AÇÃO EXECUTIVA
IMPENHORABILIDADE DOS INSTRUMENTOS DE TRABALHO
SOCIEDADES COMERCIAIS
INAPLICABILIDADE
Sumário

O disposto no artº 737º, nº 2, do Código de Processo Civil, que consagra a impenhorabilidade dos instrumentos de trabalho, tendo como pressuposto a dignidade humana e a preservação da subsistência do Executado e seu agregado familiar, não se aplica às sociedades comerciais.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

         Recorrente     A..., Lda.

         Recorrida        AA

        

Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira

Juízes Desembargadores Adjuntos: Cristina Neves

                                                           Luís Miguel Caldas   

Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

(…).

Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:



I – Relatório

Nos autos de execução de sentença, que correm termos no Juízo de Execução de Alcobaça – Juiz 1, em que é Exequente AA e é Executada A..., Lda., foram penhorados cinco veículos pertencentes à Executada, mais concretamente uma retroescavadora e quatro veículos ligeiros de mercadorias, com as matrículas ..-NH-.., ..-BH-.., ..-..-QS, ..-JV-.. e ..-LN-...

A Executada deduziu oposição à penhora, alegando, em síntese, que estes veículos são instrumentos de trabalho e estão totalmente afetos à atividade da executada, sendo absolutamente indispensáveis ao seu exercício, o que torna estes bens isentos de penhora, nos termos do disposto no corpo do art.º 737.º n.º 2 Código de Processo Civil.

Consequentemente, requereu o levantamento da penhora dos veículos.

Então, o Tribunal a quo proferiu sentença, indeferindo liminarmente a oposição à penhora, em suma, por entender que:

Assim, uma vez que a executada é uma sociedade comercial, entende-se não ser sequer equacionável a aplicação do aludido normativo e, por isso, ser irrelevante a matéria invocada pela executada no contexto da indispensabilidade dos bens penhorados (mesmo que se viesse a provar (…).

Consequentemente, entende-se que a oposição à penhora é manifestamente improcedente, o que é causa do seu indeferimento liminar – art. 732.º, n.º 1, alínea c), do CPC, ex vi do art. 785.º, n.º 2, do CPC.

         O Oponente interpôs recurso do referido despacho, concluindo, nas suas alegações, que:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que indefere liminarmente a oposição à penhora deduzida, por manifestamente improcedente, tendo o tribunal a quo entendido inaplicável às sociedades comerciais a impenhorabilidade estabelecida no art.º 737.º n.º 2 cpc, por considerar que a ratio legis daquela se prende com a dignidade da pessoa humana e por isso é intransponível para as pessoas colectivas.

2. Salvo melhor opinião, porém, tal entendimento é violador do art.º 737.º n.º 2 cpc e bem assim do disposto no art.º 9.º cc, desde logo porque nem o legislador excluiu as pessoas colectivas da aplicação da norma, nem tal entendimento tem qualquer correspondência com o texto da mesma.

3. O intérprete tem de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento – cfr. art.º 9.º n.º 3 cc – e a interpretação normativa tem de ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal – cfr. art.º 9.º n.º 2 cc.

4. Ora, o art.º 737.º n.º 2 cpc não limita a impenhorabilidade ali estabelecida aos executados que sejam pessoas singulares, e por isso não exclui do seu campo de aplicação as pessoas colectivas.

5. Se o legislador tivesse pretendido que aquela norma não fosse aplicável às sociedades comerciais tê-las-ia excluído expressamente, consagrando tal exclusão na própria norma, o que não fez. e não fez porque não quis, tendo perfeitamente podido fazê-lo, o que até se retira da circunstância de ter instituído algumas excepções à impenhorabilidade daqueles bens e que enumerou de forma taxativa nas alíneas do art.º 737.º n.º 2 cpc.

6. Logo, daqui resulta um primeiro argumento que fará cair por terra o entendimento do tribunal a quo: o legislador não pretendeu excluir a aplicabilidade do art.º 737.º n.º 2 cpc às pessoas colectivas, pois não as excluiu nem sequer consta da lei qualquer elemento de onde tal decorra.

7. Nenhuma razão existe para entender inaplicável às sociedades comerciais a impenhorabilidade relativa estabelecida no n.º 2 do art.º 737.º cpc e a interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo restringe onde o legislador não restringiu, excluindo o que o legislador não pretendeu excluir, assim violando o disposto nos arts.º 737.º n.º 2 cpc e 9.º n.ºs 2 e 3 cc.

8. Não podia o tribunal a quo ter decidido como decidiu, indeferindo liminarmente a oposição apresentada por “manifestamente improcedente”, estribando tal suposta manifesta improcedência numa inaplicabilidade que a lei não institui.

9. Ainda que assim não se entendesse, o que por mero dever de patrocínio se pondera, mesmo que atendendo à ratio legis sempre seria de concluir que a impenhorabilidade do art.º 737.º n.º 2 cpc é aplicável às pessoas colectivas.

10. A razão de ser desta impenhorabilidade prende-se com a necessidade de garantir que aos executados não é coartada a possibilidade de prosseguirem com a sua respectiva actividade profissional ou comercial, afastando a possibilidade de devotar à miséria ou à absoluta inoperância os executados a quem sejam cobrados certos créditos pela via executiva.

11. Na sua génese está por isso a prevalência de certos interesses vitais dos executados sobre o direito à satisfação do crédito do exequente, que não é absoluto e que surge invariavelmente limitado quando em confronto com aqueles.

12. As razões que conduziram o legislador a instituir tal impenhorabilidade são económico-sociais, aplicando-se independentemente de o executado ser uma pessoa singular ou colectiva.

13. A mera circunstância de a executada ser uma sociedade comercial não é suficiente para afastar as razões que presidiram à criação da norma, pois há evidentemente certos casos onde a penhora de bens de sociedades conduz ao mesmo resultado injusto e catastrófico que se verifica quando o executado é uma pessoa singular.

14. A pedra de toque é, por isso, a imprescindibilidade dos bens para o exercício da actividade, dado que é exactamente essa a razão de ser da impenhorabilidade e o que até se retira do texto da norma, onde se refere expressamente “os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado” e de onde transparece que não serão impenhoráveis quaisquer instrumentos e objectos, mas apenas aqueles que sejam essenciais ao exercício da actividade.

15. Tudo o que também permite concluir que a norma será aplicável às pessoas colectivas, mediante a alegação e prova da indispensabilidade dos concretos bens em causa, pois se é certo que nas sociedades comerciais, à partida, a grande maioria dos bens serão afectos à actividade, não menos certo é que nem todos serão indispensáveis ao exercício daquela.

16. O legislador pretendeu que fossem afastadas as penhoras daqueles bens que impossibilitassem os executados de prosseguir a sua actividade; e, no caso das sociedades comerciais, tal apreciação depende da imprescindibilidade dos concretos bens à prossecução da sua actividade, o que significa que caberá uma apreciação casuística, pois só assim se poderá aquilatar da efectiva verificação do cenário que o legislador pretendeu afastar.

17. Não quis o legislador permitir que, apenas porque o executado é uma pessoa colectiva, o direito de crédito do exequente pudesse legitimar a penhora de bens absolutamente necessários à continuidade da sua actividade comercial, assim paralisando-a e condenando-a à inoperância total.

18. Pelo que supra se expôs, não haverá de entender-se inaplicável tout court às sociedades comerciais esta impenhorabilidade: nem a norma as exclui nem a ratio legis o aconselha, cabendo portanto uma ponderação casuística.

19. No mesmo sentido da necessidade de averiguação concreta e casuística, veja-se o acórdão referido na douta sentença e bem assim o que na 20ª nota de rodapé se alude, onde, respectivamente, se escreveu que: “para além disso, como consta de um aresto do tribunal da relação de lisboa, mesmo que assim não fosse, caso se entendesse que o dispositivo era aplicável pessoas colectivas, era necessário demonstrar que «no caso em apreço, que sem essas viaturas a executada não podia continuar a exercer a actividade para a qual foi constituída, ou que a penhora delas colocava gravemente em causa esse exercício»[20]” [acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proc. 343/13.3tbvrs-b.e1, 07/11/2019] “a garantia comum dos credores prevista no art. 601º do cód. Civil constitui uma garantia que só em casos excepcionais deverá ser afastada, havendo, por isso, que equacionar ponderadamente, em concreto, sempre que surjam pedidos de penhoras de bens, se devem prevalecer as motivações e interesses que determinam a impenhorabilidade relativa, ou antes o princípio da confiança e da boa fé, postulado no princípio geral de que o património penhorável é a garantia do cumprimento da obrigação.

De qualquer forma, mesmo que assim não fosse, isto é, mesmo que o art. 823º, n.º 2, do cpc fosse aplicável às pessoas colectivas, sempre seria necessário demonstrar, no caso em apreço, que sem essas viaturas a executada não podia continuar a exercer a actividade para a qual foi constituída, ou que a penhora delas colocava gravemente em causa esse exercício”. [acórdão do tribunal da relação de lisboa, 11/06/2003]

20. Em suma, temos pois que o entendimento vertido na douta sentença não tem a mínima correspondência com o texto da norma e consagra solução que o legislador não consagrou, excluindo o que o legislador não quis excluir e fundamentando tal entendimento numa fonte mediata de direito, invocando casos que em nada se assemelham ao caso sub judice (de notar que o acórdão do tribunal da relação de évora era acerca de um caso enquadrável na alínea b) do n.º 2 do art.º 737.º cpc e por isso a penhorabilidade do bem nada tinha que ver com a circunstância de ser executada a sociedade, mas porque se tratava de execução para pagamento do preço do bem penhorado).

21. Veja-se que neste caso concreto a executada é uma sociedade que se dedica à construção civil a quem foram penhorados veículos e máquinas sem os quais não pode trabalhar.

22. Assim, o tribunal a quo violou o art.º 737.º n.º 2 cpc e o art.º 9.º n.ºs 2 e 3 cc, pois restringiu o âmbito da impenhorabilidade estabelecida, não tendo sido essa a intenção do legislador.

23. Acresce que nem sequer o fundamento da ratio legis permite afastar aquela aplicabilidade de modo singelo, impondo antes uma apreciação casuística que, por via do indeferimento liminar da oposição, nunca se poderá levar a cabo.

24. Assim e por tudo quanto acima se deixa, a douta sentença deverá ser revogada e substituída por decisão que, recebendo a oposição à penhora, determine o prosseguimento dos autos.

Concluiu pedindo:

Termos em que, e nos melhores de direito, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por decisão que, recebendo a oposição à penhora, determine o prosseguimento dos autos.

Assim se fazendo a costumada Justiça!.

O Exequente não respondeu ao recurso.

II – Objeto do processo



Colhidos os vistos legais, prestados contributos e sugestões pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos e realizada conferência, cumpre decidir.

Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal ad quem às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim:

Questões a decidir:

         Da aplicação do disposto no artº 737º, nº 2, do Código de Processo Civil, às sociedades comerciais



III – Fundamentação


A) De facto

       Do historial dos presentes autos

O supra descrito.

B) De Direito

Da aplicação do disposto no artº 737º, nº 2, do Código de Processo Civil, às sociedades comerciais

Dispõe o artº 737º, nº 2, do Código de Processo Civil, que Estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado (…)

Em primeiro lugar, entende a Recorrente que a norma em apreço é aplicável às sociedades comerciais na medida em que o entendimento contrário não resulta minimamente da lei, não se podendo considerar uma interpretação que não tenha um mínimo de correspondência na letra da lei e havendo que presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento[1].

Contudo, pelo contrário, ter uma atividade profissional ou profissão é uma capacidade intrinsecamente humana, que só pode ser exercida por um indivíduo, estando o direito ao trabalho consagrado na Constituição da República Portuguesa na parte relativa aos direitos e deveres fundamentais[2].

Já as sociedades comerciais, têm por objeto a prática de atos de comércio[3], exercem uma atividade comercial; como diz amiúde a Recorrente nas suas alegações, as sociedades, exercem uma atividade, ou seja, não trabalham, não têm uma profissão.

Também a leitura integral do preceito aponta no mesmo sentido, na medida em que se lhe segue um nº 3[4] indubitavelmente apenas aplicável às pessoas singulares e tendo (também) em vista a salvaguarda da dignidade humana.

Assim, o elemento literal, ao contrário do alegado, vai no sentido que lhe foi dado pelo Tribunal a quo.

Em segundo lugar, entende a Recorrente que também a ratio legis do preceito vai no sentido da sua aplicabilidade às sociedades comerciais, entendendo que o mesmo visa garantir a manutenção da capacidade de exercício da atividade, não sendo absoluto o direito à satisfação do crédito.

Também aqui entendemos que a Recorrente carece de razão, na medida em que o que a norma pretende é a salvaguarda da dignidade humana, do mínimo de subsistência do Executado e seu agregado familiar, não podendo retirar-se ao ser humano a sua capacidade de trabalho, ainda que seja devedor ou mesmo insolvente.

No que toca às sociedades comerciais, sem prejuízo da existência de processos especiais que visam a recuperação económica do devedor, ainda que, de algum modo, com sacrífico para os credores [5], a regra continua a ser a de que todos os bens da sociedade comercial respondem pela dívidas da sociedade, que deve apresentar-se à insolvência no prazo de trinta dias após ter conhecimento de que se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas[6].

No sentido da inaplicabilidade da norma em apreço às sociedades comerciais, ensinam António Santos Abrantes Geraldes e outros, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, reimpressão, Almedina, 2021, pág. 103: Mas uma vez que a norma vem responder à necessidade de acautelar os interesses do agregado familiar do executado, em função da atividade profissional por este exercida, tal isenção já não se aplicará quando os bens pertencerem a pessoas coletivas ou a sociedades comerciais.[7]

Assim, ainda que se provasse que as viaturas são indispensáveis ao exercício da atividade a que se dedica a Executada, sempre seria de considerar que as mesmas são penhoráveis[8].

Neste sentido, também, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7 de Novembro de 2019, proferido no processo nº 343/13.3TBVRS-B.E1, disponível em www.dgsi.pt[9], onde se diz:

1 – A isenção de penhora prevista no nº 2 do artigo 737º do Código de Processo Civil visa obstar a que a penhora ponha em risco a situação ou possibilidade de sobrevivência do executado e radica em razões intrinsecamente pessoais.

2 – Quanto aos instrumentos de trabalho e aos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade, deve assim concluir pela inaplicabilidade da excepção ali estabelecida às sociedades comerciais, dado que os interesses de protecção da dignidade humana que se encontram presentes na garantia de impenhorabilidade do património do devedor singular não tem fundamento axiológico ou paridade identitária no caso das pessoas colectivas. (sublinhado nosso)  

Nestes termos, concluímos que o disposto no artº 737º, nº 2, do Código de Processo Civil, tendo como pressuposto a dignidade humana e a preservação da subsistência do Executado e seu agregado familiar, não se aplica às sociedades comerciais, sendo improcedente o recurso.

IV - Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 3ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

                                                            

Custas pelos Apelantes – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.

         Coimbra, 8 de Abril de 2025

         Com assinatura digital:

         Anabela Marques Ferreira

         Cristina Neves

         Luís Miguel Caldas


[1] Cfr. artº 9º, do Código Civil.
[2] Artº 58º, inserido no capítulo dos direitos e deveres económicos.
[3] Artº 1º, do Código das Sociedades Comerciais.
[4] Estão ainda isentos de penhora os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na casa de habitação efetiva do executado (…)
[5] Processo Especial de Revitalização, Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas e Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas.
[6] Artºs º 3º, nº 1, e 18º, nº 1, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[7] Também Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, “A Ação Executiva Anotada e Comentada”, 2ª edição, Almedina, 2017, pág. 273.
[8] Num caso em tudo idêntico ao dos autos, decidiu também neste sentido o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 11 de Junho de 2003, prof o disposto no artº 737º, nº 2, do Código de Processo Civil, tendo como objetivo de preservação da dignidade humana, não se aplica às sociedades comerciais erido no processo nº 2089/2003-4, disponível em www.jurisprudência.pt.
[9] Ou acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Outubro de 2009, proferido no processo nº 53/08.3TBVPA-C.P1, disponível na mesma base de dados.