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MAIOR ACOMPANHADO
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
VENDA
Sumário
I – O princípio da adequação formal, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 547.º do CPC deve assegurar sempre a existência de um processo equitativo e tutelar o princípio da confiança, e da lealdade processual. II – A instauração pelo beneficiário no processo de acompanhamento de maior, após a prolação da respetiva sentença, de um procedimento cautelar visando o reconhecimento da propriedade dos bens que indica e a autorização para a sua venda, deve ser entendida, ao abrigo do aludido princípio, como um verdadeiro pedido de autorização judicial, que deve correr por apenso aos referidos autos (art. 1014º, nº 4, do CPC). (Sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Proc. nº 356/24.0T8OLH.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
Nos presentes autos de acompanhamento de maior instaurados pelo Ministério Público, por sentença proferida em 06.06.2024, transitada em julgado, foi decretado o acompanhamento de AA, tendo sido designada como acompanhante BB.
Em 14.08.2024, a acompanhante veio, na qualidade de representante do beneficiário, instaurar “procedimento cautelar comum com pedido de decretamento de inversão do contencioso”, contra Incertos, formulando os seguintes pedidos:
«A) Seja declarada a aquisição dos artigos móveis enumerados no art.º 3.º do presente Requerimento Inicial por USUCAPIÃO, prescrição aquisitiva que se invoca expressamente, nos termos dos artigos 1287.º, 1292.º, 1298.º, alínea b), 1317.º, alínea e) e 1296.º, todos do Código Civil,
B) Seja autorizada ao A./Requerente que possa proceder à venda dos referidos artigos móveis pelos motivos suprarreferidos artigos móveis pelos motivos supra referidos no presente Requerimento Inicial,
C) Seja decretada a Inversão de Contencioso, com a consequente dispensa do requerente/A. de propor a ação principal de que a presente providência estava dependente, e com as consequências previstas no nº1 do artº 371 do Código de Processo Civil.»
Sobre esse requerimento recaiu o despacho proferido em 21.08.2024, que indeferiu liminarmente o peticionado.
Inconformado, o requerente/beneficiário apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. O ora Recorrente possui uma série de veículos e outros acessórios, conforme melhor descritos no art.º 3.º do Requerimento Inicial e não os consegue vender porque não estão em seu nome.
2. Tinha um comprador, caso obtivesse autorização para os vender este verão.
3. O ora aqui Recorrente provaria que é o proprietário legítimo dos referidos artigos e bem como a irreparabilidade do prejuízo de não os poder vender durante os correntes meses, caso não obtivesse a autorização necessária para o efeito.
4. De maneira que, muito sucintamente recurso se expõe, que se pediu que fosse decretada uma sentença judicial que declarasse a aquisição dos referidos artigos por USUCAPIÃO e/ou que se permitisse fazer a venda dos referidos artigos, por causa das razões supracitadas.
5. Dada a simplicidade das questões e para evitar a duplicação de processos e tendo em vista o Princípio da Economia Processual, pediu-se ainda que fosse decretado a inversão do contencioso, com a dispensa do Requerente de instaurar um novo processo com o mesmo objetivo.
6. Ora, não se concorda com o despacho de indeferimento limitar porque o mesmo refere que “(…) no caso dos autos, a instância mostra-se finda, tendo a sentença transitado em julgado (…)” e “(…) verifica-se a impossibilidade legal (…) de ser instaurado qualquer procedimento cautelar”.
7. Qualquer decisão de autorização judicial iria correr por apenso ao presente processo de acompanhamento de maior.
8. Portanto, ainda iria ser (futuro) instaurado esse processo de autorização e portanto este Procedimento Cautelar iria ser instaurado com a categoria de Preliminar a esse processo de autorização; no fundo, seriam dois apensos.
9. Se a razão é essa, a sentença mostra-se errada; se não é essa a razão, a sentença é NULA, porque não está fundamentada e não se entende, porque a mesma não explica o porquê de haver uma impossibilidade legal.
10. Mesmo que houvesse, no nossos entender, deveria o tribunal explicar, ou melhor, fundamentar, o porquê de não enviar, oficiosamente, o pedido em causa, para a forma de processo correta.
11. Não nos parece que fosse uma questão que pudesse perturbar qualquer caminho processual, e dada a simplicidade da questão, pensa-se, até, que o tribunal teria esse poder-dever, no âmbito do seu dever do Princípio da Cooperação, previsto no art.º 7.º do Cód. de Proc. Civil, ou da gestão processual, previsto no art.º 6.º do mesmo diploma legal, previsto em vários artigos que se baseiam num equilíbrio entre a garantia do direito à ação e as respostas oferecidas pelo ordenamento Processual.
12. Para além de ser um despacho inconstitucional, por violar de forma expressa os números 2.º, 4.º e 5.º do art.º 20.º da Constituição da República portuguesa (Acesso ao direito).
13. Viola também o art.º 18.º, n.º 2 da Constituição R.P. pois trata-se de uma desproporção total entre as circunstâncias e a decisão.
14. Pela mesma razão carece de razão o despacho quando refere que “este procedimento também não seria dependente destes autos, mas sim de outra ação que a Requerente pretende ser dispensada de instaurar”, pelas mesmas razões supra articuladas e quando muito, poderá o tribunal suspender o presente procedimento por entender existir uma questão prejudicial, o que também não fez.
15. O ora aqui mandatário foi nomeado defensor do beneficiário e é em seu nome que instaura o presente procedimento, pelo que não precisa de procuração e porque não esta a atuar em nome da acompanhante, mas sim em nome do beneficiário, a acompanhante apenas o representa.
16. Perante todas as razões acima indicadas se entende ser de revogar o despacho de indeferimento liminar e que sejam atendidos os pedidos do Requerente.
Assim,
Termos em que requer a V. Exa. concedam provimento ao presente recurso, revogando o despacho recorrido, que extingue o presente processo, nos termos das presentes alegações, devendo o presente procedimento seguir os seus termos até final, bem como que sejam reconhecidas as ilegalidades e inconstitucionalidade alegadas que violam os artigos 6.º e 7.º do Cód. de Proc. civil e os números 2, 4 e 5 dos art.º 20.º da constituição da Republica Portuguesa, bem como o n.º 2 do art.º 18.º do mesmo diploma legal.»
O Ministério Público contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida e, não sendo esse o entendimento deste Tribunal ad quem, «ainda assim apenas a pretensão deduzida sob a alínea B) poderá prosseguir os seus termos, a qual, nessa eventualidade, deverá ser autuada por apenso aos presentes autos de maior acompanhado, por força do disposto no art. 1014º, n.º 4, do CPC».
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se o tribunal a quo não devia ter indeferido liminarmente o procedimento cautelar deduzido neste processo de acompanhamento de maior.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Os factos e as ocorrências processuais que relevam para o conhecimento do mérito do recurso são os que constam do relatório supra.
O DIREITO
Os procedimentos cautelares vêm regulados nos artigos 362.º a 409.º do Código de Processo Civil[1] e são instrumentos que visam antecipar a tutela definitiva do direito ou a evitar que a demora na tramitação da ação coloque em perigo o seu efeito útil ou a sua eficácia (cfr. artigo 2.º, n.º 2, do mesmo diploma legal).
Por sua vez, como resulta do disposto no artigo 364.º, n.º1, do CPC, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva, sendo que neste último caso o procedimento é apensado aos autos desta (nº 2).
Contrariamente ao defendido pelo recorrente, como bem aduz o Ministério Público na resposta ao recurso, o procedimento cautelar instaurado, pelo menos no que tange às providências requeridas sob as alíneas A) e C), jamais seria dependência do processo de maior acompanhado, mas sim de uma ação declarativa comum, pelo que deveria ter sido instaurado no tribunal em que esta deveria ser proposta, nos termos do artigo 78º, nº 1, al. c) do CPC, ocorrendo, por isso, uma situação de erro na forma de processo, com as consequências previstas no artigo 193º, nº 1, do CPC.
Sustenta ainda o Ministério Público que, face ao alegado pelo recorrente no requerimento apresentado, e visto o disposto no artigo 1268º, nº 1, do Código Civil, o maior acompanhado presume-se titular do direito de propriedade dos bens móveis nele descritos», pelo que «[i]nexiste fundamento para a demanda pela ora recorrente de incertos, não tendo sequer a mesma alegado quaisquer factos relativos à indeterminação dos terceiros, bem como qualquer comportamento destes justificativo do interesse em agir», ocorrendo assim, no entender do Ministério Público, a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir, por falta de carência de tutela judicial».
Independentemente de ocorrer ou não tal exceção, o certo é que nada obstava a que o recorrente/beneficiário instaurasse processo especial de autorização judicial, sendo desnecessária a providência cautelar requerida para assegurar a efetividade do direito de propriedade sobre os bens móveis a que se arroga.
Não se verifica, pois, um dos requisitos do procedimento cautelar comum: o fundado receio de que outrem antes da acção definitiva ser proposta cause lesão grave ou dificilmente reparável (periculum in mora) – artigo 362º, nº 1, do CPC.
Mas é justamente por nada impedir o recorrente de instaurar processo especial de autorização judicial previsto no artigo 1014º do CPC, e atento o pedido formulado sob a alínea B), que entendemos que a solução correta é a da convolação do procedimento cautelar para aquele processo especial.
A isso não deve obstar, ao invés do sustentado pelo Ministério Público, o facto de a providência de autorização de venda dos bens móveis descritos no requerimento em causa ter sido requerida em sede cautelar, pois materialmente trata-se de um verdadeiro pedido de autorização, pelo que não estamos perante «uma pretensão qualitativamente diversa», não se podendo por isso dizer que tal consubstanciaria a violação do disposto no artigo 609º, nº 1, do CPC.
Com efeito, da leitura do requerimento em apreço, resulta que o fim último pretendido pelo recorrente é, sem dúvida, a autorização judicial da venda dos bens móveis em causa, sucedendo apenas que escolheu um meio processual errado com vista à prossecução desse fim.
Ademais, o artigo 7.º do CPC consagra o princípio da cooperação como pedra angular de toda a estrutura do direito processual civil, conforme já se proclamara no diploma preambular do DL n.º 329-A/95 de 12 de dezembro.
Refere o n.º 1 desse artigo que, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Este princípio é fundamental à dinâmica do processo e está intimamente ligado ao dever de gestão processual de que fala o artigo 6º do CPC, na medida em que, ao exercer os deveres de cooperação, o magistrado está, no fundo, a gerir o processo, eliminando os formalismos desnecessários, facilitando e estimulando o envolvimento das partes no procedimento, e esclarecendo dúvidas quanto às questões suscitadas, por forma a garantir a justa composição do litígio, em tempo breve e de modo eficaz.
Por sua vez, o artigo 547º do CPC, que consagra o princípio da adequação formal, estabelece que «[o] juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa a adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo».
Assim, o requerimento em apreço deve ser considerado como um pedido de autorização judicial, devendo ser apensado ao processo de acompanhamento de maior (art. 1014º, nº 4, do CPC) seguindo os respetivos trâmites legais.
Uma última palavra para dizer que, contrariamente ao que se afirmou na decisão recorrida, nada obsta a que o Sr. Advogado CC, nomeado patrono ao beneficiário, não possa ser mandatário da acompanhante, não se vislumbrando no caso qualquer conflito de interesses, desde logo porque aquela atua em representação do beneficiário, não necessitando o referido causídico para aquele efeito, de procuração.
Por conseguinte, o recurso procede, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente com a do recorrente.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o procedimento instaurado pelo beneficiário seja apensado ao processo de acompanhamento de maior, seguindo-se os trâmites previstos no artigo 1014º do CPC.
Sem custas.
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Évora, 5 de dezembro de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Maria Adelaide Domingos
Ana Pessoa
(documento com assinaturas eletrónicas)