Sumário:
1. O despacho que altera o regime de visitas deve ser fundamentado, embora a sua medida deva adequar-se ao tipo de decisão a proferir e à sua complexidade.
2. A absoluta falta fundamentação, mesmo que sumária ou simplificada, de facto e de direito desse despacho conduz à sua nulidade.
3. É pressuposto da substituição referida no artigo 665.º CPC que o Tribunal superior possua todos os elementos necessários para o efeito, o que não ocorre nos casos, como os dos autos, de absoluta omissão de fundamentação de facto e de direito.
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Filipe César Osório
2.º Adjunto: Fernando Marques da Silva
***
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO:
I.A.
AA, requerente nos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais que instaurou contra BB, interpôs recurso do despacho de 11/10/2024 (Referência: 34815305) proferido pelo Juízo de Família e Menores de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., que é do seguinte teor:
“1. Vistos os autos.
2. Ref.ª 2850593 – Tomei conhecimento. Dê conhecimento aos progenitores.
3. Atento o teor das informações prestadas pela EMAT decido suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação.
4. Oficie à EMAT solicitando que decorridos 6 meses nos seja informado o ponto da situação e da viabilidade de retoma dos convívios”.
O requerente/apelante, na sua petição inicial de 27/02/2024, tinha vindo requerer a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao filho de ambas as partes CC.
Por despacho de 14/03/2024 consignou-se que foi consultado o processo por crime de violência doméstica, tendo-se verificado que não foram aplicadas quaisquer medidas de coacção e foi oficiado a esse processo crime para que seja comunicado, caso sejam aplicadas medida dessa natureza.
Por despacho de 27/05/2024 foi designada data para conferência de pais.
Em 17/09/2024 foi realizada a conferência de pais onde foram tomadas declarações ao requerente e à requerida. Na falta de acordo entre eles, o Ministério Público requereu a audição do menor, o que foi deferido e realizado. De seguida, o Ministério Público requereu que se fixasse regime de regulamentação das responsabilidades parentais a título provisório nos seguintes termos:
“1) O menor (…) mantém a residência junto da mãe.
2) As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança serão exercidas conjuntamente por ambos os progenitores, exceto nos casos de manifesta urgência, em que qualquer um deles poderá agir sozinho, devendo informar o outro logo que possível.
3) As responsabilidades parentais relativas às questões da vida corrente do menor serão exercidas pelo progenitor com quem a criança se encontre.
4) A título de prestação de alimentos, o pai contribuirá com a quantia mensal de €75,00 (setenta e cinco euros), a pagar por transferência ou depósito bancário para a conta de titularidade da mãe com IBAN (…), até ao dia 8 (oito) de cada mês.
Mais requereu que, nos termos do artigo 28.º do R.G.P.T.C., se fixe um regime de convívios supervisionados entre o pai e o menor, a executar nas instalações da Segurança Social de ....”.
Foi, então, proferido despacho do seguinte teor:
“Estabelece o artigo 38.º do RGPTC que, não sendo obtido o acordo dos progenitores em sede de conferência de pais, o juiz decide provisoriamente quanto ao pedido formulado. O estabelecimento de um regime provisório configura-se como um poder-dever do juiz, que por período e condições determinadas, regula as responsabilidades parentais conforme entender mais conveniente para os interesses da criança, considerados os elementos existentes nos autos.
A solução consagrada na lei favorece a obtenção de acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais, e permite ainda ajuizar da utilidade e adequabilidade do regime definitivo a estabelecer e sua exequibilidade.
No caso vertente, e atendendo quer aos elementos constantes dos autos, quer às declarações prestadas pelos progenitores decido fixar o regime provisório nos exatos termos requeridos pelo Ministério Público.
*
Oficie à EMAT de ... solicitando a elaboração de plano de convívios supervisionados da criança com o progenitor, a efetuar 1 (uma) vez por mês.
Mais solicite que o plano de convívios a implementar seja remetido aos presentes autos, e após o início da sua execução, solicite a remessa de relatório intercalar.”
Recebido ofício a 7/10/2024 da Unidade de Desenvolvimento Social (Núcleo De Infância e Juventude) da Segurança Social, foi aberta vista ao Ministério Público que promoveu nos seguintes termos: “Visto. O Ministério Público não se opõe ao deferimento da proposta apresentada pela técnica da Segurança Social”.
De seguida foi proferido o despacho recorrido.
As partes foram notificadas conjuntamente do despacho e do ofício de 7/10/2024.
I.B.
O requerente/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“1 - O Recorrente vem interpor recurso da decisão proferida por douto Despacho em 11/10/2024, com a Ref. 34815305, o qual decidiu o Tribunal “a quo”: “…Atento o teor das informações prestadas pela EMAT decido suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação.”
2 - O Recorrente AA requereu a Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, quanto ao seu filho CC, contra BB, nos termos do artigo 43º do RGPTC.
3 - O Recorrente e DD são pais do menor CC, e viveram em união de facto desde Dezembro 2008 até ... de ... de 2023, encontrando-se separados desde essa data o qual saiu de casa onde vivia com o Recorrente, sem qualquer motivo e aviso e levou o filho consigo.
4 - Desde a separação, ou seja, desde ... de ... de 2023, que o Recorrente nunca mais teve notícias e nem esteve com o seu filho, inclusive desconhecendo onde reside e onde estuda.
5 – Por desconhecer o paradeiro do seu filho, requereu o Recorrente ao Tribunal que fosse fixado os termos relativamente ao exercício das responsabilidades parentais do menor, nomeadamente, no que respeita ao regime de visitas, pensão de alimentos e residência da menor.
6 – A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), informou os autos que a mãe do menor e o mesmo se encontravam em acolhimento numa Casa de Abrigo para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica.
7 - Por despacho do Tribunal “a quo” com a Referência: 34278616, foi consignou:
“2. Consigno que após ter obtido informação relativamente ao número do processo crime de violência doméstica (NUIPC 1665/23.0...) consultei o mesmo, eletronicamente, tendo verificado que não foram aplicadas quaisquer medidas de coação, assim devem os autos aguardar o agendamento, de modo a salvaguardar a prioridade relativamente aos processos entrados.
3. Oficie ao processo crime solicitando que caso sejam aplicadas medidas de coação tal nos seja, de imediato, comunicado.”
8 - O Recorrente desconhece se existe algum processo crime de violência doméstica, uma vez que em momento algum foi citado do mesmo, além de que em momento algum praticou qualquer ato de violência doméstica, contra a mãe do menor e o próprio menor.
9 - No dia 17 de setembro de 2024, realizou-se a conferência de pais a que alude o artigo 35º do RGPTC, no Tribunal “a quo”.
10 - Na mencionada conferencia foram questionados “os progenitores as circunstâncias que levaram ao afastamento do CC do seu pai. Neste momento, pela progenitora foi dito que a separação ocorreu em contexto de violência doméstica entre o casal. Mais refere que o seu filho também terá sido vítima dessa violência, pois terá sido obrigado pelo pai a trabalhar no monte e a tratar dos cavalos contra a sua vontade, e por essas razões ficou transtornado e com receio do pai, pelo que não pretende falar nem estar com este. Mais referiu que o menor que se encontra a ser acompanhado por Pedopsiquiatra, estando presente no Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar na companhia dessa Pedopsiquiatra (Dr.ª EE), com o intuito de prestar declarações por aconselhamento e vontade da própria e da sua ilustre mandatária. O progenitor/requerente negou as acusações de violência, explicando que por uma ocasião atingiu o filho com um chicote, sem querer, enquanto se encontravam a treinar um cavalo.”
11 - Perante a falta de acordo entre os progenitores, a Senhora Procuradora requereu que se aproveitasse a presença do menor CC no Tribunal Judicial de...para se proceder à sua audição com o intuito de se recolherem mais alguns elementos que permitam ao Tribunal fixar convívios entre este e o progenitor, o que foi determinado de imediato pela Mm.ª Juiz, tendo a criança sido ouvida só na sua presença, bem como da Senhora Procuradora e acompanhado da Pedopsiquiatra Dr.ª EE, ficando a audição documentada através do sistema de gravação disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com inicio pelas 10h21m20s e com termo pelas 10h32m42s.
12 - A Senhora Procuradora requereu que se fixasse o regime de regulação das responsabilidades parentais a título provisório, nos termos do artigo 28.º do R.G.P.T.C., com os convívios supervisionados entre o pai e o menor, a executar nas instalações da Segurança Social de ....
13 – Em consequência, foi proferido por despacho: “… No caso vertente, e atendendo quer aos elementos constantes dos autos, quer às declarações prestadas pelos progenitores decido fixar o regime provisório nos exatos termos requeridos pelo Ministério Público. Oficie à EMAT de...solicitando a elaboração de plano de convívios supervisionados da criança com o progenitor, a efetuar 1 (uma) vez por mês. Mais solicite que o plano de convívios a implementar seja remetido aos presentes autos, e após o início da sua execução, solicite a remessa de relatório intercalar.”
14 - O Recorrente ficou a aguardar indicação da data para o início dos convívios com o seu filho.
15 - No entanto, antes do agendamento das visitas, foi junto aos autos um Relatório Social emitido pela Unidade de Desenvolvimento Social de Infância e Juventude, de ..., sobre o plano de convívios supervisionados do menor ao Recorrente, no qual:
“… A progenitora verbalizou que o menor tem medo do progenitor e que não quer falar com o mesmo, devido aos mãos tratos quer físicos, quer psicológicos, que o próprio menor sofreu às mãos do requerente;
Conclusão/Parecer:
Face ao exposto e segundo a opinião da técnica da Segurança Social, da progenitora, da técnica da APAV e do menor (em não querer e dizer que tem medo do pai), parece-nos, que deveríamos deixar que o menor retoma-se o acompanhamento pelo psicólogo da escola que frequenta e em articulação depois com o mesmo, elaboraríamos um plano de visitas supervisionadas, quando o psicólogo nos desse a entender que o menor se encontrava em condições de poder estar com o seu progenitor.”
16 - Por douto Despacho em 11/10/2024, com a Ref. 34815305, ora recorrido, decidiu o Tribunal “a quo” suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação.
17 - O Recorrente desconhece o conteúdo do alegado processo crime de violência doméstica.
18 - Em momento algum o Recorrente teve comportamentos violentos com a mãe do seu filho e o seu filho. Nem violência física, nem violência psicológica. Aliás, vem agora a mãe do menor alegar comportamentos do Recorrente para com o seu filho, no entanto, se esses comportamentos existissem, o que não aconteceu, em momento algum foi apresentada alguma denuncia ou queixa crime contra o Recorrente.
19 - O filho do Recorrente em momento algum apresentou comportamentos de resistência, em relação ao progenitor. A alegada violência em momento algum aconteceu. O menor sempre quis acompanhar o Recorrente, vivendo uma vida feliz e sem qualquer perturbação ou ansiedade, porque nunca existiu qualquer motivo para tal.
20 - O Recorrente não pode ter outra opinião que não seja uma manipulação da mãe do menor de forma a evitar a convivência do menor com o Recorrente, deturpando a verdade e inventando factos.
21 - Por outro lado, em momento algum o filho do Recorrente descreveu os comportamentos relatados no relatório apresentado pela APAV de .... Aliás, conforme o mencionado relatório é a progenitora “que verbalizou que o menor tem medo do progenitor e que não quer falar com o mesmo”.
22 – Não existe nenhuma decisão relativamente ao alegado processo crime por violência doméstica á mãe do menor, nem existiu, nem poderá existir, porque não aconteceu qualquer comportamento do Recorrente nesse sentido. De igual forma que nunca existiu qualquer comportamento de violência em relação ao seu filho.
23 - Cada vez mais há um afastamento entre o menor e o Recorrente, sem qualquer motivo real nem comprovado.
24 - Aliás, com o devido respeito, que é muito, e salvo melhor opinião, somente após a existência de visitas entre o menor e o Recorrente, é que será possível avaliar as mesmas visitas e o relacionamento entre ambos. Situações que não é possível apurar por impedimento, á realização dos convívios supervisionados entre o pai e o menor.
25 - A permanência do afastamento entre pai e filho, e o fato da mãe do menor, informar e falar com o mesmo sobre a alegada violência doméstica, que não existiu, é intencional, de forma a afastar o menor do Recorrente, deturpando a verdade. Não existe nenhuma medida de coação, nem condenação aplicada ao Recorrente,
26 - O Recorrente desconhece por completo se efetivamente o menor se recusa em se sujeitar às visitas com o mesmo, uma vez que os convívios supervisionados entre o pai e o menor, a executar nas instalações da Segurança Social de..., ainda não foram iniciados em sequência do douto Despacho ora recorrido.
27 - Aliás, somente após a realização das mesmas poderão ser apuradas as razões desse comportamento, a existir, não sendo possível apurar efetivamente e em verdade, se o menor se opõe aos convívios com o Recorrente. De igual forma o Recorrente desconhece se efetivamente o seu filho tem algum acompanhamento psicológico e qual a causa do mesmo.
28 - É entendimento do Recorrente que não existe fundamento para a não realização das visitas ao seu filho, em regime de convívios supervisionados, a executar nas instalações da Segurança Social de ....
29 - A inexistência de quaisquer contatos pessoais entre Recorrente e filho, não possibilita a construção de um quotidiano familiar e social entre o progenitor e o filho, nem permite gerar e consolidar laços afetivos com o progenitor, os quais são essenciais para um desenvolvimento psicoafectivo ajustado.
30 - A decisão proferida, e ora recorrida, de suspensão por 6 meses das visitas supervisionadas, não é justa e adequada aos superiores interesses do menor, devendo por isso ser alterada nos seus termos, fixando-se visitas mensais, com recurso à intervenção e mediação da Segurança Social de..., conforme decisão judicial anterior.
31 - Entende o Recorrente que o douto Despacho ora recorrido, carece de fundamentação (de direito e de facto) a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C..
32 - Por todas as razões expostas, e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se essa decisão por outra que dê provimento ao requerido, ou seja, á realização das visitas.
Assim decidindo, far-se-á, JUSTIÇA!”
I.C.
A requerida/apelada veio apresentar contra-alegações onde defende a manutenção da decisão recorrida.
O Ministério Público também apresentou alegações defendendo a manutenção da decisão recorrida.
I.D.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo, como sendo de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Nos termos do artigo 617.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, foi determinada a baixa do processo para que fosse proferido o despacho a que alude o n.º 1 dessa norma, e, na Primeira Instância, foi apreciada a questão no sentido de se entender não se verificar a nulidade invocada.
Já neste Tribunal da Relação foi alterado o regime de subida, determinou-se a organização deste apenso e a baixa do processo principal à Primeira Instância.
Após os vistos, cumpre decidir.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso impõe-se apreciar:
a. a questão prévia da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;
b. não se verificando essa nulidade, se deve manter-se a suspensão do regime de visitas.
Como se viu, o recorrente invoca expressamente a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
A recorrida, nesse particular (conclusão 23), veio defender que o despacho se encontra suficientemente fundamentado (invocando, mesmo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2017, processo n.º 3084/08.0TBSXL-S.L1).
O Ministério Público defende, nesse ponto, que “a fundamentação por remissão não determina, por si só, a nulidade da decisão por falta de fundamentação, desde que cumpra com a razão de ser da imposição constitucional e legal do dever de fundamentação – dar a conhecer as razões de se decidir de modo que permita, nomeadamente, dissentir. No caso em apreço consegue-se descortinar e alcançar as razões que levaram o Tribunal a decretar a suspensão do regime de convívios supervisionados provisoriamente fixado, porque a informação social, para a qual a decisão recorrida remete, concretiza‑as de modo perfeitamente claro e compreensível”.
O despacho recorrido foi transcrito no relatório. Na parte impugnada é do seguinte teor: “Atento o teor das informações prestadas pela EMAT decido suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação”.
“1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
Por seu turno, prescreve-se na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”, norma aplicável aos despachos, “com as necessárias adaptações” (artigo 613.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
Será útil ter presente que decorre do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a expressa obrigação de fundamentação das decisões judiciais, nos seguintes termos: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
A propósito da fundamentação dos despachos, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[1], defendem que “ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respetiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso. Naturalmente que tal dependerá da complexidade das questões ou da maior ou menor discussão que exista na jurisprudência ou na doutrina acerca das mesmas” e, ainda, que “no campo dos despachos interlocutórios, a exigência de fundamentação pode não ser tão intensa, autorizando-se o juiz a fundamentar por remissão para os fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, desde que verificados os seguintes requisitos: faltar oposição ao pedido pela contraparte e tratar-se de caso de manifesta simplicidade”.
Permite-se, por isso, uma fundamentação por remissão apenas para os fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando reunidos dois requisitos que, no caso vertente, não estão verificados: nem existiu falta de oposição, nem é um caso de manifesta simplicidade.
Na verdade, o despacho recorrido não pode ser considerado como um despacho de mero expediente (cf. artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), pois não se destina simplesmente a prover andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, pois que ainda é relativo ao regime provisório de regulação das responsabilidades parentais (e sobre o regime de visitas, parte muito importante do conflito que urge dirimir).
Não se pode dizer que sobre a matéria não existia oposição (essa ficou expressa na falta de acordo aquando da realização da conferência de pais; além de que o relatório e a promoção do Ministério Público não foram notificados às partes antes de se proferir o despacho recorrido); nem a matéria é de manifesta simplicidade (como se verifica pela circunstância de o Tribunal recorrido ter estabelecido um regime provisório depois da tomada de declarações dos progenitores e do menor e ter tomado, em parte, posição contrária após o relatório de uma técnica – que não está fundamentado juridicamente).
Só pode concluir-se, por isso, não estarem reunidos os requisitos para que se possa fundamentar por remissão.
Ora, “é na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório”, mas “só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade” (nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/12/2021, processo n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1[2]).
É, por isso, consensual que apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão pode incluir-se na previsão legal (neste sentido ver António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[3] e, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/06/2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1[4]).
Mas, no âmbito do regime provisório de uma acção de regulação das responsabilidades parentais (regime que se aplicará às decisões, também provisórias, que alteram um regime provisório fixado) tem vindo a ser unanimemente entendido que tais decisões estão sujeitas à regra geral de fundamentação das decisões.
Neste sentido, podem consultar-se:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/11/2010 (processo n.º 2861/09.9TBVCD-B.P1[5]): “o julgador (…) deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão provisória por si proferida nos termos do art. 157 da OTM. (…) Se o não fizer, essa decisão é nula por falta de fundamentação”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/01/2013 (processo n.º 718/11.2TMCBR-A.C1[6]) “Uma decisão provisória proferida no âmbito de providência tutelar cível de regulação do exercício do poder paternal instaurado no âmbito do art. 150º da O.T.Menores, sendo processo de jurisdição voluntária, deve ser fundamentada (…). Assim, o julgador (…) deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida. A não fundamentação destas decisões implica a sua nulidade”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/11/2013 (processo n.º 7598/12.9TBCSC-A.L1-6[7]): “O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito. (…) E este princípio aplica-se a todas as decisões que incidam sobre qualquer pedido controvertido, incluindo, por conseguinte, a decisão a que respeita os presentes autos - regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais - por força do princípio da aplicação subsidiária do código de processo civil, estabelecido no art.º 161.º da OTM. (…) A decisão recorrida é totalmente omissa na referência às razões que, à luz dos princípios legais aplicáveis, – a defesa do superior interesse da criança – justificariam a mesma. Logo, é nula (…)”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/02/2020 (processo n.º 2069/19.5T8PTM-A.E1[8]): “no âmbito de uma providência tutelar cível, na qual o citério da oportunidade ou conveniência dá azo à prolação de uma decisão provisória, tal não implica que o Julgador esteja dispensado de cumprir o ritualismo mínimo inerente à decisão, designadamente a discriminação dos factos que considera provados e relevantes para sustentar a sua posição aplicando-lhe o direito que tiver por adequado; (…) as decisões judiciais, sejam elas sentenças ou simples despachos, carecem de ser fundamentadas, excluindo-se apenas o dever de fundamentação das decisões de mero expediente”;
- o Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora 11/02/2021 (processo n.º 1433/20.1T8FAR-A.E1[9]): “em suma, sendo a omissão total da matéria de facto o grau máximo da deficiência, deve considerar-se oficiosamente nula, nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do CPC e tal nulidade deve ser suprida pelo Mº Juiz a quo”.
Parece claro que por se tratar de uma decisão provisória “não se exigiria uma fundamentação exaustiva, incompatível com a natureza providencial do processo e com a sua celeridade, mas uma motivação mínima de factos indiciados, concatenada com a convocação das pertinentes normas jurídicas”, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/05/2018 (processo n.º 2208/17.0T8CSC-A.L1-6[10]).
Na verdade, mesmo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2017 (processo n.º 3084/08.0TBSXL-S.L1[11]) citado nas contra-alegações não deixa de acentuar que “uma decisão meramente provisória, passível de alteração a todo o tempo, conforme as novas informações e outras vicissitudes conhecidas nos autos, não comporta um nível de exigência de fundamentação idêntico ao das decisões definitivas sobre o fundo da causa”, sendo que o pressuposto dessa afirmação foi a circunstância de a decisão em apreciação nesse caso apresentar “justificação factual e legal (…) absolutamente clara e suficiente”.
Será importante, também, uma distinção entre a decisão de estabelecer um regime provisório (que não carece de fundamentação) e a decisão que fixa o conteúdo desse regime provisório (que já carece de fundamentação). Neste sentido ver o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/02/2021 (processo n.º 2145/20.1T8CSC-A.L1-2[12]) e o Acórdão da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 4448/24.7T8STB-B.E1[13])
No caso vertente, o despacho recorrido alterou o regime provisório, mas não foi precedido da fixação de factos indiciariamente provados e do respetivo enquadramento legal, ainda que de forma necessariamente sucinta.
Essa falta de fundamentação acentua-se quando se trata de alterar o regime que havia sido fixado pelo mesmo Tribunal menos de um mês antes.
Concluindo, o despacho que altera o regime de visitas deve ser fundamentado, embora a sua medida deva adequar-se ao tipo de decisão a proferir e à sua complexidade. Como qualquer outra decisão judicial onde exista conflito, importa não esquecer que qualquer decisão de regulação provisória das responsabilidades parentais corresponde a uma decisão de mérito que pode ser sindicada pelas partes em sede recurso, o que impõe a necessidade da sua fundamentação, mesmo que sumária ou simplificada, de facto e de direito.
Não tendo o despacho recorrido qualquer fixação de factos indiciariamente provados nem qualquer fundamento jurídico (o que, como se viu, não pode ser feito por simples remissão), é nulo por falta de fundamentação.
É pressuposto dessa substituição que o Tribunal superior possua todos os elementos necessários para o efeito, o que não ocorre nos casos, como os dos autos, de absoluta omissão de fundamentação de facto e de direito.
Os meios de prova a considerar (declarações dos progenitores, do menor e relatórios juntos aos autos) estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal de Primeira Instância, não podendo ultrapassar-se essa pronúncia para não se suprimir um grau de jurisdição.
Neste sentido:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/2017 (processo n.º 1099/17.6T8VNF.G1[14]): “A intenção subjacente à regra da substituição que tem como fundamento a celeridade não se aplica aos casos de total ausência de pronúncia, devendo, nesses casos, a decisão ser anulada”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/12/2021 (processo n.º 8513/09.2YYLSB-B.L2-7[15]) “esta nulidade apenas pode ser colmatada pelo tribunal que proferiu a sentença, porquanto a apreciação da prova produzida pelo tribunal de recurso significaria a diminuição de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2024 (processo n.º 1019/23.9T8ALM-B.L1-2[16]): “Verificando-se a ausência de elementos necessários ao conhecimento do objecto do recurso, que se reconduz à própria falta da fundamentação, não deve o tribunal de recurso afirmar tal fundamentação em substituição do tribunal recorrido, nos termos do nº 1 do art.º 665º do Código de Processo Civil, mas antes deve ser o tribunal recorrido a suprir a falta de fundamentação, na decisão que há-de proferir em substituição da decisão anulada”.
Não estando, por isso, reunidos os pressupostos do regime de substituição por parte deste Tribunal de recurso, deve ser declarado nulo o despacho recorrido por falta de fundamentação para poder ser substituído por outro que supra tal nulidade.
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em conformidade, declara-se nulo o despacho recorrido de 11/10/2024 (Referência: 34815305).
Condena-se a requerida/apelada nas custas do recurso, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
Évora, 30 de Janeiro de 2025
Filipe Aveiro Marques
Filipe César Osório
Fernando Marques da Silva
_____________________________________
1. Código de Processo Civil Anotado , Vol. I, 2.ª Ed., Almedina, pág. 199.↩︎
2. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/54940067083ff01f802587a80057e6d2.↩︎
3. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 763.↩︎
4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/627963eb32586aac80257fc700392a00.↩︎
5. Acessível em https://www.dgsi.pt/JTRP.NSF/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d98f7d3a19f41cc2802577fb0057e50c.↩︎
6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/39f73369fbf0c8eb80257b08004bb85e.↩︎
7. Acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2013:7598.12.9TBCSC.A.L1.6.↩︎
8. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/5a795ab2550374758025856e004e9ca6.↩︎
9. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/bb67f17b77c62b888025868800764265.↩︎
10. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e53c96001f0fed5e802582c8003a1c87.↩︎
11. Acessível em https://pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=58&nid=5232.↩︎
12. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e43c1bcec3866542802586880039a21b.↩︎
13. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/92c8346a06e33a7280258bd300332793.↩︎
14. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/266CD5DE2A3881A68025824700349EF6.↩︎
15. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/cc626aa850737425802587c0005109f4.↩︎
16. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f996d9cc930ff1e080258af500555de1.↩︎