COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
PARQUE DE ESTACIONAMENTO
Sumário

O facto de a entidade concessionária poder cobrar taxas e através dos seus funcionários equiparados a agentes de autoridade administrativa, poder exercer poderes de fiscalização nas áreas de estacionamento concessionadas no que respeita às contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, os quais implicam, nomeadamente, o levantamento de auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, implica que aquela entidade esteja investida no exercício de poderes públicos. Donde a relação jurídica estabelecida entre a concessionária e os utilizadores das zonas de estacionamento objeto do contrato de concessão revestir a natureza de relação jurídica administrativa (artigo 1.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), caindo, também, na previsão do artigo 4.º, n.º 2, alínea o) do ETAF.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 28869/24.6YIPRT.E1

(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
1.ª Adjunta: Eduarda Branquinho
2.º Adjunto: Vítor Sequinho dos Santos


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), SA, autora na presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias movida ao abrigo do D/L n.º 269/98, de 1 de setembro, que moveu contra (…), interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Setúbal, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o qual julgou verificada a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria e, em conformidade, declarou os Juízos Locais Cíveis de Setúbal incompetentes em razão da matéria para apreciar o mérito da ação, absolvendo o réu da instância.

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«I – Súmula
(…), S.A., NUIPC (…), demandou (…), NIF (...), pedindo a sua condenação ao pagamento do valor de € 1.822,99, sustentando para tanto e em suma, que se dedica à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, o que faz em vários locais da cidade de Setúbal, utilizando para o efeito máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos.
Nesse âmbito, o Réu, como proprietário do veículo com a matrícula (…), estacionou o veículo nos vários parques de estacionamento que a Autora explora na cidade de Setúbal, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local, o que vez no conjunto de locais/horas que discrimina no R.I., tendo tais ocorrências correspondido à utilização dos espaços em valor que ascende ao montante de € 1.774,95, acrescido de juros de mora.
Uma vez citado, o Réu invocou a prescrição dos créditos, na parte em que se reportam aos anos de 2021 e 2022, assim como invocou a incompetência absoluta dos Tribunais judiciais, por se tratar de matéria que cai no âmbito dos tribunais administrativos e fiscais. Invocou também a sua ilegitimidade passiva e impugnou os fundamentos da demanda.
Concedido o contraditório à Autora em matéria de exceção, a mesma sustentou que o contrato de concessão de exploração celebrado com a Câmara Municipal de Setúbal para o fornecimento, instalação e exploração de parquímetros, em zonas e parques de estacionamento automóvel de duração limitada, não é sintomático de que os termos da presente ação devam ser deferidos aos tribunais com jurisdição administrativa, pois os atos por si praticados não revestem natureza administrativa, tratando-se de atos correspondentes à contraprestação da utilização de estacionamentos concessionados, no âmbito de uma relação contratual de facto, tanto mais que a Autora não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras rodoviárias, tarefa exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço, devendo tal exceção ser julgada improcedente.

***
II – Fundamentação
Não há dúvidas que a invocada incompetência absoluta, enquanto exceção dilatória (cfr. artigo 577.º, alínea a), e 578.º, ambos do Código de Processo Civil), pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferido sobre o fundo da causa (cfr. artigos 97.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
Neste contexto, importa atentar que a causa de pedir desta ação, decorre da alegada utilização, pelo Réu, de espaços públicos que se destinam ao estacionamento de veículos, espaços esses que foram concessionados pelo Município de Setúbal à Autora, para que dentro do seu objeto social, melhor possa aproveitar e gerir os parquímetros instalados na cidade.
Dito isto e como é entendimento pacífico, a competência do Tribunal é fixada em função do pedido que na ação se faz, admitindo-se, no entanto, que complementarmente, mas apenas para melhor compreender e situar o pedido formulado nos casos em que tal se mostre necessário, que se atenda à causa de pedir nos precisos termos em que são configurados pelo Autor1.
Nos termos do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “os tribunais judicias são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas”.
Por sua vez, nos termos do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Vieira de Andrade define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”2.
Quanto à concessão, enquanto forma de transferência direta da gestão e administração de coisas públicas para entidades de direito privado, consiste “na realização de tarefas essencialmente administrativas através de um contrato administrativo, pelo que suas ações e omissões não podem deixar de ser integradas e reguladas pelas disposições e princípios do direito administrativo.”3
3 Assim, citando vária outra jurisprudência, vide Ac. do TCA Norte de 17-04-2015, proc. n.º 02010/13.9BEBRG.
Por conseguinte, o conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como o critério nuclear da repartição da jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. Todavia, não se esgota aí.
O artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19/02) delimita o âmbito da jurisdição administrativa, nas suas diversas vertentes, relevando para este efeito, face aos contornos da ação, de entre as várias alíneas do n.º 1, a alínea e), onde se estatui que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
(…)”.
A referida norma, com ajuste de redação, corresponde ao anterior artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF, na redação vigente até à entrada em vigor da alteração operada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02/10, norma que atribuía competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais quanto a:
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;”
Dito isto, importa considerar que a Autora propôs a presente ação, legitimada pela qualidade de concessionária de estacionamentos públicos na cidade de Setúbal, cujo regime legal vem disciplinado, de um modo geral, no Decreto-Lei n.º 146/2014, de 9 de Outubro, que regula as condições em que as empresas privadas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias sob jurisdição municipal podem exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhes estão concessionadas.
Assim, o direito da Autora em cobrar determinado montante pela utilização dos parques de estacionamento de que é concessionária, advém-lhe de um contrato administrativo que versa sobre questão do interesse público que o Município de Setúbal deliberou concessionar-lhe, pois de outro modo não o poderia fazer em relação a um espaço que é público e cuja gestão cabe, em primeira linha, aos respetivos municípios, através das Câmaras Municipais (cfr. artigo 33.º, n.º 1, al. rr), da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro).
É, pois, inequívoco que se trata de um “contrato administrativo, um contrato através do qual um município concede uma empresa provada a exploração, gestão e manutenção de espaços públicos destinados ao estacionamento de veículos, bem como a instalação e exploração de parquímetros, contrato segundo o qual os utilizadores daqueles espaços de estacionamento ficam obrigados ao pagamento de taxa, cujo montante varia em função do tempo de utilização.”4
No fundo, como em situação análoga, e perante argumentos similares aos sustentados pela Autora, o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 12-10-2010, já teve oportunidade de frisar, que «a Autora exerce determinadas funções de carácter e interesse público que pertencem às funções do Município, mas que este deliberou concessionar à A. Consequentemente, a cobrança do crédito em causa nesta ação só é possível porque a recorrente está investida em poderes de autoridade, que se impõem aos particulares. De contrário, jamais a A. podia cobrar, de quem quer que fosse, uma taxa pela ocupação temporária de um espaço público.
Portanto, embora a relação estabelecida entre a A. e os particulares que usam o espaço de estacionamento concessionado seja diferente do que existe entre a A. e o Município de Ponta Delgada, o certo é que, como se refere no acórdão recorrido “... os atos praticados pela recorrente não revestem a natureza de atos privados, suscetíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de atos de gestão pública”, por isso que, “na relação jurídica que estabelece com o recorrido, surge investida de prorrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas ...”.
Ora o recorrido ao utilizar os parques de estacionamento sabe que está a utilizar um espaço público concessionado à A e aceita as condições em que pode fazê-lo, ao menos tacitamente.
Mas, como se disse, essas condições são as que constam do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada de Ponta Delgada, que é um Regulamento Municipal devidamente aprovado e publicitado, contendo, como é evidente, normas de direito público, que obrigam, quer a concessionária, quer os utentes dos parques de estacionamento concessionados.
Portanto o R., ao contratar com a A. a utilização dos espaços de estacionamento que a esta foram concessionados sabe que esse contrato ou acordo tácito está submetido a um regime substantivo de direito público. (E, não vemos que a situação seja diferente, mesmo que se entenda, como quer a recorrente, estamos perante “relações contratuais de facto”).
Daí que, para além do que acima se referiu quanto aos poderes exercidos pela A., na qualidade de concessionária de um serviço de natureza pública, o dito acordo ou contrato cabe perfeitamente no âmbito do disposto no artigo 4.º, alínea f), do ETAF.
Tanto basta para concluir, como as instâncias, que o litígio que opõe as partes nesta acção deve ser dirimido pelo Tribunal Administrativo, que é o competente em razão da matéria.”» 5.
É igualmente assim que os tribunais superiores, quer na jurisdição comum6, quer nos tribunais superiores na jurisdição administrativa7, quer ainda no tribunal dos conflitos8, têm reiteradamente decidido, o que nos dispensa de outras maiores ou particulares lucubrações, aderindo-se aos argumentos já expressos nos acórdãos citados.
Aliás, o STA já afirmou categoricamente, quando se trata da intervenção de um concessionário, que “a doutrina que este Supremo Tribunal tem seguido, entre outros, no acórdão proferido no recurso n.º 0124/15 (…) como no acórdão datado de 28.10.2015, no recurso n.º 0125/14, como em muitos outros acórdãos, já este Supremo tribunal esclareceu com suficiente clareza que o requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa ação cujo conhecimento é da competência dos TAFs, com a seguinte argumentação: Ora, no caso em apreço, a recorrente apresenta requerimento de injunção, por não terem sido pagas «as faturas nº (...) com as datas de vencimento de (...) relativas aos serviços contratados de abastecimento de água e saneamento, efetivamente prestados pela Requerente ao requerido (...)», ou seja, a ação consubstancia-se num procedimento de injunção relativo a quantia resultante de tarifas unilateralmente fixadas e aprovadas nos termos do enquadramento legal aplicável, tendo o recorrida contestado a obrigação de pagamento de tal dívida.
Porém, não obstante a providência de injunção se destinar a conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações (cfr. artigo 7.º do DL n.º 269/98, de 1/9, na redação introduzida pelo DL n.º 32/2003, de 17/2) no caso, tendo sido deduzida oposição à injunção esta deixou de se destinar, tendencialmente, à formação de um título executivo, convertendo-se numa petição inicial declarativa, já que o título executivo apenas se formaria na hipótese de ausência de oposição/contestação (cfr. artigo 14.º e ss. do DL n.º 269/98). Sendo que a autora e ora recorrente é concessionária do serviço público de fornecimento de água do concelho de Barcelos e nessa medida, atua em substituição do Município e munida dos poderes que lhe são atribuídos nessa área.
Daí que, como se consignou na supra citada jurisprudência do Tribunal de Conflitos (a que se adere sobretudo pela importância da uniformidade na interpretação e aplicação da lei, que encontra consagração no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil) e nomeadamente no Acórdão de 25.11.2014, proferido no processo 40/14, «Dúvidas não existem, pois, que prossegue fins de interesse público, estando para tanto munida dos necessários poderes de autoridade, o que nos permite dar como certo que, subjacente à questão em controvérsia, está uma relação jurídica administrativa na medida em que se entende como tal aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido – neste sentido, ver Vieira de Andrade “in” “A Justiça Administrativa”, Lições, 2000, página 79.
Concluímos, assim, tendo em atenção aquela jurisprudência do Tribunal de Conflitos e o disposto nas alíneas f) do n.º 1 do artigo 4.º e c) do n.º 1 do artigo 49.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que a presente ação é da competência dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal, sendo competentes os tribunais administrativos e fiscais, através dos tribunais tributários.”9
Tanto mais assim é que a Autora, pese embora possa não os ter no momento, está legitimada a despoletar, para vir a beneficiar, dos mecanismos que lhe permitam levantar autos de contra-ordenação por estacionamento proibido, caso os seus trabalhadores venham a ser equiparados a agentes de autoridade administrativa pelo presidente da ANSR (artigo 9.º e ss. do DL n.º 146/2014, de 09 de outubro e artigo 71.º do Código da Estrada).
Neste contexto somos levados a concluir que os Juízos Locais Cíveis de Setúbal, não são competentes para tramitar e decidir a presente ação, por dizer a mesma respeito a matéria acometida aos tribunais com jurisdição em matéria administrativa e fiscal.
Consequentemente, nos termos dos artigos 96.º, alínea a) e 97.º, n.º 1, 98.º, 576º, n.º 1 e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil, declara-se que os Juízos Locais Cíveis de Setúbal não são competentes em razão da matéria para tramitar e decidir estes autos.
A incompetência absoluta (em razão da matéria) determina a absolvição da instância, conforme o postulado nos artigos 99.º, n.º 1 e 2 e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Processo Civil, o que se julga.
Custas por quem deu causa, que no caso foi o Autor (cfr. artigo 527.º do Código de Processo Civil).»

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«a) Vem o presente recurso apresentado contra a douta Sentença a quo que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Setúbal, para cobrança dos créditos da Autora.
b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Setúbal, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.

c) No seguimento deste contrato de concessão, a (…) adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Setúbal, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.

d) Enquanto utilizador do veículo automóvel (…), o Réu estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade de Setúbal, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 1.774,95, que o Réu recusa pagar.

e) Para cobrança deste valor, a Autora viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.

f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.

g) As ações intentadas pela Autora contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.

h) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade por incumprimento do contrato.

i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto – em virtude de não nascer de negócio jurídico – assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.

k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.

l) Proposta tácita temporária da Autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos pela Autora, amplamente publicitados no local.

m) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.

n) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.

o) A (…), S.A., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.

p) Nos termos do disposto no artigo 2.º do DL 146/2014, de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.

q) Os montantes cobrados pela (…), S.A. também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.

r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.

s) A (…), ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados.

t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.

u) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.

v) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a (…), S.A., não pode, contudo, este primeiro contrato, ser equiparado aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a (…) e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, não só pela forma como os seus intervenientes atuam, como também pelas normas que regulam as relações jurídicas em causa.

w) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de natureza pública, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao n.º 4 do artigo 4.º do E.T.A.F).

x) Nos termos dessa alínea, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.

y) Da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII-4ª, que esteve na origem da Lei n.º 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”

z) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado. Veja-se por tudo, o Douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa de 18.12.2024, proferido no âmbito do Processo n.º 16685/24.0YIPRT, da 8ª Secção.
Mal andou, assim, o Tribunal a quo ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96.º, alínea a), 278.º, n.º 1, alínea a), 577.º, alínea a) e 578.º do CPC, quer o artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, quer ainda a artigo 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída por outra que, julgando competente o Juízo Local Cível de Setúbal, ordene o prosseguimento dos autos, conforme é de do Direito e da JUSTIÇA.»

I.3.
O recorrido respondeu às alegações de recurso, culminando com as seguintes conclusões:
«a) A decisão proferida pelo tribunal da comarca de Setúbal é perfeita e a mesma deve manter-se inalterada e suficiente seria oferecer o merecimento dos autos e propugnar a manutenção da douta decisão recorrida.
b) O artigo 4.º, n.º 4, alínea e), não se aplica a caso sub judice, nem o parqueamento é uma relação de consumo, nem sequer estamos no domínio da prestação de serviços públicos essenciais.
c) Estamos sim no domínio de um contrato administrativo em que através de uma concessão o município concede a uma empresa privada a exploração de espaços públicos para parqueamento/estacionamento.
d) O STA já estipulou que se trata do exercício de funções de caracter e interesse publico e tem de ser regulada como tal, logo os tribunais cíveis são incompetentes.
e) Trata-se de uma concessão do poder da autarquia para uma empresa a exploração de estacionamento de duração limitada,
f) O Tribunal da Relação em 2009-10-20 consignou cita-se “… podemos afirmar que o contrato de locação do estacionamento celebrado entre a Ré e a Autora é um contrato de direito público, e não privado, em que a concessionária surge na relação com o particular investida de prerrogativas próprias de um sujeito de direito público – a Câmara Municipal – revestido de ius imperium, podendo cobrar, não um preço, mas uma taxa pelo estacionamento, fiscalizar a regularidade do mesmo, aplicar taxas sancionatórias e determinar a remoção do veículo em infracção. (…) Não estamos, pois, numa relação horizontal entre dois particulares, em que o incumprimento gera responsabilidade contratual regida pelo Código Civil, mas numa relação própria do direito público e do direito de mera ordenação social. Donde que, salvo melhor opinião, o presente litígio – que tem na sua génese a cobrança, pela Autora de uma taxa sancionatória máxima diária pelo estacionamento não pago – deve ser dirimido pelo tribunal administrativo (…)”.
g) as relações contratuais estabelecidas entre o município, ou o concessionário, e os utentes do estacionamento de duração limitada tarifada, está sujeito a um regime substantivo parcialmente regulado por normas de direito administrativo, sendo pois, competentes para a ação, os Tribunais Administrativos e Fiscais.
h) Pelo que compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer de ação intentada por empresa a quem o Município adjudicou a concessão da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada.
i) Por conseguinte, a Autora está agir no uso dos poderes de autoridade em que foi investida através dos contratos de concessão, a fim de prosseguir no lugar da autarquia um fim de interesse público.
j) Pelo que, nos termos dos artigos previstos no ETAF (artigo 4.º) são os tribunais administrativos os competentes para conhecer a questão relativa à cobrança da taxa sancionatória pelo estacionamento não pago.
k) Pelo que decidiu bem o tribunal judicial de Setúbal ao verificar a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria e absolver o Reu da instância.
l) E assim se fez justiça, a qual deve ser mantida e inalterada.
Termos m que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser considerado totalmente improcedente e mantida a douta sentença recorrida, nos seus precisos termos, com o que se fará a sã e serena JUSTIÇA!»

I.4.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
No caso, a única questão que cumpre apreciar consiste em saber qual a jurisdição – comum ou administrativa – que é competente para dirimir o presente litígio.

II.3.
FACTOS
Os factos a considerar constam do relatório supra.
II.4.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa decidir quais os tribunais que são materialmente competentes para decidir a presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias através da qual a autora e ora apelante pretende que o réu seja condenado no pagamento da contraprestação devida pela utilização, por aquele, de parques de estacionamento automóvel sitos na cidade de Setúbal.
O tribunal recorrido decidiu que os juízos locais cíveis não são materialmente competentes para dirimir o presente litígio e, consequentemente, absolveu o réu da instância.
Insurge-se a autora e ora recorrente contra tal decisão, defendendo que os tribunais materialmente competentes para dirimir o litígio em causa nos autos são os tribunais comuns, alegando, em síntese, que o ato de intentar a presente ação contra o proprietário de um veículo que não procedeu ao pagamento dos valores devidos pela utilização de parques de estacionamento «não se insere em prerrogativas de uma autoridade pública, mas sim no âmbito da gestão que compete à concessionária fazer enquanto entidade privada» e que «a autora não age enquanto funcionária ou agente delegada de um órgão público, não beneficiando de qualquer poder de autoridade ou título executivo que a equipare a uma entidade pública na prossecução de interesses públicos» e, ainda, que «a fiscalização do cumprimento das regras estradais permanece em exclusivo sob a alçada da autarquia e dos respetivos agentes de autoridade».
Quid juris?
É pacífico que a competência em razão da matéria se deve aferir em face da relação jurídica tal como configurada pelo autor no seu requerimento inicial, isto é, de acordo com os termos da pretensão do(a) autor(a), compreendendo os respetivos fundamentos.
Resulta da conjugação do disposto no artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário que os tribunais judiciais têm uma competência residual, isto é, têm competência para decidir as causas que não sejam atribuídas a outros tribunais. Os tribunais administrativos e tributários, por seu turno, têm a sua competência limitada às causas que lhes são especialmente atribuídas.
De harmonia com o disposto no 1.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, doravante designado por ETAF, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º do Estatuto. O referido artigo 1.º, n.º 1, é um preceito que decorre da norma constitucional vertida no artigo 212.º/3, da Constituição da República, incorporando uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos, constituindo a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos no confronto com os demais tribunais[1].
O artigo 1.º do ETAF adota o critério da relação jurídico - administrativa para aferição da competência dos tribunais administrativos e o artigo 4.º [2]contém um elenco exemplificativo de casos-tipo que se consideram ser da competência dos tribunais administrativos. A propósito da conjugação entre aqueles dois preceitos normativos (artigos 1.º e 4.º do ETAF), refere-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 05-02-2021[3] que a enumeração positiva dos litígios cuja resolução compete aos tribunais administrativos prevista no artigo 4.º é, em princípio, meramente concretizadora da cláusula geral prevista no artigo 1.º/1 que deriva da Constituição, mas tem de ser considerada aditiva quando seja inequívoco que visa atribuir competências que não caberiam no âmbito definido por essa cláusula.
A propósito do conceito de “relações jurídicas administrativas”, chamamos à colação o acórdão do Tribunal de Conflitos datado de 24.05-2017, proferido no âmbito do processo n.º 030/16[4], onde se escreveu o seguinte: «Na opinião de Gomes Canotilho de Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª Edição revista, 2010, Coimbra Editora, pp. 566/567) em anotação ao artigo 212.º, n.º 3 da CRP “na jurisdição administrativa estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1 – as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2 – as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico- administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e /ou fiscal (cfr. ETAF, artigo 4.º). O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de atuação (ato, contrato e regulamento) complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisprudência administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do novo direito administrativo, mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmáticas das formas de atuação administrativa». No mesmo acórdão, e citando-se Mário Aroso de Almeida (O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, 4.ª Edição, Revista e atualizada, Almedina, pág. 57) refere-se que «as relações jurídico administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis. São, assim, jurídico-administrativas as relações jurídicas que, independentemente do estatuto dos sujeitos nelas intervenientes, sejam reguladas por normas de direito administrativo – isto é, segundo a melhor doutrina, por normas que atribuam prerrogativas ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público, que não intervêm no âmbito de relações de natureza jurídico-privada. (…)».
Mais recentemente, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 08.05.2025, processo n.º 0118032/24.5YIPRT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt., citando-se Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49) escreveu-se que a relação jurídica administrativa (seguindo um critério estatutário que combina sujeitos, fins e meios) «é aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
Na síntese do acórdão do Tribunal dos Conflitos de 05.02.2021 supra referido para que se reconheça estar-se perante uma relação jurídico-administrativa «impõe-se que uma das partes integre a Administração, seja um ente administrativo, e que atue dotada do seu ius imperium ou a coberto de normas públicas, ou que, não o sendo, esteja investida, por lei, no exercício de poderes públicos».
Regressando ao caso sub judice, resulta dos autos, concretamente do documento que foi junto aos autos pela autora a convite deste tribunal de segunda instância, que entre o Município de Setúbal e a (…), SA, ali identificados, respetivamente, como primeiro e segundo outorgantes, foi celebrado, em 28.11.2018, um contrato que as partes denominaram de “Contrato de Adjudicação de Prestação de Serviços de Gestão, Manutenção e Fiscalização da Zona de Estacionamento de Duração Limitada na Cidade de Setúbal”.
Resulta da cláusula primeira do referido contrato que o seu objeto consiste «na contratação de serviços de gestão, manutenção e assistência técnica e fiscalização das áreas de estacionamento tarifado à superfície, por parcómetro instalados na via pública, apoiado através de aluguer do sistema informático de gestão de dados e fiscalização com transmissão em tempo real ao primeiro Outorgante, compatível com os equipamentos instalados, de acordo com as características técnicas, definições e todas as condições previstas no caderno de encargos em anexo» e que a prestação de serviços inclui todos os serviços e fornecimentos relativos à gestão, manutenção e fiscalização na zona de estacionamento de duração limitada da cidade de Setúbal, já regulada pela utilização de parcómetros, conforme Anexo V do caderno de encargos».
Não se suscitando dúvidas que o contrato supra referido é um contrato administrativo, regulado, nomeadamente, pelas disposições do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo D/L n.º 18/2008, de 29 de janeiro (vide cláusula 2.ª), a relação jurídica que está em causa nos presentes autos é aquela que se estabelece entre os utilizadores das zonas de estacionamento de duração limitada da cidade de Setúbal e a (…), SA, a qual é, nos termos do contrato de concessão supra referido, responsável pela gestão, manutenção, assistência técnica e fiscalização daquelas áreas de estacionamento.
A gestão do estacionamento latu sensu em espaços públicos – que implica a organização da oferta do estacionamento, o controlo do estacionamento de longa duração, a reserva de oferta para utilizadores específicos, a fiscalização do estacionamento ilegal na via pública – é uma função de caráter e interesse público que, na cidade de Setúbal incumbe ao Município de Setúbal, mas que este decidiu concessionar à ora apelante, autora nos autos.
Aquela gestão é, além do mais, regulada pelo Regulamento Municipal de Estacionamento Público Tarifado e de Duração Limitada no Concelho de Setúbal, cujo projeto foi submetido a apreciação pública e foi devidamente publicitado e contém normas de natureza administrativa. Ali está prevista, nomeadamente, o pagamento de taxas pelo estacionamento nas zonas de estacionamento de estacionamento de duração limitada (artigo 13.º) bem como o pagamento de uma quantia a título de compensação resultante da ocupação indevida de local de estacionamento, concretamente quando o utente estacione sem título de estacionamento válido ou por tempo superior ao limite máximo admitido (artigo 17.º) e ali está prevista, também, a competência dos trabalhadores da entidade concessionária com funções de fiscalização nas zonas que lhe estão concessionadas, para fiscalizarem o cumprimento das disposições do Regulamento (artigo 44.º, n.º 2), desde que equiparados a agentes de autoridade administrativa (artigo 44.º, n.º 3), relativamente às contra-ordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada (artigo 44.º, n.º 4), cabendo-lhe, nomeadamente, e no exercício de tais funções de fiscalização, levantar autos de notícia nos termos do disposto no Código da Estrada, proceder à identificação do arguido e às notificações previstas no Código da Estrada, proceder às ações necessárias à autuação, bloqueamento e remoção de veículos em infração, participar aos agentes da Polícia de Segurança Pública as situações de incumprimento e com ele colaborar no cumprimento do Regulamento (artigo 45.º). Ora o acabado de descrever traduz prorrogativas próprias de um sujeito público, revestido de ius imperii.
O facto de a entidade concessionária poder cobrar taxas e através dos seus funcionários equiparados a agentes de autoridade administrativa, poder exercer poderes de fiscalização nas áreas de estacionamento concessionadas no que respeita às contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, os quais implicam, nomeadamente, o levantamento de auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, implica que aquela entidade esteja investida no exercício de poderes públicos. Donde a relação jurídica estabelecida entre a (…) e os utilizadores das zonas de estacionamento objeto do contrato de concessão outorgado entre a primeira e o Município de Setúbal revestir a natureza de relação jurídica administrativa (artigo 1.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), caindo, também, na previsão do artigo 4.º, n.º 2, alínea o), do ETAF.
No mesmo sentido se decidiu, por exemplo:
- No Acórdão do Tribunal de Conflitos do Supremo Tribunal Administrativo de 25.11.2020, processo n.º 012/10, em cujo sumário se lê o seguinte: «III. Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja, uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de interesse público legalmente definido. IV. Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma ação especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias devidas pela utilização desses parques»;
- No acórdão do Tribunal de Conflitos do Supremo Tribunal Administrativo, de 08.05.2025, proc. n.º 0118032/24.5YIPRT.L1.S1, em cujo sumário se escreveu o seguinte: «I. A concessionária da gestão e exploração do serviço público de estacionamento nas vias municipais, mediante contrato de concessão de serviços públicos, nesse âmbito, atua em substituição da autarquia, munida dos poderes que a esta são legalmente atribuídos nesse domínio. II. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada pela empresa a que o Município adjudicou a gestão e exploração do estacionamento de veículos em ZEDL, requerendo do particular o pagamento da contraprestação devida pela utilização do referido estacionamento».

Por todo o exposto, não merece censura a decisão sob recurso, a qual se deverá, por isso, manter, improcedendo a apelação.

Sumário: (…)


III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgara apelação improcedente, mantendo o despacho recorrido.
As custas na presente instância são da responsabilidade da recorrente, porque vencida, sendo que a esse título apenas são devidas custas de partes pois que aquela procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de encargos.
Notifique.
DN.
Évora, 25 de junho de 2025
Cristina Dá Mesquita
Eduarda Branquinho
Vítor Sequinho dos Santos


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[1] Maria Helena Barbosa Canelas, A competência dos Tribunais Administrativos, Julgar, n.º 15, Setembro-Dezembro de 2011, págs. 103 e ss.
[2] Nos termos do artigo 4.º do ETAF compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto as seguintes questões enunciadas nas alíneas a) a o) do seu n.º 1, a saber:
«a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídico-administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
[3] Processo n.º 00736/19.2BEBRG, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Consultável em www.dgsi.pt.