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ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
ADMISSIBILIDADE
CONVOLAÇÃO DA PRETENSÃO MATERIAL
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
PRESUNÇÃO DE IGUALDADE DE QUOTAS
Sumário
«1. Na ação de divisão de coisa comum é de admitir a cumulação pelo autor do pedido próprio da ação de divisão de coisa comum com pedido que deve ser tramitado em processo comum – pedido de condenação da ré no pagamento de quantias pecuniárias despendidas para aquisição do bem indiviso. 2. O juiz pode autorizar a cumulação de pedidos quando a sua apreciação conjunta seja conveniente ou indispensável para a justa composição do litígio (artigo 37/2 do CPC). 3. Não existe qualquer incompatibilidade na apreciação dos dois pedidos formulados pelo autor pois não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão. 4. Tendo o autor formulado, de modo impreciso, a sua pretensão- pois entendeu que os valores por si despendidos para aquisição dos imóveis em compropriedade, deveriam majorar as duas quotas de 50% sobre os imóveis- quando o que pretende é ser ressarcido dos valores que suportou para aquisição dos imóveis além da sua quota de 50%, pode e deve o tribunal, ao abrigo do dever de gestão processual que lhe é atribuído pelo artigo 6 do CPC, interpretar e corrigir a qualificação jurídica dessa pretensão, sendo reconfigurada para um crédito autónomo sem repercussão na quantificação da quota do autor. 5. Ao fazer-se esta convolação, respeita-se a pretensão material de fundo do autor: ser ressarcido dos valores que despendeu além da sua quota. 6. O regime legal correspondente à "presunção" prevista no referido artigo 1403/2 do Código Civil não se reconduz ao regime legal das presunções propriamente ditas, não sendo por isso de considerar a aplicabilidade do preceituado no artigo 350/2 do Código Civil para concluir ser aquela uma presunção relativa, e sobretudo não havendo lugar à admissibilidade da produção de outra forma de prova em contrário, para além da que possa decorrer do título constitutivo. 7. O afastamento da "presunção" de igualdade das quotas, que decorre da previsão do n° 2 do artigo 1403 do Código Civil só poderá resultar dos elementos constantes do próprio título de aquisição.
Texto Integral
Acordam os Juízes que compõem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório A…, autor nestes autos, interpôs o presente recurso de apelação da sentença proferida em 13 de março de 2024, admitido com efeito suspensivo e subida nos próprios autos, na parte - alínea B) - que “fixou relativamente a cada imóvel supra identificado, os quinhões de cada consorte (A… e B…) em metade para cada um”. Alega o recorrente que é na ação de divisão de coisa comum, nomeadamente na sua fase declarativa, que pode, e deve fazer valer o seu direito a quota quantitativamente diferente da recorrida, por ter comparticipado com montantes manifestamente diferentes na aquisição dos imóveis. Entende que a decisão deve ser revogada, na parte “Da fixação dos quinhões de cada consorte”, devendo ser ordenado ao tribunal a quo, nos termos do artigo 926/3 do CPC, que mande seguir os termos do processo comum, apreciando a matéria de facto alegada, e bem assim a prova documental e testemunhal requerida e a produzir, dando assim oportunidade ao recorrente de afastar a presunção legal de igualdade das quotas dos comproprietários.
O recorrente termina as suas alegações, alinhando as seguintes conclusões: “1. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da Decisão Sumária proferida a fls…, com a Ref.ª 433715844, em 14 de março de 2024, nos supra identificados autos, julgando improcedente a pretensão, deduzida pelo Requerente, ora Apelante, na sua petição inicial no sentido de ser decidida a questão da diferença quantitativa das quotas dos comproprietários, com a fixação da quota do Requerente e da quota da Requerida em medida diversa da de metade para cada um deles, nos termos do n.º 2 do artigo 1403.º do CPC. Assim, 2. A Apelada, de forma abusiva, pretende que lhe seja atribuído um quinhão de 50% dos imóveis objeto de divisão nos presentes autos, pese embora a sua contribuição para a aquisição dos mesmos ter sido manifestamente diminuta em comparação com a contribuição feita pelo Apelante. 3. A conduta adotada pela Apelada, tal como alegado em sede de petição inicial (o que seria desnecessário por se tratar de matéria de conhecimento oficioso), consubstancia uma situação clara de abuso de direito, tal como definida no artigo 334.º do Código Civil, que o Tribunal, ao não ter apreciado a questão, violou. 4. O Tribunal a quo violou a norma contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, pelo que deverá a Decisão Sumária Apelada declarada nula por omissão de pronúncia. Ainda, 5. O Apelante nos presentes autos suscitou a questão da diversidade quantitativa das quotas entre os consortes, tendo em conta que é profundamente desigual o montante que cada um deles suportou para a aquisição dos mesmos, bem como para o pagamento de despesas e impostos decorrentes da qualidade de comproprietários e respetivos empréstimos, conforme prova documental produzida e junta à petição inicial, declarações e prova testemunhal requeridas no mesmo articulado. 6. Pese embora a proporção de cada um não ter sido realisticamente refletida nas escrituras celebradas, atribuir a cada um dos imóveis, os quinhões de cada consorte em metade para cada um, é de uma profunda injustiça e obrigaria, se a decisão em crise se mantivesse, o Apelante a recorrer a um novo processo. 7. Com efeito, os direitos dos comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, mas as quotas desses comproprietários podem ser quantitativamente diferentes, conforme estabelece o artigo 1403.º, n.º 2, 1ª parte Código Civil e a Sentença a quo reconhece. 8. As quotas dos consortes presumem-se quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo, conforme indica o artigo 1403.º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil e a sentença em crise refere. 9. No entanto, a posição adotada pelo Tribunal a quo viola as normas previstas nos artigos 9.º e 350.º do Código Civil, fazendo uma incorreta interpretação do espírito da lei, tratando como inilidível uma presunção que não o é. 10. Nada na norma indica que esta seja uma presunção legal absoluta, sem admissão de prova em contrário. 11. Nos termos do artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil – igualmente violado pela sentença em crise - “As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”. 12. Na Decisão Sumária que ora se recorre, apenas é admitida como prova em contrário da presunção, prevista no n.º 2 do artigo 1403.º do Código Civil, os títulos constitutivos dos imóveis em questão, não existindo, na Lei, qualquer sustentação que alicerce tal entendimento, sendo certo que tal interpretação cria um fosso e uma lacuna que não permite uma atribuição real e efetiva dos quinhões a cada consorte, pois as suas quotas são, indubitavelmente, quantitativamente diferentes. 13. A presunção legal de igualdade de quotas no caso de o título constitutivo da compropriedade ser omisso a respeito da diversidade de quotas, é uma presunção relativa (juris tantum) que admite prova em contrário, nos termos do artigo 350º, n.º 2, do Código Civil. 14. Nessa medida, o Tribunal a quo violou igualmente a norma do artigo 350º, n.º 2, do Código Civil, que impunha que ao Apelante fosse possível fazer prova da sua alegação. 15. A Decisão Sumária Apelada, não apreciou, nem valorou, e deveria tê-lo feito, a matéria de facto alegada nem a prova apresentada e requerida pelo Apelante, limitando- se a fixar a quota-parte de cada consorte em 50%. 16. Ou seja, a Decisão Sumária de que se recorre restringe a aplicação da presunção prevista no artigo 1403.º, n.º 2, do Código Civil, tratando-a como uma presunção juris et de jure, que não admite prova em contrário, o que não tem cabimento nem na letra nem no espírito da norma em causa, que a sentença a quo violou. 17. Entende o Apelante que, na ação de divisão de coisa comum, na sua fase declarativa, pode fazer valer o seu direito a ter uma quota quantitativamente diferente da da Apelada, por ter comparticipado com montantes manifestamente superiores na aquisição dos imóveis. 18. Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.11.1996, “Na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, pode discutir-se a proporção dos quinhões de cada comproprietário”. 19. Entende o Apelante que a Decisão Apelada deve ser revogada, na parte “Da fixação dos quinhões de cada Consorte”, devendo ao Tribunal a quo ser ordenado, nos termos do disposto do n.º 3, do artigo 926.º, do CPC, a mandar seguir os termos do processo comum, apreciando a matéria de facto alegada e, bem assim, a prova documental e testemunhal requerida e a produzir, seguindo a tramitação de processo comum ordinário, dando, assim, oportunidade ao Apelante de afastar a presunção legal de igualdade de quotas dos comproprietários, como é de direito. 20. Sem conceder, as tornas devidas terão sempre de ser calculadas tendo em conta a contribuição efetiva de cada uma das partes para a aquisição dos imóveis objeto dos autos, através da compensação de créditos, pois, só assim, se alcançará uma justa composição do litígio. 21. O Tribunal a quo, ao abrigo do dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do CPC, deveria ter reconfigurado o pedido efetuado pelo Apelante num crédito autónomo, de forma a ser o Apelante ressarcido dos valores que despendeu além da sua quota. 22. Em abono, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13.07.2021, Processo n.º 967/20.2T8CSC.L1-7: “Ou seja: é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular. (…) Ora, no caso em apreço, a ré pretende ser ressarcida dos valores das amortizações e das obras de melhoramento na parte em que suportou encargos além da sua quota de 50%. Por imprecisão terminológica e confusão conceitual, a ré entende que tais valores devem majorar a sua quota de 50% sobre o imóvel. Todavia, nos termos da análise que se acaba de fazer, tal pedido pode ser interpretado pelo tribunal e ser corrigida a sua qualificação jurídica, sendo reconfigurado para um crédito autónomo sem repercussão na quantificação da quota da ré, o que se determina. Ao fazer-se esta convolação, respeita-se a pretensão material de fundo da Ré: ser ressarcida dos valores que despendeu além da sua quota.” 23. O Tribunal a quo violou a norma contida no artigo 6.º do CPC, limitando-se a fixar a quota de cada consorte em 50%, ignorando de forma absoluta a realidade contributiva de cada comproprietário, no que à aquisição dos imóveis diz respeito, obrigando o Apelante a recorrer a uma outra ação cível para fazer face à sua pretensão. 24. Entende o Apelante que os presentes autos permitem não só decidir a questão relativa à divisão dos imóveis, como também permitem discutir e decidir todas as questões que envolvem os imóveis, pois a apreciação de tais questões é indispensável para a justa composição do litígio, devendo ser determinado que os autos sigam os termos do processo comum ao abrigo dos artigos 37.º, n.º 2 e 3 e 926.º n.º 3, ambos do CPC, de forma a que o Tribunal a quo possa analisar e decidir sobre toda a matéria de facto alegada e prova apresentada. Termos em que, sempre com o douto suprimento de v. exas., por estar em tempo, ser admissível e ter legitimidade, deve o presente recurso ser admitido, apreciado e julgado de acordo com as conclusões precedentes, e, em consequência, ser a decisão sumária Apelada revogada, na parte “da fixação dos quinhões de cada consorte”, prosseguindo os autos sob a forma de processo ordinário comum, nos termos e para os efeitos no disposto do n.º 3 do artigo 926.º do código de processo civil. Sem Conceder Ao abrigo do dever de gestão processual previsto no artigo 6.º do CPC, deverão os presentes autos prosseguir os termos de processo comum, nos termos dos artigos 37.º, n.º 2 e 3 e 926º n.º 3 do CPC, discutindo-se e decidindo-se a questão relativa aos valores despendidos pelo Apelante que excedam 50% da sua quota.
A recorrida apresentou contra-alegações, alinhando as seguintes conclusões: “a) O recurso a que ora se responde vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, em 13.03.2024, com a referência Citius n.º 433715844, que fixou os quinhões de cada consorte, Recorrente e Recorrida, respetivamente, em metade para cada um. b) O Recorrente alega que a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia quanto ao eventual abuso de direito da Recorrida e que o douto Tribunal deveria ter fixado a quota dos consortes em proporção diferente da fixada. c) O Tribunal a quo considerou, e bem, que no presente caso se aplica a presunção legal do artigo 1403.º n.º 2 do Código Civil, que estabelece que no regime da compropriedade “as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo”. d) Não concordando com a aplicação desta presunção, o ónus de a ilidir, cabia exclusivamente ao Recorrente. e) Não existe qualquer abuso de direito na conduta da Recorrida, nem existe qualquer omissão de pronúncia na sentença recorrida sobre tal matéria. Seria, inclusive, uma contradição manifesta considerar que, no presente caso, opera a presunção do artigo 1403.º n.º 2 do CC e que essa presunção legal colocaria a Recorrida numa posição de abuso de direito. f) O Tribunal a quo considerou que, da prova documental junta aos autos, nomeadamente, escrituras públicas de compra e venda, certidões e cadernetas prediais, estavam preenchidos os elementos para a verificação da presunção, ou, a contrario, não estavam preenchidos os requisitos para o afastamento da mesma. g) Esta presunção legal só pode ser afastada quando conste expressamente do título constitutivo do direito uma quota diferente daquela que se presume existir. Razão pela qual, não são admitidos outros meios de prova. h) Conforme decorre da douta sentença recorrida, da análise da prova documental, conclui-se que: “A aquisição referida em 2) [imóvel sito no …] foi realizada em comum e em partes iguais. (…) A aquisição referida em 5) [imóvel sito em …] foi realizada em comum e em partes iguais. (…) A aquisição referida em 8 [imóvel sito em …] foi realizada em comum e em partes iguais.” i) O Recorrente alega ainda que o Tribunal a quo deveria ter ponderado a aplicação do disposto no artigo 350.º do CC e que a presunção aqui em causa é suscetível de ser afastada. j) Desconsidera o Recorrente que a ilisão da presunção se faz, exclusivamente, através do título constitutivo do direito, que no caso em concreto não permite afastar a presunção legal. k) Entendimento que é confirmado pelo TRG no seu acórdão de 16-11-2023 que refere precisamente que “A prova da compropriedade está exclusivamente dependente do título, pelo que, o afastamento da “presunção” de igualdade das quotas, que decorre da previsão do nº 2 do art.º 1403 CC só poderá resultar dos elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo, sendo por isso inadmissível a produção de prova testemunhal, pericial ou qualquer outra para demonstração de que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por exemplo suportou uma parte superior do preço do mesmo.” l) Andou bem o Tribunal a quo ao considerar que é irrelevante que o Recorrente venha alegar que tenha existido uma compartição distinta, porquanto, isso é matéria obrigacional, irrelevante para alterar a situação jurídica real, tal como ela se encontra descrita no título aquisitivo. m) Ainda que assim não se entendesse, sempre se diria que as partes, estando casadas em regime de separação de bens, escolheram adquirir em conjunto estes imóveis, raciocínio que afasta qualquer consideração sobre distinção de comparticipações. n) Para além de não ser possível afastar a presunção legal com os fundamentos invocados pelo Recorrente, sempre seria de afirmar que o Recorrente não conseguiu demonstrar, através da prova documental junta aos autos, que as compartições foram distintas. o) Pelo exposto, o presente tribunal deve confirmar a sentença recorrida nos exatos termos em que a mesma foi proferida. Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso da sentença interposto ser julgado improcedente, devendo manter-se a decisão recorrida.
O recurso foi admitido como recurso de apelação, com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Âmbito do recurso
Nos termos do artigo 635 do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no artigo 608 do mesmo Código.
As questões a apreciar consistem em:
A- nulidade por omissão de pronúncia - artigo 615/1-d) do CPC;
B- a presunção do artigo 1403/2 do Código Civil.
C- se o tribunal recorrido deveria ter feito uso do disposto no artigo 6 do CPC.
III. Fundamentação de Facto
A sentença recorrida considerou provada a seguinte factualidade: “Resulta processualmente adquirido, por documentos juntos aos autos (certidão do registo predial, escrituras públicas de compra e venda dos imóveis em questão) que: 1. Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Amora, sob o n.º …39, o Prédio urbano, sito na Rua …, Corroios, na Freguesia de Corroios, Concelho do Seixal, Distrito de Setúbal. 2. Pela Ap. 13 de 01-04-2005, mostra-se registada a aquisição do prédio identificado em 1), a favor de A… e B…, no estado de solteiros. 3. A aquisição referida em 2) foi realizada em comum e em partes iguais. 4. Mostra-se descrita na Conservatória do Registo Predial da Amora sob o n.º …37 B, e inscrita na respectiva Matriz Predial Urbana, sob o artigo …63, da Freguesia de Corroios, a Fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao 1.º andar, com dois logradouros, garagem e sótão, do prédio urbano sito no …., na…., Freguesia de Corroios, Concelho do Seixal, Distrito de Setúbal. 5. Pela Ap. 2302 de 06-12-2013, mostra-se registada a aquisição do fracção identificada em 4), a favor de A… e B…, no estado de casados no regime de separação de bens. 6. A aquisição referida em 5) foi realizada em comum e em partes iguais. 7. Mostra-se descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º …86 C, e inscrita na respectiva Matriz Predial Urbana sob o artigo …62, da União das Freguesias de Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada Dafundo (antigo artigo …90 da extinta Freguesia de Carnaxide), a Fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente ao Rés do Chão esquerdo com entrada pelo n.º 10 da Rua…., do prédio urbano sito na Avenida …. e Rua …, União das Freguesias de Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada Dafundo, Concelho de Oeiras, Distrito de Lisboa. 8. Pela Ap. 2592 de 06-12-2013, mostra-se registada a aquisição da fracção identificada em 7), a favor de A…. e B…, no estado de casados no regime de separação de bens. 9. A aquisição referida em 8) foi realizada em comum e em partes iguais. 10. As partes pretendem pôr fim à indivisão do prédio e fracções autónomas identificadas em 1), 4) e 7) respectivamente”.
IV. Fundamentação de Direito
A - Da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia - artigo 615/1-d) do CPC.
Alega o recorrente que o tribunal a quo não se pronunciou sobre o abuso de direito da recorrida por esta pretender que lhe seja atribuído um quinhão de 50% dos imóveis objeto de divisão nos presentes autos, pese embora a sua contribuição para a aquisição dos mesmos ter sido manifestamente diminuta em comparação com a contribuição feita pelo recorrente.
Em sede de contra-alegações a recorrida sustenta que não existe qualquer abuso de direito da recorrida, nem este foi alegado, e que a sentença recorrida aplicou ao caso a presunção legal do artigo 1403/2 do Código Civil, e cujo ónus, para a ilidir, competia ao recorrente.
Apreciemos.
A al. d) do n.º 1 do artigo 615 do CPC, dispõe que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608/2 do CPC, segundo o qual: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.»
Há aqui que distinguir entre “questões a apreciar” e “razões” ou “argumentos” aduzidos pelas partes.
Conforme já ensinava Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 143): «São, na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.» Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (Cfr. Também os Acórdãos do STJ de 7/7/1994, Miranda Gusmão, BMJ n.º 439, pág. 526 e de 22/6/1999, Ferreira Ramos, C.J. 1999 – II, pág. 161; da Relação de Lisboa de 6 de junho de 2024, relator José Manuel Monteiro Correia, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme se escreveu, com inteiro acerto, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-05-2022 (Pº 2774/16.8T8PRT.P2, relator Pedro Damião e Cunha), “[s]egundo o disposto no art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Neste âmbito, importa ter bem presente que as questões submetidas à apreciação do tribunal a que o legislador se refere se identificam com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Nessa medida, embora a não apreciação de algum fundamento fáctico ou argumento jurídico, invocado pela parte, possa, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas, daí apenas pode decorrer um eventual erro de julgamento (“error in iudicando”), mas não já um vício (formal) de omissão de pronúncia. Ou seja, este tipo de omissão pode, eventualmente, conduzir a um erro de julgamento quanto à matéria de facto e/ou quanto às questões de direito esgrimidas nos autos e, portanto, logicamente, nessa medida, só em sede de impugnação da decisão de facto ou de dissídio jurídico perante a decisão, se pode/deve colocar a questão (…)”.
Conclui-se – como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2019 (Processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3, relatora Maria da Graça Santos Silva) - que: “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal - “questões” - não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir”.
Esta nulidade verifica-se quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, com referência ao objeto do processo, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir pedido e exceções, ficando apenas de fora a mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas (vide: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/12/2005, Pereira da Silva, de 20/11/2014, Álvaro Rodrigues).
Vejamos se, no caso, o juiz do Tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre questões de que devesse conhecer.
Lida a sentença, verifica-se que o tribunal a quo apreciou o pedido do Autor fazendo operar a presunção prevista no artigo 1403/2 do Código Civil, e decidindo pela natureza real do pedido formulado, aí constando “(…) a matéria alegada quanto ao pagamento e comparticipação de despesas inerentes à aquisição do prédio tem efeitos meramente obrigacionais, de todo irrelevantes para alterar a situação jurídica real, tal como descrita no título aquisitivo”.
Ora, o alegado abuso de direito da recorrida (referido no artigo 26 da petição inicial), situa-se a jusante da decisão decidida e por isso não tem o tribunal a quo que pronunciar-se sobre a mesma.
A partir do momento em que na decisão recorrida se conclui que a presunção referida, por constar de escritura pública apenas pode ser ilidida por documento com igual força probatória, não apresentado pelo recorrente, não há que apreciar no mérito da ação esta questão. O tribunal apenas tem de trabalhar com duas questões: a indivisibilidade dos imóveis e a proporção de 50% para cada um, fixada na caderneta predial.
Não há, pois, nulidade atendível, em razão do que improcede a pretensão do recorrente em apreço.
B- O mérito
- A ação de divisão de coisa comum
A ação de divisão de coisa comum é um processo especial que se encontra previsto e regulado nos artigos 925.º e ss. do CPC.
Tem por objeto a realização do direito dos comproprietários à divisão, conforme o artigo 1412 do Código Civil e, no caso de indivisibilidade material da coisa, o acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos restantes com dinheiro, ou na falta de acordo, a venda executiva e subsequente repartição do respetivo produto na proporção das quotas de cada um (artigo 929/2 do CPC).
Tal tipo de acção é de natureza especial comportando uma acção declarativa e uma acção executiva, aquela dirigida a definir o direito da divisão e esta a efectivá-lo.
Ainda que na fase dita declarativa se sigam os termos do processo comum tal não determina que a acção não se mantenha especial. O que ocorre é que, findo os articulados, se o juiz entender que não pode decidir sumariamente sobre todas as questões suscitadas na apetição ou na contestação, que manda observar o processo comum - cf. Art.º 926º nºs 2 e 3 do CPC.
Tal acção especial, nas palavras de Manuel Rodrigues, tem por fim localizar, concretizar a parte de cada consorte na propriedade comum, e por isso, em princípio, cada consorte tem direito a uma porção da coisa comum, divisão que pode ser in natura ou divisão do preço (in, A Compropriedade no direito civil português”, estudo publicado na RLJ Ano 58, p. 98).
Nesta linha, escreve-se no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-09-2018: “O processo comum é um processo declarativo de tramitação linear, grosso modo com petição e contestação, produção de prova e decisão de facto e de direito. O processo especial de divisão de coisa comum é um processo misto, parte declarativo (em que se define o direito) e parte executivo (em que se procura dar execução ao direito declarado – utilizam-se as expressões de Alberto dos Reis, no Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, reimpressão de 1982, pág. 23), com tramitação diferente, que pode ser sumária ou comum, consoante a coisa for divisível ou indivisível, questão que pode ser levantada oficiosamente pelo juiz ou pelos peritos no decurso do processo, e consoante haja ou não contestação e a revelia for ou não operante; e depois com perícias e conferência de interessados obrigatórias em que se concretizam os direitos e se dá execução aos mesmos, havendo possibilidade de posteriores adjudicações por acordo ou por sorteio, reclamações de tornas, e possível venda da coisa, seguindo-se as formas estabelecidas para o processo de execução, precedida das citações ordenadas no art.º 786 do CPC e com reclamação e verificação de créditos (por força do art.º 549/2 do CPC), tudo com possíveis recursos autónomos de apelação no decurso das várias fases da tramitação (conforme o disposto nos arts. 925 a 929 do CPC).
- A compropriedade
Dispõe o artigo 1403/1 do Código Civil que “Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”.
Pretende-se com esta ação pôr termo a uma situação de compropriedade. E, na doutrina, muito se tem escrito sobre a conceção da mesma.
Como refere Luís A. Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 2ª edição revista e atualizada, pág. 322, “de acordo com a conceção clássica perfilhada na doutrina portuguesa por Manuel Rodrigues e Mota Pinto, na compropriedade cada um dos comproprietários é titular de um direito sobre uma quota ideal ou intelectual da coisa, que constitui o seu objeto. Poderia tentar ver-se uma aplicação desta conceção nas referências que o legislador faz a quotas dos consortes, em vários preceitos, de que se podem destacar, pelo seu carácter mais significativo, o n.º 2 do art.º 1403.º e, em particular, os art.ºs 1408.º e 1410.º. A conceção que, com variantes na formulação, se pode considerar dominante na doutrina portuguesa, vê na compropriedade um conjunto de direito, coexistindo sobre toda a coisa e não sobre qualquer realidade ideal ou imaterial, como seria a quota, nem sequer sobre uma parte da coisa. Sendo estes direitos, como a própria lei diz, qualitativamente iguais, isso implica que eles se autolimitam, pois, o exercício de cada um terá de se fazer sem prejuízo de um exercício equivalente dos demais. Esta tese, perfilhada por Luís Pinto Coelho, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, merece também o nosso apoio (…) Nesta conceção cada um dos direitos em concurso incide sobre a coisa comum, embora não se refira a parte específica da mesma. Os direitos dos vários consortes são iguais, no que respeita à sua qualidade jurídica, mas podem ser quantitativamente diferentes, como se diz no n.º 2 do art.º 1403.º. O aspeto quantitativo não interfere com a natureza dos poderes que a cada um dos comproprietários cabem, mas projeta-se já em aspetos relevantes do seu exercício. Esta forma de conceber a compropriedade adequa-se perfeitamente ao regime que para o instituto se estabelece no Código Civil. Assim, ela constitui, desde logo, uma tradução adequada do que se estatui no seu art.º1405º, n.º1. Na verdade, sob o ponto de vista qualitativo, o conjunto dos poderes dos comproprietários corresponde aos poderes dos proprietários singulares; mas, na atuação desses poderes interfere o aspeto quantitativo, pelo que os comproprietários só participam nas vantagens da coisa e só suportam os correspondentes encargos na proporção das suas quotas. Por outro lado, uma vez que o direito de cada comproprietário, no aspeto quantitativo, é aferido em função de uma quota abstrata ou ideal, justifica-se o uso que da palavra se faz na linguagem legal e corrente, nomeadamente para identificar a correspondente situação jurídica”.
- A presunção do artigo 1403/2 do Código Civil.
Dispõe o artigo 1403/2 do Código Civil que “Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo”.
No caso sub judice, nem o recorrente nem a recorrida colocam em causa a aquisição dos imóveis em compropriedade e a natureza indivisível das coisas.
O litígio decorre, fundamentalmente, da ausência de entendimento sobre as quantias pecuniárias com que cada um contribuiu para a aquisição dos imóveis. Alega o recorrente que embora conste do registo predial e das respetivas cadernetas prediais que recorrente e recorrida adquiriram em comum e partes iguais, não têm quotas iguais sobre o dito imóvel, isto porque foi o recorrente quem efectuou a maioria dos pagamentos destinados à aquisição dos referidos imóveis.
E é isto que o recorrente pretende com o recurso interposto: afastar a presunção legal de igualdade das quotas dos comproprietários, constante do artigo 1403/2 do Código Civil, com a produção da prova testemunhal e documental que apresentou.
Não tem razão o recorrente.
No que respeita aos bens imóveis encontra-se provado que as propriedades dos mesmos se encontram inscritas a favor de recorrente e recorrida, não tendo sido registadas quotas quantitativamente diferentes, nem tal diferenciação resulta dos títulos aquisitivos juntos aos autos.
Sendo inquestionável que os títulos de constituição da compropriedade, não contém qualquer referência às quotas, por força do artigo 1403/2 do Código Civil, a lei estabelece que as quotas são iguais.
Esta é a presunção.
O autor alega que pagou um valor superior ao da ré na aquisição dos identificados imóveis. Porém, apenas resultando das escrituras que ambos adquiriram os imóveis, sem nada indicar quanto à diferenciação de quotas, não pode o autor prevalecer-se de qualquer outro meio de prova para afastar a regra da igualdade, legalmente prevista.
Sendo os modos de aquisição da compropriedade os mesmos de aquisição da propriedade, previstos no Artigo 1316º do Código Civil, qualquer «posterior modificação quantitativa da repartição de quotas entre os consortes corresponderá a um ato de alienação, estando sujeito às respetivas normas de forma e publicidade» - Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2017, p. 215. Conforme referem Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 349, «(…) a medida inicial das quotas pode ser modificada por acordo ulterior dos contitulares. O acordo de modificação está sujeito às regras de forma e de publicidade a que tem de obedecer o ato constitutivo da comunhão.» Cada comunheiro pode dispor de toda ou parte da sua quota (Artigo 1408º, nº1, do Código Civil), pode aumentar a sua quota por inversão do título da posse e subsequente usucapião ou pode renunciar ao seu direito, acrescendo a sua quota aos restantes – cf. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pp. 367-368.
Atento este regime e vigorando o princípio da tipicidade ou do numerus clausus em sede de direitos reais (cf. Artigo 1306º nº1, do Código Civil), a circunstância de um dos comproprietários – num contexto em que cada comproprietário detém uma quota de 50% - suportar sozinho (ou em maior parte) as os encargos para aquisição dos imóveis identificados nos autos, não tem a virtualidade de alterar a proporção da respetiva quota, majorando-a na mesma proporção dos encargos que suporta além da metade que lhe compete.
Com efeito, os comproprietários devem participar «nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das sua quotas» (nº1 do Artigo 1405º do Código Civil) de modo que se um deles assumir unilateralmente encargos que excedam a sua quota de 50% ficará credor do outro pelo valor excedente.
Assim se conclui, nesta primeira parte da análise, que o tribunal recorrido aplicou, e bem, a presunção constante do artigo 1340/2 do Código Civil.
Como acima já referimos, esta presunção de igualdade das quotas dos comproprietários, ao contrário do defendido neste recurso, não admite prove em contrário por outros meios.
É sabido que as presunções são definidas na lei - artigo 349 do Código Civil - como sendo as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Trata-se assim de inferir a existência de um facto que se desconhece, a partir de outro que é conhecido, mediante o estabelecimento de um nexo lógico entre os dois.
As presunções podem ser legais - artigo 350 do Código Civil - ou judiciais - artigo 351 do Código Civil. Nestas o nexo lógico é estabelecido pelo julgador no contexto de uma situação concreta. Naquelas é o próprio legislador que estabelece esse nexo lógico para um determinado tipo de situações considerada em abstracto.
A intervenção do legislador no estabelecimento de uma presunção que poderia de igual forma ser alcançada pelo julgador na decisão do caso concreto, é justificada, não só como forma de prevenir o arbítrio, mas sobretudo como forma de assegurar a eficácia na administração da justiça, facilitando a prova nos casos em que a mesma não está ao alcance da parte a quem a mesma incumbiria.
Por sua vez as presunções legais podem ser relativas ou absolutas, consoante admitam ou não prova em contrário - nº 2 do artigo 350 do Código Civil. A proibição da prova em contrário que é inerente às presunções legais absolutas ou juris et de jure, deve em todo o caso considerar-se excepcional, já que a regra é a da admissibilidade da prova em contrário. A presunção legal absoluta será assim uma forma indirecta de redacção de uma norma de direito substantivo. Compreende-se assim que a presunção só deva considerar-se absoluta quando o legislador expressamente o determinar ao proibir a prova em contrário - parte final do nº 2 do artigo 350 do Código Civil.
Tendo isto presente verifica-se no entanto que nem sempre à referência feita na lei à existência de presunções, corresponde uma efectiva e genuína presunção, configurada nos termos supra referidos.
Assim em várias ocasiões essa referência é utilizada para instituir normas substantivas supletivas, ou apenas como forma de modificação do ónus da prova, tendo como única finalidade estabelecer uma repartição do ónus da prova atentas as especiais peculiaridades de determinados tipos de relações jurídicas, sem que lhes esteja subjacente uma genuína presunção. Naqueles casos a parte beneficiada com a presunção não tem mesmo que provar qualquer facto-base, considerando-se verificado o facto presumido sem necessidade de prova daquele, cabendo à contraparte a prova do contrário. São as denominadas "verdades interinas". A diferença entre as duas situações é patente na formulação das correspondentes previsões legais. Enquanto na presunção legal propriamente dita a formulação da previsão legal dispõe que, se ocorre o facto base, presume-se o facto presumido, salvo prova em contrário, na presunções aparentes a previsão legal reconduz-se à formulação de que deve presumir-se B salvo prova em contrário ( Luís Filipe Pires de Sousa - Prova por presunção no Direito Civil - págs. 90).
É esta última situação a que se verifica no caso da "presunção" a que se reporta o artigo 1403/2 do Código Civil - "... as quotas presumem-se iguais na falta de indicação em contrário." Impõe-se assim concluir que neste caso não se está perante uma presunção, no verdadeiro sentido do termo, mas antes perante uma fórmula a que o legislador deitou mão para estipular uma norma supletiva, a vigorar nos casos em que o título constitutivo da compropriedade não indique a medida da quota.
De quanto vem de dizer-se resulta que o regime legal correspondente à "presunção" prevista no referido artigo 1403/2 do Código Civil não se reconduz ao regime legal das presunções propriamente ditas, não sendo por isso de considerar a aplicabilidade do preceituado no artigo 350/2 do Código Civil para concluir ser aquela uma presunção relativa, e sobretudo não havendo lugar à admissibilidade da produção de outra forma de prova em contrário, conforme pretende o recorrente, para além da que pudesse decorrer do título constitutivo.
Em anotação este preceito, escreve Jacinto Rodrigues Bastos que “a 2a parte do n.º 2 não representa um favor da lei para a igualização das quotas, mas um critério usado para suprir a lacuna nos casos em que a fonte da comunhão não indique a medida da quota; mais do que uma presunção, trata-se de um preceito supletivo” (Direito das Coisas, II, pág.141). No mesmo sentido, Luís Filipe Pires de Sousa (Prova por Presunção no Direito Civil, pág.99).
É também por isso que noutro entendimento se sustenta que o artigo 1403.º n.º 2 do CC estabelece uma presunção inilidível (juris et jure) de que as quotas são iguais, interpretação resultante quer do elemento literal (ao fazer depender a aplicação da presunção de igualdade da inexistência de indicação em contrário no título constitutivo), quer do argumento histórico, pois a redacção lata do projecto (BMJ 102, pág. 182) não passou para a versão final (cf., neste sentido, José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 367; Ac RL de 8/5/2012 (proc. nº 2800/09), em www dgsi.pt).
Porém, a norma supletiva do artigo 1403/2 do Código Civil já não opera quando o título constitutivo fixe directa ou indirectamente a extensão da quota.
Assim sendo, a presunção de igualdade das quotas só pode ser afastada com recurso a elementos do próprio título de constituição e não por elementos exteriores, logo é inadmissível a prova testemunhal para o efeito.
Logo, face à omissão de referência no título constitutivo à repartição de quotas, o legislador estabelece como regime legal supletivo, que essa repartição é feita em termos quantitativamente iguais. E com este sentido pode e deve afirmar-se que, de acordo com o disposto no artigo 1403/2 do Código Civil, se o título constitutivo não permitir aferir o valor das quotas de cada um dos consortes, a lei presume (estabelece) que se considera que a quota respetiva é igual ( José Alberto C. Vieira - “Direitos Reais”, Coimbra Editora 2008, pág. 367 ).
A omissão de referência em contrário no título de constituição da compropriedade é assim condição ou requisito da aplicabilidade da referida norma supletiva, sendo esse o sentido com que deverá ser entendida a formulação constante do referido nº 2 do artigo 1403 do Código Civil, ao fazer depender a aplicabilidade daquela norma supletiva da verificação de falta de estipulação em contrário no título constitutivo.
Por outro lado, mesmo nos casos em que o título constitutivo quantifica as quotas no momento da constituição da comunhão, este valor não é imutável, podendo a quota do consorte variar por força da eficácia de factos supervenientes que tenham o efeito de alterar o valor da quota (venda, doação troca) de toda ou parte da sua quota (art.º 1401/1, 1.ª parte). Mas mesmo nestes casos, e como referem Pires de Lima e Antunes Varela (CC Anotado vol III, pág. 349 e ss.)" o acordo de modificação está sujeito às regras de forma e publicidade a que tem de obedecer o ato constitutivo da comunhão”, pelo que sempre a prova de tal alteração haverá que reconduzir-se aos elementos constantes do título constitutivo.
Em suma, o afastamento da "presunção" de igualdade das quotas, que decorre da previsão do nº 2 do artigo 1304/2 do Código Civil só poderá resultar dos elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo, sendo por isso inadmissível a produção de outra prova de que se possa concluir que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por ex. suportou uma parte superior do preço do mesmo (neste sentido, entre outros- Acórdão desta Relação de 30-06-2009, e da RP de 26/09/2013, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt).
Atento o supra explanado, o tribunal a quo não violou o disposto no artigo 350/2 do Código Civil, assente que está que a "presunção" prevista no referido artigo 1403/2 do Código Civil não se reconduz ao regime legal das presunções propriamente ditas, não sendo por isso de considerar a aplicabilidade do preceituado no artigo 350/2 do Código Civil para concluir ser aquela uma presunção relativa ou ilidível.
Improcede, nesta parte, o recurso apresentado.
- O recurso ao artigo 6 do CPC
Em sede de alegações e conclusões recursivas, sustenta o recorrente que o tribunal a quo, fazendo uso dos seus poderes de gestão, ao abrigo do disposto no artigo 6 do CPC deveria ter interpretado “o pedido elaborado pelo Apelante no sentido de o reconfigurar num crédito autónomo, sem consequências na quantificação das quotas dos consortes, de forma a ser o Apelante ressarcido dos valores que despendeu na sua quota” e, não o tendo feito, “violou o disposto no artigo 6 do CPC, limitando-se a fixar a quota de cada consorte em 50%, ignorando de forma absoluta a realidade contributiva de cada comproprietário no que à aquisição dos imóveis diz respeito, obrigando o Apelante a recorrer a uma outra ação cível para fazer face à sua pretensão”.
Apreciemos.
Dispõe o artigo 6 do CPC que “cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório, e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.
O recorrente pretende ser ressarcido dos valores que suportou para aquisição dos imóveis além da sua quota de 50%.
Esta é a sua pretensão, imprecisamente formulada, pois entendeu que tais valores devem majorar as duas quotas de 50% sobre os imóveis.
Já vimos que esta percentagem se mantém imutável.
Contudo, nos termos da análise que se acaba de fazer, tal pretensão do recorrente pode ser interpretada pelo tribunal e ser corrigida a sua qualificação jurídica, sendo reconfigurada para um crédito autónomo sem repercussão na quantificação da quota do autor.
Por isso, podia e devia o tribunal a quo ter feito uso do disposto no artigo 6 do CPC, no âmbito do seu dever de gestão processual.
Ao fazer-se esta convolação, respeita-se a pretensão material de fundo do recorrente: ser ressarcido dos valores que despendeu além da sua quota.
E a apreciação de dois pedidos, com forma de processo diferente, é permitida pela lei processual civil, verificados alguns requisitos, a que, brevemente, faremos referência.
Nos termos do artigo 555/1 do CPC “pode o autor deduzir contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação”.
A regra prevista na lei do processo é a de que a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processos diferentes (artigo 37/1 do CPC).
Todavia, esta regra pode deixar de ser observada quando os pedidos não sigam uma tramitação manifestamente incompatível e se nisso houver um interesse relevante ou se a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio (nº 2 do mesmo artigo).
Assim, não havendo uma manifesta incompatibilidade, pode o juiz autorizar a cumulação de pedidos quando a sua apreciação conjunta seja conveniente ou indispensável para a justa composição do litígio. (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 1999, pág.66 (anot. ao art.º 31º, cuja redação era semelhante, no que agora interessa, ao disposto no art.º 37º do atual Código de Processo Civil).
Caso seja de autorizar a cumulação dos pedidos nos termos do nº 2, deve o juiz adaptar o processado da acção em conformidade (nº 3 ainda do art.º 37º). Neste caso, deverá adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa, assegurando um processo justo e equitativo, em conformidade com os artigos 6º e 547 do CPC.
Porém, reafirma-se: esta gestão e adequação processual só se justifica e só deverá ter lugar se, nos termos das disposições citadas dos artigos 37º e 555º, for de admitir a cumulação de pedidos na ação. A apreciação é casuística, podendo o juiz, caso a caso, autorizar ou não autorizar a cumulação de pedidos, mas, dado o juízo de conveniência ou indispensabilidade, não se trata de um poder discricionário (art.º 152º).
A manifesta incompatibilidade das diferentes formas processuais é aquela que é gritante, intolerável, que determina a prática de atos processuais contraditórios, ou antinómicos. Só existe nos casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) a prática de atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. O simples desajustamento da tramitação de duas formas de processo é próprio das suas diferenças e sempre se verifica, em maior ou menor grau, a resolver através da adaptação do processo aos fins da cumulação de pedidos quando a esta possa haver lugar. Toda essa perturbação na tramitação processual é conatural à junção num só processo de pedidos que sigam uma tramitação diversa. E o que é facto é que a lei não enjeita a possibilidade dessa junção (Neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de outubro de 2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2 e o acórdão da Relação de Lisboa de 24 de março de 2022, proc. 823/20.4T8CSC-A.L1-2, inwww.dgsi.pt).
Não há, no caso, manifesta incompatibilidade entre a ação especial de divisão de coisa comum e a forma de processo declarativo comum. Podem ser ajustadas ou adaptadas para o conhecimento, no mesmo iter processual, do pedido de divisão e do pedido de condenação da ré comproprietária no pagamento de despesas relacionadas com as coisas objeto da divisão.
A própria ação especial de divisão de coia comum manda seguir a forma de processo comum, após a apresentação da contestação, na situação em que a questão não ser sumariamente decidida (art.º 926º, nº 3).
É certo que esta ação especial não demanda necessariamente um acerto de contas com a coisa a dividir; os pedidos de divisão e de condenação da ré comproprietária no pagamento de determinadas quantias, não se impõem, no caso, como indispensável à justa composição do litígio. O autor pode aqui obter a divisão da fração e, posteriormente, acertar contas com a ré numa ação declarativa comum.
Não ocorre, assim, o requisito da indispensabilidade da cumulação para a justa composição do litígio.
Não obstante, poderá justificar-se o requisito alternativo também previsto no art.º 37/2 da existência de um interesse relevante, a verificação de uma situação de conveniência, de vantagem apreciável ou significativa, da apreciação de pedidos cumulados para a obtenção daquele mesmo fim.
Ora, nos autos, não existe qualquer incompatibilidade na apreciação dos dois pedidos formulados pelo autor pois não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão.
Diremos mais: a apreciação dos dois pedidos evita que o autor tenha de intentar nova ação contra a ré, e este argumento “vai de encontro a uma visão dúctil do processo civil, que procura, até ao limite, salvaguardar a possibilidade de as partes terem acesso à justiça sem terem que intentar, por questões de índole essencialmente formal, ações sucessivas” (Acordão da Relação do Porto de 27 de abril de 2021, disponível em www.dgsi.pt).
Acresce que ao juiz compete, no cumprimento do dever de gestão processual – cfr. artigo 6 do CPC -, adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio.
A matéria foi alvo de diferentes decisões jurisprudenciais, umas admitindo a cumulação dos pedidos (cfr. neste sentido, e a título meramente exemplificativo, Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de janeiro de 2021, da Relação do Porto de 30 de junho de 2022, e 8 de novembro de 2022, da Relação de Lisboa de 4 de fevereiro de 2021, da Relação de Guimarães de 4 de maio de 2023, da Relação de Évora de 17 de janeiro de 2019 (este Acórdão tem comentário concordante de Miguel Teixeira de Sousa, in, in https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html), e outras rejeitando essa mesma cumulação com fundamento em que aos pedidos correspondia diferente forma de processo (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 22 de junho de 2021, se bem que, na espécie, estava em causa uma série de pedidos que de facto iam muito para além de corolários da divisão de bens comuns).
O certo é que, apesar das divergências existentes, é mais expressiva a posição jurisprudencial, a que aderimos, que tem vindo a admitir, respeitando-se as determinações dos artigos 555 e 37/2 e 3 do CPC, a cumulação pelo autor, do pedido próprio da ação de divisão de coisa comum com pedidos que devem ser tramitados em processo comum (por exemplo, condenação no pagamento de quantias pecuniárias despendidas para aquisição do bem indiviso ou de condenação no pagamento de benfeitorias nele realizadas).
Tal posição admite a cumulação do pedido de divisão de coisa comum com pedidos de condenação de uma das partes, mesmo por via de reconvenção, nas situações em que tenha sido suscitada a compensação de reclamado crédito, por despesas suportadas para além da quota respetiva sobre a coisa dividenda, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído à outra parte. Deve cingir-se ou radicar-se na aferição e cômputo dos encargos com a coisa comum e derivar da contitularidade ou compropriedade do imóvel cuja divisão se peticiona, no sentido de bulir com a justa composição do litígio subjacente à peticionada divisão da coisa comum, interferindo no âmago desta, e não a quaisquer outros direitos creditícios que uma parte reivindique junto da outra, alheios àquele cômputo dos encargos com a coisa comum dividenda, e sem terem qualquer interferência ou reflexo na reivindicada divisão da coisa comum.
Concluindo, apesar de os pedidos seguirem formas de processo distintas, as mesmas não só não são manifestamente incompatíveis, como existe interesse relevante na apreciação conjunta das pretensões, por ser o que melhor permite alcançar uma justa composição do litígio e, ao mesmo tempo, o que mais funcionalmente prossegue os princípios da celeridade e de economia processuais, com intervenção do dever de gestão processual e de adequação formal (cfr. artigos 6 e 547 do CPC).
A acção deverá, pois, prosseguir, ao abrigo do disposto nos arts. 37.º, n.ºs 2 e 3, e 926.º n,º 3 do CPC, os termos do processo comum, para decisão do pedido do autor de ressarcimento dos valores que despendeu além da sua quota para aquisição dos imóveis identificados nos autos, só após se entrando na fase executiva do processo, com a convocação de conferência de interessados.
Procede, nesta parte, o recurso.
VI. Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 8.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que determinou a marcação de conferência de interessados, ordenando que o processo prossiga os ulteriores termos processuais adequados à apreciação do pedido do autor/recorrente de ressarcimento dos valores que despendeu além da sua quota.
2. Manter em tudo o mais a decisão recorrida.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 12 de setembro de 2024
Maria Teresa Lopes Catrola
Carla Matos
Carla Figueiredo