MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
CONSENTIMENTO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
RECUSA OBRIGATÓRIA DE EXECUÇÃO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
DIREITO DE DEFESA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Deferido e executado o MDE para procedimento criminal o Estado requerente pode ampliar o MDE a outras infrações, em derrogação do princípio da especialidade, a que o arguido não renunciou, nos termos do n.º 2 do al. g) do art. 7.º da Lei n.º 65/2003, que estabelece: “2 - O disposto no número anterior não se aplica quando:
g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega”.
II. A prestação de tal consentimento e o deferimento da ampliação, está sujeito ou limitado pelas causas de recusa obrigatória ou facultativa (arts. 11.º e 12.º da Lei n.º 65/2003), tal como estabelece do art. 7.º, n.º 4, al. d), da mesma Lei n.º 35/2003, como se de um novo MDE se tratasse.
III. Compete ao Tribunal da Relação a prestação do consentimento e a apreciação e deferimento ou não do pedido de ampliação do MDE.
IV. O pedido de ampliação do MDE não ofende o disposto no art. 32.º, n.º 1, da CRP, pois lhe são assegurados todos os direitos de defesa incluindo o recurso.

Texto Integral


Acordam em conferência os Juízes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

No Proc. nº 3669/23.4... MDE, que correu termos na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa foi solicitado pela República Francesa a execução do MDE para fins de procedimento criminal, em que é requerido AA, de nacionalidade portuguesa, e por acórdão de 24/1/2024 foi proferida a seguinte decisão:

“Face ao exposto acordam os Juízes Desembargadores da 3ª. Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a oposição deduzida pelo requerido, deferindo-se o cumprimento do Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo Procurador da República do Tribunal Judicial de Rennes, no processo n. º ........37, instrução n.º ..............03, para detenção e entrega para fins de procedimento criminal de AA, passando-se, oportunamente, os devidos mandados de entrega, devendo o mesmo se vier a ser condenado em pena de prisão ser devolvido a Portugal afim de cumprir tal pena em Território Nacional (art 13º nº1 al. b) da Lei nº 65/2003, de 23/8).

Esta entrega terá lugar no prazo máximo de 10 (dez dias), após o trânsito deste acórdão (artigo 29.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).”

O requerido interpôs recurso para o STJ que decidiu por acórdão de 24/2/2024:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Substituir o segmento da factualidade do acórdão onde se diz

«- No Tribunal Judicial de Rennes, no processo n. º ........37, instrução n.º ..............03, o requerido é suspeito da prática de 11 crimes, puníveis com pena máxima de 30 anos de prisão, cometidos entre novembro de 2021 e maio de 2022 concretamente:»

por

«No Tribunal Judicial de Rennes, no processo n. º ........37, instrução n.º ..............03, o requerido é suspeito da prática de 11 crimes, puníveis com pena máxima de 30 anos de prisão, circunscrevendo-se o MDE a factos praticados entre os dias 1 e 31 de maio de 2022, em La Rochelle, no território francês:».

B) Negar no mais provimento ao recurso interposto por AA, explicitando-se, porém, que execução da entrega fica sujeita à condição de a autoridade judiciária da República Francesa, enquanto Estado de emissão, prestar garantia (caso não haja sido entretanto prestada) de que o requerido será devolvido a Portugal, após ter sido ouvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativa da liberdade em que venha a ser condenado em França.

Dê conhecimento de imediato ao TRL para que, independentemente do trânsito do presente acórdão, seja desde já solicitada à autoridade judiciária da República Francesa, enquanto Estado de emissão, a prestação, no prazo de cinco dias, da garantia exigida (caso não haja sido entretanto prestada) com menção de que a entrega do requerido não será executada antes de prestada tal garantia.

O requerido foi entregue às Autoridades francesas em 3/4/2024 e encontra-se recluído nesse País.

Vieram em 18/6/2024 as autoridades francesas requerer a extensão do MDE em relação ao requerido.

O Mº Pº promoveu a execução do requerido

O requerido / arguido deduziu oposição pugnando pelo indeferimento

Aquando da execução do MDE original o arguido ouvido opôs-se à sua execução e não prescindiu do privilégio relativo ao princípio da especialidade.

Recluído em França e ouvido face ao pedido de ampliação do MDE manteve igual posição, quanto a esta extensão.

Por acórdão da Relação de Lisboa de 30/4/2025 foi decidido:

“Nestes termos, acordam os juízes que integram este Colectivo no Tribunal da Relação de Lisboa em consentir na extensão/alargamento do MDE nos exatos termos do pedido [arts. 27º, nº 3, al. g) da DQ Decisão-quadro do Conselho de 13 de Junho de 2002 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (2002/584/JAI) e 7º, nº 2, al. g) da Lei 65/2003 citada] relativamente ao requerido AA.

Não são devidas custas.”

Recorre o arguido / requerido para este Supremo Tribunal o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:

1ª – O recorrente foi ouvido nos presentes autos no dia 13 de Dezembro de 2023, e declarou que não renunciava ao princípio da especialidade.

2ª - Por Acórdão de 24 de Janeiro de 2024, do Tribunal da Relação de Lisboa, foi deferida a execução do MDE, determinando a sua entrega às autoridades francesas para procedimento criminal, no âmbito do processo nº ........37, Instrução nº ..............03, “por ser suspeito da prática de 11 crimes, puníveis com pena máxima de 30 anos de prisão, cometidos entre novembro de 2021 e maio de 2022”.

3ª - O recorrente, não se conformou com tal decisão, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 29 de Fevereiro de 2024, decidiu que o MDE se circunscrevia apenas a factos praticados entre 1 a 31 de Maio de 2022, em La Rochelle, no território francês.

4ª - O Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça transitou em julgado a 14 de Março de 2024, pelo que se tornou definitiva a decisão.

5ª – As autoridades francesas, vieram solicitar o alargamento da decisão de entrega a outros factos com contornos semelhantes, aos descritos no MDE emitido a 11 de Dezembro de 2023, mas, alegadamente, ocorridos no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2022 e 12 de Dezembro de 2023, em França, Portugal, Países Baixos e Brasil.

6ª – Sendo o acórdão agora recorrido proferido na sequência do terceiro (!) pedido no mesmo sentido, tendo as autoridades francesas nas anteriores duas vezes recuado, por alegados erros (!) o que é totalmente inconcebível, manifesta absoluta falta de rigor, de transparência e certeza nos procedimentos.

7ª – Afiguram-se-nos opacos, muito duvidosos e não confiáveis tais procedimentos.

8ª - Com tais pedidos de alargamento dos efeitos da decisão de entrega, as autoridades francesas, mais não pretendem que o afastamento do princípio da especialidade, a que o requerido não renunciou, O que determina forçosamente a recusa/negação da extensão do consentimento requerida pelas autoridades francesas.

9ª - Nem se diga, como tenta fazer a decisão recorrida, que os factos já anteriormente eram aparentes. Tanto mais que o presente procedimento, exige rigor não só formal, mas também substancial e os factos têm que ser expressos, acima de qualquer duvida.

10ª – A decisão recorrida poe em causa o principio da legalidade, assim como valores como a dignidade humana, que tem inscrita a proteção do princípio de confiança recíproca na atuação processual, o que não se compadece com uma utilização estratégica e abusiva do processo, que claramente está a ser praticada pelas autoridades requerentes. Os procedimentos sinuosos, opacos e muito duvidosos das autoridades francesas, confiança na sua atuação processual é aquilo não inspiram!

11ª - O pedido de extensão do MDE, agora formulado, contém não só um alargamento no tempo (o MDE circunscrevia a factos praticados entre 1 a 31 de Maio de 2022, enquanto o pedido de alargamento pretende entre 1 de Janeiro de 2022 e 12 de Dezembro de 2023) como no espaço (o MDE circunscrevia-se a La Rochelle, no território francês, enquanto o pedido de alargamento se reporta à Circunscrição de Rennes, no território francês, em Portugal, nos Países Baixos e no Brasil).

12ª - Embora já existisse no MDE uma referência, vaga e genérica, a tais factos, o pedido do MDE circunscrevia-se apenas a factos praticados entre 1 a 31 de maio de 2022, em La Rochelle, no território francês. E foi com base nesse concreto pedido que as Autoridades Portuguesas autorizaram o envio do cidadão português AA, nos termos do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a 29/02/2024, que decidiu que o MDE se circunscrevia apenas a factos praticados entre 01/05/22 e 31/05/22 em “La Rochelle”, França!

13ª - Resulta pois evidente não ser verdade, ao contrário do alegado, que tais

Elementos agora apresentados para, fundamentar o pedido de alargamento do MDE, resultem da investigação entretanto realizada!

14ª - Acresce que se as Autoridades Portuguesas tivessem conhecimento designadamente de que os factos imputados também se referiam a Portugal, poderiam ter recusado a entrega. Como expressamente dispõe a al. d) do n.º 4 do art.º 7.º, o

consentimento da autoridade de execução (nº 2, al. g) do mesmo art.º 7.º) pode ser recusado com fundamento num dos motivos de recusa obrigatória ou facultativa previstos nos art.ºs 11.º (“será recusada”) e 12.º (“pode ser recusada”) da Lei 65/2003.

15ª - Nos termos do artigo 12.°, n.º 1, alínea h), pontos i), a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:“…tiver por objeto infração que: i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, no todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses;”

16ª – O pedido agora formulado consubstancia uma deslealdade processual, tanto perante o cidadão português AA, como das Autoridades Judiciárias Francesas perante as Autoridades Judiciárias Portuguesas.

17ª - Argumenta a decisão recorrida que: as Autoridades francesas não estão inibidas de investigar factos parcialmente ocorridos em território de outros Estados…”. Todavia as autoridades Portuguesas, se conhecedoras desses factos, podiam ter negado a extradição, sendo o recorrente julgado em Portugal.

18ª - O recorrente foi extraditado, com base, exclusivamente nos factos praticados entre 1 e 31 de Maio de 2012. A decisão transitou em julgado e foi proferida por um Tribunal hierarquicamente superior ao que agora defere a ampliação.

19ª - Ao deferir a decisão de ampliação o tribunal recorrido, além de violar o caso julgado, viola a regra da hierarquia dos Tribunais, pois o Tribunal que agora profere decisão ( Relação) é, hierarquicamente, inferior ao que ordenou a extradição por factos alegadamente praticados entre 1 e 31 de Maio de 2022.

20ª - A violação da hierarquia dos Tribunais, constitui nulidade absoluta nos termos do disposto no artº 119, alínea d) do CPP .

21ª - A interpretação do disposto no artº 7° da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, segundo a qual o principio da especialidade, não obsta a que o extraditado, por determinados factos concretos e precisos, pode a todo o tempo, ser objecto de ampliação do pedido MDE, inicialmente formulado é materialmente inconstitucional por violação do disposto no nº 1º do artº 32 da CRP .

22ª - A interpretação do disposto no Art. 620.º, n.º 1, do CPC, aplicável ao processo penal por força do art. 4.º do CPP, segundo a qual, as Relações podem revogar decisões proferidas pelo STJ, transitadas em julgado, é materialmente inconstitucional por violação do disposto no nº 1º do artº 32 da CRP .

23ª – A decisão recorrida violou o Artigo 7° da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, al. d) do n.º 4 do art.º 7.º, nº 2, al. g) do mesmo art.º 7.º, art.ºs 11.º e 12.º nº 1, da Lei 65/2003, Art. 620.º, n.º 1, do CPC, aplicável ao processo penal por força do art. 4.º do CPP e nº 1 do artº 32 da CRP.

TERMOS EM QUE DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E REVOGADA A AUTORIZAÇÃO PARA A AMPLIAÇÃO DO MDE, INICIALMENTE DECRETADO, O QUAL DEVERÁ SER MANTIDO NOS SEUS PRECISOS TERMOS .”

Respondeu o Mº Pº pugnando pela improcedência do recurso

Procedeu-se à conferencia com observância do formalismo legal

Cumpre apreciar.

Consta do acórdão recorrido:

“Fundamentação

São relevantes para a decisão que somos chamados a proferir os seguintes elementos de facto:

1. De acordo com os dados constantes do MDE que foi executado já neste processo [emitido no âmbito do processo nº ........37, Instrução nº ..............03, “por ser suspeito da prática de 11 crimes, puníveis com pena máxima de 30 anos de prisão, cometidos entre novembro de 2021 e maio de 2022, em La Rochelle, França] AA terá cometido as seguintes infrações:

- Importação não autorizada de estupefacientes como membro de bando organizado, previsto pelos arts. 222-36, al.1, 222-41, 132-71, do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al.1, e R.5132-77, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 222-36, al.2, 222-44, 222- 48, 222-49, 222-50, 222-51 e 131-26-2, do Código Penal Francês,

- Branqueamento do produto da importação não autorizada de estupefacientes como membro de bando organizado, previsto pelos arts. 222-38, 222-36, al.2, al.1, 222-41, 132-71, do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al.1, R.5132-77 e R.5132-78, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 222-38, 222-36, al.2, 222-44, parágrafo I, 222-45, 222-47, 222-48, 222-49, 222-50, 222-51 e 131-26-2, do Código Penal Francês,

- Participação em associação criminosa, previsto pelos arts. 450-1, al.1, al. 2, do Código Penal Francês, e punido pelos arts. 450-1, al.2, 450- 3, 450-5, do mesmo diploma legal,

- Transporte não autorizado de estupefacientes, previsto pelos arts. 222-37, al.1, 222-41, do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al.1, R.5132-74, e R.5132-77, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 222-37, al.1, 222-44, 222-45, 222-47, 222-48, 222-49, 222-50 e 222-51, do Código Penal Francês, - Detenção não autorizada de estupefacientes, previsto pelos arts. 222-37, al.1, 222-41, do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al.1, R.5132-74, e R.5132-77, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 222-37, al.1, 222-44, 222-45, art. 450-1, al.1, al.2, d 222-47, 222- 48, 222-49, 222-50 e 222-51, do Código Penal Francês,

- Distribuição não autorizada de estupefacientes, previsto pelos arts. 222-37, al.1, 222-41, do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al.1, R.5132-74, e R.5132-77, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido 3 de 68 3 pelos arts. 222-37, al.1, 222-44, 222-45, 222-47, 222-48, 222-49, 222-50 e 222-51, do Código Penal Francês, - Aquisição não autorizada de estupefacientes, previsto pelos arts. 222-37, al.1, 222-41, do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al.1, R.5132-74, e R.5132-77, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 222-37, al.1, 222-44, 222-45, 222-47, 222-48, 222-49, 222-50 e 222-51, do Código Penal Francês,

- Participação em associação criminosa com vista à preparação de crime punido com pena de 10 anos de prisão, previsto pelo art. 450-1, al.1, al.2, do Código Penal Francês, e punido pelos arts. 450-1, al.2, 450-3, 450- 5, do mesmo diploma legal, - Branqueamento do produto da importação não autorizada de estupefacientes, previsto pelos arts. 222-38, 222-36, al.1, 222-37, do Código Penal Francês, e pelo art. L.5132-7, do Código de Saúde Pública e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 222-38, 222-44, 222-45, 222-47, 222-48, 222-49, 222-50 e 222-51, do Código Penal Francês,

- Transporte de mercadoria perigosa para a saúde pública sem documentação justificativa-contrabando, previsto pelos arts. 419, parágrafo 1, 215, 215-BIS, e 38, parágrafo 4, do Código Aduaneiro, e pelo art. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 419, parágrafos 2 e 3, 414, al.3 e al.1, 435, 436, 438, 432-BIS e 369, do Código Aduaneiro, e

- Tráfico de mercadorias em infração das regras de proibição de importação na zona aduaneira/importação sem declaração de mercadorias proibidas, previsto pelos arts. 420, al. 17º, 38, parágrafos 4 e 5, do Código Aduaneiro, e pelo art. 1, anexo II, da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos arts. 414, al.1, 435, 436, 432-BIS e 369, do Código Aduaneiro.

2. Por acórdão de 24.01.2024 deste Tribunal e secção, foi decidido:

(…)

Face ao exposto acordam os Juízes Desembargadores da 3ª. Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a oposição deduzida pelo requerido, deferindo-se o cumprimento do Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo Procurador da República do Tribunal Judicial de Rennes, no processo n. º ........37, instrução n.º ..............03, para detenção e entrega para fins de procedimento criminal de AA, passando-se, oportunamente, os devidos mandados de entrega, devendo o mesmo se vier a ser condenado em pena de prisão ser devolvido a Portugal afim de cumprir tal pena em Território Nacional (art 13º nº1 al. b) da Lei nº 65/2003, de 23/8).

Esta entrega terá lugar no prazo máximo de 10 (dez dias), após o trânsito deste acórdão (artigo 29.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).

(…)

3. Desta decisão foi interposto recurso pelo requerido arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, que conhecendo do respectivo objecto, por acórdão de 29 de Fevereiro de 2024, decidiu que o MDE se circunscrevia a factos praticados entre 1 a 31 de maio de 2022, em La Rochelle, no território francês, mantendo-se no mais o determinado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:

(…)

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Substituir o segmento da factualidade do acórdão onde se diz «- No Tribunal Judicial de Rennes, no processo n. º ........37, instrução n.º ..............03, o requerido é suspeito da prática de 11 crimes, puníveis com pena máxima de 30 anos de prisão, cometidos entre novembro de 2021 e maio de 2022 concretamente:» por «No Tribunal Judicial de Rennes, no processo n. º ........37, instrução n.º ..............03, o requerido é suspeito da prática de 11 crimes, puníveis com pena máxima de 30 anos de prisão, circunscrevendo-se o MDE a factos praticados entre os dias 1 e 31 de maio de 2022, em La Rochelle, no território francês:».

B) Negar no mais provimento ao recurso interposto por AA, explicitando-se, porém, que execução da entrega fica sujeita à condição de a autoridade judiciária da República Francesa, enquanto Estado de emissão, prestar garantia (caso não haja sido entretanto prestada) de que o requerido será devolvido a Portugal, após ter sido ouvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativa da liberdade em que venha a ser condenado em França.

(…)

4. Reduzido o âmbito de execução do pedido por efeito desta decisão, o requerido arguido foi entregue às Autoridades judiciárias francesas em 3 de abril de 2024.

5. Com data de 26 de Março de 2025 foi recebido, via Gabinete Nacional na Eurojust, um pedido de extensão dos efeitos da entrega de AA, ordenada em execução do MDE emitido pelo Procurador da República do Tribunal Judicial de Rennes, na República Francesa, com referência ao processo nº ........37/Instrução nº ..............03.

6. O pedido de ampliação ora formulado pelas autoridades judiciárias francesas funda-se em factos que são igualmente suscetíveis de integrar os ilícitos que motivaram a emissão do MDE a 11 de Dezembro de 2023, para efeitos de procedimento criminal, sendo que a «26 de maio de 2022, a alfândega francesa descobriu no porto de La Rochelle 124 kg de cocaína escondidos nos “Sea Chest” do cargueiro “G.... ...” proveniente do Brasil. As investigações conduziram à descoberta de dois fatos suplementares nos meses de março de 2022 e novembro de 2021, períodos em que outros cargueiros carregados de estupefacientes vindos do Brasil fizeram uma escala em La Rochelle. As investigações telefónicas permitiram detectar no decorrer de diferentes fatos a presença do denominado BB no momento dos fatos em março de 2022. As interceptações via mensagem SKY ECC revelaram que CC esteve em relação entre 2020 e 2021 com um denominado AA para organizar importações de cocaína por via marítima do Brasil. As investigações revelaram que CC foi a Portugal a 21/01/2023 para lá encontrar AA na frente do domicílio do seu sogro, BB, outro indivíduo acusado neste processo».

7. Assim sendo, solicitam o alargamento da decisão de entrega a outros factos com contornos semelhantes aos descritos no MDE emitido a 11 de dezembro de 2023, mas ocorridos no período compreendido entre 1 de janeiro de 2022 e 12 de dezembro de 2023, em La Rochelle, França, com extensão a Portugal, Países Baixos e Brasil.

8. Com o presente pedido de alargamento dos efeitos da decisão de entrega, as autoridades francesas pretendem o afastamento do princípio da especialidade, a que o requerido não renunciou aquando da sua audição, a fim de que no processo nº ........37/Instrução nº ..............03, em que é arguido, possa também responder por factos mais abrangentes do que aqueles que foram imputados ao requerido no MDE.

9. O requerido arguido encontra-se neste momento preso na França.

10. Notificada a Defesa que o representa em Portugal, deduziu oposição, pugnando por que o presente pedido de extensão seja indeferido por violação do princípio da especialidade e da lealdade e confiança recíproca, nos termos para que se remete.”

+

Em face das conclusões expressas no final da sua motivação (artº 412º 1 CPP) o recorrente suscita as seguintes questões:

- Afastamento do principio da especialidade e violação do principio da legalidade e da dignidade da pessoa humana

- Caso julgado

- Nulidade por violação da hierarquia dos tribunais

- Inconstitucionalidade

Apreciando:

NO que respeita ao afastamento do principio da especialidade, não há dúvida que o que se pretende é afastar tal principio, tal como resulta da legislação do MDE (Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que aprovou o regime jurídico do mandado de detenção europeu, alterado pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, pela Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro e pela Lei n.º 52/2023, de 28 de agosto), a que o arguido não renunciou e em face do qual se limitam os factos pelos quais a pessoa procurada e entregue poderá ser julgada no Estado requerente do MDE ou a pena que aí poderá cumprir quando a entrega seja para o cumprimento de pena de prisão. E por isso, em face da não renuncia ao principio da especialidade a pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada da liberdade por infracção praticada antes da sua entrega e diferente daquela porque foi entregue1 tal como é definido pelo artº 7º nº1 da lei 65/2003 que estatui: “1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu”

Tal não invalida que ocorram excepções e para além das excepções que decorrem dessa estatuição, o principio da especialidade sofre a derrogação expressa no nº2 d al. g) do artº 7º que dispõe: “2-O disposto no número anterior não se aplica quando:

g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega.” pelo que o MDE inicial pode ser ampliado, em derrogação de tal principio, apenas dependente do consentimento do Estado requerido (de execução)2.

Assim é legalmente possível a derrogação do principio da especialidade posto que o Estado de execução o consinta, pelo que como expressa o Ac STJ 22/1/2014 citado “II - Assim como um Estado pode requerer a extradição dum cidadão com fundamento em vários procedimentos criminais de que este é suspeito, arguido ou condenado, assim também, se, depois de operada a entrega, se vier a verificar a existência de outros processos, pode ser solicitada, ao Estado requerido, a ampliação da extradição, a qual só é possível se esse Estado nela consentir.”

Nos termos do artº 7 nº6 da lei 65/2003 “ O pedido de consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2 é apresentado pelo Estado membro de emissão ao Estado membro de execução acompanhado das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º e de uma tradução, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º” e a prestação de tal consentimento está sujeito ou limitado pelas causas de recusa obrigatória ou facultativa (artºs 11º e 12º da Lei 65/2003), tal como estabelece do artº 7º nº4 al. d) da mesma lei 35/2003 e nenhuma delas é invocada, estando em causa/ apreciação o específico catálogo de crimes do seu artº 2º.3

Em face da previsão e estatuição legal o afastamento do principio da especialidade em face do não consentimento do arguido / requerido e da necessidade de prestação do consentimento por parte do Estado requerido está conforme à lei vigente à data do pedido que o regula e por isso não viola o principio da especialidade nem o da dignidade da pessoa humana, pois a possibilidade de derrogação era sempre possível face à previsão legal não constituindo nenhuma surpresa para o arguido e fá-lo em cumprimento das suas obrigações internacionais, sendo certo que o próprio STJ no seu acórdão anterior explanara que “Realmente, do MDE consta a indicação expressa de que os diversos ilícitos criminais que se imputam ao requerido/ora recorrente foram cometidos entre 1 e 31 de maio de 2022, em La Rochelle, no território francês.

Quer isto dizer que, muito embora, se mencione no MDE que a “interceção de mensagens na plataforma SKY ECC revelou que CC tinha ligação com AA para, nos anos de 2020 e 2021, proceder à importação de cocaína, por via marítima, a partir do Brasil”, no mesmo MDE se restringe a atividade criminosa imputada ao referido período de 1 a 31 de maio de 2022.

Por conseguinte, de acordo com o princípio da especialidade – a que o requerido/ora recorrente não renunciou -, deve entender-se que o MDE reporta-se, apenas, a factualidade compreendida naquele lapso temporal, pelo que não poderá a autoridade de emissão alargar o procedimento criminal a outros factos sem que obtenha consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega.” (sublinhado nosso), pelo que nem se poderá falar de deslealdade processual face à noticia da descoberta de alguns dados ainda vagos, sendo que o mandado para entrega do requerido se destinava a procedimento criminal e não a cumprimento de pena.

Agora, no fundo tudo se passa como se estivéssemos perante um novo MDE4.

Improcedem assim estas questões.

Questiona o requerido a existência do caso julgado que seria tal como entendemos o alegado resultado da decisão anterior deste Supremo Tribunal que limitara o pedido aos factos ocorridos entre o dia 1 e 31 de Maio de 2022.

Obviamente que inexiste por essa via caso julgado, exceção que impediria, esta apreciação e consequente novo pedido.

Desde logo porque a ampliação se prende com factos de 1/1/2022 a 12/12/2023 em investigação e não englobados por isso naquela decisão do STJ (que a limitara), e depois porque é legalmente possível a ampliação do pedido por parte do Estado requerente, subordinado às condições supra mencionadas expressas no artº 7º mencionado, tal como o STJ nos termos já supra transcritos admitira essa possibilidade.

Sendo a própria lei que admite essa ampliação e lhe fixa os termos, improcede também esta questão.

Avança ainda o requerente que existe nulidade por violação da hierarquia dos tribunais, porque “ …o Tribunal que agora profere a presente decisão (Relação) é, hierquicamente, inferior ao que ordenou a extradição, única e exclusivamente, por factos alegadamente praticados entre 1 e 31 de Maio de 2022.”

Se é verdade que a Relação é hierarquicamente inferior ao Supremo Tribunal, não tem razão no demais, não apenas por o STJ julgar em recurso do decidido pelo tribunal competente que é a Relação para primeiramente conhecer do caso, para qual retornaria a competência após a decisão do STJ, mas também porque expressamente essa competência (para prestar o consentimento previsto no artº 7º 2 g) da Lei 65/2003 para a ampliação do pedido pelo Estado requerente) é atribuída ao Tribunal da Relação pela al.a) do nº4 do artº 7º da Lei 65/2003 que dispõe: “4 - Se o Estado membro de execução for o Estado português, o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2:

a. É prestado pelo tribunal da relação que proferiu a decisão de entrega;”

Improcede esta questão.

Invoca o requerido a inconstitucionalidade do artº 7º da Lei 65/2003 na interpretação segundo a qual o principio da especialidade, não obsta a que o extraditado, por determinados factos concretos e precisos, pode a todo o tempo, ser objecto de ampliação do pedido MDE, inicialmente formulado é materialmente inconstitucional por violação do disposto no nº 1º do artº 32 da CRP .”, e do art. 620.º, n.º 1, do CPC “segundo a qual, as Relações podem revogar, decisões proferidas pelo STJ, transitadas em julgado, é materialmente inconstitucional por violação do disposto no nº 1º do artº 32 da CRP .

É questão nova não suscitada no Tribunal da Relação, expressa nos termos transcritos e sem mais explicações ou fundamentação.

Trata-se assim de uma mera alegação.

O artº 32º1 CRP dispõe que “ 1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”

Ora não demonstra o requerido que garantia de defesa tenha sido violada, tanto mais que estamos numa situação de recurso, e não se mostra que a ampliação para procedimento criminal de um mandado de detenção europeu, ofenda qualquer garantia de defesa do procedimento criminal, pois aí poderá exercer todos os seus direitos de defesa (como fez) e por outro lado em lado algum se está perante uma revogação de uma decisão anterior desde Supremo Tribunal ou da Relação, posto que a anterior decisão se mantém em toda a sua vigência ou seja o procedimento criminal pelos factos do MDE inicial a que acrescerá a investigação pelos factos ora ampliados, facto que a lei permite

Improcede também esta arguição.

+

Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide

Julgar improcedente o recurso interposto pelo requerido AA e em consequência mantêm a decisão recorrida.

Sem custas

Notifique

Comunique de imediato à Relação de Lisboa

DN

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Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 4/6/2025

José A. Vaz Carreto (relator)

Antero Luis

Maria Margarida Almeida

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1. Ac STJ 9/1/2019 Proc. 144/13.9YRLSB, Cons. Nuno Gonçalves, www.dgsi.pt

2. Ac. STJ 22/1/2014 Proc. 144/13.9YRLSB.S1 Cons. Santos Cabral, www.dgsi.pt

“ I - O princípio da especialidade só constitui uma salvaguarda enquanto o extraditado se encontrar sob a tutela do Estado requerente, e sofre duas excepções:

- quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação da extradição, de forma a que o extraditado responda por outros processos;

- quando, terminado o procedimento criminal ou o cumprimento da pena e restituída à liberdade, a pessoa extraditada permaneça no território do Estado requerente para além do prazo de 45 dias, que é concedido para que abandone livremente esse território, ou se a ele regressar, depois de o ter deixado.

3. “V -Como expressamente dispõe a al. d) do n.º 4 do art. 7.º, o consentimento da autoridade de execução (nº 2, al. g) do mesmo art. 7.º) só pode ser recusado com fundamento num dos motivos de recusa obrigatória ou facultativa previstos nos arts 11.º (“será recusada”) e 12.º (“pode ser recusada”) da Lei 65/2003. Inexistindo qualquer destes fundamentos, o Estado português, em concretização da obrigação geral de execução do MDE (“será concedida”, art. 2.º, n.º 2, proémio), tem o dever de prestar o seu consentimento através da autoridade judiciária de execução, por força da citada al. d) do n.º 4 do art. 7. º do diploma em referência.”

4. ac. STJ 9/1/2019 citado onde se defende: “IV - Com a alteração operada pela Lei 35/2015, de 04-05 à Lei 65/2003, de 23-08, é agora claro que o consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por uma autoridade judiciária de um EM a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infracção para a qual é solicitado, desse ela própria lugar à entrega do detido, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE.” (sublinhado nosso)