A resolução do contrato de arrendamento rural à luz do D/L n.º 294/2009, de 13 de outubro, pressupõe a verificação de uma situação de incumprimento contratual que se integre em alguma das alíneas previstas no n.º 2 do artigo 17.º daquele diploma legal e que esse incumprimento, pela sua gravidade, torne inexigível a manutenção da relação arrendatícia.
(Sumário da Relatora)
2. O prazo estipulado foi de um ano, com início em setembro de 1976, e renovável por igual período.
3. A renda fixada foi de oito mil e seiscentos escudos, a que corresponde a € 42,90, pago em dinheiro, tendo o rendeiro a faculdade de nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 201/75, de 15 de Abril, pagar em géneros da sua produção, na residência do senhorio, no fim de cada ano agrícola, ou seja, em Setembro de cada ano.
4. Do contrato ficou excluído o arvoredo florestal.
5. No dia 6 de dezembro de 2013 (…) faleceu no estado de viúva de (…).
6. Os quinhões hereditários do aludido Prédio Rústico com o artigo matricial (…), secção B, foram adquiridos por compra e venda por (…) e (…).
7. Nos termos da escritura de partilha por divórcio, lavrada no Cartório Notarial de Odemira, em 26.09.2016, da Exma. sra. Dra. (…), a fls. 49, do Livro de Notas para Escrituras Diversas “Duzentas e trinta e três- E”, foram adjudicados a (…) os quinhões hereditários que tinham sido adquiridos por ambos.
8. Por Escritura lavrada no Cartório Notarial de Lisboa, a cargo da Dra. (…), a fls. 4, do Livro de Notas para Escrituras Diversas “Trezentos e Nove-A”, em 2018, (…), divorciada, doou às suas únicas filhas, (…) e (…), os quinhões hereditários.
9. Por Escritura Pública outorgada no dia 28 de novembro de 2022, no Cartório Privado de Odemira da Ex.ma sra. Dra. (…), foram outorgadas cinco partilhas, três divisões de coisa comum e alteração ao regime da compropriedade, na qual foi atribuída à Ré (…) a propriedade do prédio rústico com o artigo matricial (…), secção B.
10. A Ré procedeu à notificação judicial do Autor, no dia 22 de maio de 2024, na qual fez constar, além do mais, que: a. 11.º Sucede que, desde, pelo menos, que os quinhões foram adquiridos por compra e venda por (…) e seu cônjuge (…), no ano de 2006, que o Requerido não liquida qualquer renda ou entrega géneros em compensação. b. 12.º Acresce que, tomou-se conhecimento que o Requerido faz uso do Prédio Rústico para outros fins que não aqueles constantes do Contrato de Arrendamento ao Cultivador Direto outorgado em 1976, nomeadamente habitando no mesmo, sem qualquer autorização! c. 13.º Encontrando-se, assim, mais do que justificada a cessação por resolução ao abrigo do artigo 17.º, n.º 2, do D.L. n.º 294/2009, de 13 de outubro. d. 14.º Pelo que a Requerente tem legitimidade para interpelar o aqui Requerido, da cessação por resolução do Contrato de Arrendamento Rural outorgado em 1976. e. Termos em que, pelo exposto, vem requerer a V. Exa. que se digne ordenar a notificação do Requerido da cessação por resolução ao abrigo do artigo 17.º, n.º 2, do Novo Regime do Arrendamento Rural, do contrato de arrendamento rural celebrado com o Requerente em 1976, respeitante ao prédio rústico com o artigo matricial (…), secção B, devendo o Requerido abandonar o locado, no prazo de um mês a contar da data da sua notificação, retirando todas as benfeitorias.
11. O Autor tem procedido ao pagamento anual das respetivas rendas através de consignação em depósito, a favor de (…), na Caixa Geral de Depósitos.
12. Existiam à data da outorga do acordo e existem, diversas edificações térreas, denominadas por montes e ainda uma arramada.
13. As referidas edificações não apresentam condições básicas de habitabilidade, segurança e higiene.
14. Desde 1976, que o Autor reside juntamente com a sua irmã, num desses montes.
15. O Autor compra gado para engorda e reprodução, tendo, atualmente um efetivo caprino composto por, pelo menos, 45 cabras e 30 cabritos.
16. O Autor semeou e colheu, até há 3 anos atrás, anualmente, trigo, cereais e cevada, destinando tais culturas à alimentação do gado, bem como para a sua alimentação.
17. O Autor adquiriu diversas alfaias agrícolas com que trabalhou diariamente a terra, as quais pagou com os rendimentos da atividade que exerce.
18. O Autor vive, exclusivamente, desta atividade agrícola e da criação de gado e, com os resultados obtidos sustenta a sua família constituída pela sua irmã.
19. O Autor apenas cultiva o prédio que lhe foi arrendado por (…), não trazendo de arrendamento outros prédios de quem quer que seja.
20. O Autor é solteiro e tem atualmente a idade de 79 anos.
21. O Autor aufere € 323,52, a título de pensão social de velhice.
22. O Autor é herdeiro, na proporção de 1/5 da herança aberta por óbito do seu falecido irmão, (…), composta por um prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (…), secção B, da freguesia de (…) e por um prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…).»
II.3.2.
O tribunal a quo julgou não provado que:
«a) O Autor, em 25 de março de 2014, remeteu missiva endereçada aos herdeiros legais de (…), tendo nessa missiva declarado que apenas tomou conhecimento do óbito de (…) a 19 de março de 2014 e solicitou informação acerca da identidade do legítimo proprietário do prédio, por forma a lhe ser possível dar cumprimento ao pagamento das respetivas rendas, nunca tendo obtido qualquer resposta.
b) O Autor remeteu, em 09 de abril de 2014, nova missiva endereçada aos respetivos herdeiros legais, informando de que procedeu ao pagamento das rendas referentes ao ano de 2013, através de depósito no balcão de Odemira da Caixa Geral de Depósitos.
c) O Autor manteve em bom estado de conservação as diversas edificações térreas ali presentes.
d) O Autor semeia atualmente trigo, cereais e cevada.
e) A irmã do Autor está doente.
f) Não existe qualquer local para o gado recolher durante a noite.
g) O Autor não liquidou as rendas desde 2006.»
II.4.
Questão prévia: (In) Admissibilidade da junção de documentos
Em sede de recurso a apelante veio juntar uma certidão e diversas fotografias estas últimas alegadamente relativas às edificações existentes no prédio rústico arrendado. Com os referidos documentos a apelante pretende provar que a outorgante do contrato em causa nos autos, (…), ali figurava como “usufrutuária” e não como “proprietária” e que no prédio rústico em causa nos autos existem (apenas) ruínas sem quaisquer condições de habitabilidade e que não se mostram averbadas à caderneta predial do prédio.
O apelado opôs-se à junção dos referidos documentos, com os fundamentos que aqui damos por integralmente reproduzido.
Vejamos.
Compulsados os autos verificamos que através de requerimento datado de 28 de março de 2025 a ora apelante já havia solicitado a junção aos autos da certidão que agora, de novo, apresentou em sede de recurso e que, mediante despacho proferido em 4 de abril de 2025, o julgador a quo não admitiu a respetiva junção aos autos por extemporaneidade.
Não há notícia nos autos de que a ré e ora apelante haja interposto recurso de apelação autónoma de tal despacho (artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC), pelo que o mesmo transitou em julgado (artigo 628.º do CPC). Donde, com tal decisão formou-se caso julgado formal quanto à admissão de tal documento aos autos, o que significa que nenhum outro tribunal pode modificar aquela decisão (artigo 620.º do CPC).
Pelo exposto, a sua junção aos autos nesta sede de recurso não é legalmente admissível.
Relativamente às imagens fotográficas cuja junção aos autos foi agora requerida, a apelante pretende provar com as mesmas que no prédio em causa nos autos existem apenas ruínas, sem quaisquer condições de habitabilidade.
A admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso deve ser analisada à luz do disposto no artigo 651.º do CPC conjugado com o artigo 425.º do mesmo diploma legal.
O artigo 651.º, epigrafado Junção de documentos e de pareceres, dispõe o seguinte:
«As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância» (itálicos nossos).
Dado que a instrução do processo deve fazer-se perante a primeira instância, sendo naquela sede que devem ser produzidos todos os meios de prova, entre eles a prova documental, compreende-se que a faculdade de apresentar documentos em sede de recurso seja verdadeiramente excecional, limitando-se, por conseguinte, às situações previstas no preceito legal supra citado.
De harmonia com o disposto no artigo 651.º a junção de documentos na instância recursiva só é admissível quando: i. não tenha sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em primeira instância (casos previstos no artigo 425.º do CPC de superveniência objetiva e subjetiva); ou ii. aquela junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
O artigo 425.º[1] inserido no Capítulo II – Prova por documentos, do Título V- Da Instrução do processo, contempla as hipóteses da chamada “superveniência objetiva e subjetiva” da prova documental, isto é, contempla os casos em que o(s) documento(s) só foi produzido depois do momento temporal ali referido (encerramento da discussão em primeira instância) (caso de superveniência objetiva) e os casos em que a parte só teve conhecimento da sua existência depois daquele limite temporal, embora o documento já existisse (caso de superveniência subjetiva). Em qualquer das situações previstas no artigo 425.º do CPC a parte que pretende juntar o(s) documento(s) para além daquele limite temporal tem de alegar e provar a impossibilidade de apresentação do(s) mesmo(s) no momento próprio para o efeito.
Relativamente ao circunstancialismo previsto no último segmento do artigo 651.º/1, do CPC estão em causa situações em que a junção do documento se torna necessária em virtude de o julgamento proferido na primeira instância ter introduzido alguma questão nova que não seria expectável em face dos elementos constantes do processo – assim, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 242. Ou seja, esta hipótese prevista no último segmento do artigo 651.º do CPC não se verifica quando a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já revelava desde o início ser o thema decidendum, pressupondo, ao invés, a novidade da questão apta a modificar o julgamento – acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.11.2014, publicado em www.dgsi.pt.
Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 243, referem que «a ocorrência posterior que torna necessário o documento pode ser a própria sentença que haja decidido com base em facto novo oficiosamente cognoscível (artigo 412.º) ou em solução de questão de direito nova (artigo 5.º/3), com desrespeito do contraditório».
Voltando ao caso sub judice, resulta dos autos que a ré e ora apelante alegou na sua contestação que as edificações existentes no prédio arrendado estão em estado de ruína e não oferecem condições de habitabilidade, pelo que a junção dos registos fotográficos em sede de recurso com o desiderato de provar tal factualidade não encontra abrigo à luz do segundo segmento do artigo 651.º do CPC. Acresce que a apelante não alegou e não provou a superveniência de tais documentos (fotografias), o que torna inadmissível a respetiva junção nesta sede de recurso à luz do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 651.º e 425.º do CPC. Donde, a respetiva junção nesta sede de recurso não tem suporte legal, impondo-se uma decisão de indeferimento da respetiva junção.
DECISÃO:
Por todo exposto, indefere-se a junção dos documentos apresentados pela apelante juntamente com as respetivas alegações de recurso.
As custas do presente incidente são da responsabilidade da recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em uma UC.
II.5.
Apreciação do objeto do recurso
II.5.1.
Nulidade de sentença
Neste domínio, a apelante sustenta que a sentença «enferma de nulidade ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), atentas as contradições entre os factos dados como provados e não provados e a decisão proferida (…)». Concretamente, a apelante afirma que os factos julgados provados e não provados «jamais poderiam determinar pela procedência da ação do autor e na manutenção do contrato de arrendamento rural».
O vício que a apelante imputa à sentença recorrida mostra-se previsto na primeira parte da alínea c), do artigo 615.º, n.º 1, do CPC. Assim, de harmonia com este normativo legal, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Este concreto vício pressupõe que no plano lógico-narrativo a decisão se mostre contraditória nos seus termos, não permitindo apurar qual dos termos da contradição foi o querido pelo julgador[2].
Como se refere no Ac. STJ de 17.12.2009, processo n.º 885/04.1TCSNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt., «a nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil traduz-se num vício de construção da sentença caracterizado em os fundamentos invocados conduzirem logicamente não ao resultado expresso mas a resultado oposto, isto é, há uma contradição lógica entre as premissas e a conclusão do silogismo judiciário».
Este vício distingue-se do erro na formação do juízo de direito ou de facto, o chamado erro de julgamento, o qual ocorre quando:
i. há uma desconformidade do julgamento judicial de provado ou de não provado com a realidade de facto (erro de julgamento de facto), ou porque ocorreu um erro na apreciação das provas ou porque ocorreu um erro na fixação dos factos materiais relevantes da causa.
ii. há uma desconformidade do julgamento judicial com a regra jurídica aplicada ou aplicável, ou porque há um vício na determinação da norma aplicável à matéria de facto relevante (erro de previsão) ou porque há um erro na fixação dos efeitos da norma já determinada (erro de estatuição).
Na síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.10.2011[3], «a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito da causa. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da ação» (itálicos e negritos nossos).
Dito isto, no caso em apreço o que a apelante defende, na verdade, é que a partir do elenco dos factos julgados provados e não provados o tribunal a quo deveria ter produzido outra decisão jurídica. Isso mesmo é bem patente quando a mesma afirma que os factos provados e não provados (que enuncia) «jamais poderiam determinar a procedência da ação». Em suma, o que é alegado é um suposto erro de julgamento que deverá ser apreciado em outra sede.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
II.5.2.
Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Se porventura a apelante pretendeu impugnara o julgamento de facto, ela não cumpriu os ónus impostos em matéria de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, os quais se mostram previstos no artigo 640.º do CPC.
Este normativo legal sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o seguinte:
«1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da requerida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravadas, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3- O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».
O conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, 2018, págs. 165-166, a propósito do regime sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, destaca que «sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente […]».
Como se refere no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015[4] «a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendam ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC».
Extrai-se do disposto no artigo 640.º, n.º 1, do CPC que a consequência da falta de cumprimento dos ónus previstos naquele normativo é a «imediata rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto», logo sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.
No caso sub judice a apelante não identifica expressamente quais os factos provados ou não provados de cujo julgamento discorda, o que implica, desde logo o incumprimento do ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, do alínea a), do CPC e também não indica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida, incumprindo, também, o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea c), do CPC. A apelante refere genericamente ter resultado do depoimento da testemunha (…) que a senhoria era usufrutuária, para concluir pela caducidade do contrato em virtude do falecimento daquela, que «é falso que no prédio rústico existam diversas edificações térreas, conforme aliás se comprova pela caderneta predial» e que existem, ao invés, «ruínas sem quaisquer condições de habitabilidade», que o próprio autor confessou que os terrenos não são cultivados há mais de três anos» e que «não corresponde à verdade que o autor mantém em bom estado de conservação as diversas edificações térreas ali presentes», pois que aquele confrontado com as mesmas confessou encontrar-se assim, confissão essa igualmente corroborada pelas suas testemunhas (…), (…) e (…), que admitiram que as edificações estavam naquele estado», sem que estabeleça expressamente qualquer ligação entre os meios de prova que refere e os factos julgados provados/não provados, incumprindo desta forma o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC. Por fim, quando alude à prova oral produzida nos autos não cumpre o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
Por todo o exposto, impõe-se a rejeição da impugnação da decisão de facto, de harmonia com o disposto no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.
Na presente ação o autor e ora apelado pediu ao tribunal a quo que decidisse que «o despejo põe em risco sério a subsistência do autor e do seu agregado familiar» e que a ré fosse «condenada a assim o reconhecer, devendo, assim, manter-se o arrendamento em vigor».
O tribunal a quo, depois de considerar que a lei aplicável ao caso é o D/L n.º 294/2009, de 13.10 e de qualificar o contrato em causa nos autos como sendo um contrato de arrendamento rural – o que não vem posto em causa no presente recurso –, procedeu à interpretação da declaração emitida pela ré/apelante através da notificação judicial avulsa acima referida, concluindo que a ré pretendeu através da mesma resolver o contrato em causa nos autos; e, de seguida, avaliou se estavam verificados os fundamentos invocados pela ré para a resolução do contrato, concluindo pela negativa, determinando, em conformidade, a manutenção do contrato de arrendamento.
Insurge-se a recorrente contra tal decisão, defendendo que «encontra-se mais que justificada a cessação por resolução do contrato de arrendamento ao cultivador direto pelo aqui autor, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 2, do D/L n.º 294/2009, de 13 de outubro», alegando que o autor “age em completo abuso”, não cumpre o contrato de arrendamento “porque não semeia nem cultiva o prédio” e utiliza edificações do mesmo “sem para estar tal estar legitimado”, «causando prejuízos à ré que vê o seu terreno, uma extensa área de terra completamente seca e com ruínas, em completa desvalorização do seu prédio».
Apreciando.
Como supra assinalámos não vem posto em causa no presente recurso que o contrato que está em causa nos autos é um contrato de arrendamento rural[5] ao qual se aplica o regime previsto no D/L n.º 294/2009, de 13 de agosto. Tão pouco vem posto em causa no presente recurso que a declaração constante da notificação judicial avulsa acima referida e à qual alude o ponto de facto provado n.º 10 é uma declaração resolutiva do referido contrato de arrendamento. Foi assim que a interpretou o julgador a quo[6] e essa interpretação não nos merece censura.
Sendo assim, como é, este tribunal de segunda instância apenas poderá avaliar se se verificam os fundamentos de resolução invocados pela apelante na referida notificação judicial avulsa que dirigiu ao autor/apelado (e não também quaisquer outros que se pudessem, eventualmente, extrair do elenco dos factos provados).
O artigo 17.º do D/L n.º 294/2009, de 13.10, epigrafado Cessação por resolução, dispõe que:
«1 – Qualquer das partes pode resolver o contrato com base em incumprimento pela outra parte, que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, ou alteração significativa da natureza e, ou, da capacidade produtiva do prédio.
2 – O senhorio só pode pedir a resolução do contrato se o arrendatário:
a) Não pagar a renda no tempo e lugar próprio, nem fizer o pagamento nos termos previstos no n.º 4 do artigo 11.º;
b) Faltar ao cumprimento de uma obrigação legal ou contratual, com prejuízo direto para a produtividade, substância ou função económica e social do prédio;
c) Não utilizar apropriadamente e com regularidade o prédio ou usar o mesmo para fins diferentes do estipulado no contrato;
d) Não zelar pela boa conservação dos bens ou causar prejuízos graves nos que, não sendo objeto do contrato, existam no prédio arrendado;
e) Realizar, sem consentimento do senhorio, investimentos em obras ou construções que alterem a natureza, a estrutura geofísica e as características essenciais do prédio, sem prejuízo do disposto no capítulo V do presente decreto-lei;
f) Subarrendar ou ceder por comodato, total ou parcialmente, os prédios arrendados, ou ceder a sua posição contratual, sem cumprimento das obrigações legais».
Como se exarou no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.11.2020[7], «À semelhança do que o legislador do Novo Regime do Arrendamento Urbano havia consagrado em 2006, também no Novo Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro, foi introduzido um regime bilateral quanto aos fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, prevendo o legislador no n.º 1 do artigo 17.º um conceito genérico e indeterminado de incumprimento como fundamento de resolução, tanto pelo arrendatário como pelo senhorio, mas na realidade e quanto a este veio apenas autorizar esta forma de cessação do contrato quando se verifique um incumprimento qualificado por uma daquelas cláusulas gerais, e um dos fundamentos elencados no seu n.º 2, já que o senhorio só pode pedir a resolução do contrato se se verificar uma das indicadas situações prevenidas no preceito. Significa isto que a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio não opera afinal de forma tão linear e liberal como a decorrente dos artigos 432.º e ss. e 801.º, n.º 2, do Código Civil, de acordo com os quais qualquer uma das partes pode resolver o contrato apenas com base no incumprimento culposo da outra parte, não bastando para a extinção do contrato de arrendamento qualquer incumprimento contratual por banda do arrendatário, quer este decorra da violação das obrigações emergentes das cláusulas contratuais (cfr. n.º 2, alínea b) do artigo 17.º do NRAR), quer resulte da própria lei, necessário se tornando que o incumprimento assuma foros de gravidade que constituam justa causa de resolução. Desta sorte, a gravidade do incumprimento fundador do direito à resolução do contrato por parte da senhoria há-de aferir-se quer pela própria natureza da infração – atuação/omissão substancialmente grave – quer pelas consequências ou efeitos que provoca – e que tornam tal incumprimento grave – quer ainda pela reiteração da conduta violadora das obrigações assumidas – que, por essa via, também é qualificável como grave –, tudo de tal forma que não seja razoavelmente exigível à outra parte a manutenção do arrendamento» (negritos nossos).
Pegando na ideia de “justa causa” como princípio geral de aferição da relevância do incumprimento para efeitos de exercício do direito de resolução, Joana Farrajota[8] refere, a propósito, que nos contratos de execução duradoura aquilo que está em causa, em regra, «não é a perda de interesse do credor numa concreta prestação, mas sim a perda de interesse na manutenção da relação. O juízo de avaliação do incumprimento, para efeitos do exercício do direito de resolução nos contratos de execução duradoura, transcende a mera apreciação do respetivo impacte no interesse do credor na prestação incumprida, incidindo igualmente sobre o efeito daquele no interesse do credor em manter-se vinculado ao contrato. Atenta-se, para além da gravidade do incumprimento em si mesmo considerado[9], aos efeitos daquele na viabilidade da relação. Trata-se, pois, a final, de realizar um juízo quanto à exigibilidade da manutenção do contrato». Aduz aquela autora que «o contrato de execução duradoura deve poder ser resolvido sempre que, de acordo com as conceções vigentes na sociedade e à luz do princípio da boa fé, em face de determinado facto ou circunstâncias, a respetiva execução se torne inexigível. (…)».
Importa sublinhar que o reconhecimento do direito a resolver o contrato deve ter por base um juízo de proporcionalidade entre a lesão provocada pelo não cumprimento da obrigação e os efeitos da resolução e que o exercício de tal direito pode ser inviabilizado pelo comportamento do titular do direito sempre que este crie uma expectativa legítima na manutenção do contrato.
No caso sub judice os fundamentos de resolução do contrato que foram invocados pela ré/apelante na notificação judicial avulsa que aquela promoveu relativamente ao autor/apelado foram a «falta de pagamento de rendas» e o «uso do prédio rústico para outros fins que não aqueles constantes do contrato de arrendamento ao cultivador direto, concretamente a utilização de uma das edificações existentes no prédio rústico arrendado, para sua habitação, sem qualquer autorização» (facto provado n.º 10) e foram apenas estes, e bem, que o julgador a quo apreciou, sendo também apenas relativamente a eles que este tribunal de segunda instância tem de emitir pronúncia. Donde não ser relevante para a decisão de mérito do presente recurso a alegação de que o «autor não dá cumprimento ao acordado no contrato pois não semeia o prédio e não colhe, anualmente, trigo, cereais e cevada, há pelo menos três anos, estando o prédio rústico completamente inóspito, em notória desvalorização, (…)» e que «o autor não mantém em bom estado de conservação as diversas edificações térreas ali presentes». Com efeito, ainda que eventualmente tais condutas possam integrar alguma das previsões do artigo 17.º, n.º 2, do D/L n.º 294/2009, de 13 de outubro, elas não foram invocadas na declaração resolutiva transmitida ao aqui apelado através de uma notificação judicial avulsa. De igual modo, não releva para a decisão do presente recurso a alegação da apelante de que «a denúncia do contrato não põe em risco sério a subsistência económica do autor uma vez que os seus rendimentos não advêm de qualquer cultivo do terreno e o autor tem outras propriedades em Odemira» pois que o tribunal a quo considerou na sentença recorrida que através da notificação judicial avulsa a aqui apelante pretendeu comunicar ao aqui apelado a resolução do contrato e não a denúncia do mesmo ou uma oposição à sua renovação, e a factualidade acabada de referir apenas relevaria se porventura estivesse em causa uma oposição à renovação do contrato ou à sua denúncia[10].
Como dissemos, os fundamentos invocados pela ora apelante na declaração de resolução comunicada ao autor por via de uma notificação judicial avulsa foram a falta do pagamento anual das rendas e a utilização do prédio “para fim diverso do contratualmente estipulado”.
No que respeita ao fundamento de resolução “falta de pagamento de rendas”, a apelante limita-se a dizer que o autor/apelado incumpriu a sua obrigação de pagamento das rendas. O que contraria o ponto de facto provado n.º 11 - O Autor tem procedido ao pagamento anual das respetivas rendas através de consignação em depósito, a favor de (…), na Caixa Geral de Depósitos. Donde, não pode proceder este argumento da apelante com vista à revogação da sentença recorrida.
Quanto à utilização do prédio “para fim diverso do contratualmente estipulado” trata-se de fundamento de resolução do contrato que cai na previsão da 2.ª parte da alínea c) do n.º 2 do artigo 17.º do D/L n.º 294/2009, de 13.10 – usar o prédio para fins diferentes do estipulado no contrato.
No entanto, no seu recurso a apelante limita-se a alegar que as edificações térreas existentes no prédio rústico tinham como pressuposto o apoio à agricultura do autor, nomeadamente como guarda de materiais e animais e que o autor as utiliza para sua habitação, sem que para tal esteja legitimado. Ou seja, a apelante não impugna a fundamentação jurídica que o julgador a quo recorreu para julgar que, no que respeita a este concreto incumprimento contratual, «não se encontra preenchida a cláusula geral de inexigibilidade». O que basta para julgar improcedente também este segmento do recurso. Não obstante sempre se dirá que a sentença recorrida não merece reparo ao considerar que a conduta do autor/apelado traduzida na utilização de uma das edificações existentes no prédio rústico para sua habitação (e da irmã) não reveste os foros de gravidade exigidos para a resolução do contrato, à luz do disposto no artigo 17.º, n.º 1, do D/L n.º 294/2009, de 13 de outubro. Com efeito, e como se assinala na sentença recorrida, não decorre da factualidade julgada provada que a utilização de uma das edificações térreas para habitação do autor tenha gerado qualquer prejuízo para essa mesma edificação; tão pouco se alegou e provou factualidade reveladora de que tal utilização tenha afetado o fim do próprio contrato; por último, mas não menos importante, provou-se que desde o ano de 1976 o autor reside juntamente com a sua irmã numa dessas edificações (facto provado n.º 14), sem que se tenha provado, ou alegado, que tal utilização se tenha alguma vez repercutido na confiança que uma relação jurídica duradoura como a do arrendamento pressupõe. Pelo contrário: o facto de o autor residir numa das edificações existentes no prédio rústico arrendado, desde o início da relação contratual, sem que tenha sido alegado ou provado que a senhoria desconhecia essa circunstância, permitiu gerar na esfera jurídica do aqui autor a confiança de que a concreta utilização (para sua habitação) que estava a dar a uma das edificações existentes não obstaria à manutenção da relação arrendatícia.
Por conseguinte, e como já o dissemos, improcede também este segmento do recurso.