IMPUGNAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO CABEÇA DE CASAL
INCIDENTE
MODIFICAÇÃO DO ANTERIORMENTE DECIDIDO
Sumário


1 – A lei permite a substituição, a impugnação da competência, a remoção e a escusa do cabeça de casal designado, constituindo incidentes do processo de inventário. A procedência do respetivo incidente opera necessariamente uma modificação do anteriormente decidido.
2 – A impugnação da competência do cabeça de casal funda-se na preterição da ordem pela qual a lei defere o exercício do cargo de cabeça de casal no artigo 2080º do CCiv. A invocação desse fundamento por um interessado dá lugar a um incidente específico do processo de inventário.
3 – O despacho que, na fase liminar do inventário, nomeia o cabeça de casal não produz uma composição definitiva da questão relativa à competência do cabeça de casal designado, dado que a qualquer dos interessados diretos na partilha e ao próprio cabeça de casal é facultada a impugnação daquela competência.
4 – Assiste ao interessado nomeado cabeça de casal, na sequência da sua citação, a faculdade de impugnar a sua competência para o exercício do cargo de cabeça de casal, requerendo a sua substituição pelo herdeiro a quem a lei atribuí tal tarefa.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. No inventário instaurado por óbito de AA e de BB, no qual intervêm como interessados CC (requerente) DD, EE, FF, GG e HH, foi em 22.05.2024 proferido despacho com o seguinte teor:
«Veio a cabeça-de-casal DD, por requerimento sob Citius 4053654 de 14-06-2024, e ao abrigo do art. 1103.º do Código de Processo Civil, pedir a sua substituição do cargo de cabeça-de-casal, visto não ser a herdeira mais velha, mas tal lugar caber sim à sua irmã EE.
Assiste plena razão ao requerente CC na parte final do seu requerimento sob Citius 4055748 de 15-06-2023, e o incidente de substituição do cabeça-de-casal é tributado.
Porém, como resulta de Citius 4094517 de 17-07-2023, à cabeça-de-casal DD foi-lhe concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, pelo que tal questão fica ultrapassada.

Quanto a quem incumbe a função de cabeça-de-casal, dispõe o art. 2080.º do Código Civil o seguinte:
«1 – O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2 – De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3 – De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4 – Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.»

DD e EE têm o mesmo grau de parentesco em relação aos inventariados, são ambas filhas (art. 2080.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil), mas a interessada EE nasceu em 1957 logo é mais velha que a cabeça-de-casal DD que nasceu em 1959, preferindo, consequentemente, esta em relação àquela (art. 2080.º, n.º 4, do Código Civil).
O argumento aduzido pelo requerente CC no sentido da interessada EE residir no estrangeiro é irrelevante, até porque a inventariada BB teve como última residência habitual ..., ..., o que levanta sérias dúvidas quanto à competência internacional deste Tribunal para decisão.
Tal basta para julgar procedente o presente incidente de substituição de cabeça-de-casal e, consequentemente, nomear como cabeça-de-casal a interessada EE.»

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1.2. Inconformado, o requerente CC interpôs recurso de apelação daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:

«A. O despacho recorrido, proferido nos autos, em 22/05/2024, além de contrariar a lei – Art.º 1103º, n.º 1 – ofende, expressamente, o caso julgado da decisão do despacho proferido, nos autos, em 04/06/2023, de que não foi interposto recurso, transitando o mesmo em julgado.
B. A cabeça de casal DD, apenas pede a substituição, sendo que, a mesma, só pode consegui-la, o que não aconteceu, pelo acordo de todos os interessados na partilha, nos termos, do n.º 1, do Art.º 1103º do C.P.C..
C. Além disso, a referida cabeça de casal, não requereu a escusa, nem podia fazê-lo, pois não lhe assistiam as prerrogativas, para tal, enumeradas no Art.º 2085º, do Código Civil.
D. E mais, a sua legitimidade não foi, nem podia ser posta em causa.
E. A fundamentação da decisão recorrida, jamais poderia ser acolhida, quer pela existência de caso julgado, quer pelo que ficou já definido quanto aos dispositivos legais aplicáveis.
F. Conforme jurisprudência expressa no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 539/14.0T8VFR-K.P1, em 13/07/2022, sendo Desembargador Relator a Dra. Judite Pires, in www.dgsi.pt, afirma em resumo:
“I - O artigo 2080.º do Código Civil estabelece a ordem do deferimento do cargo de cabeça de casal, mas as regras nele contidas não têm natureza imperativa.
II - Se todas as pessoas referidas nos artigos anteriores se escusarem ou forem removidas, é o cabeça de casal designado pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, de acordo com o artigo 2083.º do Código Civil.”
G. O despacho recorrido, ao decidir como decidiu, além da ofensa de caso julgado, infringiu, entre outros dispositivos legais, os dos art.ºs 6º, 613º, 619º e segs., 1099º, 1100º, 1103º, n.º 1 do C.P.C. e 2080º e 2083º, do Código Civil.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que procede à substituição da cabeça de casal, permanecendo, a já nomeada, DD».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.3. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, é alegada a indevida alteração do anteriormente decidido quanto à nomeação de cabeça de casal, matéria que se divide em duas questões:
i) Violação pelo despacho recorrido do caso julgado formal que se formou com a prolação do despacho de 04.06.2023;
ii) Não verificação dos pressupostos legais para a substituição da cabeça de casal anteriormente nomeada.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de Facto
Os factos que relevam para a decisão das apontadas questões são os que resultam do precedente relatório e ainda os que a seguir se descrevem:
2.1.1. O interessado CC requereu que se proceda a inventário «pelos fundamentos seguintes:

Ao requerente foi adjudicado e transmitido o direito e ação de II nas heranças que o mesmo tinha, como filho dos inventariados referidos, supra, em a) e b), conforme documento que se junta, como doc. 1, e se dá, aqui, por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos (Doc. 1).

Como transmissário do direito e ação às heranças sobreditas, pertencentes ao filho dos inventariados, II, tem, por isso, legitimidade para requerer o presente inventário.

Os restantes herdeiros legitimários (filhos) dos inventariados são:
a) DD, residente no lugar ..., freguesia ..., concelho ...;
b) EE, emigrante nos ...;
c) FF, emigrante em ...;
d) GG, emigrante em ...; e
e) HH, emigrante em ....

O requerente desconhece a situação registral dos herdeiros referidos no artigo anterior, bem como dos inventariados e, ainda, o endereço atual dos herdeiros residentes no estrangeiro.

A irmã mais velha, DD, reside em Portugal, na residência indicada em 3º a), supra, bastante perto dos bens a partilhar (prédio urbano e rústicos), sitos na freguesia ..., mais precisamente no lugar de ..., segundo o conhecimento que tem, pelo que deverá exercer as funções de cabeça de casal, devendo ser, por despacho liminar a proferir, nos termos do Art.º 1100º, do C.P.C., nomeada, sendo ordenada a sua citação para os termos do Art.º 1102º, do C.P.C..
Nestes termos,
Requer a V.ª Ex.ª, se digne, no exercício das competência conferidas no Art.º 1100º, do C.P.C., proferir despacho designando cabeça de casal, a herdeira legitimária, DD, com a residência supra indicada, e ordenando a sua citação para os termos do Art.º 1102º, do C.P.C., seguindo-se os demais termos até final.»
2.1.3. EE nasceu a ../../1957 (assento de nascimento junto aos autos em 17.04.2023).
2.1.4. DD nasceu a ../../1959 (assento de nascimento junto aos autos em 17.04.2023).
2.1.5. FF nasceu a ../../1963 (assento de nascimento junto aos autos em 17.04.2023).
2.1.6. GG nasceu a ../../1966 (assento de nascimento junto aos autos em 17.04.2023).
2.1.7. HH nasceu a ../../1980 (assento de nascimento junto aos autos em 17.04.2023).
2.1.8. Em 04.06.2023, foi proferido despacho onde consta, na parte relevante:
«Assim, atendendo ao invocado admito a cumulação de inventários requerida, por estarem reunidos os requisitos convenientes à referida cumulação.
Designa-se como cabeça de casal DD, residente no lugar ..., freguesia ..., concelho ... – cfr. artigo 2080º do Código Civil, artigo 1100º, nº2, alínea a) do Código de Processo Civil.
Cite/notifique o cabeça de casal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1102º, nº 1 alíneas a) a c) do Código de Processo Civil, bem como cumpra-se o disposto no artigo 1104º do Código de Processo Civil.»
2.1.9. Em 14.06.2023, DD expôs e requereu o seguinte:
«1. O requerente do Inventário, no artigo 5º do seu douto requerimento inicial, mencionou que a ora requerente é a irmã mais velha e, por isso, deverá exercer as funções de cabeça-de-casal, o que requereu.
2. Vindo, nessa senda, a ser nomeada para o desempenho de tal cargo a ora requerente.
3. Porém, como se alcança da análise dos Assentos de Nascimento juntos aos autos pelo requerente do inventário, não incumbe à aqui requerente o desempenho de tal cargo, nos termos do disposto no n.º 4 do artº. 2080º do CC, na medida em que de entre os herdeiros em igualdade de circunstância (irmãos), a ora requerente não é a mais velha.
4. Efectivamente, a aqui requerente DD, nasceu em ../../1959, enquanto a herdeira EE, nasceu em ../../1957, pelo que é esta que prefere para o desempenho do cargo de cabeça-de-casal - Cfr. Assentos de Nascimento juntos aos autos.
Termos em que deve ser removida do cargo de cabeça-de-casal a ora requerente, nomeando-se em sua substituição a herdeira EE, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 2080º do Cód. Civil, e, consequentemente, deve ser dada sem efeito a notificação da aqui requerente, feita nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 102º, n.º 1, alíneas a) a c), do CPC.»
2.1.10. O Requerente deduziu oposição à pretensão mencionada em 1.9. através do requerimento com a referência Citius nº 4055748, apresentado em 15.06.2023, onde conclui que «[d]eve ser indeferido o requerido, prosseguindo os autos, determinando-se o desempenho das funções de cabeça de casal à interessada nomeada, sem atos dilatórios, como o presente.»
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2.2. Do objeto do recurso
O Recorrente insurge-se contra a decisão proferida em 22.05.2024, que substituiu DD por EE no cargo de cabeça de casal, alegando dois fundamentos distintos: i) a violação do caso julgado decorrente do despacho proferido em 04.06.2023, que nomeou DD como cabeça de casal; ii) o não preenchimento dos pressupostos legais para a substituição da cabeça de casal nomeada em 04.06.2023.
Para apreciar se o despacho deve ser revogado ou mantido, a situação factual relevante é esta: por despacho de 22.05.2023, o Tribunal recorrido designou cabeça de casal a interessada DD, a qual requereu, imediatamente após ter sido citada, a sua substituição por não ser a herdeira mais velha; em 22.05.2024, foi deferida a pretensão da referida interessada, nomeando-se «como cabeça-de-casal a interessada EE» por ser a mais velha dos herdeiros.
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2.2.1. Da violação do caso julgado
Diz-nos o artigo 628º do CPC que a decisão se considera transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.
Forma-se então o caso julgado, que não é mais do que a insusceptibilidade de impugnação ou modificação da decisão decorrente do seu trânsito em julgado[1]. O caso julgado pode ser formal ou material: o primeiro «só tem um valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida»; «o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada»[2]. Formam caso julgado formal as decisões sobre questões ou relações de carácter processual (art. 620º, nº 1, do CPC). Já as decisões sobre a relação material controvertida formam caso julgado material, pois, nos termos do artigo 619º, nº 1, do CPC, «transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.» E, segundo o artigo 621º do CPC, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).»
Por conseguinte, o caso julgado formal confere força obrigatória dentro do processo à decisão que recaia sobre a relação processual, dentro dos limites em que julga. Decisão que recaí unicamente sobre a relação processual é toda aquela que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito[3].
Proferida uma decisão sobre uma questão de natureza adjetiva, logo que adquira carácter definitivo, o caso julgado formal realiza os seguintes efeitos: i) um efeito negativo, que se traduz na insusceptibilidade de o tribunal que decidiu voltar a pronunciar-se sobre a decisão proferida; ii) um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão ao que nela foi definido ou estabelecido[4].
Se esses efeitos não forem respeitados, formando-se, dentro do mesmo processo, duas decisões contraditórias sobre a mesma questão concreta da relação processual, prevalece a primeiramente transitada em julgado – artigo 625º, nº 2, do CPC. Significa isto que se cumpre a que passou em julgado em primeiro lugar, sendo a segunda decisão inutilizada ou ineficaz.

O Recorrente pretende que o despacho recorrido seja revogado e, em consequência, que permaneça no cargo de cabeça de casal a interessada DD, nomeada pelo Tribunal recorrido por despacho de 04.06.2023.
Sustenta que a decisão de substituir DD por EE no cargo de cabeça de casal ofende o caso julgado formado pelo anterior despacho, proferido em 04.06.2023, que nomeou aquela primeira interessada.
Seja no plano teórico ou no plano prático, a decisão recorrida contende com a que nomeou DD para exercer o cargo de cabeça de casal. Porém, no plano jurídico, como se destaca no acórdão da Relação de Coimbra de 03.04.2013 (rel. Henrique Antunes), proferido no processo 1752/12.0TBVNO-A.C1[5], «o proferimento do despacho de designação do cabeça-de-casal não torna indiscutível a questão da competência do cabeça-de-casal, dado que não impede que qualquer dos interessados directos na partilha impugne aquela competência, impugnação que vincula mesmo o juiz ao dever de voltar a pronunciar-se sobre a questão da designação do cabeça-de-casal e – caso a impugnação proceda – de a modificar ou revogar. Dito doutro modo: a questão da competência do cabeça-de-casal só se considera definitivamente resolvida, quando se mostrar irremissivelmente precludida a faculdade, reconhecida aos interessados directos na partilha citados, da sua impugnação.»
Portanto, o despacho que, na fase liminar do inventário, nomeia o cabeça de casal não produz uma composição definitiva da questão relativa à competência do cabeça de casal nomeado, dado que a qualquer dos interessados diretos na partilha e ao próprio cabeça de casal é facultada a impugnação daquela competência.
No caso vertente o  despacho recorrido foi proferido na sequência da dedução de incidente, desencadeado pela então cabeça de casal DD, pelo que o essencial reside em saber se estavam reunidos os requisitos para a substituição da cabeça de casal que havia sido nomeada inicialmente, isto porque a lei permite a substituição, a impugnação da competência, a remoção e a escusa em determinados casos, cuja procedência do respetivo incidente opera necessariamente uma modificação do anteriormente decidido.
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2.2.2. Da verificação dos requisitos para a nomeação de novo cabeça de casal
O Recorrente sustenta que não existe fundamento para a substituição da cabeça de casal, decisão que, por isso, qualifica de ilegal.

A matéria da designação de cabeça de casal, bem como da sua substituição, escusa e remoção mostra-se regulada, em matéria substantiva, nos artigos 2084º, 2085º e 2086º do Código Civil (CCiv) e, em sede adjetiva, nos artigos 1100º, nºs 1, al. b), e 2, als. a) e b), 1103º e 1104º do CPC. Conforme expressamente estabelece o nº 2 do artigo 1103º do CPC, «a substituição, a escusa e a remoção do cabeça de casal constituem incidentes do processo de inventário, aos quais se aplicam as regras gerais dos incidentes da instância».
A lei fala em “substituição”, distinguindo-a como categoria autónoma da escusa, remoção ou impugnação da incompetência, mas a procedência de cada um dos incidentes previstos no artigo 1103º e 1104º, nº 1, al. c), do CPC, acarreta um mesmo efeito, que é a substituição do cabeça de casal, embora os fundamentos de cada um deles sejam completamente distintos.

No caso dos autos, é manifesto que não estavam reunidos os requisitos para a cabeça de casal inicialmente nomeada se poder escusar do cargo ou para poder ser removida.

Desde logo, a interessada DD não requereu escusa do cargo de cabeça de casal, a qual, em todo o caso, tinha de se alicerçar num dos três motivos previstos no artigo 2085º, nº 1, als. a), b) e d)[6], do CCiv:
«a) Se tiver mais de setenta anos de idade;
b) Se estiver impossibilitado, por doença, de exercer convenientemente as funções;
d) Se o exercício das funções de cabeça de casal for incompatível com o desempenho de cargo público que exerça.»
Depois, a interessada DD também não foi removida do cargo de cabeça de casal.
Como resulta do artigo 2086º, nº 1, do CCiv, o cabeça de casal pode ser removido:
«a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;
b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;
c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser;
d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.»
Nenhum desses fundamentos foi invocado pelo Tribunal a quo para substituir a cabeça de casal, que em lado algum aludiu a remoção.
No requerimento que a então cabeça de casal apresentou é utilizada a expressão «removida», com imprecisão técnica e sem aduzir um fundamento de remoção. Não se verificava qualquer motivo para a cabeça de casal ser removida do cargo, que também não foi invocado.

Posto isto, o que a interessada DD requereu foi a sua substituição do cargo com um concreto fundamento: «como se alcança da análise dos Assentos de Nascimento juntos aos autos pelo requerente do inventário, não incumbe à aqui requerente o desempenho de tal cargo, nos termos do disposto no n.º 4 do artº. 2080º do CC, na medida em que de entre os herdeiros em igualdade de circunstância (irmãos), a ora requerente não é a mais velha», pois «a aqui requerente DD, nasceu em ../../1959, enquanto a herdeira EE, nasceu em ../../1957, pelo que é esta que prefere para o desempenho do cargo de cabeça-de-casal».
No fundo, a interessada DD impugnou a sua competência para o exercício do cargo.
E com inteira razão: tal como decorre das certidões dos assentos de nascimento juntos aos autos, não é a mais velha dos herdeiros, pelo que não deveria inicialmente ter sido nomeada cabeça de casal, mas sim a sua irmã EE. Recorde-se que, nos termos do artigo 2080º, nº 4, do CCiv, entre herdeiros legais do mesmo grau de parentesco e que estejam em igualdade circunstâncias, o cargo de cabeça de casal incumbe ao herdeiro mais velho.
Tendo os autos sido instruídos com certidões dos assentos de nascimento dos interessados, nos termos do artigo 1100º, nºs 1, al. b), e 2, al. b), do CPC, incumbia ao juiz «verificar» (v. nº 2 do art. 1100º) a quem compete desempenhar o cargo de cabeça de casal, pois só assim pode proceder à «confirmação ou designação do cabeça de casal» (v. al. b) do nº 1 do art. 1100º). E tal “verificação” faz-se mediante análise dos documentos juntos (v. arts. 1097º, nº 3, al. a), e 1099º, al. d), ambos do CPC), confrontando o alegado com o teor das certidões («documentos comprovativos dos factos alegados»).
No caso dos autos, é manifesto que não foi designado como cabeça de casal o herdeiro mais velho e que isso ocorreu por erro do Tribunal. Esse erro ficou a dever-se à circunstância de não terem sido verificadas as certidões dos assentos de nascimento dos interessados, as quais encontravam-se juntas aos autos.

O Recorrente argumenta que a substituição da cabeça de casal só se pode fazer por acordo entre todos os interessados na partilha.
Nenhuma dúvida existe que, nos termos do artigo 1103º, nº 1, do CPC, o cabeça de casal pode ser substituído a todo o tempo, por acordo de todos os interessados na partilha.
Mas esse não é o único fundamento que pode conduzir à substituição do cabeça de casal designado, pois, desde logo, o nº 3 do mesmo artigo 1103º do CPC também prevê a possibilidade de qualquer interessado impugnar a legitimidade do cabeça de casal.
Além disso, o artigo 1104º, nº 1, als. b) e c), do CPC, prevê a possibilidade de os interessados diretos na partilha, bem como o Ministério Público, impugnarem tanto a legitimidade dos interessados citados como «a competência do cabeça de casal».
Por conseguinte, na sequência da sua citação, qualquer interessado pode, no prazo de 30 dias, impugnar a competência do cabeça de casal.
E nenhuma dúvida existe de que o próprio cabeça de casal pode exercer essa faculdade, pois o nº 2 do artigo 1104º prevê expressamente que «as faculdades previstas no número anterior podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário e pelo cabeça de casal», contando-se o prazo, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 1100º do CPC (citação do cabeça de casal).
A impugnação da competência do cabeça de casal funda-se precisamente na preterição da ordem pela qual a lei defere o exercício do cargo de cabeça de casal no artigo 2080º do CCiv. Esse fundamento dá lugar a um incidente específico do processo de inventário.
Se dúvidas houvesse face ao teor literal do preceito, esclarecem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís F. Pires de Sousa[7] que «o fundamento da impugnação da competência do cabeça de casal consiste na preterição da preferência definida na escala prevista na lei substantiva para o desempenho do cargo (artigo 2080.º do CC), o que não se confunde com o pedido de substituição ou de remoção do cabeça de casal a que se reporta o artigo 1103.º».
No mesmo sentido alinham Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres[8]: «O nº 1 confere aos interessados directos na partilha e ao MP a faculdade de: (…) impugnar a competência do cabeça-de-casal, demonstrando que, na escala definida pela lei substantiva (art. 2080.º CC), tal tarefa deve ser atribuída a outrem».
Por conseguinte, assistia à interessada DD, na sequência da sua citação, a faculdade de impugnar a sua competência para o exercício do cargo de cabeça de casal, requerendo a sua substituição pela herdeira a quem a lei atribuía tal tarefa.
Foi isso que ela fez, tendo exercido uma faculdade que a lei expressamente lhe confere, através da dedução do competente incidente.
Como é óbvio, da procedência do aludido incidente resulta a substituição da cabeça de casal, com a inerente modificação do decidido pelo despacho de 04.06.2024.
Mas isso não é uma violação do caso julgado, mas sim a modificação do anteriormente decidido por um dos meios previsto na lei.
Ao contrário do alegado pelo Recorrente, a nomeação da interessada DD como cabeça de casal não tinha que ser impugnada pela via do recurso, pois a lei consagra um outro meio para essa impugnação, que é a dedução do competente incidente de impugnação da competência do cabeça de casal.
Nesta conformidade, a decisão recorrida não merece censura, pelo que improcede a apelação.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas, na vertente de custas de parte, a cargo do Recorrente.
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Guimarães, 18.12.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alcides Rodrigues
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira



[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 567.
[2] Autor e obra citada, pág. 569.
[3] Código de Processo Civil, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 753.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 572.
[5] Disponível em www.dgsi.pt.
[6] A alínea c) do nº 1 do art. 2085º foi revogada pela Lei nº 23/2013, de 05/03.
[7] Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2020, pág. 570, em anotação ao artigo 1104º.
[8] O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 81, igualmente em anotação ao artigo 1104º.