua presunção de inocência.
Em Portugal, o processo penal “é basicamente acusatório (…) integrado por um princípio de investigação” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, Coimbra Editora, reimpressão de 1984, p. 254), em “conformação dinâmica” com uma “estrutura dialética” para se afastar do “inquisitório”, segundo orientação que tem fundamento constitucional (artigo 32.º, n.º 5, da CRP).
Este sistema, por um lado, obriga a entidade a quem incumbe a acusação a apresentar todas as provas para uma condenação; da outra banda, o arguido tem o direito de participação nos atos processuais que lhe dizem respeito, não tendo qualquer encargo de provar a sua inocência, revertendo a seu favor a dúvida judicial através do princípio in dubio pro reo.
O arguido goza, por isso, do direito ao silêncio, estando isento do ónus de provar a sua inocência e não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer aquele seu direito, sendo-lhe também inexigível o cumprimento do dever de verdade em relação aos factos que lhe são imputados.
Porém, conforme tem sido salientado pela jurisprudência, se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento – porventura único - pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio se deste resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer (cf. acórdão do STJ, de 10.01.2008, processo 07P3227).
As palavras em questão não colocam em dúvida que é ao Ministério Público que compete provar os factos da acusação em julgamento, significando, apenas, a nosso ver, que passados tantos anos desde o início do processo – pois estava a ser questionada a morosidade processual -, o requerente tem finalmente a oportunidade de, em sede de audiência de julgamento, oferecer a sua defesa perante o tribunal que o deve julgar. Raciocínio que o visado generaliza ao dizer: “isso a ele e a todos os cidadãos, que é isso que nós queremos.”
A contextualização das palavras, no conjunto de uma entrevista em que o visado se pronunciou contrário à diminuição dos direitos dos arguidos, quanto ao respeito dos direitos fundamentais e à necessidade de verificar se futuras alterações do regime processual penal não violam a presunção de inocência, não permite ajuizar sobre qualquer intencionalidade por parte do visado que seja motivo de suspeição.
Por outro lado, é manifesto que chegado o processo à fase de julgamento, ao Ministério Público incumbe legalmente a sustentação da acusação / decisão instrutória, não se ignorando que a decisão de acusar teve como pressuposto um juízo por parte do Ministério Público sobre a existência de suficiência indiciária, nos termos do artigo 283.º, n.º2, do CPP, o que em nada contende com a presunção de inocência e o dever de o Ministério Público atuar sempre de acordo com a legalidade e critérios de objetividade.
Em suma, ainda que fossem ultrapassadas as razões apresentadas em 2.4., no sentido de ser o pedido de recusa manifestamente infundado, não se identifica qualquer fundamento de recusa.
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2.6. Não se ignora que o requerente suscitou a questão da intervenção do TJUE em sede de reenvio prejudicial.
As questões que se pretende sejam colocadas são:
- Devem o artigo 4.º, n.º 1 e 3, da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional (como a do artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP) por força da qual um órgão de liderança do MP, como uma Procuradoria-Geral da República, pode emitir comunicados para a imprensa ou fazer declarações públicas sobre um específico processo criminal, antes do trânsito em julgado da respetiva decisão final, referindo os factos nele investigados, os crimes alegadamente cometidos pelos arguidos, meios de prova e de obtenção de prova obtidos e a obter e outros atos processuais ocorridos no referido processo (como a dedução da acusação e a aplicação de medidas de coação), sem qualquer menção à presunção de inocência dos arguidos?
- Devem os artigos 4 e 10 da Diretiva (UE) 2016/343 e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais ser interpretados no sentido de que se opõem à omissão da legislação nacional de quaisquer vias de recurso efetivas contra os comunicados oficiais do MP ou as declarações públicas de um Procurador-Geral da República em caso de violação por estes comunicados ou estas declarações do direito previsto no referido artigo 4.º, bem como à omissão de quaisquer sanções processuais da conduta violadora do direito previsto no artigo 4.º com efeitos no processo dos arguidos prejudicados pela referida conduta?
- Devem o artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, o artigo 4.º n.ºs 1 e 3 da Diretiva 343/2016, os artigo 47.º e 48.º n.º 1 da Carta de Direitos Fundamentais e o Princípio do Primado do Direito da União, ser interpretados no sentido de que obrigam os tribunais nacionais a recusar um Procurador-Geral da República que, em entrevista pública nas vésperas do início do julgamento de um processo criminal específico, afirma que se deve dar a um dos arguidos desse processo a oportunidade “para provar a sua inocência”, tendo nomeado a equipa de magistrados do MP que intervém no referido julgamento?
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2.6.1. O processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º TFUE, que constitui a pedra angular do sistema jurisdicional edificado pelos Tratados, institui um diálogo de juiz para juiz entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União, permitindo assegurar a sua coerência, o seu pleno efeito e a sua autonomia, bem como, em última instância, o carácter adequado do direito instituído pelos Tratados (v., neste sentido, entre outros, o Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea, C‑284/16, EU:C:2018:158, n.º 37).
O mecanismo prejudicial estabelecido por esta disposição destina‑se a assegurar em todas as circunstâncias ao direito da União o mesmo efeito em todos os Estados‑Membros e, assim, evitar divergências na interpretação deste direito cuja aplicação cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais, facultando ao juiz nacional um meio para eliminar as dificuldades que a exigência de dar ao direito da União o seu pleno efeito no âmbito dos sistemas jurisdicionais dos Estados‑Membros poderia suscitar. Além disso, os órgãos jurisdicionais nacionais têm a faculdade ilimitada, ou mesmo a obrigação, de recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas à interpretação ou apreciação da validade de disposições do direito da União que, por seu lado, têm de ser decididas.
Por conseguinte, o sistema instituído pelo artigo 267.º TFUE estabelece uma cooperação direta entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais no âmbito da qual estes últimos participam estreitamente na boa aplicação e na interpretação uniforme do direito da União, de modo que, no âmbito desta cooperação, o Tribunal de Justiça fornece aos órgãos jurisdicionais nacionais, na sua qualidade de juízes incumbidos da aplicação do direito da União, os elementos de interpretação desse direito necessários para a decisão do litígio que lhes é submetido (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de setembro de 2015, Ferreira da Silva e Brito e o., C‑160/14, EU:C:2015:565, n.º 37, e de 5 de dezembro de 2017, M.A.S. e M.B., C‑42/17, EU:C:2017:936, n.º 23).
A competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar, a título prejudicial, sobre a interpretação ou a validade do direito da União é exercida por iniciativa exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, independentemente de as partes no processo principal terem ou não expressado a intenção de submeterem uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Uma vez que é chamado a assumir a responsabilidade pela futura decisão judicial, é ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar-se sobre um litígio – e a ele apenas – que cabe apreciar, atendendo às particularidades de cada processo, tanto a necessidade de um pedido de decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça.
Na medida em que não exista recurso jurisdicional de direito nacional da decisão de um órgão jurisdicional nacional, este está, em princípio, obrigado a questionar o Tribunal de Justiça, na aceção do artigo 267.º, terceiro parágrafo, TFUE, quando lhe seja submetida uma questão relativa à interpretação do direito da União (Acórdão de 15 de março de 2017, Aquino, C‑3/16, EU:C:2017:209, n.º 42 e jurisprudência referida).
Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso jurisdicional de direito interno só pode ser isento desta obrigação quando tenha constatado que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta interpretação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a nenhuma dúvida razoável.
Decorre da conjugação do segundo e terceiro parágrafos do artigo 267.º do TFUE que os órgãos jurisdicionais visados pelo terceiro parágrafo gozam do mesmo poder de apreciação que quaisquer outros órgãos jurisdicionais nacionais no que se refere à questão de saber se uma decisão sobre uma questão de direito da União é necessária para lhes permitir proferir a sua decisão. Por conseguinte, esses órgãos jurisdicionais não são obrigados a reenviar uma questão de interpretação do direito da União que lhes é submetida se a questão não for pertinente, isto é, quando a resposta a essa questão, seja ela qual for, não possa ter influência na solução do litígio (cf. Acórdão de 15 de março de 2017, Aquino, C‑3/16, EU:C:2017:209, n.º 43).
Atente-se que existe uma nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, em que o juiz nacional tem competência exclusiva para apurar e apreciar os factos do litígio no processo principal, assim como para interpretar e aplicar o direito nacional. Do igual modo, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça (Acórdãos de 26 de maio de 2011, Stichting Natuur en Milieu e o., C‑165/09 a C‑167/09, EU:C:2011:348, n.º 47 e jurisprudência referida; de 9 de setembro de 2015, X e van Dijk, C‑72/14 e C‑197/14, EU:C:2015:564, n.º 57).
Quer isto dizer que o deferimento de um pedido de reenvio prejudicial não está subordinado à sua mera solicitação, estando antes dependente da sua utilidade processual, que se afere pela apreciação judicial sobre a necessidade de ser proferida uma decisão de direito comunitário para dirimir uma questão que seja necessária para a decisão do litígio.
Esse critério de apreciação da necessidade é o que justifica a metodologia seguida no presente acórdão, deixando para o fim o que, aparentemente, seria de conhecimento prévio.
Finalmente, o pedido de decisão prejudicial deve ter por objeto a interpretação ou a validade do direito da União, e não a interpretação das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no processo principal.
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2.6.2. Como já se disse, não existindo qualquer intervenção processual por parte do Procurador-Geral da República no âmbito do NUIPC 122/13.8... - o exercício do poder gestionário de nomeação ao abrigo do artigo 92.º, n.º1, do EMJ, não se reveste dessa natureza - e não sendo o mesmo superior hierárquico direto da equipa que assegura o julgamento, temos como manifesto que não se vislumbra qualquer fundamento para o incidente de recusa contra aquele deduzido, o que torna irrelevante, na economia da decisão, o pretendido reenvio prejudicial.
Em segundo lugar, mesmo que assim não fosse, todos os comunicados invocados pelo requerente foram emitidos entre 22.11.2014 e 12.09.2019 (13.09.2019), pela “Procuradoria-Geral da República”, “Gabinete da Procuradora-Geral da República”, ou seja, pelos Gabinetes das antecessoras do atual Procurador-Geral da República, que tomou posse em 12 de outubro de 2024.
Por conseguinte, como já se assinalou, constatando-se que, no período de 22.11.2014 a 12.09.2019, o visado pela recusa não representava a Procuradoria-Geral da República, o que se possa extrair dos mencionados comunicados é manifestamente insuscetível de determinar o sentido da decisão quanto ao presente incidente, que visa concretamente o atual Procurador-Geral da República – que desses comunicados não é responsável.
Trata-se de mais uma razão para se concluir que as questões que se pretendem colocar como “prejudiciais”, que se reportam ao teor desses comunicados, não têm, manifestamente, qualquer alcance / utilidade para a decisão do presente incidente de recusa.
Por fim, no que toca ao teor da entrevista do visado, o que está em causa é uma análise de questões de facto, quanto ao sentido, alcance e intencionalidade presentes nas palavras proferidas, e não de interpretação de qualquer norma do direito da União, cuja aplicação sempre pressupõe a prévia consideração do quadro factual. Seria desprovido de sentido pedir ao Tribunal de Justiça que, por referência a umas breves palavras, apresentadas pelo requerente de forma isolada e descontextualizada, no quadro de uma entrevista com a duração total de 1h16:05, emitisse a pronúncia pretendida, interpretando não já apenas o direito, mas também o sentido de tais palavras, com desconsideração do concreto contexto em que foram produzidas.
Afigura-se-nos, aliás, que o requerente pretende que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre se determinada legislação nacional (artigo 86.º, n.º13, al. b) do CPP) viola os Tratados ou atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, ou se existe incumprimento do Estado português por omissão de legislação nacional, o que não se enquadra nas competências do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial.
Face ao exposto, não se encontram preenchidos os requisitos para o pretendido reenvio prejudicial.
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2.7. O artigo 45.º, n.º7, do CPP, estabelece: «Se o tribunal recusar o requerimento do arguido, do assistente ou das partes civis por manifestamente infundado, condena o requerente ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC.»
A jurisprudência tem considerado, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso.
O mesmo critério deve ser utilizado para determinar quando um incidente de recusa é “manifestamente infundado”, justificando a aplicação de uma sanção processual pecuniária, penalizadora do uso manifestamente censurável do incidente por evidente ausência de pressupostos e fundamentos.
É o que ocorre no presente caso, em que é patente a falta de fundamento do que é requerido.
Em consequência, deve o requerente ser condenado, para além da tributação devida, também numa soma, nos termos do artigo 45.º, n.º7, do CPP, que, in casu, se fixa em 10 (dez) UC.
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III - DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de reenvio prejudicial e o pedido de recusa formulado pelo requerente AA relativamente ao Procurador-Geral da República, por manifestamente infundado.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC, sendo ainda condenado, nos termos do artigo 45.º, n.º 7, do CPP, no pagamento de uma soma de 10 (dez) UC, a título de sanção processual.
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de julho de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Jorge Jacob (1.º Adjunto)
Vasques Osório (2.º Adjunto)