EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
Sumário

I – Nos termos do art. 239º, nº3, do CIRE cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, definir casuisticamente o rendimento do insolvente excluído da cessão aos credores, o qual tem por limite mínimo aquele montante que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
II –É pertinente a utilização, como referência, do valor do salário mínimo nacional, para a definição desse limite mínimo.
III- No caso de um agregado familiar composto pelo insolvente, companheira desempregada e filho adolescente, e nas concretas circunstâncias do caso, também em atenção a outros interesses, como os próprios da insolvência, é adequado fixar como rendimento indisponível o valor equivalente a uma vez e dois terços o montante do salário mínimo, ainda que tal montante fique aquém do critério de capitação de rendimentos da escala de Oxford, acolhida pela OCDE e pelo D.L. 70/2010, de 16/6.
IV – Em princípio, e adequado considerar que o rendimento indisponível deve salvaguardar também a disponibilidade dos valores dos subsídios de férias e de Natal, pois que estes valores se integram no conceito de remuneração mensal mínima garantida.

Texto Integral

PROC. N.º 9646/24.0T8VNG-B.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 5

REL. N.º 964
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Rodrigues Pires
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Pinto dos Santos

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1.RELATÓRIO

Nos presentes autos de insolvência relativos a AA, foi liminarmente admitido o seu pedido de exoneração do passivo restante, sem que lhe tivesse sido oferecida qualquer oposição pelo administrador da insolvência, ou por qualquer credor.
No dispositivo de tal decisão, quanto à fixação do rendimento do insolvente que haverá de ficar indisponível para a fidúcia, foi definido o seguinte: “… determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objeto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que ao insolvente advenham a qualquer título com exclusão do correspondente ao montante de um salário mínimo nacional, acrescido de 1/3, por mês (12 meses por ano);
(…)
O apuramento do rendimento disponível e, assim, o cálculo dos montantes a ceder deve ser feito anualmente, dividindo-se a totalidade do rendimento auferido pelo insolvente em cada ano do período da cessão por doze.
Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do n.º 4 do art. 239º do CIRE será inexistente. Caso contrário, terá que ser entregue a diferença que eventualmente exista, entre o montante médio mensal e o valor mensal fixado pelo tribunal.”
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O insolvente recorreu da referida decisão, concluindo nos seguintes termos:
1. O presente recurso vem interposto do Despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante proferido pelo Tribunal a quo e circunscreve-se à fixação ao insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional, acrescido de 1/3 por mês (12 meses por ano);
2. Com o devido respeito, o despacho proferido pelo Tribunal a quo encontra-se ferido de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 613.º, n.º 3 do CPC e 17.º do CIRE, na parte em que procede à fixação do rendimento disponível a entregar pelo recorrente/insolvente ao fiduciário;
3. No despacho recorrido o Tribunal a quo limitou-se a fixar como estando excluído do montante do rendimento disponível a entregar ao fiduciário o valor equivalente a um salário mínimo nacional mais 1/3 por mês;
4. Mas tal despacho não fundamenta, nem sequer minimamente, a decisão proferida, nem os pressupostos que estiveram na base da referida exclusão;
5. Sendo totalmente omisso quanto à fundamentação, não sendo possível descortinar qual o percurso decisório levado a cabo pelo Tribunal a quo, pois da decisão não constam quaisquer factos assentes, dos quais se possa concluir do acerto, adequação e razoabilidade de que é esse valor que garante a sobrevivência condigna do insolvente e do seu agregado familiar;
6. Da decisão proferida não decorre, ainda que mínima e deficientemente, qual a ponderação que esteve subjacente à fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, com o que o despacho ora recorrido, por total ausência de fundamentação quanto a este ponto concreto, violou o disposto nos artigos 154.º do CPC e 205.º, n.º 1 da CRP e padece de nulidade, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual expressamente aqui se arguiu para todos os efeitos legais;
7. O conceito de “rendimento disponível” vem indicado no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE e tratando-se de um conceito aberto, cabe ao intérprete essa tarefa de concretização;
8. Caberá ao juiz fixar, caso a caso, e de acordo com as regras da experiência, da equidade e atendendo à situação particular e concreta do insolvente e do seu agregado familiar, qual o valor a atribuir ao mesmo;
9. O montante mínimo a fixar em sede de exclusão ao rendimento disponível não corresponde necessariamente a um salário mínimo nacional – uma vez que se correspondesse o legislador tê-lo-ia dito;
10. O reconhecimento do princípio da dignidade humana, assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa é o princípio subjacente a tal conceito;
11. No juízo a formular pelo julgador impõe-se assim uma efectiva ponderação casuística da situação em causa;
12. Ponderação que o Tribunal a quo não fez;
13. Considerou o Tribunal a quo que o montante equivalente a um salário mínimo nacional acrescido de 1/3 por mês, 12 meses por ano, é suficiente para os “fins do artigo 239.º, n.º 3, alínea b)”, isto é, para assegurar o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, onde se inclui a companheira desempregada e o filho menor de ambos;
14. E decidiu fixar o rendimento disponível do recorrente no valor correspondente a um salário mínimo nacional mais 1/3, não tendo em consideração a composição do agregado familiar do insolvente;
15. Como pode o insolvente, a companheira, que se encontra desempregada e o filho menor (sobre)viver com o valor de um salário mínimo nacional acrescido de 1/3???
16. Não tendo considerado o Tribunal a quo, os montantes concretos que o insolvente despende com as despesas referidas no artigo 11.º da petição inicial, a saber, “despesas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, despesas médicas e medicamentosas, água, luz, gás, comunicações, transportes, habitação e outras”;
17. Ao valor equivalente a um salário mínimo nacional mais 1/3 relativamente ao insolvente, deverá, pelo menos acrescer um salário mínimo nacional para a sua companheira e filho menor;
18. A decisão do Tribunal a quo fixou o mencionado rendimento disponível no valor correspondente a um salário mínimo nacional e 1/3 por mês, sendo que da leitura da parte da decisão sob recurso não se vislumbra como foi alcançado tal valor, não constando da mesma uma exposição dos factos julgados relevantes para justificar a fixação do valor que veio a ser fixado;
19. Nem teve a preocupação de que ficasse salvaguardada a sobrevivência minimamente digna do insolvente e do seu agregado familiar;
20. Ao não fazer a casuística ponderação que é exigida, não explicitou as despesas que teve em consideração para fixar tal valor;
21. Na decisão tomada pelo Tribunal a quo, não foram ponderadas as despesas efectivas do insolvente e do agregado familiar, devendo este Tribunal da Relação, o que desde já se requer, mandar ampliar a decisão de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, com vista a ser proferida decisão que determine que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao recorrente, com exclusão do valor correspondente:
- a dois salários mínimos nacionais, com referência a catorze meses
Ou, em alternativa
- a dois salários mínimos nacionais acrescido de um quarto de um salário mínimo nacional para o menor, com referência a catorze meses.
22. O montante que se encontra fixado revela-se manifestamente insuficiente para fazer face às despesas que o insolvente, companheira e filho menor mensalmente têm de suportar para assegurar o seu sustento;
23. Não sendo concebível, dada a letra e o espírito do CIRE, que se fixe, sem mais, ignorando as regras da experiência, os princípios da razoabilidade e da equidade, o valor que foi fixado como estando excluído do rendimento disponível e, por essa via, se obrigue o recorrente, para (sobre)viver, a depender da ajuda ininterrupta de familiares e amigos;
24. É que, com o devido respeito, subjacente à concessão da exoneração do passivo restante não está nenhum espírito ou finalidade sancionatório, punitivo ou humilhante do insolvente;
25. O sacrifício que é imposto ao insolvente, que fica privado de proventos futuros que em circunstâncias normais lhe adviriam, tem necessária e obrigatoriamente como limite a respectiva vivência minimamente condigna;
26. No modesto entender do recorrente, o despacho ora posto em crise coarta a possibilidade de o mesmo se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento e do agregado familiar;
27. A fixação do valor excluído do rendimento objecto de cessão nos moldes em que foi decretada, sem ter em conta as regras da experiência, a equidade e o princípio da razoabilidade, é passível de violar o direito da mesma a uma subsistência condigna, bem como impossibilita o recorrente de prover à sua reabilitação económica;
28. O valor excluído do rendimento objecto de cessão é manifestamente diminuto, consubstanciando uma decisão inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da CRP;
29. Os subsídios de férias e de Natal devidos ao insolvente deverão ser incluídos no valor do rendimento disponível, atenta a composição do seu agregado familiar;
30. O rendimento mínimo mensal indisponível deverá ser encontrado pelo valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) multiplicado por 14;
31. O despacho proferido deverá ser revogado e substituído por Acórdão que estabeleça que o insolvente, tem a obrigação de entregar ao Sr. Fiduciário os montantes que anualmente receba ou venha a receber e que excedam 2 vezes 1 salário mínimo nacional vezes 14 meses. *
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 639º e 635º nº 4, do C.P.Civil.
A questão a resolver, extraída de tais conclusões, além da eventual nulidade da sentença e caso esta não se verifique, consiste na determinação do valor do rendimento do insolvente que lhe deve ser garantido para satisfação das necessidades de sobrevivência segundo um padrão de vida digno, ficando assim indisponível para cessão à fidúcia.
Nessa tarefa, o tribunal considerou provados os factos seguintes:
1. O devedor apresentou-se à insolvência em 13 de dezembro de 2024 e, por sentença proferida no dia 17 do mesmo mês e do mesmo ano, foi declarada a sua insolvência.
2. O Insolvente é solteiro, maior, vivendo em união de facto, e tem 46 anos de idade.
3. O seu agregado familiar é composto pelo próprio, pela sua mulher e por um filho menor (BB, 14 anos).
4. Encontra-se profissionalmente ativo, por conta de outrem, como consultor financeiro e de investimentos, auferindo mensalmente o valor base de €1.572,00 (mil quinhentos e setenta e dois euros) – valor reportado ao ano 2024.
5. As dívidas do devedor advêm de um único incumprimento associado ao remanescente em dívida de um contrato de mútuo.
6. Os créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência ascendem a €83.684,64.
7. Do certificado de registo criminal do insolvente não consta qualquer condenação pelos crimes previstos nos arts. 227.º a 229.º do Código Penal.
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Começa o apelante por arguir a nulidade da decisão recorrida, por totalmente acrescida de fundamentação.
Como vem sendo repetido na doutrina e na jurisprudência, a nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto ou de direito, prevista no art. 615º, nº 1, al b) do CPC, ocorre quando a sentença é totalmente desprovida da referência aos factos que constituem a premissa menor da decisão, bem como quando é totalmente omissa quanto à indicação das regras legais a que se subsumem tais factos e que determinam a conclusão, in casu, o dispositivo respectivo.
Pelo contrário, a nulidade não se verifica quando a fundamentação enunciada é incorrecta, insuficiente ou, simplesmente, é alvo da discordância de uma das partes. Nesta hipótese, a questão coloca-se no domínio do mérito da decisão, do erro de julgamento.
Ora, no caso em apreço, além de descrever o regime do instituto jurídico em causa, isto é, da exoneração do passivo restante no âmbito de uma insolvência, bem como os termos em que a jurisprudência o vem aplicando, o tribunal recorrido atentou no caso concreto, tendo não só fixado os factos que teve por pertinentes relativamente à situação de insolvência do requerente e às suas condições de vida, de forma expressa e destacada, mas tendo também voltado a considerá-los em sede de justificação da solução a aplicar, referindo expressamente levar em conta “os rendimentos que o insolvente aufere e os encargos que suporta, tendo um filho menor”, bem como a possibilidade não enjeitada de a decisão redundar num sacrifício imposto ao devedor durante o período de cessão.
Entende o apelante que a decisão deveria explicitar melhor a razão da fixação do rendimento indisponível no valor apontado, mediante uma análise específica do que sejam os seus rendimentos, os seus encargos e os encargos do seu agregado familiar? É esse, com efeito, o conteúdo do seu recurso. Porém, isso já se refere à alegação da insuficiência da fundamentação – e, assim, ao mérito da decisão – e não a um vício formal da mesma, resultante na nulidade invocada.
Rejeita-se, pois, a verificação da nulidade apontada pelo apelante.
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Passando a apreciar o mérito da decisão, alega o apelante que o tribunal não considerou “os montantes concretos que o insolvente despende com as despesas referidas no artigo 11.º da petição inicial, a saber, “despesas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, despesas médicas e medicamentosas, água, luz, gás, comunicações, transportes, habitação e outras”.
Acontece que, no art. 10º (e não 11º) da petição, o apelante se limitou a alegar precisamente isso e assim genericamente: que suporta “… despesas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, despesas médicas e medicamentosas, água, luz, gás, comunicações, transportes, habitação e outras”. Ou seja, o ora apelante não esclareceu minimamente que despesas suporta ou se alguma assume alguma relevância particular, nem o instruiu com qualquer prova documental. Tem despesas médicas especiais? Quais? Suporta despesas de habitação? Quais? Por causa do exercício da sua profissão ou por outra razão, suporta despesas invulgares com transportes? Quais? Nada alegou, apesar de ser seu o ónus de alegação e prova. Por isso, quer o administrador de insolvência, quando elaborou o relatório previsto no art. 155º do CIRE e declarou nada opor à concessão da exoneração do passivo, quer o tribunal, limitaram-se a ponderar o que sejam as despesas normais de um agregado familiar composto pelo requerente/insolvente, companheira e filho.
Assim, e também a este propósito, cumpre afirmar nenhuma critica merece a decisão recorrida, que se limitou a aproveitar aquilo que, descrito no limiar mínimo da suficiência, o insolvente alegara. Aliás bem se compreende que, a este respeito, o apelante nem tenha chegado a formular qualquer pedido, nesta sede de recurso, quanto à alteração da matéria de facto provada, pois vendo a sua alegação nenhuma factualidade se encontra que tenha ficado por ponderar.
Assentes os pressupostos substantivos da decisão, verifica-se que, em função deles, o tribunal considerou que será suficiente para assegurar ao insolvente condições dignas de vida, bem como ao seu agregado familiar, o montante equivalente a um salário mínimo nacional acrescido de 1/3 por mês, 12 meses por ano.
O apelante considera que é essencial, para garantir esse mínimo de sobrevivência a si e ao seu agregado familiar, o valor de dois salários mínimos nacionais, com referência a catorze meses, ou dois salários mínimos nacionais acrescido de um quarto com referência a catorze meses.
É útil quantificar estas hipóteses. Em termos anuais, sendo o valor do salário mínimo de 2025 o de 870,00€ e sendo esse conceito baseado no pagamento por 14 vezes, ascende a 12.180€ o valor anual.
O tribunal fixou ao insolvente o montante de 1.160,00€ por mês, por 12 meses, num total de 13.920,00€ por ano.
O apelante entende que lhe deve ser salvaguardado o valor de dois salários mínimos e um quarto, num total mensal de 1.957,50€, por 14 meses, num valor anual de 27.405,00€ ou, no mínimo, de dois salários mínimos por 14 meses, num total mensal de 1.740,00€ e anual de 24.360,00.
Em qualquer caso, o que se provou quanto ao rendimento do insolvente é que ele auferia, em 2024, o montante de 1.572,00, pago 14 vezes, num total de 22.008,00€.
Nestes termos, a atender-se a pretensão do apelante, o seu salário ser-lhe-ia salvaguardado por inteiro, nada sobejando para os fins da insolvência, e possíveis incrementos de rendimento ainda tenderiam a caber no rendimento indisponível.
É neste contexto que cabe sindicar o mérito da decisão em crise, quanto ao valor fixado como rendimento indisponível para a cessão, o que, simultaneamente, revela aquele que ficará disponível para a satisfação dos fins da insolvência, maxime o da eventual e limitada satisfação do crédito verificado.
O que está agora em causa é, em suma, a concessão de um benefício significativo ao insolvente, que lhe facultará, no termo do período de três anos da cessão (art. 239º do CIRE), o fim da sua responsabilidade pela satisfação da obrigação existente perante o único credor verificado. E isso com o quase integral prejuízo para tal credor, face à ausência de património que possa ser liquidado e perante os rendimentos laborais da insolvente.
É esse o princípio geral deste instituto, consagrado no art. 235º do CIRE.
A especificidade do problema a resolver dispensa uma análise descritiva do seu enquadramento jurídico e da justificação sociológica das soluções adoptadas pelo legislador a tal propósito, tendo-se por assente que a norma cuja aplicação está em causa é a constante do art. 239º do CIRE.
Aí se dispõe, no seu nº 3: “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) (…)
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Pressupõe este regime que sejam cedidos ao fiduciário nomeado, para os fins da insolvência, todos os rendimentos auferidos pelo insolvente no período de três anos, com as excepções enunciadas.
Entre estas excepções sobressai que, dos rendimentos auferidos pelo devedor e cedidos para satisfação dos efeitos da insolvência, deve ser retirada uma parte adequada a facultar “O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” [al. b), § 1)]. Este rendimento excluído da cessão – designado geralmente como “rendimento indisponível” corresponde à parcela desses rendimentos suficiente e indispensável a suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar.
Deste preceito, como é recorrentemente assinalado pela jurisprudência, resulta um limite máximo para essa parcela: um valor equivalente ao triplo do salário mínimo; e um limite mínimo: aquele que for necessário para, nas circunstâncias concretas do caso, assegurar um “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.
No que toca a tal limite mínimo, o legislador optou claramente pela consagração de um conceito aberto, por via de cujo preenchimento esse limite deve ser identificado, assim salvaguardando as idiossincrasias de cada situação, de cada devedor, de cada agregado familiar, e tudo sem que se perca de vista o fim do processo de insolvência em que este incidente se insere e que é, até onde for possível, o ressarcimento dos credores.
Passando à análise da factualidade apurada, constata-se a parcimónia das condições de vida da requerente, conformadas pelos seus rendimentos mensais, de 1.572,00€, e pelas despesas naturalmente inerentes ao seu sustento e ao do seu agregado familiar, composto pela companheira, sem rendimentos próprios, e por um filho adolescente. Nenhuma despesa ou necessidade extraordinária vem referida, sendo que, quanto aos elementos factuais que constituem a premissa da sentença, nada cumpre alterar no recurso., como acima se referiu.
Em todo o caso, face a esta factualidade, também se nos afigura que o valor de um salário mínimo, que ascende actualmente (em 2025) a 870,00€ por mês, acrescido de um terço (290,00€) por mês, e sem acréscimo de 13º e 14º meses, se revela insuficiente para garantir um nível mínimo de condições de vida, compatíveis coma salvaguarda da dignidade do insolvente e dos membros do seu agregado familiar, em ordem à satisfação das despesas reconhecidas a esse agregado, segundo uma presunção de normalidade (pelo menos despesas de água, electricidade e alimentação, bem como outras que ocasionalmente se possam revelar necessárias, tais como as de vestuário ou assistência médica)
Por outro lado, no contexto dos autos, perante os rendimentos percebidos pelo apelante, a reserva de uma quantia de 1.957,50€, por 14 meses, num valor anual de 27.405,00€ ou, no mínimo, de dois salários mínimos por 14 meses, num total mensal de 1.740,00€ e anual de 24.360,00, prejudicaria, por certo, a entrega de qualquer valor ao fiduciário. E isso porquanto se constata que o apelante não aufere sequer esse valor, como rendimento mensal, donde parece decorrer que o presente recurso, com este fundamento, constitui um exercício quase exclusivamente teórico.
O recurso ao valor do salário mínimo nacional como critério para a determinação do valor a reservar para o insolvente, ficando indisponível para a cessão, é o critério seguido normalmente pela jurisprudência e, no caso concreto, também pelo tribunal a quo, apresentando-se como a melhor solução para esse efeito. Com efeito, se um Estado compreende na sua ordem jurídica um tal instituto, assume por essa forma que tal valor, correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade.
Admite-se que uma solução estruturada por referência a este valor, na hipótese de o requerente conseguir obter uma entrada mensal superior, não deixará de constituir um factor de condicionamento das suas condições de vida, durante o período de três anos.
Mas esse efeito não é imputável a qualquer credor, nomeadamente o da situação sub judice, que, mesmo nessas circunstâncias, não deixarão de ver frustradas quase totalmente as suas expectativas de recebimento do seu crédito (que ascende a 83 684,64 €), tanto mais que nenhum bem foi apreendido para a insolvência, tendo o processo sido encerrado sem qualquer liquidação de património.
Porém, no caso em apreço, não pode deixar de se atentar na composição do agregado familiar do insolvente e, nesse pressuposto, de dimensionar o que seja o valor essencial para garantir as necessidades básicas desse agregado. Com efeito, pelo menos nas circunstâncias actuais, há-de ser o ordenado do insolvente a prover pela satisfação das necessidades de todo o agregado.
Para estas situações, é razoável atentar numa solução de capitação dos rendimentos do agregado familiar. Para esse efeito, alguma jurisprudência usa a escala de Oxford, fixada pela OCDE, segundo a qual se atribui o índice 1 ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5. (https://www.oecd.org/eco/growth/ OECD-Note-EquivalenceScales.pdf, citado no ac. do TRL de 11/10/2016, proc. nº 1855/14.7TCLRS-7)
Esse critério e factores de capitação foram igualmente acolhidos no art. 5º do D.L. 70/2010, de 16/6, diploma que estabelece as regras para a determinação da condição de recursos a ter em conta na atribuição e manutenção das prestações do subsistema de protecção familiar e do subsistema de solidariedade, bem como para a atribuição de outros apoios sociais públicos.
Importa, todavia, considerar que, para diversos efeitos, o valor de referência para operar esse critério não é o do salário mínimo nacional, mas o do indexante dos apoios sociais, fixado, para 2025, em 522,50€. É, por exemplo, com base nesse valor e na operação da referida escala de Oxford, acolhida no D.L. 70/2010 já ciado, que o Estado define a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (D.L. 164/99, de 13/5), e não com base no valor do salário mínimo nacional. Ou seja, o próprio estado não considera essencial, para diversos efeitos, a salvaguarda, para cada agregado familiar, de um montante resultante da operação daquela escala, por referência ao valor do salário mínimo.
Seguindo tal critério com rigor, ao agregado familiar do requerente haveriam de ser garantido o montante de 2,2 vezes (1+0,7+0,5) o valor do salário mínimo, 14 vezes por ano.
Todavia, como se referiu uma tal solução não permitiria responder, ainda que de uma forma mínima, aos interesses também atendíveis da insolvência, resultando este processo numa pura e simples forma de desresponsabilização do devedor perante o seu credor. E, como acabámos de referir, esse não é também um limite mínimo inultrapassável, no caso de um agregado familiar.
Entendemos, pois, na ponderação e compatibilização possível de todos os interesses em presença, ser adequado fixar o rendimento indisponível para a fidúcia, a reservar para o insolvente, num montante equivalente ao valor de uma vez e dois terços o salário mínimo nacional (actualmente de 870€, num total de 1.450,00€ por mês), que permitirá a sua vivência, e a dos membros do seu agregado familiar, durante o período de cessão, em condições de mínima dignidade humana.
Esta solução atenta na circunstância de o ora apelante ter de suportar outras despesas que não as suas próprias, pois tem responsabilidades perante o agregado familiar, na ausência de outros rendimentos, mas também no interesse de não deixar de garantir alguma resposta do insolvente – ainda que quase só simbólica - aos interesses da insolvência.
Haverá de ser ele a adaptar as suas condições de vida aos meios que lhe ficam disponíveis, o que não será difícil, tanto mais que, segundo se demonstrou, o valor que lhe será garantido é, pelo menos na actualidade, muito semelhante àquele que vem auferindo.
Procederá, quanto a esta questão, em parte o presente recurso de apelação.
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Diferente questão é de saber se o montante a salvaguardar para a insolvente há-de ser aferido relativamente a 12 ou a 14 meses
A questão a resolver não coincide com aquela que diversa jurisprudência dos tribunais superiores foi chamada a resolver, perante a indefinição, na decisão de 1ª instância, sobre se a salvaguarda de determinado valor para o insolvente se referia a um valor mensal estrito, ou a um valor mensal que considerasse a circunstância de a remuneração mínima garantida dever ser paga 14 vezes por ano.
No caso, porém, essa indefinição não existe: o tribunal recorrido considerou que seria suficiente, para o sustento do devedor em condições de dignidade um valor de 1.160,00€ por mês, por 12 meses, num total de 13.920,00€ por ano.
Assim, qualquer valor auferido a mais, designadamente o correspondente aos subsídios de férias e de Natal, teria o insolvente de o entregar ao fiduciário.
Neste contexto, não cabe interpretar ou complementar a decisão recorrida, para decidir se a referenciação do rendimento indisponível deve fazer-se a um valor mensal multiplicado por 12 ou por 14 vezes.
O que cabe é sindicar a solução concretamente definida, que considerou ser suficiente, para garantir a subsistência do insolvente em condições de dignidade, o valor auferido mensalmente, mas multiplicado por 12 meses.
Como se referiu, o legislador considera que o montante do salário mínimo (ou remuneração mensal mínima garantida) correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade.
Todavia, essa ponderação tem por pressuposto que um tal valor é pago 14 vezes por ano. Ou seja, se tal argumento usa como referência o valor do salário mínimo, para o ter por suficiente, também tem de incluir o pressuposto de que o que é suficiente é o valor mensal pago por 14 vezes. E isso porquanto tal é a medida do salário mínimo, que um trabalhador há-de receber 14 vezes por ano.
Cumpre recordar a declaração de voto de vencido subscrita pelo Sr. Cons. João Cura Mariano, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2014 (https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos /20140770.html) que, apreciando a mesma questão embora no âmbito da impenhorabilidade de rendimentos, enunciou com clareza este entendimento, a que não podemos deixar de aderir: “(…) Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.”
Nas concretas circunstâncias do caso, ao insolvente foi fixado um valor superior ao do salário mínimo, mas em atenção a que tal valor é essencial para a resposta às necessidades não apenas próprias, mas também do seu agregado familiar . Foi fixado como rendimento indisponível o valor de um salário mínimo, acrescido de dois terços, num total, actualmente, de 1450,00€ por mês. Apurou-se ainda que as suas necessidades mensais consomem quase integralmente o valor que recebe nesse período de tempo. Não se teve por justificado que devesse manter valor superior, a fim de se lograr a realização, ainda que diminuta, de alguns dos interesses da insolvência.
Por isso, tal como acima se justificou, devemos admitir que um tal valor deve corresponder àquele que compreende também os montantes que o insolvente venha a receber a título de subsídios de férias e de Natal, pois que estes integram o que na citada declaração de voto se designa como o «…“mínimo dos mínimos” a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica».
Em suma, se se lhe atribui o mínimo, deve entender-se que este mínimo corresponde ao que o próprio legislador pressupôs no conceito de mínimo: o valor que actualmente corresponde ao salário percebido 14 vezes por ano. E se, no caso, o valor do rendimento indisponível é fixado em valor superior ao do salário mínimo, isso deve-se à composição do agregado familiar e à necessidade de garantir, a tal agregado, também o mínimo essencial.
Procederá, em conclusão, a apelação também nesta parte, cumprindo alterar a decisão recorrida em conformidade, fixando-se como rendimento indisponível a quantia correspondente a uma remuneração mínima mensal garantida acrescida de dois terços, calculada nos termos descritos, ou seja multiplicado por 14 vezes, em cada ano.
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Sumariando, nos termos do art. 663º, nº7 do Código do Processo Civil:
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3 – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento à presente apelação, em razão do que a alteram, fixando como rendimento indisponível ao insolvente AA a quantia correspondente ao valor de uma remuneração mínima mensal garantida acrescida de dois terços, multiplicada por catorze vezes em cada ano.
Custas pelo apelante e pela massa insolvente, na proporção do decaimento.
Reg. e notifique.

Porto, 17/6/2025
Rui Moreira
Rodrigues Pires
Pinto dos Santos