INVENTÁRIO APÓS DIVÓRCIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
TITULARIDADE DE SALDOS BANCÁRIOS OU APLICAÇÕES FINANCEIRAS
ÂMBITO DOS BENS A RELACIONAR
CONFERÊNCIA AO PATRIMÓNIO COMUM
Sumário

I – Nas questões relativas à determinação dos bens/direitos que integram o património comum a partilhar a regra é a de que o juiz deve dirimir todas as questões suscitadas controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar os fins do processo.
II – Apenas se justifica a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada, por implicar uma efetiva diminuição das garantias que estão asseguradas às partes no processo comum.
III – Não deve ser remetida para os meios comuns a questão da averiguação da titularidade de saldos bancários ou aplicações financeiras se tal não envolver larga ou extensa averiguação fáctica e se a apreciação da mesma em sede de inventário não acarretar uma redução das normais garantias das partes.
IV – No inventário para a partilha de bens comuns subsequente a divórcio devem ser relacionados não apenas os bens existentes no património coletivo do casal à data da propositura da ação de divórcio (caso os seus efeitos patrimoniais não devam retrotrair a momento anterior), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deva conferir, por lho dever.
V – Assim, deve ser conferido ao património comum do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, dessa forma logrando um enriquecimento do seu património próprio à custa do património coletivo.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I. Relatório

AA instaurou de processo de inventário, na sequência de divórcio decretado na Suíça, contra BB, tendo este sido nomeado cabeça de casal (porque cônjuge mais velho).

No seguimento da apresentação da relação de bens pelo cabeça de casal, veio aquela CC apresentar reclamação contra a relação de bens, alegando, além do mais, a falta de relacionamento de aplicações financeiras e de dinheiro depositado em contas bancárias, utilizado pelo cabeça de casal em proveito próprio.


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O cabeça de casal apresentou resposta à reclamação deduzida, na qual, na parte que aqui interessa, impugnou que tenha feito levamento de dinheiro para lapidar o património comum, alegando que o fez para pagar despesas da responsabilidade de ambos, sendo que determinada quantia pertencia à sua mãe.

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Em 25 de maio de 2023 foi proferida decisão sobre a reclamação contra a relação de bens, na qual foi considerado provado, além do mais, que:

1. Por sentença proferida no dia 14 de fevereiro de 2017, do Tribunal ... e ..., do Cantão de Valais, Suíça, transitada em julgado em 28 de fevereiro de 2017, a qual foi revista e confirmada pela ordem jurídica portuguesa foi dissolvido o casamento celebrado pelos interessados e decretado o divórcio.

2. Tal sentença foi proferida sobre o pedido de divórcio por mútuo consentimento entregue pela cabeça-de-casal e pela interessada e que estava previsto no acordo entregue no dia 7 de dezembro de 2016, assinado pelas partes no dia 16 de novembro de 2016 e concluído na sessão de 13 de fevereiro de 2017.

3. No dia 27 de abril de 2015, no tribunal referido no ponto 1, foi instaurado a 23 de fevereiro de 2015, teve lugar uma audiência de medidas protetoras da união conjugal, na qual os aqui interessados decidiram concluir a transação judicial homologado pelo Juiz nos termos da qual os interessados ficaram autorizados a constituir um domicílio separado para uma duração indeterminada o mais tardar a 15 de maio de 2015, data em que o cabeça de casal deixaria o domicílio conjugal.

4. No dia 23.03.2015 o cabeça de casal procedeu ao resgate de €3.498,65 da aplicação de prazo fixo – deposito especial Banco 1... 3 Anos, para a conta n.º ...01 e transferiu o montante de €3.518,09 para a conta de terceira pessoa, sem o conhecimento da interessada.

(…)

6. A Conta ...33, no Banco 2..., SA, que em 30/09/2014 tinha um saldo de € 27.404, 64 consignado em dois produtos designados por Banco 2... VIDA AFORRO com os números  ...17, no montante de €5.480,93 e  ...17, no montante de €21.923,71;

(…)

Nessa mesma decisão considerou-se não provado, além do mais, que: (2) “O dinheiro existente nas contas referidas nos factos provados e nas aplicações financeiras foram movimentados pelo cabeça de casal para proceder ao pagamento de despesas de manutenção/reparação do bem imóvel dos interessados”.

(…)


*

Na fundamentação desta decisão, na parte relativa à reclamação contra a omissão das contas bancárias, escreveu-se: Assim, cremos que se deve deferir a realização das diligências requeridas pela interessada para se apurar os factos alegados quer na reclamação à relação de bens quer no requerimento superveniente de 21.02.2023, sem prejuízo da matéria de facto já considerada assente.

Após a realização de tais diligências e após o contraditório sobre os elementos obtidos deverá ser proferida decisão unitária acerca da questão da falta de relacionamento de contas e aplicações financeiras.

A final, foi a dita reclamação julgada parcialmente procedente e, a respeito da legada falta de relacionação de contas bancárias, determinou-se a junção da informação requerida pela interessada AA reportada ao período entre 1 de setembro de 2014 até 28 de fevereiro de 2017.


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Foram solicitadas e prestadas as informações bancárias determinadas pela mencionada decisão.

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Em 26 de abril de 2024, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Compulsados estes autos, nomeadamente a Sentença proferida a 25.05.2023 que se debruçou sobre o incidente da Reclamação contra Relação de bens apresentada pela interessada/reclamante DD, tal incidente prosseguiu para conhecimento da falta de relacionamento de depósitos bancários/aplicações financeiras, pois que a interessada/reclamante alegou que o cabeça de casal em data que desconhece, mas entre os anos 2014 a 2017 retirou de forma premeditada e de má fé todo o dinheiro das contas bancárias e produtos financeiros, do qual se apropriou.
Na sequência das informações prestadas pelo Banco de Portugal, veio a interessada/reclamante requerer a fim de serem relacionados todos os saldos dos produtos financeiros e depósitos constituídos antes da separação de facto e resgatados após a separação de facto, com indicação de quem procedeu ao respetivo resgate, e relacionados todos os produtos financeiros constituídos antes da separação de facto e resgatados até 6 meses antes de separação de facto, com indicação de quem procedeu ao respetivo resgate e outras informações que melhor constam do requerimento da interessada junto a 21 de fevereiro de 2022.
A interessada entendeu que tais informações deviam abranger o período desde 1 de julho de 2014 a 28 de fevereiro de 2017.
Já o cabeça de casal entendeu que as informações bancárias apenas poderão ser referentes à data do divórcio.
No âmbito da referida sentença, entendeu-se que se deviam apurar os valores que foram retirados antes da instauração da ação de divórcio (referentes ao período de 6 meses antes da data da instauração da ação) e depois de apurados, deverá o cabeça de casal esclarecer os fundamentos de tais movimentos.
E, em consequência, e desde 25 de maio de 2023, tem sido carreada para os autos uma enorme quantidade de elementos bancários (os quais também dizem respeito a terceiros) – vide todo o expediente junto após os ofícios remetidos ao Banco 2.../Banco 3..., Banco 1..., Banco 4... a 29 de maio de 2023 até ao presente.
Ora, junta que foi a informação solicitada ao longo deste tempo pela interessada/reclamante e dela resulta uma enormidade de movimentações bancárias, cuja autoria e propósito se desconhecendo, não resultando recolhidos factos que estiveram na origem de tais atos, designadamente intenções e o conhecimento das partes, não tendo nem a interessada/reclamante nem o cabeça de casal alegado a que título tais montantes foram movimentos/depósitos e levantados, sendo que tal questão não se apresenta linear, pois que ao tempo de tais atos os interessados eram casados entre si e poderia ter sido ambos a movimentar e o destino ser comum.
Tal matéria, sendo complexa, não poderá ser decida nestes autos de inventários, pois que a sua tramitação revelou-se inadequada, por implicar uma diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum.
As aludidas questões controvertidas para além de já terem levado a uma extensa informação bancária terá que necessariamente levar a uma larga indagação fáctica a qual já não se afigura possível ser realizada nestes autos, dada a ausência de mais articulados no âmbito do incidente contra a relação de bens, pelo que se tornou inconveniente a decisão acerca da falta de relacionamento de tal dinheiro, devendo os interessados serem remetidos para os bens comuns, sendo que a interessada/reclamante poderá fazer uso de todos os elementos bancários entretanto recolhidos e o cabeça de casal poderá pronunciar-se sobre cada um dos movimentos, podendo, ambos, requerer a produção da restante prova.
Atenta a complexidade dos pressupostos fáticos e a insuficiência da sua prova (apenas documental) cuja ampliação e aprofundamento, segundo as soluções plausíveis da questão de direito, se impõe para a descoberta da verdade e da realização da justiça, têm os interessados no inventário de, para poder ser, com rigor e segurança, definida a movimentação de tal valores, ser remetidos para os meios comuns.
Requerendo a questão mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pôde ser objeto de suficiente indagação incidental no processo de inventário, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns, que oferecem garantias processuais acrescidas, permitindo-se às partes, de modo mais ativo e eficaz influenciar a decisão - quer ao nível da alegação fáctica e contradição, quer ao nível das provas quer ao do enquadramento jurídico - nos moldes consagrados para as ações declarativas comuns, não balizadas pelos termos simplificados do incidente, e, assim, ser alcançada uma solução mais justa, por fruto da comparticipação colaborante de todos os interessados – vide neste sentido o teor do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido a 15.12.2021, no âmbito do processo n.º 69/20.1T8VLC-A.P1, disponível em www.dgsi.pt., e que aqui foi seguido de perto.
Embora uma decisão para ser justa tenha de ser empreendida com celeridade, nunca os interesses de celeridade se podem impor, de modo absoluto, à verdade material, sempre desejável, mesmo necessária e a buscar, para alcançar a justiça do caso concreto.
Parece-nos, por isso, que a questão a decidir, não pode ter a sua apreciação em sede de inventário, por implicar uma redução das garantias das partes, devendo, neste caso, o tribunal abster-se de decidir e remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto nos artigos 1105.º e 1093.º do Código de Processo Civil. A tal remessa não obsta que tenham já sido produzidas as diligências probatórias requeridas pelas partes - Veja-se, neste sentido, o ter dos os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.11.2012 e de 15.03.2013; do Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2001 e de 11.12.2014, também disponível em www.dgsi.pt.
Destarte, por o tribunal não dispor dos elementos factuais que permitam definir, com segurança, a questão em apreço, decide-se remeter os interessados para os meios comuns para dirimir a questão em apreço, sem prejuízo do prosseguimento dos autos, com vista à partilha relativamente aos bens que inequivocamente integram o património comum.
Custas do incidente de reclamação contra a relação de bens (na parte já sentenciada e na presenta parte): as custas serão a suportar em partes iguais, por ambos os interessados, nos termos do artigo 527º do CPC, fixando a taxa de justiça em duas UC, face à extensão de processado a que deu causa (artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais).
Valor do incidente: uma vez que não se logrou apurar o montante concreto dos depósitos a relacionar, importa fixar o valor do incidente no valor da causa principal, ou seja, no valor do inventário, tudo nos termos do artigo 306º e 304º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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É desta última decisão, com a qual não se conforma, que a requerente AA vem agora recorrer, formulando as seguintes conclusões:
(…).
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O recorrido cabeça de casal não apresentou contra-alegações.
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II. Questões a decidir
Considerado o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso - artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil - impõe-se aferir se a decisão proferida a 26 de abril de 2024 -  que ordenou “a remessa das partes para os meios comuns em vista a uma decisão final sob o incidente de reclamação contra a relação de bens, na parte referente à invocada falta de relacionamento de depósitos bancários/aplicações financeiras” - deve ser parcialmente revogada e substituída por outra que determine o cabeça de casal recorrido a relacionar, como ativo a partilhar, as quantias correspondentes à conta de depósitos a prazo Banco 1... e às aplicações financeiras a que se referem os pontos 4) e 6) dos factos provados da decisão de 23 de maio de 2023, acrescidas de juros de mora
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III. Fundamentação de facto
A factualidade a atender no âmbito do julgamento do objeto da apelação é a que se alude no relatório do presente Acórdão, à qual se acrescenta a seguinte [decorrente do assento de casamento junto com o requerimento inicial do inventário e das informações bancárias juntas aos autos com o requerimento de reclamação contra a relação de bens, bem como das prestadas na sequência da decisão de 23 de maio de 2023]:
1) Recorrente e recorrida casaram em 20 de fevereiro de 1988, sem precedência de convenção antenupcial;
2) Do extrato bancário Banco 1..., datado de 9 de setembro de 2014, relativo à conta n.º ...01, junto com o requerimento de reclamação contra a relação de bens (referência citius 4687707), consta a aplicação depósito especial Banco 1... 3 anos, no valor de €3.498,65;
3) O Banco Banco 1..., através do ofício de 26 de fevereiro de 2023, com a referência citius 6432219, juntou comprovativo de reforço, em 23 de março de 2015, da conta Poupança Reforma n.º ...01, no montante de €3.518,09 e informou, além do mais, que:
- “a conta n.º ...01 é co titulada pelo Perguntado BB, NIF...67 e Pessoa(s) diversa(s)”;
- “a conta n.º ...01 era co titulada pelo Perguntado e pela Perguntada EE, NIF ...72”;
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4) Através de email de 27 de junho de 2023, com a referência citius 6015126, o Banco 3... juntou aos autos de inventário:
- o extrato bancário do dia 28 de janeiro de 2015, referente à conta à ordem n.º ...33, com o IBAN PT ...013..., do qual consta, no item movimentos de conta entre 14.01.2013 e 28.01.2015, a referência um depósito em numerário no valor de €25.000,00, realizado no dia 14 de janeiro de 2013, e a subscrição, nesse mesmo dia, do produto «Seguro de Vida Novo Contrato n.º  ...17», no valor de €5.000,00 e do produto «Seguro de Vida Novo Contrato n.º  ...18», no valor de €20.000,00;
- extrato bancário de 9 de novembro de 2015, referente à conta à ordem n.º ...02, com o IBAN PT ...025...., do qual consta, no item “detalhe do património financeiro”, a referência à apólice de seguro «GNB Seguros de Vida n.º ...22 (NB Aforro 1ª Série 2012)», com o saldo de €5.731,57, bem como à apólice de seguro «GNB Seguros de Vida n.º ...24 (NB Aforro 1ª Série 2012)», com o saldo de €22.926,29;
- extrato bancário de 30 de janeiro de 2017, referente à mesma conta à ordem n.º ...02, com o IBAN PT ...025...., do qual consta, no item “detalhe do património financeiro”, a referência à apólice de seguro «GNB Seguros de Vida n.º ...22 (NB Aforro 1ª Série 2012)», com o saldo de €6.095,05, bem como à apólice de seguro «GNB Seguros de Vida n.º ...24 (NB Aforro 1ª Série 2012)», com o saldo de €24.380,20;
3- Através de email, com a referência citius 6003957, junto ao processo de inventário a 21 de junho de 2023, a Companhia de Seguros «A... – Companhia de Seguros de Vida SA» prestou, entre outras, as seguintes informações:
(…) “O cabeça de casal BB subscreveu proposta relativa ao NB Aforro 2012 titulado pela apólice ...22, tendo sido apresentado em 27/01/2021 pedido de resgate total, tendo o respetivo saldo, no valor de 7.373,55€, sido pago por transferência bancária para a conta bancária com o IBN  ...23, indicada no pedido de resgate.
O cabeça de casal BB subscreveu proposta relativa ao NB Aforro 2012 titulado pela apólice ...24, tendo sido apresentado em 27/01/2021 pedido de resgate total, tendo o respetivo saldo, no valor de 29.494,19€, sido pago por transferência bancária para a conta bancária com o IBN  ...23 indicada no pedido de resgate.
O pagamento dos respetivos saldos implicou a extinção do NB AFORRO 2012 titulado pela apólice n.º ...22 e do NB AFORRO 2012 titulado pela apólice n.º ...24.
Na carteira de seguros ramo vida da A... não existe qualquer apólice em que o cabeça de casal tenha sido ou seja subscritor, tomador de seguro, segurado, ou beneficiário. (…)
5) Através de email junto ao processo de inventário a 11 de outubro de 2023, com a referência citius 93895361, a Companhia de Seguros «A... – Companhia de Seguros de Vida SA», escreveu: “Na senda do vosso despacho, informamos V.Exas., que os produtos NB Aforro 2012, titulado pela apólice ...22 foi subscrita em 14/01/2013 com o valor investido de 5.000€, e produto titulado pela apólice ...24 foi subscrita em 14/01/2013 com o valor investido de 20.000€.
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IV Fundamentação de Direito

A apelante não se conforma com a decisão recorrida, sustentando que o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, decidir que devem ser relacionados dois dos produtos financeiros identificados no ponto 19º da sua reclamação contra a relação de bens - a aplicação de depósito no banco Banco 1... e a aplicação Banco 2... VIDA AFORRO – pelo que, na parte correspondente, não poderia ter sido decidida a remessa das partes para os meios comuns.

Questiona assim a bondade da decisão que remeteu as partes para os meios comuns somente no que se refere à questão da reclamada obrigação de relacionar o saldo bancário do Banco 1... e o valor das aplicações financeiras Banco 2... VIDA AFORRO, que identifica naquele ponto n.º 19 da sua reclamação contra a relação de bens.

Para o efeito, sustenta que, perante a factualidade que foi considerada como provada e não provada na anterior decisão de 23 de maio de 2023 e face às informações bancárias juntas ao processo na sequência de tal decisão, o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, determinar o cabeça de casal, aqui apelado, a relacionar o valor correspondente aos dois mencionados produtos financeiros.

Conhecidos os fundamentos da decisão apelada e, bem assim, os razões da oposição/crítica que à mesma dirige a recorrente, vejamos de seguida se assiste razão a esta.

Antes, porém, cumpre fazer uma breve referência às disposições legais em que se fundou a decisão proferida pelo despacho em crise.

O artigo 1093.º do Código de Processo Civil (com e epígrafe outras questões prejudiciais) dispõe:

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha».

Por seu turno, o art.º 1.105º do Código de Processo Civil (com a epígrafe tramitação subsequente) dispõe:

1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º

4 - A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil.

5 - Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens.

(…)

Em anotação ao (novo) regime do processo de inventário, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres escrevem o seguinte[1]: “O novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1,b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes.

A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.


E, em anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil, os citados autores consignam[2]: “As questões prejudiciais abrangidas pelo nº 1 são, fundamentalmente, aquelas que, não dizendo respeito à definição dos direitos sucessórios das partes do processo, se repercutam na determinação quer dos bens que integram o acervo hereditário, quer do passivo pelo qual é responsável o património a partilhar. O nº 1 abrange, por exemplo, os casos em que certo bem foi relacionado pelo cabeça-de-casal como pertencendo à herança ou como tendo determinado conteúdo ou objecto material, mas contra essa relacionação foi deduzida reclamação ou impugnação por qualquer interessado (artº 1104º, nº 1, al. d)) (…)

Sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo hereditário ou o passivo que onera este acervo, a regra é a de que o juiz – como decorrência do principio segundo qual o Tribunal competente para a ação é também competente para conhecer os incidentes que nela se levantam (art. 91º, nº 1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e convertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária.

No entanto, a apreciação incidental, no âmbito do processo de inventário, das questões atinentes à determinação dos bens que integram o património hereditário ou ao passivo deste património nem sempre será possível ou conveniente: a) O n.º 1 admite que o juiz se possa abster de decidir incidentalmente a questão litigiosa e remeter as partes para os meios comuns, quando a complexidade da matérias de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificadas e às limitações probatórias (que quase só não existem para a prova documental) que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto nos – arts. 1105º, n.º 3, e 1110º, n.º 1, al. a).

Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada. Para que isso suceda é necessário que a tramitação do processo implique uma efetiva diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum (n.º 1). A diminuição destas garantias reflete-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam larga indagação factual ou probatória”.

E, nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil[3]: “[q]ualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.

(…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns.

(…) Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”.

A “resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário. Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns”.

E mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.

A decisão incidental das reclamações em sede de inventário não pressupõe necessariamente que as questões suscitadas possam ser objeto, pela sua simplicidade, de uma indagação sumária, mediante apenas certos tipos de prova, maxime documental, seguida de decisão imediata: a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo no entanto, excecionalmente, em caso de particular complexidade da matéria de facto a apreciar – e para evitar redução das garantias das partes – usar da possibilidade prevista no estatuído no n.º 1 do art.º 1093º do Código de Processo Civil[4].

E faz sentido que assim seja, que seja destacada na lei a complexidade da matéria de facto a apreciar – e não a matéria jurídica – dado que é a prova da matéria de facto subjacente às questões suscitadas (que as partes têm o ónus de alegar e provar) que pode tornar-se mais difícil para as partes, com as necessárias limitações das provas a produzir no incidente do processo de inventário, questão também realçada no n.º 1 do art.º 1093º do CPC, de que a inconveniência da apreciação da matéria de facto implique a redução das garantias das partes[5].

Ora, no caso concreto, está em causa a reclamação contra a relação de bens, mais especificamente discutindo-se necessidade de relacionar o saldo bancário de uma conta do Banco 1... e os produtos financeiros Banco 2... VIDA AFORRO, cuja falta (de relacionação) foi acusada pela ora recorrente, na sua reclamação contra a relação de bens.

E o certo é que, na decisão de 25 de maio de 2023 (já transitada em julgado) que se pronunciou (parcialmente) sobre a decisão contra a relação de bens, provou-se que:

- No dia 23.03.2015 o cabeça de casal procedeu ao resgate de €3.498,65 da aplicação de prazo fixo – deposito especial Banco 1... 3 Anos, para a conta n.º ...01 e transferiu o montante de €3.518,09 para a conta de terceira pessoa, sem o conhecimento da interessada (facto n.º 4 da mesma decisão).

- A Conta ...33, no Banco 2..., SA, que em 30/09/2014 tinha um saldo de € 27.404,64 consignado em dois produtos designados por Banco 2... VIDA AFORRO com os números  ...17, no montante de €5.480,93 e  ...17, no montante de €21.923,71 (facto n.º 6 da dita decisão);

Por outro lado, na resposta à reclamação contra a relação de bens, o cabeça de casal, ora recorrido, não alegou quaisquer factos que permitissem concluir que o dinheiro depositado na mencionada conta Banco 1... e aplicado nos mencionados produtos financeiros Banco 2... estava excluído da comunhão conjugal, limitando-se a referir que “antes de ser decretado o divórcio existiram movimentos a débito em contas de depósitos bancários, para fazer face a despesas correntes que eram da responsabilidade de ambos os cônjuges, nomeadamente obras de reparação e conservação na casa sita em Portugal”, factualidade essa que, naquela mesma decisão, foi considerada como não provada.

Assim sendo, perante a matéria de facto alegada, restaria apenas apurar a natureza da aplicação financeira  dos produtos designados Banco 2... Vida Aforro (o que, como melhor se verá adiante, será essencial para determinar de bem comum ou antes de bem próprio subscritor/beneficiário dos mesmos) e determinar se o cabeça de casal se apropriou ilegitimamente das correspondentes quantias, o que, em nosso entender.

Salvo melhor opinião, tal tarefa poderá bastar-se com a análise de prova documental. Seja através dos documentos bancários que já se encontram juntos ao autos de inventário (e cuja veracidade não foi colocada em causa por qualquer das partes) -  mormente aqueles que permitirão aferir as datas dos levantamentos/resgates das quantias em causa e a titularidade das contas bancárias onde, posteriormente a isso, foram os correspondentes valores depositados –  seja por meio de outros elementos documentais que poderão ainda ser solicitados ao Banco 3... e à Seguradora A..., tais como os contratos – e respetivas cláusulas – que titulam os produtos financeiros associados à identificada conta Banco 2..., de forma a permitir a qualificação jurídica dos mesmos.

Por conseguinte, não subscrevemos o entendimento seguido pela Sra. Juíza a quo de que as questões a apreciar, na parte que concerne ao aludido depósito Banco 1... e aos produtos financeiros Banco 2..., envolvam uma extensa e complexa indagação fáctica.

E, salvo o devido respeito, também não subscrevemos o seu entendimento de que a decisão dessas concretas questões no inventário pendente reduziria as garantias das partes.

Por isso, concluímos que a apreciação da sobredita questão da relacionação, ou não, dos valores atinentes ao identificado depósito no Banco 1... e aos seguros de Vida Banco 2... AFORRO não poderia ter merecido a mesma solução que a decisão recorrida deu às demais questões relacionadas com a alegada falta de relacionação de outras contas bancárias e aplicações financeiras (de cuja bondade não cabe aqui apreciar, por estar excluída do objeto do recurso), sendo, por isso, de revogar a decisão que relegou as partes para os meios processuais comuns, na parte concernente às questões que a recorrente colocou à apreciação deste Tribunal.

Acontece que, nas conclusões do seu recurso, a recorrente não se limitava a requerer a revogação da decisão recorrida (na parte atinente ao objeto do recurso por si delimitado), pugnando também pela substituição daquela decisão – por acórdão desta Relação - que determine o recorrido/cabeça de casal a relacionar os valores a que se referem o mencionados depósito bancário e aplicações financeiras, acrescidos de juros de mora contados desde a data do resgate dos mesmos.

E, de facto, a regra no nosso Código de Processo Civil em matéria de recursos é o da substituição (e não o da cassação), determinando a lei (art.º 665º nº 2 do Código de Processo Civil) que “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.

Vejamos, então, se assiste razão à recorrente quando, nesta sede, reclama que a decisão recorrida deve ser substituída por uma outra que determine que o cabeça de casal relacione o valor de €3.518,09 que, em 23 de março de 2023, retirou da conta à ordem do Banco 1... com o n.º ...01, acrescido de juros de mora contados desde a data daquele levantamento e, bem assim, o valor das apólices de seguro resgatadas, em 27 de janeiro de 2021, pelo mesmo cabeça de casal, pelos montantes de €7.373,55 e €29.491,19, no total de €36.867,74, acrescido de juros de mora contados desde a data de tal resgate.

Nos termos do n.º 1 do artigo 1798.º do Código Civil (Data em que se produzem os efeitos do divórcio), «Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.».

No caso em apreço, o pedido de divórcio por mútuo consentimento - que deu origem à sentença do Tribunal Suíço que, em 14 de fevereiro de 2017, decretou o divórcio entre as partes - foi entregue pelo recorrente e pela recorrida no dia 7 de dezembro de 2016.

Não foi alegado ter sido requerido por qualquer dos cônjuges que a cessação dos efeitos patrimoniais do casamento retroajam a anterior data em que esteja provada a cessação da coabitação, razão pela qual entendemos ser, para este efeito, inócuo o anterior acordo alcançado em transação homologado pelo juiz no âmbito da medida de proteção da união conjugal que correu termos no tribunal suíço (conforme resultou provado na sentença de maio de 2015), tanto mais que nada consta dos autos que permita concluir que tal decisão foi objeto de revisão e confirmação, de forma a produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa.

Destarte, para o efeito que aqui interessa – a determinação dos bens comuns a partilhar entre os ex-cônjuges - os bens/direitos comuns a considerar na partilha serão aqueles que o eram na data em que foi instaurada a ação de divórcio, neste caso, os existentes em 7 de dezembro de 2016.
Assim, no que diz respeito à mencionada conta Banco 1... ...01, desde logo, há que ter em conta que o cabeça de casal não questionou a transferência do montante de €3.518,09 da mencionada conta, que levou a cabo em 23 de março de 2015, após resgatar a aplicação «prazo fixo – depósito especial Banco 1... 3 anos» a ela associada, sendo que tal factualidade foi considerada provada na decisão 25 de maio de 2023, já transitada em julgado.

As informações posteriormente obtidas junto do Banco 1..., acima identificadas – que não foram questionadas por qualquer das partes – conjugadas entre si e com os factos que a decisão de 25 de maio de 2023 considerou demonstrados, permitem concluir que:

- Em 23 de março de 2015, em consequência do resgate da aplicação «prazo fixo – depósito especial Banco 1... 3 anos», foi creditado na conta a conta Banco 1... n.º ...01, de que eram contitulares a recorrente e o recorrido, o valor de €3.498,65;

- Nesse mesmo dia (23 de março de 2015), foi pelo recorrido transferido o valor de €3.519,09 da mencionada conta à ordem n.º ...01 para a conta Poupança Reforma n.º ...01, titulada pelo recorrido BB e outras pessoas que não a aqui recorrente;

A referida quantia de €3.518,08 fazia assim parte de uma conta bancária da titularidade da recorrente e do recorrido, que, nos termos prescritos do artigo 1725.º do Código Civil, se se considera bem comum.

Mas como se tratava de uma conta titulada por ambos os ex-cônjuges considera-se que a respetiva quantia é de ambos em partes iguais porque não existem – nem foram alegados - elementos factuais que mostrem ser de outro modo.

Ao saldo das contas bancárias aplica-se o disposto no art.º 516º, do Código Civil, e daí que nas relações internas entre os vários contitulares presume-se que todos têm uma pretensão a idêntica percentagem do saldo, quer este seja positivo, quer seja negativo[6].

Assim também dispõe o art.º 166º, nº4, alínea d) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº298/92 de 31.12., “na ausência de disposição legal em contrário, presumem-se pertencerem em partes iguais aos titulares os saldos das contas colectivas, conjuntas ou solidárias.”

No caso vertente, não tendo o recorrido ilidido esta presunção – nem sequer alegado factos que a tal o permitissem - impõe-se concluir que metade do dinheiro depositado na referida conta pertencia à recorrente.

É certo que o recorrido alegou que tal dinheiro foi por ele utilizado para fazer face a despesas correntes, da responsabilidade de ambos os cônjuges, designadamente, obras de reparação e conservação da casa sita em Portugal. Contudo, como se disse, tal factualidade resultou expressamente não provada na aludida decisão de 23 de maio de 2023.

Tal significa que cabeça de casal recorrido, ao proceder à transferência do sobredito montante daquela conta para uma outra da qual a recorrente não era titular, se apropriou de dinheiro que em parte não lhe pertencia.

Não podemos, outrossim, concluir que a transferência daquele montante para uma conta de cuja titularidade está a recorrente excluída, sem o conhecimento desta, configura uma atuação contida no âmbito os poderes de administração dos bens comuns do casal de que dispunha (cujas regras estão previstas no art.º 1678º do Código Civil).

“Não pode, com efeito, qualificar-se de administração o acto de apropriação de dinheiro depositado em contas solidárias, não podendo o Autor/recorrente ignorar que metade não lhe pertencia”[7]

Por outro lado, estabelece o artigo 1689º, do Código Civil (Partilha do casal. Pagamento de dívidas) que:

1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património;

2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes;

3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

Do texto desta norma decorre que o património comum a partilhar deve ser definido não só pelo que nele existir no momento da dissolução do matrimónio, mas também por aquilo que cada um dos cônjuges lhe deve conferir, por lho dever.

Consequentemente, como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-03-2024[8], “a partilha a realizar por dissolução do casamento não se limita aos bens identificados no património colectivo do casal, ao tempo da propositura da acção de divórcio; nela também se há-de levar em conta aquilo que cada um dos cônjuges dever a esse património. Essa é a letra da norma constante do art. 1689º, nº 1 do CC.- Neste sentido também o Acórdão do T. Rel. Porto de 16 /4/2013, proc. nº 133/08.5TBMGD-C.P1, Relator. Rui Manuel Correia Moreira disponível em www.dgsi.pt. No caso em apreço, tendo-se apurado que apenas um mês antes (e o último levantamento dias antes) da instauração da acção de divórcio o autor, sem que tenha alegado ou provado qualquer motivo para o efeito, levantou e fez suas avultadas quantias de contas solidárias do casal, esse comportamento deve considerar-se como doloso e um enriquecimento injustificado à custa do património dos dois membros do ex-casal, empobrecendo a ré”.

Conforme o referido Acórdão do TRP de 16-04-2013, “(d)eve ser conferido ao património colectivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património à custa do património colectivo». E deve ser-lhe dada a possibilidade de o fazer no processo de inventário se o processo estiver pendente, sem necessidade de instaurar uma ação para o efeito.

Com efeito - continuando a citar o mencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-04-2013, “solução defendida parte do texto da norma prevista pelo artigo 1689, n.º 1 do C. Civil (…) devem operar-se compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro; e a relativa à consequência deste princípio, segundo a qual o cônjuge que utilizou bens ou valores comuns deverá, no momento da partilha, compensar o património comum pelo valor actualizado correspondente; esses bens ou valores devem ser objecto de relacionação de modo a permitir aquela compensação…».

Transpondo as antecedentes considerações para o caso em apreço, concluímos que deve o recorrido cabeça de casal incluir aquela quantia na relação de bens comuns por forma a possibilitar aquela compensação.

Assim sendo, procede nesta parte o recurso, o que implica que se acrescente na relação de bens uma verba com este teor: «Crédito do património comum sobre o cabeça-de-casal no montante de €3.519,09, correspondente ao valor por ele transferido da conta Banco 1... nº ...01 para a conta Poupança Reforma n.º ...01, em 23 de março de 2015.

Pretendia a recorrente ser obrigação do cabeça de casal relacionar o montante dos juros de mora que a mencionada quantia venceu desde a data daquela transferência.

Contudo, não alega o fundamento legal para tal pretensão, o qual também não se vislumbra, na medida em que, neste momento, a obrigação a cargo do cabeça de casal recorrido é tão só a de relacionar o mencionado crédito dos bens comuns a fim de o mesmo ser considerado na partilha. Já não uma obrigação de pagamento da mencionada quantia, cujo incumprimento, esse sim, poderia gerar a indemnização moratória prevista no art.º 806º do Código Civil.


*

Vejamos agora se a decisão a proferir deve também determinar que o cabeça de casal recorrido a relacionar os valores €7.373,55 e €29.491,19, no total de €36.867,74, proveniente do resgate das apólices de seguro acima identificadas, ocorrido em 27 de janeiro de 2021, acrescidos de juros de mora contados desde a data de tal resgate.

É verdade que o cabeça de casal recorrido não colocou em causa a existência dos dois produtos designados Banco 2... Vida Aforro, com os saldos, à data de 30 de setembro de 2014, de €27.404,64 e de €5.480,93 (a que se refere o ponto 6º dos factos provados da mesma sentença).

O que sustentou, admitindo que movimentou tais quantias, foi que tal dinheiro foi por ele utilizado para fazer face a despesas correntes, da responsabilidade de ambos os cônjuges, designadamente, obras de reparação e conservação da casa sita em Portugal, factualidade que, como vimos, resultou expressamente não provada na mesma decisão.

As informações posteriormente obtidas do Banco 3... e da Companhia de Seguros «A... – Companhia de Seguros Vida, SA», acima identificadas – que não foram questionadas por qualquer das partes – conjugadas entre si e com os factos que a decisão de 25 de maio de 2023 considerou demonstrados, permitem, concluir que:
- Os produtos «Seguro de Vida Novo Contrato n.º  ...17» e «Seguro de Vida Novo Contrato n.º  ...18», ambos subscritos e, 14 de janeiro de 2013, com os valores de €5.000,00 e €20.000,00, respetivamente, associados à conta do Banco 2..., SA n.º ...33, pelo menos desde 9 de novembro de 2015, passaram a estar associados à conta à ordem ... n.º ...02, com a designação apólice de seguro «GNB Seguros de Vida n.º ...22 (NB Aforro 1ª Série 2012 e apólice de seguro «GNB Seguros de Vida n.º ...24 (NB Aforro 1ª Série 2012)», respetivamente;
- O recorrido BB apresentou, em 27 de janeiro de 2021, pedido de resgate total de ambas as apólices, tendo os respetivos saldos, no valor de €7.373,55€ e de €29.494,19, sido pago por transferência bancária para a conta bancária com o IBN  ...23, indicada no pedido de resgate.

Não há, pois, dúvidas de que tais produtos financeiros foram constituídos, pelo recorrido, na vigência do casamento (e em momento anterior ao da cessação dos efeitos patrimoniais do mesmo) e vieram a ser resgatados, em benefício exclusivo do recorrido, já depois do divórcio.

É também verdade que a questão de saber se o dinheiro com que tais aplicações foram constituídas, em janeiro de 2014, era dinheiro próprio do recorrido ou da recorrente, ou antes integrava o património comum do casal, tem uma resposta presumida pela lei (art.º 1725º do Código Civil), no sentido de se tratar de um bem comum.

Como vimos, o recorrido, na resposta à reclamação de bens não alegou factos suscetíveis de ilidir tal presunção.

Contudo, daqui não se extrai, sem mais, a conclusão de que os ditos produtos financeiros, subscritos pelo recorrido, e o valor proveniente do respetivo resgate constituam bens comuns.

Para que assim fosse necessário seria que dos autos constassem os contratos escritos que titulam a subscrição daqueles produtos financeiros - incluindo as cláusulas aos mesmos aplicáveis - tudo de molde a permitir concluir se os mesmos configuram, ou não, um seguro de vida (como parece indicar a respetiva designação), hipótese em que, por força do disposto no art.º 1733º, al. e) do Código Civil,  se devem considerar excluídos da comunhão[9].

Ora, analisados os elementos documentais que constam dos autos, designadamente as informações prestadas pelo Banco 3... e pela entidade Seguradora «A... – Companhia de Seguros de Vida, SA» não encontramos tais contratos e cláusulas (pese embora, na decisão de 25 de maio de 2023, o Tribunal a quo haja determinado àquela seguradora a junção dos “contratos”).

É certo que se vier a concluir-se que tais aplicações assumem a natureza de um seguro de vida – e que, por isso, o valor que veio a pago ao recorrido não integrava a comunhão conjugal – deverá o recorrido, beneficiário do seguro, no momento da partilha, compensar o património comum pelo valor correspondente, uma vez que está demonstrado que os valores utilizados para subscrição daquelas eram comuns[10].

Todavia, nem por isso deixa de ser essencial, no caso em apreço, a determinação, em concreto, da natureza jurídica daquelas aplicações financeiras. É que, dada a valorização dos mesmas, o resultado de tal averiguação será naturalmente diferente consoante se entenda que se deve relacionar os valores pelas quais tais aplicações foram resgatadas ou somente o crédito do património comum correspondente ao valor (comum) utilizado para a respetiva subscrição.

No fundo, faltam apurar factos essenciais à qualificação como bem próprio ou comum das referidas aplicações financeiras.

Entendemos, por isso, não poder ser decidida neste Tribunal da Relação a questão do relacionamento como bem comum do casal dos valores provenientes do resgate das mesmas, pois tal equivaleria a efetuar no tribunal de recurso um verdadeiro julgamento (sobretudo da matéria de facto), o que não se afigura compatível com a função de um tribunal de recurso (que levaria também a suprimir na matéria um grau de jurisdição).

A decisão sobre a questão suscitada deverá ser proferida no tribunal recorrido após a produção das diligências de prova que se afigurem necessárias e convenientes, designadamente ordenando a junção dos contratos que titularam a subscrição daqueles produtos financeiros e de todas as respetivas cláusulas.


*

Das custas

De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito, acrescentando o n.º 2 que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Como a apelação foi julgada procedente, as custas ficam a cargo do recorrido.


*
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):
(…).

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III. Decisão

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação e, consequentemente,

- revoga-se a decisão recorrida, na parte ordenou a remessa para os meios processuais comuns da questão atinente à falta de relacionação do saldo da conta Banco 1... n.º ...01, e determina-se que o recorrido/cabeça de casal relacione no ativo da relação de bens a partilhar, como crédito do património comum, o valor de €3.518.09;

- revoga-se a decisão recorrida na parte que remeteu para os meios processuais comuns o conhecimento questão da falta de relacionação das aplicações financeiras designadas Banco 2... Vida Aforro, associadas à conta Banco 2... n.º ...33, determinando-se que a mesma seja decida pelo Tribunal de primeira instância após as necessárias diligencias de prova, designadamente, ordenando a junção das cópias dos contratos que titulam tais aplicações financeiras.


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Custas da apelação a cargo do apelado.

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Coimbra, 11 de dezembro de 2024

Com assinatura digital:

Hugo Meireles

Anabela Marques Ferreira

Luís Manuel Carvalho Ricardo

(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)


[1] O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 10/11.
[2] Obra citada, pags. 48 a 51.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 547
[4] Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2004, p. 268, em anotação ao art. 1350º do CPC de 1961.
[5] Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/02/2023, processo n.º 176/18.0T8VPC-D.G1 (relatora Maria Amália Santos), in www.dgsi.pt.
[6] Cf. entre outros, o acórdão do STJ de 24.05.2022, processo n.º 4482/21. T8LSB.L1.S1, in jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (https://juris.stj.pt.)

[7] Acórdão do STJ de 29-10-2024, processo 431/19.2T8AND.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[8] Processo n.º 431/19.2T8AND.P1 (Relatora Ana Vieira), in www.dgsi.pt

[9] Como se diz no sumário do Acórdão desta Relação de 25-06-2019, processo n.º  1472/17.0T8GRD.C1 (Relator Luís Cravo), in www.dgsi.pt: I.“O contrato de seguro pode assumir, particularmente nos dias de hoje, uma multiplicidade de especialidades, de entre elas também uma componente de aforro, sem por isso perder essa mesma qualidade ou natureza” (…).
[10] Cf. entre outros o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de Junho de 2011, Processo n.º 3434/08.9TBGMR.G1 (Relator: Manso Raínho) e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-11-2011, processo n.º nº 4931/10.1TBLRA.C1 (Relator Henrique Antunes), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.