I. Não é permitida desistência do pedido que importe a extinção de direitos indisponíveis.
II. É nula a desistência do pedido em ação de impugnação de paternidade presumida e de investigação da paternidade.
III. O vício referido em I e II. constitui fundamento de revisão da sentença homologatória da desistência do pedido (art.º 696.º alínea d) do CPC).
IV. Não é admissível revista de acórdão da Relação que revogou a condenação da autora como litigante de má-fé.
V. A arguição de nulidade de acórdão só pode ser apresentada diretamente perante o tribunal seu autor se o acórdão não for suscetível de recurso; se o acórdão for suscetível de recurso ordinário, a nulidade deve ser invocada no recurso, perante o tribunal ad quem
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. Em 27.7.2020 AA deduziu contra os Herdeiros de BB e CC recurso de revisão da sentença, proferida em 16 de abril de 2018, que homologou a desistência do pedido na ação comum de que o recurso constitui apenso, de impugnação da paternidade presumida e de investigação da paternidade, ao abrigo do disposto na alínea d), do art.º 696.º, do CPC, pedindo que fosse admitido o referido recurso e, consequentemente, fossem anulados:
i) o acordo celebrado entre a recorrente e os recorridos no dia 28.03.2018;
ii) a desistência, da Autora, ora recorrente, do pedido;
iii) a sentença que homologou tal desistência;
por a A./recorrente, à data da prática daqueles atos, se encontrar com a sua vontade viciada por erro sobre os motivos e por se verificar dolo do declaratário (a Herdeira DD) e, que, em virtude de tal anulação, fosse reaberto o processo e apreciado o litígio que aqui estava em discussão.
Fê-lo formulando as seguintes conclusões:
“A) O Sr. CC sempre fez questão de participar e custear todas as festividades (religiosas e aniversários) da A./Recorrente, de intervir na sua educação; sempre se preocupou com a sua saúde e alimentação e garantiu todas as necessidades monetárias da mesma. A ligação entres os dois era muito grande e muito forte!
B) O Sr. CC faleceu no estado de viúvo, deixando como única e universal herdeira a sua filha DD.
C) Anos mais tarde, a A./Recorrente começou a ouvir rumores de vizinhos, que diziam que ela era filha do Sr. CC.
D) A A./Recorrente decidiu, nesse momento, confrontar a sua Mãe, Sra. EE, a qual lhe confirmou que o Sr. BB não era efetivamente o seu pai biológico, até porque era infértil, mas sim o Sr. CC, com quem mantivera uma relação amorosa durante o matrimónio.
E) Depois de tomar conhecimento destes factos, a A./Recorrente, em 22.10.2015, decidiu instaurar uma ação de impugnação de perfilhação e de investigação de paternidade contra os herdeiros do Sr. BB e contra os herdeiros do Sr. CC – ação principal à qual se apensa o presente Recurso de Revisão.
F) Ademais, a A./Recorrente requereu ainda que a paternidade fosse reconhecida pelos herdeiros do Sr. CC, maxime pela Sra. DD (única e universal herdeira [declarada]), a qual deveria ser condenada a abster-se de praticar atos lesivos dos direitos patrimoniais que para a A./Recorrente resultassem desse reconhecimento.
G) Na pendência dessa ação foram realizados testes genéticos, dos quais resultou que o Sr. CC é, com a probabilidade de 99,99%, pai biológico da aqui A./Recorrente.
H) Assim que se obtiveram os resultados das perícias médico-legais, a Sra. DD começou a diligenciar no sentido de chegar a acordo com a A./Recorrente, tendo requerido ao Tribunal que suspendesse a instância.
I) Assim, de imediato, a Sra. DD apresentou uma proposta à A./Recorrente na qual lhe deu a escolher um entre três prédios, dizendo que este era o único património do falecido Sr. CC a partilhar.
J) A A./Recorrente àquela data desconhecia o património do seu falecido pai biológico, Sr. CC e, portanto, de boa-fé, acreditou nas palavras da Sra. DD que lhe disse firmemente que apenas existiam os referidos prédios.
K) E celebrou o seguinte acordo com a Sra. DD:
“(…) 2ª A AA e a herança pretendem transigir na ação judicial supra identificada, o que fazem nos seguintes termos e condições:
(…)
A AA receberá uma importância em dinheiro e um bem imóvel da herança, como que se de uma partilha se tratasse, (…)
Com o recebimento dos bens indicados nas supras indicadas als. a) e b), a AA declara para todos os devidos e legais efeitos, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido efetuado no processo judicial nº 5056/15.9T8MTS, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Matosinhos – Juiz 4 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
3ª Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA – atento o recebimento dos bens (importância em dinheiro e bem imóvel) atrás mencionados nas als. a) e b), e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança – obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que titulo for da herança (ou seja, da Herança aberta por morte de CC, de Herdeiros de CC ou mesmo de DD), incorrendo na mesma obrigação os seus representantes, sucessores e herdeiros. (…)” – doc.1.
L) Ou seja, quando surgiram os resultados das perícias que provavam que a A./Recorrente também era filha do Sr. CC, a outra filha procurou, em pouco tempo, ludibriar a A./Recorrente, dizendo-lhe que o falecido pai apenas tinha deixado o referido património – quando sabia que isso não correspondia à verdade –, dando-lhe a escolher um prédio e ainda lhe oferecendo dinheiro, assim requerendo em troca que ela assinasse o referido acordo e desistisse da ação.
M) E fê-lo porque não era do seu interesse que fosse proferida sentença a declarar que a aqui A./Recorrente era filha biológica do Sr. CC, embora dúvidas já não restassem, impedindo assim que a A./Recorrente viesse posteriormente a reclamar a sua parte na herança, a que sempre teria direito!
N) Porquanto a Sra. DD bem sabia que aquilo que estava a propor à A./Recorrente era uma “ninharia” quando comparado com todo o património que o falecido Sr. CC havia deixado (e aquela havia herdado), tendo-se aproveitado da boa-fé e desconhecimento da A./Recorrente para a enganar e assim a fazer assinar um acordo e desistir da ação.
O) E isso fica ainda mais claro quando se lê o acordo e lá refere expressamente o seguinte:
Cláusula 2ª: “…a AA declara para todos os devidos e efeitos legais, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido…”;
Cláusula 3ª: “Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA – atento o recebimento dos bens (…) e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança – obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que título for da herança…”. [Negrito e sublinhado constam do acordo]
P) Sendo notória a vontade real da Sra. DD: sabendo que a A./Recorrente era sua irmã, filha do Sr. CC e igualmente herdeira, dolosamente, induziu-a em erro, enganou-a e deu-lhe um prédio urbano para a “contentar”, ocultando todo o demais património do falecido. E ainda a fez assinar um acordo em que esta renuncia ao direito de vir “reclamar ou peticionar seja a que título for da herança”, fazendo-a considerar-se “integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança” e a desistir do pedido efetuado nos autos principais!!
Q) É óbvio que se não existisse mais património do Sr. CC ou se a Sra. DD estivesse de boa-fé e desconhecesse os bens deixados pelo falecido pai (o que é impossível, diga-se, porque ela foi a única herdeira [declarada]) nunca a Sra. DD iria incluir tais cláusulas no acordo, tão minuciosas e limitativas dos direitos da A./Recorrente.
R) Ora, em virtude da celebração do aludido acordo, e tal como o mesmo impunha, em 05.04.2018 a A./Recorrente desistiu do pedido e o Tribunal julgou válida essa desistência, absolvendo os requeridos do pedido. Ou seja, não houve mera desistência do pedido, tendo, isso sim, as partes celebrado acordo nos autos principais a pôr termo ao processo.
S) Mas, reitera-se, claro que se a A./Recorrente soubesse, àquela data, que o património do Sr. CC era muito maior do que aquele que lhe foi apresentado pela Sra. DD, a A./Recorrente nunca teria celebrado aquele acordo e nunca teria desistido do pedido!!
T) Contrariamente àquilo que conhecia e acreditava à data em que celebrou aquele acordo e, em virtude deste, desistiu do pedido, a A./Recorrente, em junho do presente ano, através de conversas com familiares e amigos, designadamente com a Sra. D. FF, a Sra. D. GG e a Sra. D. HH, tomou conhecimento que o seu pai biológico, o Sr. CC, tinha um património de mais de 70 imóveis, avaliados em mais de 15 milhões de euros, para além de possuir várias contas bancárias, no Banco Hispano Americano em Vigo, Espanha (atual Banco Santander), na Caixa Geral de Depósitos e no antigo BES.
U) A A./Recorrente ficou boquiaberta e sentiu-se totalmente enganada e injustiçada!
V) Daí em diante a A./Recorrente começou a investigar quais os bens imóveis que faziam parte do património do falecido e eis que descobriu que, à data da morte do Sr. CC (abril de 1996), foi aberto processo de imposto sucessório 3514/P.IMP.SUC.Nº1971 no Serviço de Finanças de Matosinhos 2, tendo a Sra. DD sido declarada como única e universal herdeira.
W) Até à presente data, a A./Recorrente já conseguiu identificar parte do património que pertencia ao falecido Sr. CC e que a Sra. DD herdou – conforme certidões que se juntam como doc.2
X) Sendo certo que a Sra. DD foi alienando vários imóveis, quando já sabia que a A./Recorrente era sua irmã, pelo menos, desde setembro de 2016 (data dos resultados dos primeiros testes genéticos os quais não excluíram, desde logo, que o Sr. CC pudesse ser o Pai da A./Recorrente).
Y) Em suma, o Sr. CC deixou um património de mais de 70 imóveis e várias contas bancárias, que foi herdado na sua totalidade pela Sra. DD, quando devia ter sido herdado, em partes iguais, por ambas as filhas, dado que o falecido já estava viúvo à data da sua morte e aquelas são irmãs consanguíneas.
Z) Ora, nos termos dos art. 291º e 696º, al. d) do CPC, atualmente estamos perante dois meios de tutela jurisdicional alternativos.
AA) A jurisprudência tem entendido que a confissão/desistência/transação pode ser atacada através de ação judicial que, por via da declaração da respetiva nulidade ou anulabilidade, visa a destruição dos seus efeitos substantivos; e que a sentença pode ser atacada por via de recurso extraordinário de revisão que visa a destruição dos seus efeitos processuais decorrentes da extinção da instância no processo em que foi produzida essa sentença homologatória.
BB) Ora, a parte que pretenda um e outro dos referidos objetivos [destruição dos efeitos substantivos da confissão/desistência/transação e dos efeitos processuais decorrentes da extinção da instância] pode obtê-los interpondo meramente recurso de revisão e não já, como anteriormente, através da propositura de dois processos.
CC) Posto isto, no âmbito do recurso de revisão também cabe a apreciação e declaração de nulidade ou anulação daquele ato – aliás, isso mesmo resulta da letra da lei (vidé artigos 291º/2 e 696º, d) do CPC).
DD) Assim, o recurso de revisão destrói os efeitos substantivos do ato e a reposição da situação anterior, em virtude da declaração da nulidade ou anulação do mesmo; e destrói os efeitos processuais decorrentes da extinção da instância no processo em que foi produzida essa sentença homologatória, em virtude da eliminação da eficácia dessa sentença, permitindo a reabertura do processo e a apreciação do litígio que nele estava em discussão - Vidé n.º 2 do art. 700º e alínea c) do n.º 1 do art. 701º, ambos do CPC.
EE) Acresce que o recurso extraordinário de revisão comporta-se como verdadeira ação com um duplo objetivo: o primeiro é o de verificar a existência de qualquer vício na decisão transitada ou no processo a ela conducente – juízo rescidente; o segundo é o de substituir a decisão proferida através da repetição da instrução e julgamento da ação – juízo rescisório.
FF) Que é precisamente o que se pretende com o presente recurso de revisão: seja, em primeiro, declarada a nulidade ou anulada a desistência por parte da Autora, bem como o acordo a que a A./Recorrente e a Sra. DD chegaram, eliminada a eficácia da sentença que homologou esse ato, e, de seguida, reaberto o processo e a subsequente apreciação do litígio que aqui estava em discussão.
GG) O erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio.
HH) In casu, a A./Recorrente celebrou o aludido acordo com a Sra. DD e, consequentemente, desistiu do pedido da ação por julgar erradamente que só integravam o património do seu falecido pai, Sr. CC, os bens que haviam sido indicados pela sua irmã DD e lhe haviam sido dados a escolher, quando na verdade existia um património enormíssimo que a Sra. DD deliberadamente decidiu ocultar da sua irmã para não ter de o partilhar.
II) Ora, o erro-vício só assume relevância como motivo de anulabilidade quando estejam verificadas as caraterísticas gerais (essencialidade e propriedade) e especiais (as partes reconheçam, por acordo, a essencialidade do motivo). In casu, estão verificadas todas as caraterísticas, gerais e especial. Vejamos.
JJ) O erro sobre o motivo (quantificação do património do Sr. CC) foi essencial para que a A./Recorrente chegasse a acordo com a Sra. DD e, consequentemente, desistisse do pedido, porquanto se não fosse esse erro, a A./Recorrente não teria chegado a acordo e desistido do pedido!
KK) Por outro lado, o erro é próprio pois incide sobre a circunstância de o património do Sr. CC ser constituído por mais bens do que aqueles que a Sra. DD deu a conhecer, e não sobre a verificação de qualquer elemento legal de validade do negócio.
LL) Por fim, as partes reconheceram, por escrito, a essencialidade do motivo (vidé doc.1), sendo que a Sra. DD conhecia a essencialidade para a A./Recorrente do elemento sobre que incidiu o erro, dado que a Sra. DD sabia existir muito mais património (ela mesma o herdou) e, de má-fé, decidiu propor um acordo à A./Recorrente onde lhe deu a escolher um prédio entre três (os quais dizia serem os únicos imóveis do falecido), assim evitando que existisse uma sentença transitada em julgado que declarasse a A./Recorrente como filha do Sr. CC, e assim evitando a partilha daquele património.
MM) Logo, nos termos do n.º 1 do art. 252º do CC, por estarem verificadas as condições gerais e especial exigidas, o acordo celebrado entre a A./Recorrente e a Sra. DD é anulável, por a vontade da A./Recorrente estar viciada por erro quanto ao motivo. Consequentemente, a desistência do pedido feito pela A./Recorrente junto dos presentes autos é igualmente anulável por ter sido feita na sequência da celebração do aludido acordo e, por isso, a vontade da A./Recorrente está igualmente viciada por erro quanto ao motivo.
NN) A par do erro-vício sobre os motivos, é também outro vício da vontade o dolo (art. 253º/1 CC), o qual assume igualmente especial relevância no presente caso.
OO) O dolo é uma espécie de erro-vício qualificado: onde há dolo há sempre erro! Quem comete o dolo sabe e quer que o enganado preste a declaração que doutro modo não prestaria, existindo um nexo de causalidade entre o dolo e a declaração - Leia-se a este propósito o Ac. do STJ de 30-09-2003, proc. 03A2493.
PP) A anulabilidade é a consequência natural do dolo por força do disposto no n.º 1 do art. 254º do CC.
QQ) In casu, estão verificadas todas as aludidas condições: dolo do declaratário, ou seja, da Sra. DD; dolo positivo, na medida em que a Sra. DD, através de artifícios, como mentiras, teve intenção e consciência de induzir e manter em erro a A./Recorrente; dolus malus, dado que a Sra. DD não utilizou sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as conceções dominantes no comércio não teria celebrado tal acordo, nem desistido do pedido.
RR) Pelo que, nos termos dos arts. 253º e 254º do CC, o acordo celebrado entre a A./Recorrente e a Sra. DD é anulável, por a vontade da A./Recorrente estar viciada por dolo. Consequentemente, a desistência do pedido feito pela A./Recorrente junto dos presentes autos é igualmente anulável por ter sido feita na sequência da celebração do aludido acordo e, por isso, a vontade da A./Recorrente está igualmente viciada por dolo.
SS) Concluindo, por ter existido dolo e erro-vício nos motivos que determinaram a vontade da A./Recorrente no momento em que celebrou o aludido acordo e desistiu do pedido, porquanto se a A./Recorrente soubesse qual o verdadeiro património do Sr. CC naquela data, nunca teria celebrado o acordo e desistido do pedido, tendo sido completamente enganada pela Sra. DD, que atuou com a intenção e consciência de induzir e manter em erro a A./Recorrente, então o acordo entre a A./Recorrente e a Sra. DD (doc.1) e a consequente desistência do pedido devem ser anulados.
TT) Consequentemente, devem ser destruídos os efeitos substantivos daqueles atos e reposta a situação anterior, em virtude da anulação dos mesmos; e destruídos os efeitos processuais decorrentes da extinção da instância nos autos principais, em virtude da eliminação da eficácia da sentença que homologou a desistência e reaberto o processo e apreciado o litígio que aí estava em discussão.
UU) E assim se impõe porque esta é a única forma, o único “remédio” para a ofensa ao primado da justiça, devendo prevalecer sob o princípio do caso julgado, por ser um meio previsto legalmente (alínea d) do art. 696º do CPC) e porque, caso contrário, as exigências da justiça e da verdade ficariam clamorosamente abaladas!
VV) Pelo que, este é um caso de verdadeira justiça! É justo que seja anulado o acordo, a desistência e a sentença que a homologou, para que o processo siga os seus termos e seja reconhecida a paternidade, a fim de a A./Recorrente poder vir a reclamar a sua parte na herança, a que tem igualmente direito como a Sra. DD!!!“
2. Por despacho de 03.9.2020 o recurso foi admitido e ordenada a notificação pessoal da recorrida para responder.
3. A recorrida respondeu, defendendo-se por impugnação e arguindo, para além do mais, a inadmissibilidade dos fundamentos do recurso e a sua extemporaneidade. Terminou pedindo a improcedência do recurso de revisão e a condenação da recorrente como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor.
4. Realizou-se audiência prévia, foi proferido despacho saneador, despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
5. Realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença, a qual veio a ser anulada, por despacho proferido em 3.11.2022, no apenso B, em obediência ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que ordenou a junção aos autos dos documentos que haviam sido apresentados pela recorrente sob a Ref. n.º 41277597 e que a 1.ª instância havia rejeitado.
6. Foi reaberta a audiência de julgamento e confrontadas as testemunhas indicadas pelas partes com os identificados documentos.
7. Em 27.10.2023 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto decide-se:
- julgar totalmente improcedente o presente recurso de revisão absolvendo-se a recorrida dos pedidos formulados
- condenar a recorrente AA como litigante de má-fé na multa de 10 UC’s;
- condenar a recorrente em indemnização a determinar em momento ulterior após audição das partes.
Custas pela recorrente”.
8. A A./recorrente apelou da sentença e, por acórdão datado de 03.6.2024, a Relação do Porto, com um voto de vencido, julgou o recurso procedente, emitindo o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença homologatória da desistência do pedido e determinam o prosseguimento do processo (ação principal) até à decisão final.
*
Custas pela apelada, pois que ficou vencida”.
9. Em 17.6.2024 a A./recorrente arguiu a nulidade do acórdão, nos seguintes termos, que se transcrevem:
“1.º
O acórdão sub iudice é, data vénia, nulo, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil (CPC), porquanto, os Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, com o maior respeito por V. Exas., não se pronunciaram sobre uma questão que deviam ter apreciado.
2.º
A Recorrente deduziu contra a Recorrida recurso de revisão da sentença, proferida em 16 de abril de 2018, que homologou a desistência do pedido na ação comum de que estes autos constituem apenso, de impugnação da paternidade e de investigação da paternidade, ao abrigo do disposto na alínea d), do art. 696º, do CPC, pedindo que fosse admitido o referido recurso e, consequentemente, fossem anulados:
i) o acordo celebrado Recorrente e Recorrida no dia 28/03/2018;
ii) a desistência, da Autora, aqui Recorrente, do pedido;
iii) a sentença que homologou tal desistência;
3.º
Não obstante, no Acórdão proferido foi decidido que:
“Apresentando a desistente recurso extraordinário de revisão de sentença homologatória de desistência do pedido de impugnação da paternidade do marido da mãe e de investigação de paternidade do progenitor, arguindo a nulidade desta, cabendo, desde logo, apreciar da invalidade de tal desistência face ao objeto da mesma, e sendo nula, como se decidiu ser, prejudicado fica, dada a nulidade já verificada, o conhecimento substancial dos invocados vícios da vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto.”
4.º
Isto é, entendeu este Tribunal da Relação que, sendo nula a desistência, fica prejudicado o conhecimento substancial dos vícios de vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto, tal como reclamado pela Recorrente.
5.º
O que a Recorrente não pode aceitar.
6.º
Com o devido respeito, a enunciada questão - conhecimento substancial dos vícios de vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto – não é uma simples consideração, argumento ou razão produzida pela parte que, por assim o ser, não merecesse/devesse ser conhecida(o).
7.º
Antes pelo contrário, a enunciada questão é crucial e devia, pela sua própria natureza - por não ser tão só um fundamento ou uma razão em que a parte se apoiou para sustentar a sua pretensão - ter sido conhecida.
Porquanto,
8.º
O Venerando Tribunal da Relação conheceu da indisponibilidade dos direitos pessoais e já não do erro vicio dos direitos patrimoniais.
9.º
O acórdão não se pronunciou, data venia, sobre uma questão que, por esta lhe ter sido submetida para sua apreciação, devia ter apreciado.
10.º
A Recorrente declarou no acordo cuja anulação se requer: “considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido.”
11.º
E, mais declarou a Recorrente que: ”atento o recebimento dos bens e visto com isso considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança – obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que titulo for da herança.”
12.º
Ou seja, não houve mera desistência do pedido, tendo, isso sim, as partes celebrado acordo nos autos principais a pôr termo ao processo.
13.º
E, reitera-se, foi submetida à apreciação do Tribunal a existência de erro e engano na celebração do acordo: a) se a Recorrente soubesse que o património do Sr. CC era muito maior do que aquele que lhe foi apresentado pela Recorrida nunca teria celebrado aquele acordo e nunca teria desistido do pedido e b) a Recorrente, à data da celebração do acordo a Recorrida, não conhecia a totalidade do património do Sr. CC.
14.º
O Julgador deve resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes – art. 608º, n.º 2 do CPC.
15.º
O conceito de “questões”, a que se refere o legislador, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes (vide, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. Ed., Almedina, págs. 713/714 e 737.” e Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processos Civil, 6ª. Ed. Atualizada, Almedina, pág.136.”).
16.º
Este Venerando Tribunal, ao não conhecer os alegados vícios de vontade da Recorrente na celebração do acordo celebrado em 28.03.2018 e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto, impede a Recorrente de ver a questão, da anulação do acordo por erro, ser decidida judicialmente.
17.º
Este Venerando Tribunal conheceu a nulidade da desistência, mas não a nulidade do referido acordo - conheceu as questões pessoais, mas não as patrimoniais.
18.º
Pelo que, a nosso ver, e salvo o devido respeito, o acórdão proferido padece daquele vício de nulidade (por omissão de pronúncia).
Sem prescindir,
Acresce que,
19.º
No acórdão sub iudice estamos perante uma decisão que conheceu e julgou do mérito da causa (do fundo ou mérito do recurso), não perante uma decisão que, por exemplo, indeferiu liminarmente o requerimento/articulado inicial de interposição do recurso extraordinário de revisão,
20.º
Estamos perante uma decisão que, entrando no conhecimento/julgamento do mérito da causa, revogou a sentença homologatória da desistência do pedido e determinou o prosseguimento do processo (ação principal) até à decisão final,
21.º
Mas que, não obstante ter determinado o prosseguimento da ação principal, não conhecerá das questões patrimoniais que, reitera-se, com os presentes autos de recurso de revisão pretendia, sim, também ver discutida e apreciada a questão da anulação do acordo celebrado com a Recorrida em 28.03.2018.
22.º
Dito de outro modo, transitado em julgado a decisão vertida no acórdão, a ação de impugnação da paternidade e de investigação da paternidade prosseguirá, a Recorrente será declarada filha do falecido Sr. CC, mas finda esta ação, como poderá a Recorrente, enquanto filha e reconhecida herdeira, reclamar os seus direitos na herança aberta por óbito do seu Pai se, em erro, a estes direitos renunciou no acordo? Reitera-se, impunha-se conhecer e não foi conhecido no acórdão proferido!!
23.º
Se o aludido acordo celebrado entre Recorrente e Recorrida em 28.03.2024 não for declarado nulo que efeito terá, a procedência da ação de impugnação da paternidade e de investigação da paternidade, quanto às questões patrimoniais?
****
Termos em que respeitosamente se requer V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, se dignem deferir a arguida nulidade do sobredito acórdão nos termos e com os fundamentos supra expostos, conhecendo a nulidade do acordo celebrado em 28.03.2018”.
10. Em 05.7.2024 DD, na qualidade de única e universal herdeira de CC, interpôs recurso de revista do acórdão referido em 8, terminando com as seguintes conclusões:
“1º No presente apenso de recurso de revisão da sentença que homologou a desistência do pedido de impugnação e de investigação de paternidade (na acção principal) que a Autora, aí Recorrente, AA, deduziu, foi, pelo Tribunal de Primeira Instância, em 27.10.2023, proferida sentença que julgou totalmente improcedente o recurso de revisão proposto por esta; e condenou a referida aí Recorrente, como litigante de má-fé no pagamento de uma multa de 10 UC’s e numa indemnização a favor da aí Recorrida, e ora Recorrente, DD.
2º Na sequência do Recurso de apelação interposto de tal sentença pela Autora, aí Recorrente, AA, foi decidido pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, do por acórdão de 24.03.2024, revogar a sentença recorrida, julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença homologatória da desistência do pedido e determinar o prosseguimento do processo (acção principal) até à decisão final, porque considerou o Tribunal da Relação, resumidamente, que a acção de investigação e impugnação da paternidade teria por objecto direitos indisponíveis, o que tornaria a desistência do pedido nessa acção seria nula.
3º Teve o referido acórdão um voto vencido do Venerando Juiz Desembargador Dr. Jorge Martins Ribeiro, que defendeu, na sequência de notável fundamentação, não ser de considerar nula a desistência da Autora, aí Recorrente, na acção de investigação de paternidade.
4º Não se podendo conformou com o que ficou decidido no douto acórdão a aí Recorrida, DD, na qualidade de única e universal herdeira de CC, vem recorrer do mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça, pelos motivos que se passam a expor.
A – PREVIAMENTE, DA NECESSIDADE DE ACLARAÇÃO DO ACÓRDÃO:
5º No recurso extraordinário de revisão de sentença, interposto ao abrigo do Art. 696º, al. d), a Autora, aí Recorrente, AA, peticionou não só que fosse anulada a desistência do pedido e a sentença que a homologou nos autos principais, mas também que fosse anulado o acordo celebrado entre ela e a aí Recorrida, e ora Recorrente, DD. Pedido que reiterou no recurso de apelação que aquela interpôs da sentença proferida em primeira instância.
6º Ora, pese embora, o acórdão de que se recorre proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, se tenha pronunciado e tomado posição relativamente a este pedido da Recorrente (ora Recorrida) AA, no dispositivo (Decisão) do douto acórdão nada vem referido a propósito deste pedido da então Recorrente, AA; pelo que, atendendo teor abrangente de tal dispositivo, pensamos que, desde logo, deveria o mesmo ser clarificado relativamente ao referido pedido.
7º A este respeito o Tribunal da Relação confirma no acórdão proferido o decidido pelo Tribunal de Primeira Instância, ao referir:
“E, como decidiu o Tribunal a quo, sendo o objeto do recurso de revisão uma decisão judicial, é inadmissível, no âmbito do presente recurso, o primeiro pedido formulado pela recorrente - o de anulação do acordo celebrado entre a recorrente e DD no dia 28 de março de 2018, acordo extrajudicial esse não objeto da sentença de homologação. Apenas foi homologado, por sentença de 16 de abril de 2018, transitada em julgado, e que extinguiu a instância da ação principal, o requerimento de desistência do pedido, apresentado na ação principal no dia 5 de abril de 2018, apenas dessa anulação se podendo, pois, apreciar, e apenas esta estando em causa no âmbito do recurso de revisão, a ela se limitando, também, o presente recurso.”
8º Na verdade, atendo o vertido nos arts. 696º a 701º do C.P.C., o recurso de revisão não é o meio próprio, nem adequado, para ser discutida a validade ou invalidade do referido acordo, que não se trata de uma transacção no processo (principal), mas de um acordo extrajudicial, tendo sido, na nossa modesta opinião, absolutamente correcta a decisão do tribunal de primeira instância de considerar inadmissível o pedido de que fosse anulado tal acordo, bem como a do Tribunal da Relação de confirmar esta decisão.
9º Atento o referido, entendemos que a este respeito é pouco claro o dispositivo (a Decisão) do acórdão da Relação do Porto de que se recorre, que, no sentido de impedir interpretações diversas e ambíguas relativamente à decisão que recaiu sobre tal pedido tal pedido, deveria ter, em nossa opinião, desde logo, confirmando, a este respeito, a decisão proferida em primeira instância.
Isto posto, e sem prescindir,
B – DA QUESTÃO DA EXISTÊNCIA, OU NÃO, DE NULIDADE DA DESISTÊNCIA DO PEDIDO POR SE ESTAR, OU NÃO, PERANTE DIREITOS INDISPONÍVEIS E DA CONSEQUENTE NULIDADE DA SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA:
10º Refira-se, antes de mais que, o tribunal de primeira instância, tal como refere na sentença proferida, não poderia, na nossa modesta opinião, conhecer desta questão da existência ou não de nulidade da desistência do pedido apresentada pela Autora, AA, por estarem, ou não, em causa direitos indisponíveis, porque esta fundamentou o seu recurso extraordinário revisão apenas numa alegada anulabilidade por erro da desistência (anulabilidade, essa, que na verdade não existiu), nunca tendo invocado nas alegações ou conclusões do recurso de revisão que deduziu, qualquer nulidade da desistência e da sentença de homologação da mesma, por eventual indisponibilidade dos direitos em causa (o que, na verdade, e como veremos, também não existe).
Isto posto, passamos ao cerne da questão:
11º No douto acórdão de que se recorre, decidiu-se que, porque nos autos principais de impugnação e de investigação da paternidade se estaria perante direitos indisponíveis a desistência do pedido seria nula (quanto à pretensão da constituição do estado de filho), o que tornaria, consequentemente, nula a sentença homologatória que recaiu sobre tal desistência.
12º A ora Recorrente, DD, discorda deste entendimento, pois entende que, no presente caso, não se está perante direitos indisponíveis, e que portanto a desistência não está ferida da nulidade defendida no acórdão, não estando também, por isso, ferida de nulidade a sentença homologatória que recaiu sobre a mesma.
13º A ora Recorrente, a este respeito, concorda e subscreve o entendimento expresso na fundamentação do Voto Vencido do Venerando Juiz Desembargador Dr. Jorge Martins Ribeiro - que se encontra anexo ao Acórdão de que se recorre.
14º A acção principal, que é de impugnação da paternidade presumida e de investigação da paternidade, foi interposta pela Autora, AA, maior, e com a sua paternidade estabelecida e registada. Foi de sua livre vontade que esta intentou a acção principal – não estamos perante uma investigação oficiosa da paternidade, ou alguma acção intentada por outra pessoa (como no caso em que o interessado é menor).
15º Se não se pudesse desistir do pedido numa acção de impugnação e investigação da paternidade, por se estar perante direitos indisponíveis, estas acções não estariam sujeitas às regras e prazos da caducidade, como de facto o estão – prazos esses que, decorridos os mesmos, fazem perder-se o direito a interpor-se a própria acção.
16º Assim, como dependeu da vontade da Autora/Recorrente, AA, intentar a acção principal, também tem esta todo o direito de desistir da mesma, desistindo do seu pedido de impugnação e investigação da paternidade. A Autora poderia ter, livre e esclarecidamente, optado por nunca ter interposto da acção. Então, interpondo-a, nada justifica que lhe fosse vedado desistir da mesma ou desistir do pedido de impugnação e investigação da paternidade.
17º A desistência ocorrida no processo principal não afecta qualquer direito indisponível.
18º Não existem razões de ordem pública para que se considere indisponíveis os direitos aqui em causa. Impossibilitar a tomada de decisões livres relativamente a tais direitos, isso sim, poria em causa direitos consagrados constitucionalmente relacionados com a autonomia da vontade e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
19º Os direitos ao conhecimento da identidade biológica e da identidade pessoal, procurando-se uma correspondência entre a verdade biológica e verdade jurídica, que no entendimento seguido pelo acórdão de que se recorre justificaria a indisponibilidade dos direitos aqui em causa, são negados por diversas vezes pela nossa Lei (designadamente, quando estabelece regras e prazos de caducidade para este tipo de acções, mas também o que se fixa nos artigos 20º e 21º da Lei da procriação medicamente assistida, entre outros normativos legais), pelo que não se pode considerar estes, como direitos indisponíveis, e que não seja possível a renúncia aos mesmos.
20º Assim, não deve ser considerada nula a desistência do pedido na acção principal como não deve ser considerada nula a sentença homologatória que sobre a mesma recaiu.
Sem prescindir, caso assim não se entenda, o que não se admite, e só à cautela, e para facilitar o raciocínio se equaciona,
C – DA POSSIBILIDADE LIMITAR OS EFEITOS DA DESISTÊNCIA DO PEDIDO E RESPECTIVA HOMOLOGAÇÃO AOS EFEITOS PATRIMONIAIS EMERGENTES AO ESTADO DE FILHO:
21º O douto acórdão de que se recorre, defende na sua fundamentação de direito que, “Sendo o direito da família terreno fértil em situações jurídicas indisponíveis, com diversos institutos relativos ao estado das pessoas, consideramos que, como o faz Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, da irrenunciabilidade do estado civil se extrai a inadmissibilidade da desistência do pedido nas ações de investigação da paternidade quanto à pretensão de constituição do estado de filho, o caso, embora em questões relacionadas com efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho seja admissível tal desistência.” – sublinhado nosso.
22º Daqui resulta que, mesmo que se considere que a que a desistência do pedido tenha afectado direitos indisponíveis (contrariamente à opinião já atrás expressa da ora Recorrente, DD), e na medida em que os afectasse estaria ferida de nulidade, essa nulidade só diria respeito aos efeitos pessoais constituição do estado de filho.
23º Mas já não estaria ferida de nulidade, essa mesma desistência do pedido, relativamente aos efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho por ela abrangidos.
24º Assim, porque a desistência do pedido por parte da Autora nos autos principais, abrangeu todo o pedido da acção de impugnação e investigação da paternidade, pedido esse que incluía quer os efeitos pessoais como também os patrimoniais que decorreriam da uma eventual constituição do estado de filho, deveria ter sido considerado, pelo menos, que a desistência do pedido não estaria ferida de nulidade no que diz respeito aos efeitos patrimoniais de uma eventual constituição do estado de filho – pois, na própria fundamentação do acórdão, são estes efeitos considerados disponíveis.
25º A possibilidade de se restringir o efeito da paternidade à questão de estado, não valendo para as questões patrimoniais, para certos casos, como, p. ex., o de o “abuso de direito” é defendida por diversa doutrina e jurisprudência, como, designadamente, pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.04.2013, no Proc. 108/09.7TBPFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt , que logo no seu sumário defende que
“… As consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos à questão de estado – a filiação – não valendo para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo, em casos concretos, afastar o investigante da herança do progenitor, não sendo violado o princípio da indivisibilidade ou unidade do estado, podendo afirmar-se que, em caso de manifesto abuso do direito, o investigante, apesar de reconhecida a sua paternidade, poderá não beneficiar da vertente patrimonial inerente ao status de herdeiro.
É no contexto do abuso do direito que tal distinção de efeitos deve ser enfocada, admitindo que qualquer pretensão jurídica pode ser paralisada se o respectivo exercício for maculado pelo seu abuso – a questão da “caça à fortuna” – nos casos em que o investigante, a coberto de averiguar a sua filiação, da proclamada intenção de conhecer as suas raízes, que apareceria como um propósito legítimo e da maior importância pessoal e social, pretenderia, primordialmente, acautelar aspectos patrimoniais, visando o estatuto de herdeiro para aceder à partilha dos bens do progenitor. …”
26º Refira-se que a Ré, ora Recorrente, DD, invocou este Abuso de Direito, na sua contestação à p.i. da acção principal.
27º É evidente que o que move à Autora, AA, quer na acção principal, quer no presente apenso de recurso de revisão, são apenas os efeitos patrimoniais que poderiam decorrer de um eventual reconhecimento da paternidade – é o que resulta, quer das alegações por esta apresentadas neste apenso de recurso de revisão, quer do acordo que através do mesmo pretendeu ver invalidado, quer ainda às próprias alegação do recurso de apelação.
28º Porque está aceite no acórdão de que se recorre que os efeitos patrimoniais decorrentes do reconhecimento da filiação não são indisponíveis, deveria o citado acórdão ter considerado (pelo menos) não existir qualquer nulidade da desistência do pedido no que diz respeito aos referidos efeitos patrimoniais – a desistência não seria nula relativamente à qualidade de herdeiro que decorreria de um eventual reconhecimento/estabelecimento da filiação.
29º A Autora, AA, quando desiste do pedido, desiste de ser herdeira do investigando, ou seja, desiste de ser herdeira do pai da ora Recorrente DD, CC. E esta desistência da (eventual) qualidade de herdeira não tem qualquer motivo para ser considerada nula – visto este direito ser, mesmo do ponto de vista do douto acórdão de que se recorre, um direito disponível. E, neste sentido, também não pode ser considerada ferida de nulidade a sentença homologatória que recaiu sobre a referida desistência do pedido.
30º E também não é anulável pois não existiram quaisquer dos vícios da vontade, erro ou falta, invocados pela Autora/Recorrente AA. Quer a desistência do pedido, quer a sentença homologatória que sobre ela recaiu são validas e eficazes e como tal devem ser consideradas.
D – DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ:
31º A sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância condenou a Autora, então recorrente, AA, como litigante de má fé na multa de 10 UC’s e em indemnização a determinar em momento ulterior após audição das partes.
Isto porque, considerou que, “No caso dos autos, cremos seguramente que a recorrente agiu em juízo dolosamente, posto que, não se tratou de mero convencimento de que atuava dentro da verdade e no exercício de um direito próprio, procurando iludir o Tribunal com uma versão dos factos falsa, alterando a verdade dos mesmos e omitindo factos relevantes nos quais teve intervenção direta., com vista a obter a reversão de uma decisão transitada em julgado.
Poderemos, assim, dizer que, no caso sub judice, foram ultrapassados os limites da “litigiosidade séria”, isto é, aquela que “dimana da incerteza”, assim se verificando os pressupostos da condenação da recorrente, nos termos e para os efeitos dos artºs 542º e 543º do CPCivil…”
32º No entanto, no acórdão de que se recorre, o Tribunal da Relação revogou também esta referida decisão constante sentença da Primeira Instância.
33º A ora Recorrente, DD, com todo o respeito, discorda desta decisão constante do Acórdão do Tribunal da Relação de que se recorre, entendendo que, também a este respeito, a decisão do Tribunal de Primeira Instância está correcta e perfeita e cabalmente justificada.
34º O Tribunal da Relação fundamente a sua posição a respeito da litigância de má fé da Autora/Recorrente AA, no facto de ter considerado nula a desistência do pedido nos processo principal, por se estar perante o que considera ser direitos indisponíveis, e, consequentemente, também nula a sentença homologatória que recaiu sobre tal desistência, o que levou a que este tribunal não se debruçasse respeito de todo da pretensa anulabilidade dessa desistência e da sentença homologatória alegadas por aquela, em todo este apenso de revisão da sentença.
35º Se o tivesse feito, o Tribunal da Relação verificaria que, como resulta da matéria de facto dada como provada e não provada em primeira instância, e que consta da fundamentação de facto do acórdão, a Autora fundamentou todo o seu recurso de revisão numa série inverdades e que foram ultrapassados os limites da “litigiosidade séria”, estando preenchidos os requisitos do Art. 542º nº 2 do C.P.C..
36º Na verdade, até porque, pelos motivos atrás expostos, não existe, a nosso ver, a nulidade (da desistência do pedido e da sentença homologatória) defendida no acórdão de que se recorre, o Tribunal da Relação, ao aferir se existiria ou não a anulabilidade alegada pela Autora AA, teria de concluir não só que a invocada anulabilidade não existiria (por não existir qualquer vício da vontade ou erro da Autora, nem qualquer dolo da ora Recorrente DD), como que a referida Autora, AA, agiu em todo este apenso de recurso de revisão de sentença da forma como refere a sentença do da primeira instância, litigando de má fé.
37º Atendendo ao que se provou nos presentes autos, de recurso extraordinário de revisão, e que consta da fundamentação de facto transcrita no acórdão de que se recorre, é evidente que a Autora/Recorrente AA alterou conscientemente a verdade dos factos, resultando claro que esta tinha a obrigação de saber que trazia a Juízo factos que não eram verdadeiros, agiu em Juízo dolosamente, visto que não se tratou de um mero convencimento de que actuava dentro da verdade e no exercício de um direito próprio, procurando iludir o Tribunal, com uma versão falsa dos factos, alterando a verdade dos mesmos e omitindo outros relevantes, com vista a atingir um objectivo a que não tem direito.
38º Estão assim reunidos, desta forma, os pressupostos para que a Recorrente fosse condenada como litigante de má fé, nos temos em que o foi na douta sentença proferida em primeira instância.
39º Deve, assim, por tudo o que se expôs, e nos termos expostos, ser revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e, a final, ser integralmente mantida a decisão constante da douta sentença proferida nos presentes autos pelo Tribunal de Primeira Instância.
40º Ao se decidir como se decidiu o douto acórdão, ora colocado em crise, não faz uma correcta e boa aplicação do disposto, designadamente, nos Arts. 283º, 289º, 291º 542º, 696º al. d) do CPC.
NESTES TERMOS
e nos que V.Exas. muito doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se procedente e, consequentemente, ser revogada a douta decisão aqui em crise, e substituída por outra que
a) considere não existir nulidade da desistência do pedido na acção principal, nem da sentença homologatória que sobre ela recaiu, ou, caso assim não se entenda, o que só por hipótese se admite,
b) considere não existir nulidade da referida desistência, nem da sentença homologatória desta, apenas relativamente aos efeitos patrimoniais decorrentes do estado de filho,
c) considerando ter existido litigância de má fé por parte da Autora, AA, com as consequências preconizadas na sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância,
d) e considere ainda que, deva ser apreciada a questão da existência ou não de anulabilidade da referida desistência do pedido e sentença homologatória, sendo, a final, considerado não existir nestas qualquer invalidade, confirmando-se integralmente a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância”.
11. A A./recorrente apresentou contra-alegação, tendo rematado com as seguintes conclusões:
- Da questão prévia da aclaração do acórdão da relação:
A) Alega a aqui Recorrente que o Tribunal da Relação apenas se pronunciou quanto à nulidade da desistência do pedido e não quanto á nulidade do acordo.
B) E conclui, num salto infundado que, entende que sendo a este respeito pouco claro o dispositivo (a decisão) do acórdão da Relação, deve ser confirmado por V. Exas que o Tribunal da Relação decidiu que o pedido de anulação do acordo é inadmissível.
C) Ou seja, pede que Vossas Excelências Senhores Juízes Conselheiros aclarem a decisão do Tribunal da Relação.
D) A obscuridade de decisão, não constitui fundamento de recurso, mas sim de pedido de esclarecimento no tribunal que a proferiu. Além de que, o artigo 616.º do CPC eliminou a figura da aclaração da sentença prevista no artigo 669º do anterior diploma, considerando agora que eventual ambiguidade ou obscuridade da decisão, que a torne ininteligível, configurará a nulidade prevista no artigo 615º, nº1, alínea c) do CPC. Nenhuma nulidade foi suscitada pela Recorrente.
E) Pelo que fica desde logo afastada a questão da necessidade da aclaração.
F) Acresce que, a aqui Recorrida suscitou a nulidade do acórdão da Relação: entendeu o Tribunal da Relação que, sendo nula a desistência, fica prejudicado o conhecimento substancial dos vícios de vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto, tal como reclamado pela Recorrente.
G) O que a Recorrente não aceitou - o conhecimento substancial dos vícios de vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto – não é uma simples consideração, argumento ou razão produzida pela parte que, por assim o ser, não merecesse/devesse ser conhecida(o), suscitando a respetiva nulidade no Tribunal da Relação que ainda não foi conhecida.
H) No entanto atendendo a que o Tribunal da Relação conheceu a nulidade e julgou a desistência nula, revogou a sentença homologatória de desistência do pedido e determinou o prosseguimento do pedido, pode não ser necessário conhecer do erro vicio porque: a) a invalidade da desistência terá de se repercutir na invalidade da transação e da sentença homologatória; ou b) nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 2101 do C.C. não pode renunciar-se ao direito de partilhar.
- Quanto à questão da existência ou não da nulidade da desistência do pedido por se estar ou não perante direitos indisponíveis:
I) Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09.11.2022, Relator: Senhor Juiz Conselheiro Dr. Luis Espírito Santo:
“– O direito à identidade do indivíduo, enquanto expressão da sua verdade pessoal e da sua integridade moral, consagrado nos artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que se encontra incluído entre os direitos, liberdades e garantias referenciados no artigo 18º do mesmo diploma legal, constituindo condição sine qua non para a afirmação na família e na sociedade, abrange o conhecimento das origens genéticas (paternidade biológica) e o estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, que compõem a estrutura essencial subjacente à sua própria historicidade enquanto ser social, inserindo-se no núcleo essencial e íntimo da pessoa e do cidadão. II – Está, portanto, em causa o reconhecimento do direito absoluto e pessoalíssimo à sua própria identidade através da possibilidade do conhecimento da ascendência e marca genética, que se inscrevem indelevelmente na genealogia do ser humano, com profundas e impressivas projecções no campo social e histórico.”
J) - Está em causa o direito ao conhecimento da paternidade biológica, bem como ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, enquanto elementos fulcrais e decisivos para a afirmação da identidade pessoal e total integração no sistema jurídico e na sociedade em geral, devidamente salvaguardados, enquanto direitos pessoalíssimos, absolutos e fundamentais, nos artigos 26º, nº 1, e 25º, nº 1, e 36º da Constituição da República Portuguesa.
K) A identidade pessoal constitui, pois, um insubstituível elemento caracterizador de cada ser humano, fazendo a diferença em relação a todos os outros, e abrange indiscutivelmente o direito fundamental ao reconhecimento da maternidade e/ou da paternidade.
L) Conforme referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2ª edição, 2010, a página 609, com absoluta clareza: “O direito à identidade pessoal postula um princípio de verdade pessoal. Ninguém deve ser obrigado a viver em discordância com aquilo que pessoal e identitariamente é”.
M) Em paralelo, o Tribunal Constitucional tomou posição recentemente favorável ao direito ao conhecimento da identidade pessoal e reconhecimento das origens genéticas, sem a colocação de qualquer prazo/elemento limitador ou condicionador, no seu acórdão de 225/2018 (relator Pedro Machete), datado de 24 de abril de 2018, proferido no processo nº 95/2017 - Vidé Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09.11.2022.
N) Pelo exposto bem decidiu o Tribunal da Relação quando entendeu que a desistência ocorrida no processo principal afetou o direito pessoalíssimo, absoluto e fundamental da ora Recorrida a ver conhecida a sua paternidade biológica e como tal essa desistência é nula.
- Da limitação dos efeitos da desistência do pedido aos efeitos patrimoniais:
O) Pretende a aqui Recorrente que a declarada nulidade diga respeito apenas aos efeitos pessoais e já não aos efeitos patrimoniais pretendendo que seja julgada válida a renuncia aos direitos patrimoniais decorrentes da filiação e a renuncia á herança.
P) O vínculo da filiação não se cinge ao direito à identidade pessoal consagrado no art. 26.º, n.º 1, da CRP, gerando igualmente para os envolvidos na relação parental efeitos pessoais (nos quais se compreendem, para além dos aspetos da afetividade e da prestação de assistência moral, a obrigação de criação e educação dos filhos) e efeitos patrimoniais (destacando-se entre estes a obrigação alimentar e o direito à vocação hereditária).
Q) O princípio da igualdade de filiação impõe que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, tenham os mesmos direitos, sob pena de violação do princípio da indivisibilidade ou unidade do estado.
R) “Numa acção de investigação de paternidade, os efeitos pessoais e patrimoniais decorrentes do estabelecimento da filiação não podem ser dissociados.”- AC. STJ de 17.03.2016 Relator Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. João Trindade
S) Atendendo a que numa ação de investigação de paternidade, os efeitos pessoais e patrimoniais decorrentes do estabelecimento da filiação não podem ser dissociados, a desistência do pedido naquela ação implicou a renúncia aos efeitos pessoais da filiação, isto é, ao direito de investigação da paternidade, já que a ora Recorrida, com esta desistência, deixou de poder ver investigada e reconhecida a sua paternidade mas também a renúncia aos efeitos patrimoniais da filiação –direitos fundamentais mas mais do que isso consta expressamente no acordo a renuncia expressa a todo e qualquer direito patrimonial que lhe pudesse advir da herança e da filiação.
T) Estes direitos não estavam na disponibilidade da Recorrida.
U) Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09.11.2022, Relator: Senhor Juiz Conselheiro Dr. Luis Espírito Santo:
“Estando em causa o exercício de um direito absoluto e pessoalíssimo, se o seu reconhecimento comportar benefícios patrimoniais para o investigante, tal significa tão somente que está a ser recolocada alguma (devida) justiça numa situação de injustificada desigualdade de tratamento entre filhos do mesmo progenitor (assumidos e não assumidos).
As eventuais vantagens patrimoniais, que podem acontecer ou não – mormente no plano sucessório e no âmbito do direito a alimentos –, uma vez reconhecida a paternidade, seja em que momento for da vida do investigante, são absolutamente naturais, lógicas, fundadas e justas.”
V) O reconhecimento da paternidade envolve direitos pessoais e patrimoniais que a lei não cinde - Ac. da Relação do Porto de 22-02-2021Relator: Exmo. Sr. Juiz Desembargador José Eusébio Almeida.
W) O artigo 2101º nº 2 do Código Civil impede a renúncia ao direito de partilhar.
X) Como se refere no Ac. da R.P. de não sendo admissível a renuncia ao direito de partilhar (2101º, n.º 2 do C.C.) não pode o requerente do inventario desistir do pedido, por estar a afirmar a sua vontade relativamente a um direito indisponível- Ac. da Relação do Porto de 25.03.1993, BMJ 425-623
Y) Como se refere no Ac. STJ de 26.04.1994, CJ/STJ,1994,2º-67: “A norma do n.º 2 é imperativa, tendo subjacente um princípio de interesse e ordem pública, e daí que seja nulo qualquer negócio que a infrinja (art.º 280º)”.
- Quanto à litigância de má-fé:
Z) Não há abuso do direito na pretensão de reconhecimento da paternidade, que inclui a vertente patrimonial.
AA) Cada uma das partes traz a sua versão dos factos - se existe intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) é de quem saiu beneficiado por este acordo - a Recorrente – que contra a verdade dos factos pretendeu e continua a pretender atuar contra a verdade (a verdadeira filiação) com propósitos ilegais de evitar a partilha com a Recorrida.
BB) A Recorrida é filha de CC tem direito ao conhecimento da sua identidade biológica e da sua identidade pessoal. Tem direito a conhecer a sua origem genética e paternidade biológica e ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico - o reconhecimento do direito absoluto e pessoalíssimo à sua própria identidade. As eventuais vantagens patrimoniais, mormente em sede de partilha, uma vez reconhecida a paternidade, seja em que momento for da vida do investigante, são absolutamente naturais, lógicas, fundadas e justas. Se a Recorrida tiver direito a receber mais do que recebeu é justo que receba, mas se o que recebeu é justo então em sede de partilhas nada mais terá a receber. Mas é em sede de partilhas que tal deve ser decidido e não através da postergação de um direito constitucional absoluto e pessoalíssimo.
CC) Ninguém pode renunciar ao conhecimento da sua identidade pessoal, e da sua filiação nem ao direito de partilhar por manifesta violação do disposto nos artt.º 26º, nº 1, e 25º, nº 1, e 36º da Constituição da República Portuguesa e do disposto no artigo 2101º nº 2 do Código Civil.
DD) Estas normas são imperativas, tendo subjacente um princípio de interesse e ordem pública, e daí que seja nulo qualquer negócio que a infrinja (art.º 280º do C.C.).
Termos em que se requer Vossas Excelências se dignem julgar improcedente o presente recurso, e declarada a nulidade da desistência do pedido e do acordo celebrado na ação de investigação de paternidade, prosseguindo a ação comum de paternidade os seus termos, assim se fazendo a devida e merecida Justiça!”
12. Em 21.10.2024 a Relação do Porto, em conferência, proferiu acórdão no qual indeferiu a reclamação de arguição de nulidade apresentada pela A./recorrente AA (por considerar tal reclamação inadmissível) e julgou improcedente o vício apontado pela recorrente DD ao acórdão recorrido, indeferindo a pretensão de aclaração formulada.
13. Em 13.11.2024 a A./recorrente interpôs recurso de revista contra o acórdão referido em 12, rematando com as seguintes conclusões:
“A) – A aqui Recorrente requereu no Tribunal de primeira instância que fossem anulados por erro e dolo, o acordo e a desistência do pedido de investigação de paternidade, celebrado e homologado em 16 de abril de 2018, entre ela e a Recorrida;
B) - O Tribunal de Primeira instância decidiu julgar improcedente o pedido de anulação do acordo por erro e dolo por não ser objeto de sentença homologatória: “No caso, apenas o requerimento de desistência do pedido apresentado na ação principal no dia 5 de abril de 2018 (cf. facto 15), foi homologado por sentença de 16 de abril de 2018, transitada em julgado e que extinguiu a instância da ação principal, sendo esta sentença homologatória da desistência do pedido a única suscetível de poder ser modificada, no âmbito do presente recurso de revisão”, mas conheceu as invocadas causas e factos do erro e do dolo julgando erradamente a matéria de facto e julgou totalmente improcedente o pedido da Recorrente.
C) - A Recorrente recorreu da matéria de facto e da matéria de Direito.
D) – O Tribunal da Relação do Porto confirmou a sentença de primeira instância e também não anulou o acordo por se tratarem de direitos disponíveis que admitem sempre desistência e transação ( pág.50 in fine) conhecendo apenas a desistência do pedido de investigação de paternidade e revogou parcialmente a sentença de primeira instância, revogando a sentença homologatória da desistência do pedido mas não o acordo relativo aos direitos patrimoniais.
E) – O Venerando Tribunal da Relação considerou ficar prejudicado o conhecimento substancial dos invocados vícios da vontade (erro e dolo) e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto, por força da nulidade da transação de direitos indisponíveis.
F) – Entendeu, que sendo nula a desistência, ficava prejudicado o conhecimento substancial dos vícios de vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto, tal como reclamado pela aqui Recorrente.
G) – Conheceu, por isso, da indisponibilidade dos direitos pessoais e já não do erro/ vício do acordo relativo aos direitos patrimoniais, não se pronunciando, data venia, sobre uma questão que, por lhe ter sido submetida para sua apreciação, devia ter apreciado- o dolo e engano.
H) – A aqui Recorrente apresentou reclamação junto do Venerando Tribunal da Relação do Porto, arguindo a nulidade do Acórdão por este proferido, por omissão de pronúncia quanto às questões patrimoniais supra elencadas.
I) – O Tribunal a quo, por sua vez, entendeu que “(...) o requerimento de arguição de nulidade do Acórdão apresentado pela apelante e dirigido a este Tribunal não é admissível”, visto que “admitindo o acórdão recurso ordinário, não se apresentou a apelante a recorrer”.
J) – A aqui Recorrente não apresentou recurso ordinário por tal possibilidade lhe estar vedada, por força da existência de uma dupla conforme quanto ao acordo relativo aos direitos patrimoniais.- A decisão do Tribunal da Relação alterou apenas a sentença na parte relativa à desistência do pedido de investigação da paternidade, não alterando a decisão quanto à anulação do acordo (direitos patrimoniais disponíveis) decisão que foi confirmada ao ser apenas julgado parcialmente procedente o recurso quanto aos direitos pessoais indisponíveis.
K) – Não restam dúvidas de que a jurisprudência tem concluído sempre no sentido de que a nulidade de um acórdão da Relação, só por si, nunca justifica um recurso de revista, mas apenas uma reclamação para o tribunal que proferiu a decisão.
L) - O Acórdão da Relação recorrido está em contradição, no domínio da mesma legislação [art.º615º, n.º4 e art.º 674º, n.1 al. c) do C.P.C.] e sobre a mesma questão fundamental de Direito (arguição de nulidades por reclamação ou recurso quando for este o único fundamento da impugnação), com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de abril de 2024, Processo n.º 5056/15.9T8MTS-A.P1, já transitado em julgado.
O Tribunal da Relação (Acordão Recorrido) entende que a mera arguição de nulidades (análise exclusiva de nulidades imputadas à decisão recorrida) deve ser dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça através de recurso.
O Supremo Tribunal de Justiça (acórdão fundamento) entende que a mera arguição de nulidades deve ser dirigida ao Tribunal que proferiu a decisão através de reclamação.
Acordão fundamento: “não é admissível a interposição de recurso de revista para análise exclusiva de nulidades imputadas à decisão recorrida, devendo tais nulidades ser apreciadas pelo tribunal ad quem apenas enquanto fundamento acessório”.
“Ou seja, no caso de os Recorrentes não pretenderem impugnar a decisão com outros fundamentos para além das imputadas nulidades por omissão de pronúncia – como sucedeu in casu – se compreende que optem pela reclamação junto do tribunal que proferiu a decisão, como meio processual idóneo a obter a apreciação da sua pretensão.”
M)- A Recorrente não pretendeu impugnar a decisão da Relação com outro fundamento para além da imputada nulidade, por omissão de pronúncia, por isso reclamou do acórdão da relação perante o Tribunal que proferiu a decisão.
N) - Mas a Relação entendeu – decisão sub iudice em crise- que a Recorrente não podia ter reclamado e devia ter recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça. É desta decisão e deste entendimento do Tribunal da Relação de que ora se recorre.
O) – Padecendo o acórdão proferido do vício constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, isto é, da omissão de pronúncia por parte do Julgador sobre questões que devia apreciar – a existência de erro e engano na celebração do acordo sub iudice – e não sendo admissível recurso ordinário, por força da existência de uma dupla conforme, o meio adequado para a aqui Recorrente reagir passaria, desde logo, por apresentar a devida reclamação junto do Tribunal que proferiu a decisão, como impõe o n.º 4 do artigo 615.º do CPC.
P) - Mas, mesmo que se entendesse não existir dupla conforme, a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é no sentido de que, se o fundamento da impugnação da decisão é exclusivamente a nulidade cometida sempre se deve reclamar junto do tribunal que proferiu a decisão, como meio processual idóneo a obter a apreciação da sua pretensão e não recorrer.
Q) – Com o devido respeito, o Tribunal a quo decidiu erradamente ao indeferir a aludida reclamação, entendendo, em contrapartida, que a ora Recorrente deveria ter lançado mão, ao invés de uma reclamação, de um recurso ordinário.
R) – Está, também, em contradição com o leque de acórdãos, já transitados em julgado, a título exemplificativo, supra expostos, maxime, com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de abril de 2024, Processo n.º 5223/19.6T6STB.E1.S1.
S) – É de entendimento dominante, como dispõe o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 04 de abril de 2024, Processo n.º 5223/19.6T6STB.E1.S1, que as nulidades por omissão de pronúncia devem ser processualmente suscitadas através de reclamação junto do tribunal que prolatou a decisão.
T) – A reclamação apresentada pela ora Recorrente foi julgada inadmissível pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto que, consequentemente, não conheceu do objeto da mesma.
U) - A Recorrente tem data vénia direito a ser reconhecida como filha do seu verdadeiro Pai, que sempre a acarinhou e acompanhou, mas também tem direito a receber patrimonialmente o que é dela, por direito sucessório reitera-se, sem que alguém lhe diga que “renunciou a todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança” e que desse acordo resulta que “está integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança”, e que se obrigou “a nada reclamar ou peticionar seja a que titulo for da herança” ( acordo de 28.03. 2018).
Nestes termos e nos demais de Direito, muito respeitosamente, requer a V. Exas se dignem julgar totalmente procedente o presente Recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação da nulidade por omissão de pronúncia suscitada pela ora Recorrente quanto ao acordo e direitos patrimoniais da Recorrente, fazendo desta forma a mais rogada e merecida Justiça”.
14. A R./recorrida DD contra-alegou, tendo terminado com as seguintes conclusões:
“1º O presente recurso de revista foi interposto do douto acórdão proferido em 21.10.2024 pelo Tribunal da Relação do Porto, que indeferiu o requerimento de arguição de nulidade apresentado pela Recorrente AA por considerar ser o mesmo legalmente inadmissível, uma vez que,
2º admitindo o Acórdão recurso ordinário, qualquer eventual nulidade deveria ter sido arguida em recurso a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, e não através de reclamação dirigida ao próprio Tribunal da Relação.
3º Ora, isto é o que resulta da Lei - o nº4, do art. 615º, aplicável ex vi nº2, do art. 666º, do CPC – e da jurisprudência mais que assente, como se indica a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2020.07.08, no Processo nº 1093/14.9TASTR.E1.E1.
3º Na situação aqui em causa não há dúvidas de que o acórdão era recorrível, não existindo a dupla conforme que alega a Recorrente.
4º Assim, não assiste razão à Recorrente, pois foi correctamente indeferida a reclamação de arguição de nulidade por esta apresentada.
5º De qualquer modo não existe a nulidade invocada pela Recorrente por, segundo alega, ter havido omissão de pronúncia quando o Tribunal da Relação não apreciou a validade de Acordo extrajudicial de 28.03.2018,
6º pois o Tribunal da Relação decidiu, como o Tribunal de Primeira Instância, que a questão da validade do acordo referido não poderia ser decidida em sede do recurso de revisão que está aqui em causa.
NESTES TERMOS E NOS QUE V.EXAS. MUITO DOUTAMENTE SUPRIRÃO DEVE SER CONSIDERADO IMPROCEDENTE O PRESENTE RECURSO COM O QUE SE FARÁ JUSTIÇA!”
15. Admitidos ambos os recursos, foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O presente acórdão tem por objeto duas revistas: uma, interposta pela recorrida DD, contra o acórdão da Relação do Porto de 03.6.2024, que julgou a apelação procedente e, consequentemente, revogou a sentença revidenda, determinando o prosseguimento do processo (ação principal) até à decisão final; outra, interposta pela recorrente AA, contra o acórdão da Relação do Porto, de 21.10.2024, que indeferiu a reclamação de arguição de nulidade apresentada pela recorrente AA contra o citado acórdão de 03.6.2024.
2. Começaremos por apreciar a revista interposta por DD.
Nela, são abordadas as seguintes questões: necessidade de aclaração do acórdão recorrido; existência, ou não, de nulidade da desistência do pedido por se estar, ou não, perante direitos indisponíveis e consequente nulidade da sentença homologatória; possibilidade de limitar os efeitos da desistência do pedido e respetiva homologação aos efeitos patrimoniais emergentes ao estado de filho; litigância de má-fé por parte da recorrente AA.
2.1. Primeira questão (aclaração do acórdão)
Neste segmento da revista a recorrente entende que o dispositivo do acórdão recorrido é pouco claro quanto ao pedido, que havia sido formulado pela recorrente AA (no requerimento de recurso de revisão), de anulação do acordo extrajudicial celebrado entre a recorrente AA e a recorrida DD no dia 28.3.2018. Segundo a ora recorrente, o dispositivo do acórdão deveria ter confirmado a decisão a esse respeito proferida pela primeira instância, que foi de absolvição do pedido.
A Relação, na apreciação que, em conferência, fez desta pretensão de aclaração, concluiu que o acórdão não enferma de contradição nem de qualquer ininteligibilidade, aduzindo que “antes a mesma [a decisão recorrida] tem um só sentido e é clara, evidente e bem percetível, sendo que o que foi decidido foi, na procedência da apelação, como fundamentado, e na revogação da sentença homologatória da desistência do pedido, determinar-se o prosseguimento da ação principal, para apreciação do direito que aí está a ser atuado (pedido com a respetiva causa de pedir)”. Mais reproduziu, a Relação, a passagem do acórdão recorrido que se reporta à alegada dúvida suscitada pela recorrente, passagem essa que tem o seguinte teor (transcrevendo-se, incluindo o realce a negrito):
“E, como decidiu o Tribunal a quo, sendo o objeto do recurso de revisão uma decisão judicial, é inadmissível, no âmbito do presente recurso, o primeiro pedido formulado pela recorrente - o de anulação do acordo celebrado entre a recorrente e DD no dia 28 de março de 2018, acordo extrajudicial esse não objeto da sentença de homologação. Apenas foi homologado, por sentença de 16 de abril de 2018, transitada em julgado, e que extinguiu a instância da ação principal, o requerimento de desistência do pedido, apresentado na ação principal no dia 5 de abril de 2018, apenas dessa anulação se podendo, pois, apreciar, e apenas esta estando em causa no âmbito do recurso de revisão, a ela se limitando, também, o presente recurso”.
Vejamos.
A aclaração de decisão, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 669.º do anterior Código de Processo Civil, não tem respaldo no atual CPC.
Na atual versão do CPC a eventual ambiguidade ou obscuridade da decisão que a torne ininteligível configura a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1 do CPC, a sentença é nula quando, nomeadamente:
“b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Ora, no acórdão que antecede mostram-se enunciados quais os fundamentos de facto e de direito que sustentam a decisão de procedência da apelação e a consequente declaração de nulidade da sentença revidenda e determinação do prosseguimento do processo principal.
E tais fundamentos harmonizam-se entre si e com o veredito final, não se surpreendendo entre eles qualquer desacerto lógico.
No que concerne ao pedido, que havia sido formalizado no requerimento do recurso de revisão, de anulação do acordo extrajudicial celebrado entre AA e DD, a Relação expressamente esclareceu que concordava com a 1.ª instância, no sentido de que a questão da validade desse acordo extrajudicial se encontrava fora do âmbito do recurso de revisão, não se incluindo também no objeto da apelação. E, na sequência do assim ajuizado, no dispositivo apenas se emitiu juízo de revogação da sentença revidenda (sentença que havia homologado a desistência do pedido formulada pela A./recorrente no processo principal), nele se excluindo qualquer juízo acerca do dito acordo extrajudicial.
Tudo é muito claro, não padecendo o acórdão de qualquer ininteligibilidade.
Nesta parte, pois, a revista sub judice é improcedente.
2.2. Segunda questão (nulidade da desistência do pedido na ação declarativa)
2.2.1. A 1.ª instância deu como provada a seguinte
Matéria de facto (sendo certo que a Relação não chegou a sindicar a decisão de facto, por considerar tal apreciação – requerida pela apelante - prejudicada pelo resultado da apelação)
1) A recorrente nasceu no dia D/M/1972 na freguesia e concelho de ... e foi registada como sendo filha de BB e de EE, casados entre si.
2) BB trabalhava como agricultor em vários terrenos agrícolas e afins que pertenciam a CC.
3) CC intitulava-se de Padrinho da recorrente e esta tratava-o como tal;
4) A recorrida, legal representante de Herdeiros de CC, é madrinha da recorrente;
5) Desde que a recorrente nasceu que CC participava em todas as suas festividades (religiosas e aniversários);
6) As famílias da recorrente e da recorrida eram próximas;
7) CC morreu no dia 2/04/1996, no estado de viúvo, tendo deixado como única e universal herdeira a sua filha DD, nascida no dia D/M/1944 na freguesia de ..., concelho Matosinhos;
8) Em 22/10/2015 a recorrente instaurou uma ação de impugnação de perfilhação e de investigação de paternidade contra os herdeiros de BB e contra os herdeiros de CC, pedindo que fosse reconhecido e declarado que não é filha de BB e fosse reconhecido e declarada a paternidade relativamente ao CC.
9) Na pendência dessa ação foram realizados exames periciais designadamente à recorrente, sua mãe, à recorrida e a CC cujo cadáver foi exumado:
10) Após o conhecimento do resultado do exame referido em 9) a recorrente e a recorrida requereram, por requerimento subscrito pelos respetivos mandatários, a suspensão da instância dos autos principais;
11) Nessa sequência, iniciaram-se negociações entre as mandatárias que representavam ambas as partes na ação principal com vista a alcançarem um acordo;
12) No âmbito dessas negociações foram apresentadas pelas representantes da recorrente diversas propostas de acordo, com vista a que lhe fossem atribuídos bens que integravam a Herança de CC; - facto impugnado na apelação
13) De entre essas propostas, a recorrente propôs-se a que lhe fosse atribuído um dos prédios que integrava o património da herança de CC – Horto a que corresponde o artigo matricial ..62 da freguesia de Paranhos, proposta que veio a ser aceite pela recorrida e uma quantia em dinheiro; - facto impugnado na apelação
14) Nessa sequência a recorrente e a recorrida celebraram o seguinte acordo:
“AA (...) E, HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE CC E HERDEIROS DE CC (...) aqui representada pela universal herdeira e Cabeça de Casal a sua filha, DD (...) De boa-fé declaram e acordam o estabelecido nas cláusulas seguintes:
2ª A AA e a herança pretendem transigir na ação judicial supra identificada, o que fazem nos seguintes termos e condições:
Considerando que, os dois relatórios periciais de investigação de parentesco biológico realizados no âmbito daquele processo judicial, não permitem excluir que o pai da DD é o pai biológico da AA,
A AA receberá uma importância em dinheiro e um bem imóvel da herança, como que se de uma partilha se tratasse,
Neste seguimento, a AA receberá o seguinte:
a) a quantia de 81.000,00€ (oitenta e um [mil] euros), a qual deverá ser paga em numerário até ao dia 05/04/2018 (data da realização da escritura pública do bem imóvel identificado infra);
b) Um prédio Urbano, casa de dois pavimentos e quintal, tendo o r/c duas divisões, andar seis dependências (lotes de gado) seis dependências (coberta uma) e dependência (casa eira), com fachada gatlada, sito no ligar do tronco (estrada interior da circunvalação ao ...) casa 1, lugar de ..., 4200-...Porto, com a área total do terreno de 1925.0000m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...........25 da freguesia de Paranhos, e inscrita na respetiva matriz urbana sob o artigo ..62 da referida freguesia de Paranhos.
Com o recebimento dos bens indicados nas supras indicadas ais. a) e b), a AA declara para todos os devidos e legais efeitos, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido efetuado no processo judicial n° 5056/1 5.9T8MTS, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Matosinhos - Juiz 4 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA - atento o recebimento dos bens (importância em dinheiro e bem imóvel) atrás mencionados nas als. a) e b), e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança - obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que titulo for da herança (ou seja, da Herança aberta por morte de CC, de Herdeiros de CC ou mesmo de DD), incorrendo na mesma obrigação os seus representantes, sucessores e herdeiros.
Cláusula 2 a : “ ...a AA declara para todos os devidos e efeitos legais, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido .
Cláusula 3 a : “ Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA - atento o recebimento dos bens (…) e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha possa ou pudesse advir da herança, obriga-se a nada reclamar ou peticionar a que titulo for da herança”.
15) No dia 5 de abril de 2018 a recorrente apresentou requerimento na ação principal no qual declarou desistir do pedido por si formulado;
16) Por sentença de 16 de abril de 2018 foi homologado a desistência do pedido formulado pela recorrente;
17) No dia 5 de abril de 2018 foi outorgada escritura publica de doação do imóvel do imóvel referido em 14) mediante a qual a recorrida o declarou doar a II, filha da recorrente, que aceitou a doação e na mesma data foi entregue à recorrente a quantia monetária referida em 14);
18) No mês de junho de 2020 a recorrente conversou com familiares e amigos, designadamente FF, GG e HH sobre o património de CC;
19) No dia 4 de junho de 2015 DD recebeu o seguinte escrito subscrito pelo mandatário da recorrente à data
“Exm. a Senhora:
Encarrega-nos a nossa cliente supra referenciada, sua irmã (como V. Ex. a bem sabe e admitiu expressa e directamente à mesma em conversa à cerca de 2 anos, a qual só ficou a saber a verdade nessa altura), por parte do seu falecido pai. o Sr. CC), e também sua afilhada e do seu ex-marido de V. Ex.* (por conveniência, como V. Ex. a também lhe explicou, para calar os rumores do povo e da vizinhança, pois era e é de conhecimento público).
Sobre a relação (extra-conjugal) que o seu falecido pai teve, com a mãe da sua irmã, a D. EE (na altura casada com o falecido Sr. BB), tendo nascido dessa relação, como V. Ex. a bem sabe e admitiu expressamente. a sua irmã D. AA, em D/M/1972. não obstante, no Registo de Nascimento da mesma constar (indevidamente) o nome do referido marido da D.EE.
Assim, pretende a sua referida irmã, repor a verdade dos factos, e adquirir os eus direitos, na qualidade de legitima herdeira do falecido pai de ambas (Sr. CC), mediante a instauração das competentes Ações de Impugnação de Paternidade, e. Reconhecimento Judicial de Paternidade (estando a mesma na posse de provas diversas concretas e cruciais conducentes ao êxito de ambas as ações).
Contudo, torna-se necessária a colaboração de V, Ex. a , no testemunho e realização de eventuais testes de ADN . para evitar situações mais desagradáveis, como por exemplo: o pedido de exumação dos restos mortais do seu falecido pai. para a realização desses referidos testes de .ADN, a serem ordenados pelo Tribunal (caso não haja acordo ou intenção de colaboração de V. Ex. a ).
Finalmente, a sua referida irmã tem conhecimento que. desde que falou com V. Ex. a sobre este assunto e sobre os direitos da mesma sobre a herança do vosso falecido pai, V. Ex. a tem tomado diligências públicas e não só (na venda de bens imóveis, etc...), com vista à dissipação indevida dos bens que compõem a referida herança, para a tentar prejudicar, cuja Relação de Bens, à data do óbito temos na n/posse e que se junta em anexo. (…)”
20) Chegou ao conhecimento da recorrida que, durante o tempo em que decorreram as negociações referidas no facto 11), foi contratada uma arquiteta pela recorrente para avaliar os bens da herança de CC;
21) À data da celebração do acordo referido em 14) a recorrente conhecia a relação de bens de CC à data do seu óbito; - facto impugnado na apelação.
Na sentença enunciaram-se os seguintes
Factos não provados
I. mais que um mero trabalhador de CC, BB era também um amigo seu;
II. para além do facto provado em 3) que a ligação entre a recorrente e CC fosse muito forte;
III. para além do facto provado em 6) a proximidade entre os lares fosse tão grande que todos eles se sentiam como familiares diretos, como se de uma única família se tratasse;
IV. para além do que se teve por provado em 11) a 13), na sequência do facto provado em 10) a representante da herança recorrida, DD, tenha apresentado uma proposta à Recorrente na qual lhe deu a escolher um prédio entre os seguintes: - 3 casas seguidas sitas na Travessa 2 e terro ao lado (artigos ..90, ..92, ..86); - Horto (artigo ...2 Paranhos, Porto); - Casa ao lado da habitação da Mãe da A. sita na Rua 3 (artigo ..46). - facto não provado impugnado na apelação
V. A representante da recorrida lhe tenha dito que o referido em IV) era o único património de CC a partilhar. - facto não provado impugnado na apelação
VI. A recorrida de boa-fé tenha acreditado nas palavras de DD. - facto não provado impugnado na apelação
VII. A recorrida à data das negociações referidas em 11) e 12) desconhecesse o património de CC; - facto não provado impugnado na apelação
VIII. quando surgiram os resultados das perícias que provavam que a Recorrente também era filha de CC, DD tenha procurado em pouco tempo, ludibriar a Recorrente, dizendo-lhe que o falecido pai apenas tinha deixado o património referido no facto IV, quando sabia que isso não correspondia à verdade, - facto não provado impugnado na apelação
IX. para além do que se teve por provado nos factos 12) e 13), DD tenha dado a escolher à recorrente um prédio e lhe tenha oferecido dinheiro, requerendo em troca que a recorrente assinasse o referido acordo e desistisse da ação, porque não era do seu interesse que fosse proferida sentença a declarara que CC era pai da recorrente - facto não provado impugnado na apelação
X. o prédio constante do acordo referido no facto 13) fosse uma “ninharia” quando comparado com todo o património que CC havia deixado. - facto não provado impugnado na apelação
XI. DD se tenha aproveitado da boa-fé e desconhecimento da Recorrente para a enganar e assim a fazer assinar um acordo e desistir da ação. - facto não provado impugnado na apelação
XII. DD tenha ocultado todo o demais património de seu pai, induzindo a recorrente a assinar o acordo referido em 14), para a enganar; - facto não provado impugnado na apelação
XIII. a recorrente desconhecendo a realidade dos factos, acreditando nas palavras de DD e que apenas os bens referidos em IV pertenciam á herança aberta por óbito de CC, tenha aceite os termos do acordo referido em 14); - facto não provado impugnado na apelação
XIV) se no momento em que subscreveu o acordo referido e 14) a recorrente soubesse que o património de CC era muito maior nunca teria aceite subscrever o acordo referido em 3) e desistir da ação principal. - facto não provado impugnado na apelação
XV) na conversa referida no facto 18) a recorrente tenha tomado conhecimento que CC tinha um património de mais de 70 imóveis, avaliados em mais de 15 milhões de euros, para além de possuir várias contas bancárias, no Banco Hispano Americano em Vigo, Espanha (atual Santander), na Caixa Geral de Depósitos e antigo BES.
XVI) que após a conversa referida no facto 18) a recorrente sentindo-se magoada e enganada, tenha começado a investigar os bens imóveis que faziam parte do património de CC. - facto não provado impugnado na apelação
2.2.2. O Direito
Como é sabido, à luz do recurso extraordinário de revisão a paz jurídica alcançada com o trânsito em julgado da decisão proferida pelo tribunal em ordem a resolver o litígio que lhe fora apresentado pode ser questionada em casos excecionais, taxativamente enunciados no art.º 696.º do CPC, em que se considera que a justiça foi ou pode ter sido seriamente afetada por vícios atinentes ao julgador (a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções), à tramitação processual (o processo correu indevidamente à revelia do réu), às partes (nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou; o litígio assenta sobre ato simulado das partes, sem que o tribunal se tivesse apercebido da fraude), à prova produzida (a decisão foi determinada por documento, ato judicial, depoimento, declarações de peritos ou árbitros que se revelou serem falsos, sem que essa matéria tenha sido alvo de discussão no processo em que a decisão foi proferida; a decisão foi proferida sem que se tivesse levado em consideração, por não ter sido apresentada perante o tribunal, documento de que a parte não tinha conhecimento ou de que não pôde fazer uso no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seria suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida), é inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português, ou resulta de erro jurisdicional suscetível de responsabilizar civilmente o Estado Português.
O recurso deve ser interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever (n.º 1 do art.º 697.º do CPC). Será esse tribunal que verificará da admissibilidade do recurso, indeferindo-o quando não tenha sido instruído nos termos previstos no art.º 698.º do artigo anterior ou quando reconheça de imediato que não há motivo para revisão. Se entender que nada obsta à admissão do recurso, o tribunal ordena a notificação do recorrido para responder no prazo de 20 dias e, depois, seguir-se-á a tramitação que ao caso couber, culminando na prolação da decisão que julgue o recurso (art.º 700.º do CPC). Trata-se da fase rescindente, destinada a afastar ou “rescindir” a decisão transitada em julgado (cfr., v.g., José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª edição, 2022, p. 302). Se o recurso for julgado procedente, proferir-se-á nova decisão ou realizar-se-ão os atos necessários a novo julgamento (art.º 701.º do CPC). No caso da alínea h) (responsabilidade civil do Estado por danos no exercício da função jurisdicional) o recorrente será notificado para, no prazo de 30 dias, formular o pedido de indemnização contra o Estado, continuando o processo em termos a definir pelo juiz. Esta fase, subsequente à fase rescindente, é a fase rescisória, que visa retomar o processo e aí obter uma decisão que substitua a rescindida ou anulada (cfr., v.g., José Lebre de Freitas e outros, ob. cit., p. 302).
Da descrita tramitação resulta que este procedimento tem estrutura e natureza especial, que o distancia dos recursos ordinários. Desde logo, o recurso não corre perante tribunal superior ao que proferiu a decisão recorrida, mas sim perante o tribunal que proferiu a decisão a rever. Isto é, o tribunal competente para tramitar e julgar o recurso extraordinário de revisão é o tribunal que proferiu a decisão a rever (v.g., José Lebre de Freitas e outros, ob. cit., p. 320).
No caso dos autos, o recurso de revisão radica na previsão da alínea d) do art.º 696.º do CPC, norma que possibilita a revisão de decisão transitada em julgado quando “[s]e verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou”.
Tem-se aqui em vista a manifestação do princípio do dispositivo que se traduz no poder de as partes porem fim ao litígio através de um negócio que, assumindo vestes processuais, se repercute diretamente no campo material, do direito substantivo.
Com efeito, sob a epígrafe “Liberdade de desistência, confissão e transação”, o art.º 283.º do CPC estipula, no seu n.º 1, que “[o] autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele, como o réu pode confessar todo ou parte do pedido” e, no n.º 2, que “[é] lícito também às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objeto da causa”.
Os efeitos desses negócios de autocomposição do litígio estão expressamente enunciados nos artigos 284.º e 285.º do CPC: a confissão e a transação “modificam o pedido ou fazem cessar a causa nos termos em que se efetuem” (art.º 284.º) e a desistência do pedido “extingue o direito que se pretendia fazer valer” (n.º 1 do art.º 285.º).
Essa conformação material do direito substantivo (pela sua modificação, eventual constituição ou extinção) ficará coberta pela força do caso julgado através da sentença homologatória proferida pelo juiz do processo (artigos 290.º n.º 3, 291.º n.º 2 e 619.º n.º 1 do CPC). Embora o juiz não aplique o direito objetivo aos factos provados na causa, a sentença homologatória constitui uma sentença de mérito, na qual se condena e/ou absolve o réu (ou se condena ambas partes, nos termos de eventual transação), consoante o negócio jurídico celebrado.
A confissão, a desistência e a transação podem enfermar de nulidade ou de vício que acarrete a anulabilidade, o que poderá ser declarado nos termos do regime geral dos negócios jurídicos (art.º 291.º n.º 1 do CPC).
O obstáculo formado pelo trânsito em julgado da sentença homologatória do ato viciado “não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas [confissão, desistência ou transação], ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação” (n.º 2 do art.º 291.º).
A lei prevê, pois, que em lugar de se atacar primeiramente o ato viciado, em ação declarativa, para depois se obter a revisão da sentença homologatória, se cumule no recurso de revisão a impugnação do ato das partes e da sentença homologatória.
Revertamos ao caso dos autos.
A recorrente havia intentado uma ação de impugnação de paternidade presumida, cumulada com um pedido de investigação de paternidade. Tendo chegado a um acordo extrajudicial com a parte contrária, a recorrente formalizou no processo desistência do pedido, a qual foi homologada por sentença. Já após o trânsito em julgado da sentença, a A., considerando que havia sido dolosamente enganada pela parte contrária aquando da celebração do dito acordo extrajudicial, intentou o recurso de revisão, peticionando a anulação do acordo extrajudicial, da declaração de desistência do pedido e da sentença homologatória. A 1.ª instância julgou o recurso totalmente improcedente, absolvendo a recorrida dos pedidos. Para tanto, considerou que não se tinham provado os alegados erro e dolo viciadores da formação da vontade da recorrente. A Relação, na sequência da apelação interposta pela recorrente, revogou a sentença homologatória da desistência do pedido e determinou o prosseguimento do processo (ação principal) até à decisão final. Para tanto, sem se pronunciar acerca dos alegados vícios da formação da vontade da recorrente AA, a Relação pronunciou-se acerca da questão, que considerou ser prévia a essa, da nulidade da desistência do pedido, por determinar a extinção de um direito indisponível.
A este respeito a recorrida DD, na sua revista, expendeu, preliminarmente, o seguinte:
“Antes de mais, refira-se que, o Tribunal de Primeira Instância, tal como refere na sentença que proferiu nestes autos, não poderia, na nossa modesta opinião, conhecer desta questão da existência ou não de nulidade da desistência do pedido apresentada pela Autora, AA, por estarem, ou não, em causa direitos indisponíveis, porque esta fundamentou o seu recurso extraordinário revisão apenas numa alegada anulabilidade por erro da desistência (anulabilidade, essa que na verdade não existiu), nunca tendo invocado nas alegações ou conclusões do recurso de revisão que deduziu, qualquer nulidade da desistência e da sentença de homologação da mesma, por eventual indisponibilidade dos direitos em causa (o que, na verdade, e como veremos, também não existe).”
Isto é, a recorrente emitiu uma “opinião”, segundo a qual o tribunal da primeira instância não poderia, como ele próprio declarou na sentença, conhecer da nulidade da desistência do pedido, mormente no que concerne à indisponibilidade do seu objeto, pois que a recorrente apenas fundamentara o seu recurso extraordinário numa alegada anulabilidade da desistência, por erro na formação da vontade.
Porém, desta afirmação a recorrente DD não retirou nenhuma conclusão ou pretensão, atinente ao acórdão recorrido, pelo que dela não mais se cuidará.
Atentemos, pois, naquele que a recorrente DD qualifica como sendo o “cerne da questão”.
Sob a epígrafe “Limites objetivos da confissão, desistência ou transação”, o art.º 289.º do CPC estipula, no seu n.º 1, que “[n]ão é permitida confissão, desistência ou transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”.
Decorre do princípio da instrumentalidade do processo civil que aquilo que não é permitido pelo direito substantivo não pode ser alcançado através do processo (cfr. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, AAFDL Editora, 2022, pág. 80). Assim, nomeadamente, não são válidos os negócios processuais de desistência do pedido celebrados nas ações que tenham por objeto direitos indisponíveis. Isto, porque, como se viu, a desistência do pedido acarreta a extinção do direito respetivo.
A desistência do pedido que viole tal limite será nula (art.º 294.º do Código Civil) e essa nulidade poderá fundar a revisão da respetiva sentença homologatória (artigos 291.º n.º 2 e 696.º alínea d) do CPC).
Como é sabido, no direito privado vigora o princípio geral da autonomia privada ou da autonomia da vontade (cfr. art.º 405.º do Código Civil). A sua consagração constitucional avulta nos artigos 26.º n.º 1, 61.º e 62.º da Constituição.
Contudo, a autonomia privada no direito civil pode conhecer limitações, em particular “no domínio das relações pessoais e das relações familiares, domínios onde o carácter imperativo de grande parte das normas jurídicas proíbe a disposição ou limitação de certos direitos (v.g., certos direitos de personalidade) ou reduz a liberdade de contratação a uma mera liberdade de concluir ou não o acto jurídico, mas fixando-lhe, necessariamente, uma vez celebrado, os efeitos (v.g., casamento, adopção)” – cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto (António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2.ª reimpressão, 2012, Coimbra Editora, páginas 103 e 104.
Essas limitações têm manifestação fértil no campo dos direitos de personalidade, situações jurídicas de que a pessoa é necessariamente titular e que tutelam bens atinentes aos “vários modos de ser físicos ou morais da sua personalidade” (Carlos Alberto da Mota Pinto, ob. cit., páginas 100 e 101). Trata-se, na formulação de Guilherme Machado Dray (Direitos de Personalidade, Anotações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Almedina, 2006, páginas 27 e 28), de direitos subjetivos que recaem sobre bens pessoalíssimos e que projetam a própria personalidade humana. São direitos pessoais, que podem ter por objeto bens tão díspares como o direito à vida, à integridade física ou ao nome. São pessoalíssimos, porque são intransmissíveis. São direitos absolutos, porque devem ser respeitados por todos, independentemente de qualquer relação jurídica. Traduzem uma excecional dignidade ética, que justifica o regime de tutela reforçado que lhes está associado.
Os direitos de personalidade integram a categoria dos direitos indisponíveis, cuja principal característica, na formulação sintética (com recurso à citação de diversos autores) de Joana Vasconcelos (in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, páginas 202 e 203), “é a sua subtração de princípio à vontade do seu titular, à qual é vedado “influir de modo direto e imediato sobre a sua consistência ou destino” (Manuel de Andrade, 1983: 66), através da modificação do seu conteúdo que opere a sua “redução ou enfraquecimento” (Oliveira Ascenção, 2002: 151), da sua oneração, da sua transmissão ou da sua extinção (v.g., por renúncia). Concretizando-se numa ligação especialmente intensa entre o direito e o seu titular, a indisponibilidade comprime a lata faculdade de disposição que “existindo na esfera jurídica de cada pessoa”, se refere “a todos os direitos subjetivos de que ela seja titular” (Carvalho Fernandes, 2007 : 589), de modo a proteger interesses que, sendo de ordem pública, se impõem à autonomia privada”.
O art.º 81.º do Código Civil consagra, no seu n.º 1, a admissibilidade de princípio das limitações voluntárias ao exercício dos direitos de personalidade. Mas logo aponta para a ilicitude decorrente da contrariedade aos princípios da ordem pública (n.º 1, in fine). A invocação dos princípios da ordem pública deverá comportar a aplicação da totalidade do disposto no art.º 280.º do Código Civil, isto é, a consideração dos obstáculos decorrentes da lei e dos bons costumes (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, 2006, pág. 155).
Acresce que, no n.º 2 do art.º 81.º do Código Civil, se garante, de forma lata, ao titular do direito de personalidade, um poder de desvinculação unilateral da limitação negociada, sem prejuízo da obrigação de indemnização dos prejuízos causados às “legítimas expetativas da outra parte”.
A ação de investigação de paternidade (e de maternidade) é, comummente, apontada como um exemplo de indisponibilidade do direito por parte do seu autor, que dela não poderá desistir (cfr., v.g, José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, 1946, páginas 522 e 523; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, 2021, Almedina, páginas 584 e 585; Miguel Teixeira de Sousa, CPC on line, anotação ao art.º 289.º; João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, AAFDL Editora, 2022, pág. 82). Intentada pelo pretenso filho, tendo em vista o reconhecimento judicial da paternidade do pretenso pai (artigos 1847.º e 1869.º do Código Civil), a desistência do pedido implicará a extinção do direito à obtenção de tal reconhecimento. Isto é, fica extinto o direito à fixação e reconhecimento de um aspeto essencial da personalidade de uma pessoa, o seu estado de filho do seu pai.
A circunstância de o filho ser livre de não exercer o seu direito, não instaurando a ação e, além disso, o facto de a lei sujeitar a prazos de caducidade o exercício da ação de investigação – artigos 1873.º e 1817.º do Código Civil – extinguindo-se o aludido direito pelo decurso do respetivo prazo, não interfere com tal conclusão. Uma coisa é o efeito de uma mera inatividade ou passividade do titular do direito, outra é a avaliação de um ato positivo do titular do direito, consubstanciado num negócio jurídico extintivo de um direito de personalidade.
Aliás, a jurisprudência judicial e, bem assim, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, têm-se debatido com o problema da conformidade constitucional dos aludidos prazos de caducidade face aos direitos de personalidade do pretenso filho, na sua dimensão constitucionalmente consagrada.
E, no âmbito dessa controvérsia, os juízes do Tribunal Constitucional, reunidos em plenário, acordaram, por maioria, no acórdão n.º 523/2025, de 17.6.2025, “julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
Com relevo para a problemática que nos ocupa, aí se considerou, historiando reflexões contidas noutros arestos, que é pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional que o estabelecimento de um prazo de caducidade para a ação de investigação da maternidade/paternidade limita os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade (ambos previstos no artigo 26.º, n.º 1, da CRP), e à constituição de família (artigo 36.º, n.º 1, da CRP), sobretudo porque, transcorrido o prazo de caducidade, o interessado vê extinto – e, nessa medida, definitivamente - o seu direito a solicitar judicialmente a investigação da sua filiação biológica.
E, desenvolvendo o tema, no referido acórdão aderiu-se à reflexão contida no acórdão do TC n.º 401/2011, onde se exarou o seguinte:
“O direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico (…) cabem no âmbito de proteção quer do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), quer do direito fundamental de constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição).
A identidade pessoal consiste no conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais, isto é, “uma unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, em “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, pág. 609, da 2.ª ed., da Coimbra Editora).
Este direito fundamental pode ser visto numa perspetiva estática – onde avultam a identificação genética, a identificação física, o nome e a imagem – e numa perspetiva dinâmica – onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação do indivíduo com a sociedade ao longo do tempo.
A ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de autodefinição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afetiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salienta Guilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em “Caducidade das ações de investigação”, ob. cit., pág. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um fator conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo.
Mas o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação, com todos os seus efeitos, conferindo ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas, assume igualmente um papel relevante na caracterização individualizadora duma pessoa na vida em sociedade. A ascendência funciona aqui como um dos elementos identificadores de cada pessoa como indivíduo singular. Ser filho de é algo que nos distingue e caracteriza perante os outros, pelo que o direito à identidade pessoal também compreende o direito ao estabelecimento jurídico da maternidade e da paternidade.
Por outro lado, o direito fundamental a constituir família consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição, abrange a família natural, resultante do facto biológico da geração, o qual compreende um vetor de sentido ascendente que reclama a predisposição e a disponibilização pelo ordenamento de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo da filiação, com realce para o exercitável pelo filho, com o inerente conhecimento das origens genéticas.
Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afetos – coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar – implica necessariamente a possibilidade de assunção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar suscetível de ser juridicamente reconhecida. Pela natureza das coisas, a aquisição do estatuto jurídico inerente à relação de filiação, por parte dos filhos nascidos fora do matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição, deve ser garantida através da previsão de meios eficazes. Aliás a perentória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) não atua só depois de constituída a relação, projeta-se também na fase anterior, exigindo que os filhos nascidos fora do casamento possam aceder a um estatuto idêntico aos filhos nascidos do matrimónio. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribuição de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimentos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente.
É, pois, pacífica a previsão constitucional dos direitos ao conhecimento da paternidade biológica e do estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais”.
Por outro lado, sobre a questão da inatividade do filho e, com utilidade para o caso que nos ocupa, o efeito (irremediavelmente) extintivo de uma opção pretérita de renúncia ao estado de filho por parte do seu titular, cabe aqui relembrar, como se fez no ora citando acórdão do TC n.º 523/2025, o que se exarou no acórdão do TC n.º 552/2024, de 15.7.2024:
“(…) os direitos pessoais do investigante aqui em causa – nuclearmente constitutivos da personalidade singular do indivíduo – não são compatíveis com a ideia de um ónus de diligência. No conteúdo do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade está a faculdade de durante toda a existência do titular autodefinir a sua vida – e não apenas até determinado momento, tornando irremediável a decisão anterior sobre o que se quer ser. A conformação identitária abrange o direito a «passar a ser o que ainda não se é, mas deseja ser» (Sousa Ribeiro “A inconstitucionalidade…”, cit., p. 222) sem constrangimentos por atitudes pretéritas.
De facto, e diferentemente do que sucede nos direitos de índole patrimonial – campo privilegiado de atuação do princípio da segurança jurídica –, a autodefinição da personalidade é uma ponderação insindicável do titular, não podendo a ordem jurídica vincular os sujeitos a declarações emitidas no passado quando estes, reavaliando os seus interesses, se querem delas libertar (…)”.
Ora, sendo a ação de investigação de paternidade (como se ponderou no acórdão do TC n.º 552/2024, também aqui reproduzido pelo acórdão do TC n.º 523/2025), “a ação que, no nosso direito, constitui o único meio de efetivação dos direitos fundamentais subjacentes ao estabelecimento da paternidade – exercendo o direito a conformar a sua identidade e desenvolver a sua personalidade ao adquirir o estatuto de filho do seu progenitor biológico”, pode concluir-se que a desistência do pedido nessa ação implica a renúncia aos direitos fundamentais a estabelecer as relações de parentesco (n.º 1 do art.º 36.º da CRP), ao conhecimento das origens genéticas , ínsito do direito à identidade pessoal (n.º 1 do art.º 26.º da CRP) e ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do art.º 26.º da CRP).
De facto, após a homologação da desistência do pedido, por sentença transitada em julgado, não mais pode o investigante exercer direitos constitutivos da sua personalidade, conformando plenamente a sua identidade pessoal e estabelecendo os vínculos jurídicos de parentesco. Isto é, ocorre uma extinção do direito do filho a procurar estabelecer a paternidade, afetando o exercício dos seus direitos à identidade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e a constituir família.
Tais consequências justificarão que, para a elas obstar, a lei faça valer o princípio da indisponibilidade – o que constituirá uma restrição ao princípio da autonomia da vontade que, pelas razões aduzidas, se justificará.
Tal restrição, enunciada no art.º 289.º n.º 1 do CPC, alcança, no campo do direito privado, fundamento geral na invocação da “ordem pública”, mencionada nos artigos 81.º n.º 1 e 280.º n.º 2 do Código Civil, conceito que tem em vista os “interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar” e os “princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse sistema” (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Almedina, 1983, páginas 334 e 335).
A desistência da ação de investigação implica a renúncia definitiva à tutela dos valores da personalidade fundamentais acima referidos, com consagração no direito ordinário nos artigos 70.º, 81.º, 1578.º, 1796.º n.º 2, 1797.º, 1847.º n.º 1, 1869.º do Código Civil.
Por isso, o tribunal a quo considerou que a declaração de desistência do pedido que fundou a sentença homologatória ora revidenda padecia de nulidade, o que, necessariamente, afetava a validade da sentença homologatória, que foi, consequentemente, revogada.
A ora recorrente, louvando-se no douto voto de vencido lavrado no acórdão recorrido, discorda do entendimento que fez vencimento no acórdão recorrido.
Segundo a recorrente, a desistência ocorrida no processo principal não afeta qualquer direito indisponível. “Se intentada uma acção de impugnação e investigação da paternidade, num caso como o que está em causa nos presentes autos, não se pudesse desistir dela por se estar perante direitos indisponíveis, estas acções também não estariam sujeitas às regras e prazos da caducidade, como de facto o estão – prazos esses que, decorridos os mesmos, fazem perder-se o direito a interpor-se a própria acção”. “Tal como dependeu da vontade da Autora/Recorrente, AA, intentar a acção principal, também tem esta todo o direito de desistir da mesma, desistindo do seu pedido de impugnação e investigação da paternidade”. “Não existem razões de ordem pública para que se considere indisponíveis os direitos aqui em causa. E impossibilitar a tomada de decisões livres relativamente a tais direitos, essa sim, poria em causa direitos consagrados constitucionalmente, relacionados com a autonomia da vontade e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade”. “Os direitos ao conhecimento da identidade biológica e da identidade pessoal, procurando-se uma correspondência entre a verdade biológica e verdade jurídica, que no entendimento seguido pelo acórdão de que se recorre justificaria a indisponibilidade dos direitos aqui em causa, são negados por diversas vezes pela nossa Lei (designadamente, quando estabelece regras e prazos de caducidade para este tipo de acções, mas também o que se fixa nos artigos 20º e 21º da Lei da procriação medicamente assistida, entre outros normativos legais), pelo que não se pode considerar estes, como direitos indisponíveis, e que não seja possível a renúncia aos mesmos”.
Pensamos que o já exposto acima responde aos argumentos apresentados pela recorrente para contrariar o acórdão recorrido. A autonomia da vontade pode e deve ceder quando razões ponderosas, face à especial relevância de determinados valores prosseguidos pela ordem jurídica, que seriam desrazoavelmente por ela afetados, o determinem. Já elaborámos acerca dos vícios de inconstitucionalidade de que padecem os limites temporais postos pelo legislador ao exercício do direito de instauração de ação de investigação de paternidade. Também se evidenciou a relevância do carácter irrevogável da desistência do pedido em ações dessa espécie, determinando a definitiva extinção da titularidade de um direito, o direito ao estabelecimento da identidade paterna (do pai biológico), e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, ínsitos do direito à identidade pessoal. As motivações patrimoniais que poderiam justificar a opção da A., de instauração da ação de investigação da paternidade, são perfeitamente legítimas: conforme se exarou no já citado acórdão do TC n.º 523/2025, citando o acórdão do TC n.º 552/2024, “[a]s motivações patrimoniais (possíveis e prováveis, em qualquer fase, quer dentro, quer fora do prazo) que tenham instigado o autor da ação são inteiramente legítimas, que é o de situar o investigante no sistema de parentesco, certificando um dado nuclearmente constitutivo, e em falta, da sua identidade pessoal. As motivações patrimoniais (possíveis e prováveis, em qualquer fase, quer dentro, quer fora do prazo) que tenho instigado autor da ação são inteiramente legítimas, por aquele meio. E não apagam ou empalidecem a produção do efeito pessoal» (Joaquim Sousa Ribeiro, “A inconstitucionalidade…”, cit., p. 234). No fundo, a vertente patrimonial é parte integrante do vínculo da filiação, podendo afastar-se a possibilidade do seu estabelecimento pela circunstância de, em fases avançadas da vida do filho, a dimensão sucessória subsistir a outros efeitos das responsabilidades parentais (Jorge Duarte Pinheiro, “Inconstitucionalidade…”, cit., p. 18).
Em segundo lugar, mesmo nos casos em que o móbil seja patrimonial, a única diferença entre este caso e o de qualquer outro filho que a todo o tempo exerce o seu direito hereditário – cfr. n.º 2 do artigo 2075.º do Código Civil – residirá na circunstância de aquele ainda não ter a paternidade estabelecida, eventualmente por ter nascido fora do casamento (e, assim, não beneficiando da presunção de paternidade) e por se ter frustrado a averiguação oficiosa da paternidade. Com efeito, no nosso direito, a efetiva convivência familiar não é condição de titularidade de direitos sucessórios, sendo estes atribuídos a quaisquer filhos do de cujus, independentemente da relação pessoal tida.
Ora, não se vê o que poderá justificar uma inferior tutela deste caso face àqueles que tardiamente exercem o seu direito de petição à herança: «O investigante não quer mais do que aquilo a que tem direito: que lhe seja reconhecida a condição de filho, e sendo-o, que seja investido (também) nos direitos patrimoniais dela decorrentes. Permitindo-lhe aceder a direitos desta natureza, o reconhecimento não é mais do que igualar a sua posição jurídica à dos que já gozavam de direitos idênticos, com exatamente a mesma causa - a relação de filiação. E é isso que justamente impõe o princípio constitucional da igualdade de tratamento entre filhos»”.
Se o móbil patrimonial não atinge a legitimidade da instauração da ação de investigação de paternidade, já o mesmo não se poderia dizer em relação à renúncia ao estado de filho, para alcançar benefícios patrimoniais. Com efeito, não se antevê que a busca de um alegado benefício patrimonial possa ser brandido como fundamento legal da disposição, na modalidade de renúncia, da titularidade de um bem pessoal e fundamental como o direito à identidade paterna, tanto do ponto de vista do seu conhecimento como da sua consagração jurídica.
Acresce que, no caso concreto, é a própria desistente que põe em causa a validade da sua desistência – pelo que seria no mínimo anómalo que, em nome do respeito pela sua autonomia da vontade e liberdade de autodeterminação, se lhe impusesse a validade de uma declaração de renúncia a direitos de personalidade em que a desistente não se revê.
Por último, a recorrente aponta normas (artigos 20.º e 21.º) da Lei da procriação médica assistida (Lei n.º 32/2006, de 26.7, com as alterações publicitadas), como exemplo de disposições legais das quais se poderia deduzir a disponibilidade do objeto da desistência do pedido sub judice.
Não se vislumbra que assim seja. A Lei n.º 32/2006 visa garantir o direito à parentalidade de pessoas que não se encontrem em condições de gerar em condições normais de procriação. Uma das técnicas de procriação médica assistida, a que se referem os citados artigos 20.º e 21.º, é a da inseminação artificial. Nos termos do art.º 21.º, o dador de sémen não pode ser havido como pai da criança que vier a nascer, não lhe cabendo quaisquer poderes ou deveres em relação a ela. Ora, tal solução é perfeitamente compreensível. O dador de esperma participa num projeto de parentalidade alheia, não própria, no qual a parentalidade da criança que vier a ser gerada será assumida pela pessoa beneficiária e pela pessoa que, com esta, tiver consentido no recurso à técnica em causa, nomeadamente a pessoa que com ela esteja casada ou unida de facto (art.º 20.º n.º 1). De todo o modo, as pessoas nascidas em consequência de processos de PMA podem, dentro de certas condições, obter informação sobre a identificação civil do dador (art.º 15.º n.ºs 2 e 5). Não é possível extrair, deste particular regime, qualquer inferência aproveitável para o caso sub judice.
Nesta parte, pois, a revista é improcedente.
2.3. Terceira questão (limitação dos efeitos da desistência do pedido e respetiva homologação aos efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho)
Neste segmento da revista a recorrente DD defende, baseando-se num trecho do acórdão recorrido, que seja considerada válida a desistência do pedido no que concerne aos direitos patrimoniais emergentes do estabelecimento da filiação entre a recorrente e o investigado, assim se revogando a sentença revidenda apenas na parte atinente à desistência do pedido no que concerne aos efeitos pessoais da ação de investigação.
Vejamos.
Os trechos pertinentes do acórdão têm a seguinte redação:
“Sendo o direito da família terreno fértil em situações jurídicas indisponíveis, com diversos institutos relativos ao estado das pessoas, consideramos que, como o faz Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, da irrenunciabilidade do estado civil se extrai a inadmissibilidade da desistência do pedido nas ações de investigação da paternidade quanto à pretensão de constituição do estado de filho, o caso, embora em questões relacionadas com efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho seja admissível tal desistência”.
(…)
Entendemos que, na verdade, sendo livre a decisão de propor ação já não pode ser exercida livremente a vontade de desistir de ação proposta por implicar, definitiva, extinção de direito, irrenunciável. E, como a ora relatora teve já oportunidade de se pronunciar “O atual regime jurídico do estabelecimento da filiação procura conformar o princípio da correspondência entre a verdade biológica e a verdade jurídica, na consideração da existência de um direito de cada um à identidade pessoal, abrangido pelo direito à sua própria historicidade pessoal, que tem ínsito o conhecimento dos progenitores biológicos” e “Os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao estabelecimento da paternidade do investigante reclamam intensa tutela, conducente a alcançar a Certeza, a Verdade e a Justiça, que sempre o Homem, os Cidadãos, os Tribunais e o Estado visam alcançar, e a extrair os devidos efeitos jurídicos em matéria de filiação, no momento em que o filho se sinta disposto a ir ao encontro do que sempre lhe devia ter sido proporcionado”.
Questão diversa é a relativa a direitos patrimoniais, em relação aos quais por se tratar de direitos disponíveis admitem, sempre, desistência do pedido e transação e, como bem observa Alberto dos Reis, também nada obsta à desistência da instância, mesmo nas ações que não comportam desistência do pedido, pois que a mesma não extingue o direito, que pode ulteriormente vir a ser exercido. O que é inadmissível é que, em matéria relativa a direitos indisponíveis, se permita a extinção do direito.
Revertendo para o caso, estamos, como vimos, perante uma desistência do pedido de impugnação da paternidade presumida e de investigação de paternidade, não comportando a ação desistência do pedido, por esta extinguir os direitos que a Autora se apresentou a atuar e de direitos irrenunciáveis se tratar. Tem, efetivamente, a sentença homologatória da desistência do pedido de ser revogada por padecer do vício de nulidade.
Sendo certo que a recorrente declarou nos autos principais que desistia do pedido e que tal desistência foi homologada por sentença, a mesma é nula, pois viola disposição imperativa (cfr. nº1, do art. 289º, do CPC, e art. 294º, do CC), caindo-se no fundamento de revisão convocado pela recorrente – o consagrado na al. d), do art. 696º -, procedendo, pois, o recurso”.
Como é evidente, a asserção contida no acórdão recorrido acerca da admissibilidade de desistência em questões relacionadas com efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho foi proferida em mero obiter dictum e nada tem a ver com o efetivo objeto, seja do recurso de revisão, seja da apelação sobre a qual a Relação se pronunciou. Com efeito, a ação de investigação de paternidade não é, seguramente, uma ação que tenha por objeto questões relacionadas com efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho. A ação de investigação (eventualmente cumulada com a impugnação de paternidade presumida) tem por objeto a averiguação da paternidade biológica do pretenso filho e o estabelecimento do nexo jurídico de filiação entre o filho e o investigado, se esse for o desfecho determinado pela prova produzida. A ação não tem por objeto o julgamento de questões patrimoniais. No caso sub judice, a declaração de desistência abarcou a totalidade do pedido, sem fazer destrinça entre efeitos pessoais e efeitos patrimoniais. O tribunal, como é evidente, não podia fazer tal diferenciação, apenas lhe cabendo homologar, ou não homologar, a declaração de desistência, como ela lhe foi apresentada. E, proposto recurso de revisão da sentença homologatória, não cabia ao tribunal, sob pena de incorrer no vício previsto nos artigos 609.º n.º 1 e 615.º n.º 1 alínea e) do CPC (juízo jurisdicional diverso do pedido), revogar a sentença apenas quanto ao suposto segmento atinente aos efeitos patrimoniais da desistência.
A recorrente invoca, em abono da pretendida restrição dos efeitos da revogação do acórdão revidendo, o acórdão do STJ de 09.04.2013, proferido no processo n.º 187/09.7TBPFR.P1.S1. Aí, no âmbito de uma ação de investigação de paternidade em que o investigado se insurgira contra o facto de a investigante ter demorado várias dezenas de anos até se decidir pela propositura da ação, a qual, segundo o investigado, se baseava em mero interesse patrimonial, dando lugar a abuso de direito, o STJ - com um voto de vencido - admitiu que (transcrevemos o respetivo sumário) “[a]s consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos à questão de estado – a filiação – não valendo para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo, em casos concretos, afastar o investigante da herança do progenitor, não sendo violado o princípio da indivisibilidade ou unidade do estado, podendo afirmar-se que, em caso de manifesto abuso do direito, o investigante, apesar de reconhecida a sua paternidade, poderá não beneficiar da vertente patrimonial inerente ao status de herdeiro”.
Note-se que, no caso do mencionado acórdão do STJ, se considerou não se verificar uma situação de abuso de direito, assim se confirmando a decisão de ambas as instâncias, que julgaram procedente (sem restrições ao âmbito do decidido) a ação de investigação de paternidade.
Parece-nos evidente que a discussão acerca de eventual abuso de direito na instauração de ação de investigação de paternidade caberá no quadro dessa ação, que não no recurso extraordinário de revisão de sentença.
Nesta parte, pois, a revista também improcede.
2.4. Quarta questão (litigância de má-fé por parte da recorrente AA)
A recorrente DD insurgiu-se também contra o acórdão recorrido, na parte em que revogou a condenação da recorrente AA como litigante de má-fé.
Sobre a recorribilidade de decisões atinentes à litigância de má-fé, haverá que atentar no disposto no art.º 542.º n.º 3 do CPC, segundo o qual “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé.”
Este preceito tem vindo a ser reiteradamente interpretado, pelo STJ, no sentido de “afirmar como requisito de admissibilidade de recurso de revista quanto à litigância de má-fé o facto de se tratar de uma decisão de condenação, admitindo-se, todavia, um grau de recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência. Desta forma, excluem-se do âmbito de recorribilidade as decisões condenatórias da Relação que confirmem a condenação proferida pela 1ª instância, uma vez que já se esgotou o grau de recurso legalmente previsto” (cfr. STJ, 23.01.2024, processo n.º 16556/17.6T8LSB.E1-A.S1; STJ, 17.9.2024, processo 1613/21.2T8PNF.P1.S1). Assim, ainda que o valor da ação supere a alçada da Relação, “a parte que tenha sido penalizada não pode interpor recurso de revista que abarque essa questão, regime que compatibiliza a tutela do visado (carecida, nesta parte, de um duplo grau de jurisdição) com a natureza marginal da questão” (António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, 1.º volume, 3.ª edição, 2022, Almedina, pág. 643).
Ora, se assim é em relação a uma decisão condenatória, também o será, pelo menos por identidade de razão, em relação a uma decisão absolutória (cfr. acórdãos do STJ, de 29.10.2024, processo n.º 82/20.9T8NIS.E1.S1 e 06.5.2021, processo n.º 7200/16.0T8STB.E1.S1). Acresce que o pedido de condenação da contraparte como litigante de má-fé, em multa e indemnização, não constitui o objeto da ação e está fora do âmbito da controvérsia (cfr. STJ, 22.11.2006, processo n.º 06S1542), constituindo uma questão processual, cuja decisão não cabe na previsão do art.º 671.º n.º 1 do CPC (aplicável ex vi art.º 697.º n.º 6 do CPC): o acórdão da Relação que sobre ela incidiu não conheceu do mérito da causa nem pôs termo ao processo (cfr. acórdão do STJ, de 18.3.2021, processo n.º 1575/17.0T8PRT.P1.S2).
Assim, nesta parte, a revista não é admissível.
3. Apreciemos agora a revista interposta pela recorrente AA
Esta revista foi interposta contra o acórdão supramencionado em I.12, proferido pela Relação em 21.10.2024, no qual, em conferência, a Relação se pronunciou sobre a aclaração requerida pela recorrente DD acerca do acórdão proferido em 03.6.2024 e, bem assim, sobre o requerimento de arguição de nulidades contra esse acórdão apresentado pela recorrente AA.
O requerimento de arguição de nulidade formulado pela recorrente AA está transcrito supra, em I.9. Nele, a recorrente imputa ao acórdão proferido em 03.6.2024 a nulidade de omissão de pronúncia, prevista no art.º 615.º n.º 1 al. d) do CPC. Segundo a requerente, o Tribunal da Relação, sem prejuízo de conhecer, como conheceu, da nulidade da desistência do pedido apresentado pela A. na ação de investigação de paternidade, por ter como objeto direitos indisponíveis, deveria também ter-se pronunciado acerca dos vícios da vontade que a recorrente havia invocado no recurso de revisão. Segundo a recorrente, não houve mera desistência do pedido, mas um acordo celebrado pelas partes nos autos principais, a pôr termo ao processo. Foi submetida à apreciação do tribunal a existência de erro e engano na celebração do acordo. A Relação, ao não conhecer os alegados vícios de vontade da recorrente na celebração do acordo celebrado em 28.03.2018 e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida na apelação, impede a recorrente de ver a questão, da anulação do acordo por erro, ser decidida judicialmente. A Relação conheceu as questões pessoais (nulidade da desistência), mas não as patrimoniais (nulidade do acordo). Segundo a requerente, a eventual procedência da ação de impugnação da paternidade e de investigação da paternidade não resolverá a questão da invalidade do aludido acordo celebrado quanto às questões patrimoniais. Por conseguinte, a requerente pretende que seja deferida a arguição de nulidade do acórdão com os fundamentos expostos, devendo a Relação conhecer da nulidade do acordo celebrado em 28.3.2018.
A Relação, mediante o acórdão proferido em 21.10.2024, indeferiu a reclamação de nulidade apresentada pela recorrente, nos seguintes termos, que aqui se transcrevem:
“Quanto à 1ª questão a apreciar [arguição de nulidade do acórdão deduzida pela apelante AA por requerimento autónomo], comecemos, desde logo, por referir que o requerimento de arguição de nulidade do Acórdão apresentado pela apelante e dirigido a este Tribunal não é admissível porquanto, e como estatui o nº4, do art. 615º, aplicável ex vi nº2, do art. 666º, do CPC, “As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e), do nº1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.
Ora, admitindo o acórdão recurso ordinário, não se apresentou a apelante a recorrer, não sendo legalmente admissível que venha arguir nulidades perante o Tribunal da Relação.
Assim, tem o referido requerimento de arguição de nulidades do Acórdão da Relação de ser indeferido por legalmente inadmissível.
Destarte, indefere-se o requerido pela Reclamante AA.
*
Custas pela reclamante, vencida, que lhes deu causa (art.º 527º nº1, 1ª parte, e nº2, do CPC).”
Conclui-se, pois, que a Relação rejeitou a apreciação da exposta arguição de nulidade do acórdão, por considerar que, sendo o dito acórdão suscetível de recurso, seria no âmbito do recurso que esse vício poderia ser apreciado.
Contra este acórdão reagiu a recorrente AA mediante a revista ora sub judice.
Revista esta que entendemos ser admissível, ao abrigo do regime dedutível do disposto nos artigos 671.º n.º 4 e 673.º, proémio, do CPC (ex vi art.º 697.º n.º 6 do CPC).
A recorrente assenta o seu inconformismo na asserção de que, contrariamente ao ajuizado pelo tribunal a quo, lhe estava vedado interpor recurso do acórdão proferido em 03.6.2024, por duas razões:
- existe dupla conforme;
- a jurisprudência tem concluído sempre no sentido de que a nulidade de um acórdão da Relação, só por si, nunca justifica um recurso de revista, mas apenas uma reclamação para o tribunal que proferiu a decisão e, concomitantemente, que nunca será por causa dessa nulidade que deixará de existir dupla conforme.
Vejamos.
Quanto à dupla conforme.
O n.º 3 do art.º 671.º do CPC consagra o obstáculo à revista comummente designado de “dupla conforme”:
“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.
In casu, a primeira instância julgou o recurso de revisão totalmente improcedente e absolveu a recorrida dos pedidos formulados.
Na sequência da apelação interposta pela recorrente, a Relação do Porto, com um voto de vencido, julgou a apelação procedente e, consequentemente, revogou a sentença homologatória da desistência do pedido e determinou o prosseguimento do processo (ação principal) até à decisão final.
Não é fácil conceber melhor exemplo de desenquadramento face ao conceito de dupla conformidade decisória.
Se, como agora alega a recorrente AA, a Relação tivesse coincidido com a primeira instância no juízo de improcedência da pretensão de declaração de anulação do acordo de cessação da causa celebrado entre as partes, então não se compreenderia como poderia a recorrente, na arguição de nulidade do acórdão apresentada perante o tribunal a quo, alegar – como alegou - que sobre essa matéria a Relação havia pecado por omissão de pronúncia.
A verdade é que a Relação emitiu um dispositivo completamente diferente do da 1.ª instância, com alterações profundas na respetiva fundamentação e, além do mais, sem unanimidade entre os juízes do respetivo coletivo.
Desde logo, a Relação, contrariamente à 1.ª instância, não se pronunciou acerca da anulabilidade da declaração de desistência do pedido com base em vício da vontade, por considerar que essa questão ficava prejudicada pela nulidade decorrente da indisponibilidade do direito alvo da desistência.
Contrariamente ao expendido pela recorrente na sua revista, em parte alguma do acórdão proferido em 03.6.2024 a Relação declarou ou decidiu que o mencionado acordo não seria anulado na parte respetiva aos direitos patrimoniais, por se tratar de direitos disponíveis, tendo emitido veredito sobre tal matéria.
Se a recorrente AA se sentia lesada no seu direito por a Relação não ter declarado a anulação do alegado acordo de cessação da ação principal (e da desistência do pedido) com base nos vícios da vontade invocados pela recorrente, tendo omitido a apreciação da concomitante impugnação da decisão de facto, poderia recorrer contra tal decisão, nos termos dos artigos 671.º n.º 1 e 674.º n.º 1 do CPC. Contrariamente ao expendido pela recorrente, a revista pode fundar-se em erros processuais ou nulidades do acórdão recorrido (vide alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 674.º). Ponto é que estejam verificados os pressupostos gerais e especiais da revista (artigos 629. n.º 1 e 671.º n.º 1 do CPC, ex vi art.º 697.º n.º 6 do CPC). Os quais, in casu, se verificam: está em causa uma decisão que pôs termo ao recurso de revisão, não se levantam dúvidas quanto às barreiras da alçada e do decaimento e à legitimidade da recorrente (atendendo ao agravo aos seus direitos invocado pela recorrente).
Sendo o acórdão suscetível de revista, é nela que deveriam ser apreciadas as nulidades de que padecesse, conforme expressamente se estipula no art.º 615.º n.º 4 do CPC, citado no acórdão recorrido. Sendo certo que nada em contrário do acima exposto é afirmado na jurisprudência citada pela recorrente: em todos os acórdãos aí identificados se concorre no sentido de que a arguição de nulidade de acórdão só pode ser apresentada diretamente perante o tribunal seu autor se o acórdão não for suscetível de recurso. Se o acórdão for suscetível de recurso ordinário, a nulidade deve ser invocada no recurso, perante o tribunal ad quem.
Assim, a Relação decidiu bem, ao rejeitar a apreciação do requerimento de arguição de nulidade do acórdão perante ela apresentado pela ora recorrente.
A revista apresentada pela recorrente AA é, pois, improcedente.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se ambas as revistas improcedentes, confirmando-se os acórdãos recorridos.
As custas das revistas, na modalidade de custas de parte, serão a cargo de cada uma das respetivas recorrentes, que nelas decaíram (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).
LISBOA, 28.10.2025
Jorge Leal (Relator)
António Magalhães
António Pires Robalo