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PERDA DE VANTAGENS
REQUERIMENTO
PRAZO
Sumário
1. O Ministério Público, no interesse da comunidade e por direito próprio, pode sempre peticionar a perda de vantagens, através de requerimento apresentado a todo o tempo, desde que permita o exercício efetivo do contraditório. 2. O art. 110º do CPenal não indica o prazo para a dedução do pedido de decretamento da perda de produtos e vantagens e impõe-na ao juiz que não pode deixar de a decretar, desde que verificados os necessários pressupostos legais.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO
No Processo nº 2803/19.3T9VCT do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Central Criminal de Viana do Castelo - Juiz 2, foi proferido, em 20.02.2025, o seguinte despacho: “Referência ...75: O Ministério Público veio promover que em sede de acórdão se declare perdido a favor do Estado o valor total de €303.265,40 (trezentos e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros e quarenta cêntimos), que corresponde à vantagem patrimonial que, através de factos ilícitos típicos, foi adquirido pelo arguido AA e pelas sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, e se condene solidariamente o arguido e as sociedades, por si detidas e geridas, no respetivo pagamento, nos termos dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal. Mais requer que o arguido e as sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.” sejam notificadas do presente requerimento. (…) Assim, a primeira questão que se coloca é saber se o Ministério Público pode formular o pedido de perda de vantagens em qualquer altura, ou seja, se o requerimento apresentado depois de deduzida a acusação é tempestivo. (…) No caso, a acusação foi deduzida em 18.03.2024, foi designada data para realização da audiência de discussão e julgamento em 18.09.2024, agendada para dia 15.01.2025, tendo o requerimento em causa dado entrada nos autos em 23.12.2024 e nada constando da acusação relativamente ao procedimento de perda agora requerido. (…) Ora, delimitando a acusação o objecto do processo, o do requerimento de perda de vantagens tem de se basear na mesma factualidade que ali é alegada, sob pena de ocorrer uma alteração substancial dos factos. Pelo exposto, e pelos fundamentos acima mencionados, julgo intempestivo/inadmissível o requerimento apresentado pelo Ministério Público”.
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OMinistério Público veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso é restrito a matéria de Direito. 2. É interposto do despacho de 20/02/2025 (referência ...58), que julgou intempestivo/inadmissível o requerimento do Ministério Público, datado de 23/12/2024 (Referência ...75) que peticiona a declaração de perda de vantagens, ao abrigo do art. 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do C. Penal, com os seguintes fundamentos: a. É intempestivo, porque devia ter sido deduzido na acusação, datando esta de 18/09/2024, estando o julgamento agendado para 07/05/2025, não havendo norma a estabelecer prazo, como na Lei 5/2002 – princípio do acusatório, regime semelhante às penas e medidas de segurança – art. 283º, al. C) do C. Processo Penal. b. É inadmissível, porque vai além da acusação, referindo quantias recebidas, em vez de faturadas, o que constituiria uma alteração substancial dos factos. 3. O Instituto jurídico que aqui está em causa está regulado nos arts. 109º a 111.º- A do C. Penal sob a epígrafe “Perda de instrumentos, produtos e vantagens”. 4. O art. 111º, nº 2 diz o seguinte: “São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem de qualquer espécie”. 5. Não resulta do Código Penal ou do Código de Processo Penal que o Ministério Público tenha que requerer a aplicação daquele instituto e que o tenha de fazer na acusação. 6. Da leitura dos arts. 109º a 111º-A resulta que a perda de vantagens pode ser decretada oficiosamente e deve ser decretada contra os agentes do crime e também contra os terceiros beneficiados com a sua prática. 7. A acusação foi deduzida contra o arguido AA, e apenas contra este, porque os crimes em causa não preveem a punibilidade criminal das pessoas coletivas (crimes de prevaricação e de participação económica em negócio, arts. 11º e 23º da Lei 34/87). 8. Com a notificação do requerimento do MP, com a concessão de prazo para defesa, quer do arguido quer das duas sociedades beneficiadas, como requerido, não se viola o direito de defesa nem o direito a um julgamento equitativo (art. 31º, n.º 1 e 5 da CRP). 9. O instituto da perda de vantagens não é uma acusação ou juízo de culpa e pode até ocorrer sem condenação. 10. Não se confunde com o pedido de indemnização civil (Acórdão do STJ, de 29/04/2020, citado no Acórdão do STJ, de 11/04/2024, este último com abundante citação de doutrina (alguma supra referida), jurisprudência dos Tribunais das Relações, do Supremo Tribunal, Tribunal Constitucional e referência à legislação europeia). 11. Trata-se sim de uma consequência jurídica de carácter patrimonial dos ilícitos cometidos, e por isso está num capítulo autónomo (Capítulo IX) do Título III (Das consequências jurídicas do crime) da Parte Geral (Livro I) do Código Penal. 12. Em nada releva para o caso, a Lei 5/2002 prever um prazo até 30 dias antes da audiência de julgamento, pois trata-se de instituto jurídico completamente diverso – perda do valor do património incongruente – também chamado perda alargada. 13. Enquanto no Código Penal se estipula que a declaração da perda ocorre quanto a recompensas dadas ou prometidas ao agente de um facto ilícito típico ou quanto a vantagens obtidas através desse facto, no regime previsto na Lei 5/2002 exige-se a condenação pela prática de um dos crimes de catálogo. 14. O indeferimento por inadmissibilidade é prematuro, entendendo o despacho em crise que o pedido de vantagens vai além da acusação e que isso seria uma alteração substancial dos factos, sem fazer o julgamento, sem saber o que será dado como provado e não provado, isto é, se são provados os factos só da acusação ou também do pedido de perda de vantagens. 15. Caso tal se venha a verificar – alteração não substancial ou substancial – cumprir-se-á então o disposto nos arts. 358º ou 359º, ambos do C. Processo Penal. 16. Acresce que mesmo quanto aos factos inovadores, também não se justifica a posição do tribunal. Na verdade, o confisco é uma ação patrimonial que corre os seus termos no processo penal e paralelamente ao mesmo. Quando há um pedido (se houver factos até deverá ser oficiosamente) de perda, que possa ser notificado em tempo útil ao visado (arguido, beneficiário ou terceiro) nada impede que seja feito fora da acusação. Ainda assim o visado poderá contestar esse pedido e defender-se do mesmo. 17. O requerimento formulado pelo MP visa demonstrar que o crime não compensa, só assim se mostrando que não se tolera uma situação antijurídica, na defesa do Estado de Direito. 18. Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido violou o art. 111º do C. Penal e o art. 283º do C. Processo Penal”.
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O recurso foi admitido, por despacho de 25.03.2025, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, mas, por despacho de 24.04.2025, entendeu-se ser de atribuir efeito suspensivo ao recurso.
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O arguido AA apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
“A. Deve fixar-se ao recurso efeito suspensivo do processo, ao abrigo do disposto no n° 3 do art° 408°, CPP. B. O douto despacho recorrido não merece qualquer reparo, mostrando-se injustificadas as críticas que o Recorrente lhe dirige na douta motivação do recurso sob resposta”.
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Nesta Relação, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual formulou a seguinte conclusão: “pedido de perda de vantagens apresentado pelo Ministério Público em momento posterior à dedução da acusação pública, porque inexiste norma que defina o momento para a apresentação daquele pedido de “perda clássica”, sendo esta, aliás, uma imposição legal livre da formulação de um qualquer requerimento com tal fim – art.º 110, n.º1 do CPenal, e porque segura jurisprudência o confirma, é legalmente tempestivo, ao contrário do afirmado no despacho recorrido que o aloca por ocasião da acusação, devendo, pois, ser admitido e sujeito a oportuno contraditório, revogando-se, então, o despacho colocado sob sindicância”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”.
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação, pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do CPPenal).
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Face ao exposto e às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar a tempestividade, ou não do requerimento apresentado pelo Ministério Público, em 23.12.2024, para perda de vantagens.
A questão prévia, suscitada pelo arguido na resposta ao recurso, relativa ao regime de subida do recurso mostra-se prejudicada pela prolação, em 24.04.2025, do despacho que alterou o efeito do recurso, pelo que nada há a determinar a este respeito.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para a apreciação da questão suscita importa ter presente os seguintes elementos que constam dos autos:
1. Em 18.03.2024 foi deduzida acusação (Refª ...98), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, contra o arguido AA, pela prática “em autoria singular, dolo direto e concurso efetivo: - um crime de prevaricação p.º e p.º pelo art.º 11.º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho conjugado com o art.º 5.º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21/12; - um crime de participação económica em negócio, p.º e p.º pelo art.º 23.º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, conjugado com o art.º 5.º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21/12”; 2. Em 02.07.2024 (Refª ...88), foi proferido despacho que recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público e admitiu o pedido cível deduzido por requerimento de 15.04.2024 (Refª ...45); 3. Por despacho de 18.09.2024 (Refª ...39) foi admitida a contestação (de 16.09.2024 – Refª ...31) e designadas datas para a realização da audiência de julgamento; 4. Em 23.12.2024, o Ministério Público apresentou requerimento (Refª ...75), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, no qual promove que “em sede acórdão se declare perdido a favor do Estado o valor total de €303.265,40 (trezentos e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros e quarenta cêntimos), que corresponde à vantagem patrimonial que, através de factos ilícitos típicos, foi adquirido pelo arguido AA e pelas sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, e se condene solidariamente o arguido e as sociedades, por si detidas e geridas, no respetivo pagamento, nos termos dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal”; 5. Em 06.01.2025, foi proferido o seguinte despacho (Refª ...02): “Referência ...75: Dê conhecimento aos sujeitos processuais.” 6. Em 08.01.2025, o arguido apresentou requerimento (Refª ...14) com o seguinte teor: “Considerando o prazo que o Arguido e as referidas Sociedades dispõem para exercerem o direito de resposta e a necessidade reunirem os elementos necessários para o efeito, não é possível fazê-lo antes do próximo dia 15 de janeiro. Pelo exposto, requer que s e declare sem efeito a data agendada para a audiência de julgamento (15 de janeiro de 2025) e se aguarde que o Arguido e as Sociedades Requeridas exerçam o direito de resposta que lhes assiste para, oportunamente, se designar nova data para o ato”; 7. Em 14.01.2025, foi proferido o seguinte despacho (Refª ...43): “Referências ...75, ...14 e ...29: Atendendo que ainda se encontra em curso o prazo para o arguido se pronunciar quanto ao requerimento apresentado pelo Ministério Público ( o que não fez até este momento ), que o arguido requereu o prazo de 15 dias para se pronunciar e o consequente adiamento da audiência de discussão e julgamento, ao qual o Ministério Público não se opôs, determino o adiamento da audiência de discussão e julgamento designada para o dia de amanhã, bem como a segunda data, uma vez que na mesma já foi agendada a audiência de discussão e julgamento no processo 192/22.8GBAVV e duas continuações nos processos 76/17.1T9CMN e 1396/20.3JABRG. Defiro o prazo requerido pelo arguido. Como nova data para a realização da audiência de discussão e julgamento designo o dia 07 de maio de 2025, pelas 09.15 horas e continuação no mesmo dia pelas 14.00 horas, com o mesmo escalonamento da prova, e não antes por indisponibilidade de agenda. Notifique e desconvoque”.
8. Em 20.02.2025, foi proferido o seguinte despacho (Refª ...58 - despacho recorrido): “Referência ...75: O Ministério Público veio promover que em sede de acórdão se declare perdido a favor do Estado o valor total de €303.265,40 (trezentos e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros e quarenta cêntimos), que corresponde à vantagem patrimonial que, através de factos ilícitos típicos, foi adquirido pelo arguido AA e pelas sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, e se condene solidariamente o arguido e as sociedades, por si detidas e geridas, no respetivo pagamento, nos termos dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal. Mais requer que o arguido e as sociedades “EMP01..., Lda.” E “EMP02... – Unipessoal, Lda.” sejam notificadas do presente requerimento. Cumpre decidir: Determina o artigo 110º, n.º 1, al b) do Código Penal que: “ 1. São declarados perdidos a favor do Estado: b) as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem. 4 . Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º -A. “ Como refere José Nuno Duarte, A Perda de Instrumentos, produtos e vantagens do Crime no Código Penal Português, pág. 97 e ss, “por estamos perante uma figura sancionatória de Direito Público, susceptível de atingir direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, a perda de bens inclui-se na reserva da função jurisdicional (…). Concomitantemente, uma vez que o confisco, mesmo não desempenhando uma função punitiva, prossegue finalidades de segurança pública e de combate ao crime que autorizam que a situação jurídico-patrimonial das pessoas visadas seja alterada, forçoso é que esteja sujeito ao príncipio da legalidade e a todos os demais princípios e garantias constitucionais próprios do Direito e do Processo Criminais, genericamente previstos nos artigos 29º e 32º da CRP, bem como às vinculações impostas pelo artigo 18º, nº 2 da CRP. Por isso, a perda de bens, obedece, desde logo, aos seguintes princípios (…). Para além destes princípios materiais, aplicam-se à perda de bens as garantias de defesa próprias do Processo Criminal, particularmente relevantes não só para quem, sendo já sujeito processual, possui interesses patrimoniais que podem ser afectados pelo confisco, como, de forma ainda mais intensa, para os terceiros que são titulares de bens visados pelo procedimento confiscatório”. E, por isso, é aplicável à perda de bens, entre o mais, o princípio do acusatório que postula que haja uma clara separação entre o órgão acusador, a quem compete definir o objecto do processo e o julgador. Por isso, como adianta o mesmo Autor, obra citada, pág. 101, “idealmente, a acusação deve indicar toda a factualidade de que depende a aplicação de sanções jurídicas, bem como precisar quais as sanções em que incorre a pessoa contra quem é dirigida a imputação acusatória”. Assim, como consta da nota 205, “Nesta conformidade, impõe a nossa legislação processual penal que, sob pena de nulidade, a acusação deduzida pelo Ministério Público contenha, entre o mais, a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283, nº 3, al. c) do Código de Processo Penal)”. Assim, a primeira questão que se coloca é saber se o Ministério Público pode formular o pedido de perda de vantagens em qualquer altura, ou seja, se o requerimento apresentado depois de deduzida a acusação é tempestivo. No Código de Processo Penal não existe norma que indique o prazo para a dedução do pedido de decretamento da perda de bens, existindo uma lacuna na lei que deve ser integrada de acordo com o princípio prescrito no artigo 4º do CPP. Porém, como vimos e decorre do princípio do acusatório e do disposto pelo art. 283º do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem o poder-dever de, na acusação, indicar todos os elementos de facto e de direito necessários para o decretamento da perda de bens. No caso, a acusação foi deduzida em 18.03.2024, foi designada data para realização da audiência de discussão e julgamento em 18.09.2024, agendada para dia 15.01.2025, tendo o requerimento em causa dado entrada nos autos em 23.12.2024 e nada constando da acusação relativamente ao procedimento de perda agora requerido. De acordo com o disposto no artigo 283º, n.º 3, alínea b), do CPP, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. A perda de vantagens a que alude o artigo 110º do CP: “é um instituto autónomo em relação à indemnização civil, atenta a sua natureza e finalidade preventivas, e o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança.” – in Acórdão da Relação de Évora de 12/09/2023, www.dgsi.pt Ora, atenta a natureza jurídica do instituto de perda de vantagens semelhante às penas ou medidas de segurança, os factos e as disposições legais que fundamentam tal instituto deverão ser indicados na acusação. Mesmo que se considere que tal instituto poderá eventualmente ter uma natureza civil, o pedido de indemnização civil previsto no artigo 77º, do CPP tem igualmente de ser deduzido até à prolação do despacho de acusação. Fazendo ainda referência à perda ampliada a que se reporta a Lei 5/2002 de 11 de janeiro, o artigo 8º prevê igualmente que o requerimento em causa terá de ser efetuado aquando da acusação, ou se tal não foi possível até ao 30.º dia anterior à data prevista para a realização da audiência de discussão e julgamento, contudo entendemos que no caso, por a referida lei se tratar de norma excecional, não pode ser aplicada analogicamente. Isto para concluirmos que, em qualquer dos casos, o requerimento apresentado pelo Ministério Público é intempestivo, porque não deduzido na acusação. Acresce que a menção “a todo o tempo “ do n.º 4 do artigo em questão, não se reporta à possibilidade de dedução e consequente tempestividade do requerimento a apresentar pelo Ministério Público, pois essa norma aplica-se apenas a uma eventual necessidade de substituição dos produtos ou vantagens cuja apropriação em espécie não foi possível pelo pagamento ao Estado do respetivo valor. Por outro lado, sempre se dirá que os factos ora alegados no requerimento apresentado pelo MP, designadamente no ponto 3: “valor efetivamente recebido” ; ponto 4 “ receberam efetivamente o valor das obras “, bem como em todo o ponto 5, alíneas a) e b) – descrição da conta corrente, não constam da acusação que, no ponto 12, apenas remete para os extratos de conta corrente sem discriminar os valores agora mencionados. Paralelamente da alínea c) do requerimento apresentado constam quadros ilegíveis (eventualmente legíveis à lupa ou ao microscópio), relativos a “duplicados de faturas relativas aos serviços prestados pelas duas empresas identificadas e documentos respeitantes à obra do parque infantil, com mapas e extratos explicativos”, factos que não foram alegados na acusação. Ora, delimitando a acusação o objecto do processo, o do requerimento de perda de vantagens tem de se basear na mesma factualidade que ali é alegada, sob pena de ocorrer uma alteração substancial dos factos. Pelo exposto, e pelos fundamentos acima mencionados, julgo intempestivo/inadmissível o requerimento apresentado pelo Ministério Público”.
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Apreciação do Recurso
O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 110º, nº 1, al. b) e nº 4 do Código Penal, requereu (em requerimento autónomo e após ter deduzido acusação contra o arguido AA imputando-lhe a prática, em concurso efetivo, de um crime de prevaricação p. e p. pelo art. 11º da Lei nº 34/87, de 16 de julho conjugado com o art. 5º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro; e de um crime de participação económica em negócio, p. e p. pelo art. 23º da Lei nº 34/87, de 16 de julho, conjugado com o art. 5º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro) que se declare perdido a favor do Estado o valor total de € 303.265,40, correspondente à vantagem patrimonial obtida pelo arguido e pelas sociedades “EMP01..., Lda” e “EMP02... – Unipessoal, Lda”, por ele detidas e geridas, sendo condenados solidariamente no respetivo pagamento.
O tribunal a quo julgou “intempestivo/inadmissível o requerimento apresentado pelo Ministério Público” com os seguintes fundamentos: “atenta a natureza jurídica do instituto de perda de vantagens semelhante às penas ou medidas de segurança, os factos e as disposições legais que fundamentam tal instituto deverão ser indicados na acusação. Mesmo que se considere que tal instituto poderá eventualmente ter uma natureza civil, o pedido de indemnização civil previsto no artigo 77º, do CPP tem igualmente de ser deduzido até à prolação do despacho de acusação. Fazendo ainda referência à perda ampliada a que se reporta a Lei 5/2002 de 11 de janeiro, o artigo 8º prevê igualmente que o requerimento em causa terá de ser efetuado aquando da acusação, ou se tal não foi possível até ao 30.º dia anterior à data prevista para a realização da audiência de discussão e julgamento, contudo entendemos que no caso, por a referida lei se tratar de norma excecional, não pode ser aplicada analogicamente. Isto para concluirmos que, em qualquer dos casos, o requerimento apresentado pelo Ministério Público é intempestivo, porque não deduzido na acusação. Acresce que a menção “a todo o tempo “ do n.º 4 do artigo em questão, não se reporta à possibilidade de dedução e consequente tempestividade do requerimento a apresentar pelo Ministério Público, pois essa norma aplica-se apenas a uma eventual necessidade de substituição dos produtos ou vantagens cuja apropriação em espécie não foi possível pelo pagamento ao Estado do respetivo valor. Por outro lado, sempre se dirá que os factos ora alegados no requerimento apresentado pelo MP … não foram alegados na acusação. Ora, delimitando a acusação o objecto do processo, o do requerimento de perda de vantagens tem de se basear na mesma factualidade que ali é alegada, sob pena de ocorrer uma alteração substancial dos factos”.
Dispõe o art. 110º do C.Penal nos segmentos que importam:
1 - São declarados perdidos a favor do Estado: (…) b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem. (…) 4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. (…)”.
Está em causa saber se é tempestivo e admissível o requerimento do Ministério Publico que peticiona a perda de vantagens por não ser deduzido na acusação e ir além desta (referindo quantias recebidas em vez de faturadas e reportando-se ao teor de documentos que haviam sido mencionados na acusação).
A perda de vantagem do facto ilícito a favor do Estado ou a chamada “perda clássica”, prevista no art. 110º do C.Penal, tem subjacente o princípio ético-jurídico de que “o crime nunca pode compensar” (enquanto efeito dissuasivo). Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral) – o crime não compensa porque acarreta uma punição e porque são perdidas as vantagens adquiridas com o crime.
De facto, a perda de vantagens desenvolve um papel fundamental no combate à criminalidade, designadamente económica, porquanto, só privando os infratores, de forma efetiva, dos bens, serviços e benefícios que a atividade criminosa lhes proporciona, melhor dizendo, garantindo que não beneficiam economicamente da sua prática, se consegue o efeito dissuasor pretendido, pois a comunidade não compreende nem aceita que o crime possa ser uma fonte de enriquecimento pessoal para o condenado. “Por um lado, visa-se acentuar a intenção de prevenção, quer geral, quer especial, através da demonstração de que o crime não rende benefícios; por outro, pretende-se evitar o investimento dos proveitos da actividade ilícita na prática de novos factos ilícitos típicos, estimulando, ao invés, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no reforço dos instrumentos de combate ao crime; e, ainda, reduzir os riscos de concorrência desleal no mercado, resultantes da acumulação de riqueza nas mãos de criminosos que investem os lucros em actividades empresariais ilícitas … A perigosidade das vantagens decorre da sua própria natureza e das circunstâncias do caso concreto, dada a possibilidade de poderem vir a ser utilizadas para a prática de um novo facto ilícito com o intuito de gerar lucros, subvertendo as regras da economia” (Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 11.04.2024, Proc. nº 1105/18.7T9PNF.P1-A.S1).
Como acentua Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 528): “a perda de produtos e vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito de condenação, porque também não depende de uma condenação ... Trata-se de uma medida sancionatória, análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes “mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objeto “(Figueiredo Dias, 1993:638 …)”.
A este propósito, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 392/2015, de 12 de agosto, refere que “além destas finalidades preventivas, a este regime também está subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto”.
A declaração de perda das vantagens de um crime, concretizada através do valor correspondente, decorre diretamente do art. 4º, n° 1 da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que impõe aos Estados Membros a adoção de regras mínimas em matéria de confisco e a adequação do direito interno às exigências europeias (neste sentido, Acórdão do TRP de 21.02.2024, Proc. nº 13738/15.9T9PRT-G.P1).
Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português Parte Geral II As consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, 1993, pág. 635 § 1008) defende que a perda de vantagens está relacionada com a gravidade do ilícito-típico cometido, por referência ao princípio da proporcionalidade, pois considera que: “Trata-se aqui, pois, de mais um pressuposto (jurídico-constitucionalmente imposto e, por conseguinte, irrenunciável) de aplicação da perda de vantagens: verificada judicialmente a desproporcionalidade, a perda de vantagens ou não pode ser decretada ou só poderá sê-lo relativamente a uma(s) vantagem(ns) que ainda conserve(m) proporção com a gravidade do ilícito-típico cometido”.
Contudo, não falta quem entenda que a lei não deixa que a perda de vantagens de um crime fique à mercê de interpretações ou de juízos de oportunidade, antes impõe necessariamente a perda (cfr. art. 110º, nº 1, al. b) do C.Penal), sem dar a possibilidade ao julgador de equacionar a sua aplicação ou não aplicação (perda esta que se não em espécie, terá de ser em valor), o que assenta na coerência do próprio sistema, pois “é incoerente punir alguém pela prática de um crime e permitir-lhe ficar com as vantagens adquiridas com a prática desse crime. E também é incoerente o Estado sofrer uma perda patrimonial e não procurar reconstituir a situação patrimonial que existia antes da prática do crime” (Acórdão do TRG de 25.03.2019, Proc. nº 103/14.4TACBT.G1).
Também no Acórdão do TRP de 26.01.2022, Proc. nº 2769/16.1T9PRT.P1, se defende que “não se atribui ao intérprete ou ao realizador do direito qualquer margem de discricionariedade na aplicação deste mecanismo ablativo. Como afirma João Conde Correia, “mesmo nos casos em que no confronto com a pena aplicada ele seja insignificante, implique a utilização de meios ou custos desproporcionados, torne muito difícil a obtenção da própria condenação ou seja óbvia a inexistência de bens confiscáveis, o Ministério Público e o juiz não podem prescindir da questão patrimonial e restringir o objeto do processo à questão penal. A adesão do confisco à sorte do processo penal é total, precludindo qualquer tipo de ponderação sobre a sua pertinência ou utilidade prática” ... Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas, o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança e, para além disso, obrigatório, subtraído a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal. E isto independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possa coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens”.
Seja como for, apesar de alguns autores defenderem a sua natureza penal ou quase penal (o tribunal a quo considerou que a natureza jurídica do instituto de perda de vantagens é “semelhante às penas ou medidas de segurança”, devendo os factos e as disposições legais que o fundamentam ser indicadas na acusação), a posição mais seguida é a de que se trata de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança[1][2].
No caso em apreço, o Ministério Público sustenta o requerimento apresentado na vantagem decorrente da prática dos crimes que são imputados ao arguido na acusação. A perda de vantagens inclui todo e qualquer benefício económico que resulte do crime, haja ou não vítima. O valor da vantagem afere-se pela diferença entre o que o arguido tem e aquilo que teria se não fosse cometido o crime, pois pretende-se colocar o arguido no status quo patrimonial anterior à prática do crime, demonstrando que este não é título legítimo de aquisição.
Transpondo as considerações expostas há que atender, conforme destaca o despacho recorrido, à circunstância de que, no nosso ordenamento jurídico, “não existe norma que indique o prazo para a dedução do pedido de decretamento da perda de bens”, pois o mencionado art. 110º do CPenal não refere quem pode requerer a perda de produtos e vantagens, nem em que prazo terá de o fazer.
No entanto, entendemos que não será de aplicar à “perda clássica” o disposto no art. 8º, nº 2 da Lei 5/2002, de 11.01 (“se não for possível a liquidação no momento da acusação, ela pode ainda ser efetuada até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, sendo deduzida nos próprios autos”), por se tratar de norma excecional, aplicada à “perda alargada” (por referência ao conceito de património incongruente, ao qual se chega através do confronto entre o conceito de património como referido no o art. 7.º e o conceito de rendimento lícito) e que consagra um prazo perentório (tem como consequência que não tendo sido efetuada no prazo fixado por lei, não pode ser praticada posteriormente[3]).
Por outro lado, como vimos, a perda de vantagens é independente do pedido de indemnização cível e não tem sequer de ser requerida por qualquer sujeito processual.
E, desde que verificados os indispensáveis pressupostos constitucionais e os necessários pressupostos legais (o facto ilícito típico, a existência de benefícios patrimoniais e a demonstração de que esses benefícios resultaram, direta ou indiretamente, da prática daquele facto), o juiz não pode deixar de a decretar, ainda que oficiosamente.
Não obstante, o Ministério Público, no interesse da comunidade e por direito próprio, pode sempre peticionar a perda de vantagens (cfr. Acórdão do TRG de 08.11.2021, Proc. nº 4/19.0T9VNC.G1 do qual consta sumariado: “V- O Ministério Público no interesse da comunidade e por direito próprio, pode sempre peticionar a perda de vantagens do crime fiscal, mesmo que a Autoridade Tributária não pretenda que seja deduzido pedido de indemnização cível”) que se insere no domínio das suas competências (e cuja declaração “é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando-se com ela reconstituir a situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, de modo a ficar sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”[4]).
Assim sendo, será de concluir pela tempestividade do requerimento apresentado pelo Ministério Público no qual peticiona a perda de vantagens (o qual pode ser apresentado a todo o tempo desde que permita o exercício efetivo do contraditório, o que, in casu, se verifica).
A sustentação factual da perda de vantagens assenta na consequência da prática de um crime e tem uma relação direta com os factos que constam da acusação, os quais são a base para determinar a perda de vantagens. Ou seja, a acusação define os factos que são objeto do processo e, portanto, os factos que podem levar à perda de vantagens, a qual não pode ultrapassar os limites dos factos descritos na acusação (em obediência ao princípio do acusatório consagrado no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa).
Efetivamente, “os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado” (Cruz Bucho in “Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal”, JULGAR N.º 9, pág. 43).
No entanto, durante a discussão, podendo surgir factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos, encontrando-se tal matéria regulada nos arts. 1º, al. f), 303º, 358º e 359º do C.P.Penal que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia.
O tribunal a quo considerou que: “sempre se dirá que os factos ora alegados no requerimento apresentado pelo MP, designadamente no ponto 3: “valor efetivamente recebido” ; ponto 4 “ receberam efetivamente o valor das obras “, bem como em todo o ponto 5, alíneas a) e b) – descrição da conta corrente, não constam da acusação que, no ponto 12, apenas remete para os extratos de conta corrente sem discriminar os valores agora mencionados. Paralelamente da alínea c) do requerimento apresentado constam quadros ilegíveis (eventualmente legíveis à lupa ou ao microscópio), relativos a “duplicados de faturas relativas aos serviços prestados pelas duas empresas identificadas e documentos respeitantes à obra do parque infantil, com mapas e extratos explicativos”, factos que não foram alegados na acusação”.
Ora, da comparação entre o teor da acusação de 18.03.2024 e o teor do requerimento de 23.12.2024 constatamos que este remete para a descrição factual e para a qualificação jurídica constante da acusação deduzida (cfr. ponto 1 do requerimento). E, nos pontos 3 e 4 do requerimento reporta-se à factualidade constante dos pontos 4 e 12 da acusação. Por outro lado, no ponto 5 do requerimento especifica e reproduz documentos já mencionados nos pontos 15 e 16 da acusação (nomeadamente: “Extrato de conta corrente com a “EMP01..., Lda.”, referente ao período compreendido entre maio de 2016 e dezembro de 2018 – fls. 1 a 2 – e documentos de suporte”; “- Extratos da Conta Corrente da EMP01... Lda. relativo aos anos 2016 a 2020, fls. 2 e 3 do Anexo II”; “- Extratos da Conta Corrente da EMP02... Unipessoal, Lda. entre os anos de 2018 e 2021, fls. 76 a 79 do Anexo II” e “Documentos respeitantes à obra do parque infantil da ..., respetivos mapas e extratos explicativos”).
Concretizando.
Consta do ponto 4 da acusação que: “o arguido, nos contratos a seguir assinalados, nas datas e com os valores que neles constam, adjudicou obras às sociedades das quais era sócio-gerente, conforme quadros que seguem:”, ascendendo a soma dos valores que deles constam a € 30.728,71 (mencionado no ponto 3 do requerimento).
O ponto 12 da acusação tem o seguinte teor: “Tais sociedades faturaram, assim, à Junta da Freguesia ... os seguintes valores: - a sociedade EMP01... Lda., entre 07/05/2016 e 09/11/2020 faturou 91.951,14€, (cfr. extrato de conta corrente de fls. 2 e 3 e listagem de trabalhos de fls. 5 e 6 do Anexo II; - a sociedade EMP02... – Unipessoal, Lda., entre 1/10/2018 e 16/06/2021 faturou 180.585,55€, (cfr. extrato de conta corrente de fls. 76 a 79 e listagem de trabalhos fls. 80 a 82”), o que ascende ao valor total de € 272.536,69 (mencionado no ponto 4 do requerimento).
Também decorre do teor dos pontos 18 e 20 da acusação que o arguido beneficiou “as suas sociedades em detrimento de terceiros” e que atuou “com a intenção de obter para si e para as sociedades das quais era sócio gerente vantagem patrimonial nos contratos de adjudicação referentes às obras descritas em 4 e nos montantes ali referidos”.
Em contrapartida, o Ministério Público afirmou nos pontos 3 e 4 do requerimento: “obras estas que foram realizadas, faturadas e o valor efetivamente recebido, no montante global de €30.728,71 (trinta mil, setecentos e vinte e oito euros e setenta e um cêntimos)” e “o arguido AA, em seu nome e das sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, que geria e detinha, em benefício daquele e das sociedades, faturaram e receberam efetivamente o valor de obras e/ou prestação de serviços que não foram realizados e/ou prestados, no montante global de €272.536,69 (duzentos e setenta e dois mil, quinhentos e trinta e seis euros e sessenta e nove cêntimos)”, respetivamente.
Aliás, consistindo a reprodução dos documentos numa concretização que nada de novo acrescenta à descrição tipicamente relevante que consta da acusação, é apenas quanto aos concretos aspetos, relativos ao invocado efetivo recebimento, que se pode suscitar o seu enquadramento na alteração substancial ou não substancial dos factos constantes da acusação. No entanto, essa ponderação deverá ocorrer em fase de julgamento, isto é, no momento em que o tribunal analisa a acusação ou a pronúncia e decide se a alteração proposta afeta substancial ou não substancialmente o objeto do processo.
Ora, atento o momento processual em que o requerimento foi apresentado pelo Ministério Púbico, é de considerar prematura a ponderação do tribunal a quo, no despacho recorrido, acerca da sua admissibilidade/inadmissibilidade.
Com efeito, o despacho recorrido avançou com a possibilidade de “ocorrer uma alteração substancial dos factos”, precedentemente ao início da produção e apreciação da prova, e fê-lo à margem da audição e do contributo dos sujeitos processuais acerca deste aspeto em concreto e cuja comunicação deve ter lugar durante a audiência de julgamento[5].
Assim sendo, também é de concluir, nesta fase processual e contrariamente ao despacho recorrido, pela admissibilidade do requerimento apresentado pelo Ministério Público com vista à declaração da perda de vantagens, do que decorre a consequente procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
*
IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, após conferência, em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, substituir o despacho recorrido por outro que admita o requerimento apresentado pelo Ministério Público, em 23.12.2024, por tempestivo e admissível.
Sem tributação.
Notifique.
[1] Figueiredo Dias in “Direito Penal Português Parte Geral II As Consequências Jurídicas do crime”, 17.º Cp. Perda de coisas e direitos. [2] No sentido de que “a declaração de perda de vantagens do crime…, sendo uma consequência jurídica de carácter patrimonial dos “factos ilícitos” cometidos (pois, após a revisão do CP de 1982, em 1995, deixou de se referir ao “crime”), independentemente da classificação que lhe possa ser atribuída (não devendo ser considerada uma pena acessória), não é uma pena nem uma medida de segurança, nem uma forma de indemnização civil por danos emergentes do crime … Devendo notar-se, a este propósito, que a perda não se inclui nos capítulos relativos às penas (Capítulo II), às penas acessórias e efeitos das penas (Capítulo III) ou às medidas de segurança (Capítulo VII), mas num capítulo autónomo (Capítulo IX) do Título III (Das consequências jurídicas do crime) da Parte Geral (Livro I) do Código Penal”, vide Acórdão do STJ de 29.04.2020, Proc. nº 928/08.0TAVNF.G1.S1. [3] Cfr. Acórdão do TRP de 07.12.2016, Proc. nº 12/13.4GAPNF-D.P2. “Do teor literal da disposição em análise resulta que a liquidação será formulada na acusação (o que bem se compreende face ao respectivo objectivo e à sua intrínseca ligação ao respectivo objecto) e apenas por impossibilidade justificada, pode o Ministério Público fazer uso dos trinta dias que precedem a realização da audiência” (Hélio Rigor Rodrigues in “Perda de bens no Crime de Tráfico de Estupefacientes”, Revista do Ministério Público nº 134, pág. 241). “V - Tal como está desenhado o figurino legal, a dedução de tal liquidação está dependente de um critério de oportunidade / estratégia investigatória no âmbito estrito das competências legais atinentes deferidas ao MP e pode ocorrer num determinado período. VI - A intervenção do juiz está reduzida, neste particular e neste contexto temporal, ao controle do prazo final até quando o respetivo pedido pode ser deduzido, ou seja, até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, daqui decorrendo que inexiste qualquer existe ónus de alegação de quaisquer pressupostos temporais de admissibilidade, ou seja, não existe ónus por parte do Ministério Público de, quando deduz acusação, alegar quaisquer motivos pelos quais apenas procederá à liquidação mais tarde ou, por outro lado, deduzindo a aludida liquidação mais tarde, alegar (e provar) porque não o fez na acusação” – Acórdão do TRE de .25.03.2025, Proc. nº 679/22.2T9MMN.E1. [4] Acórdão deste TRG de 20.06.2022, Proc. nº 27/18.6GACBT.G1. [5] Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5ª edição Vol. II, págs. 419 e 423).