CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CULPA DO LESADO
RISCO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
PEÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
CONCAUSALIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
REENVIO PREJUDICIAL
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
RECURSO DE REVISTA
BAIXA DO PROCESSO
Sumário


Se as circunstâncias de facto não permitem afirmar que o acidente é exclusivamente imputável ao lesado/peão, a culpa deste deve entrar em concorrência com o risco acrescido do veículo pesado que o atropelou, resultante de tal veículo circular numa estrada nacional a uma velocidade superior à legal e não utilizar, podendo, luzes máximas em local sem iluminação pública.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:

*

AA intentou acção declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra FIDELIDADE- Companhia de Seguros, S.A., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe o valor de € 65.000,00 a título de danos morais e uma indemnização por morte do seu filho, BB, no valor de €185.000,00 a que acrescem juros moratórios, contados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que o seu filho, BB, faleceu em consequência do acidente de viação – atropelamento – ocorrido no dia 30 de Setembro de 2019, cerca das 21h30m, na Estrada Nacional 4, por culpa do condutor do veículo de matrícula V1, com responsabilidade civil transferida para a Ré, por força do contrato de seguro com a apólice n.º .......35, sendo que aquele condutor seguia a uma velocidade superior à legalmente permitida e não se apercebeu da presença do peão. Mais alegou a Autora que sofreu dor pela perda do filho, o que lhe destroçou a vida familiar e lhe causou tristeza e amargura.

Regularmente citada, veio a Ré apresentar a sua contestação, defendendo-se por excepção dilatória, arguindo a falta de legitimidade da Autora, e por impugnação, imputando à vítima mortal a responsabilidade única, exclusiva, pela produção do acidente, concluindo, nessa medida, pela improcedência da acção e absolvição da Ré do pedido.

Porém, concluiu-se pela legitimidade processual da Autora para intentar a presente acção.

Instruído o processo, com junção de certidão dos autos de inquérito crime NUIPC 86/19.4GTEVR, referente ao acidente em causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu julgar totalmente improcedente, por não provada, a acção, e, consequentemente, absolver a Ré FIDELIDADE- Companhia de Seguros S.A. dos pedidos formulados pela Autora.

Inconformada, veio a A. interpor recurso, pedindo a revogação da sentença e a total procedência do pedido.

No entanto, a Relação julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.

Não se conformou, novamente, a Autora que interpôs recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões:

“1. Avaliou incorretamente o nexo causal, ao desconsiderar o impacto da velocidade excessiva e da falta de atenção do condutor.

2. Aplicou erradamente o regime de responsabilidade objetiva, afastando o artigo 503.º do Código Civil sem justificação.

3. Desconsiderou a culpa concorrente, violando o artigo 570.º do Código Civil e ignorando a possibilidade de fixação de uma indemnização equitativa.

4. Não analisou corretamente a prova, omitindo aspetos relevantes sobre a dinâmica do acidente.”

A Ré contra-alegou pugnando, em primeira linha, pela não admissão do recurso e, em segunda linha, pela sua improcedência.

Sobre o recurso recaiu neste Supremo o seguinte despacho do relator:

“Por despacho transitado em julgado, o Sr. Relator da Relação de Évora não admitiu o recurso de revista normal, uma vez que o acórdão da Relação confirmou a sentença, sem fundamentação essencialmente diferente.

Não obstante, remeteu os autos a este Supremo uma vez que o recorrente evidencia querer apelar ao fundamento de revista excepcional previsto na al a) do nº 1 do art. 672º do CPC (apesar de não o mencionar expressamente), quando refere, a propósito da admissibilidade do recurso que o recurso “assume relevância jurídica para a correcta aplicação da lei, uma vez que envolve a análise da responsabilidade civil em acidentes de viação, matéria com impacto jurisprudencial”.

Pese embora a vaguidade do fundamento invocado, pode entender-se que o requerente indicou a razão pela qual, em seu entender, a apreciação das questões objecto do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Mostram-se verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, designadamente os relacionados com a natureza e conteúdo da decisão, valor do processo e da sucumbência, legitimidade e tempestividade (arts 629º, 631º, 638º e 671º do CPC).

Como assim, remeta-se à Formação, para os efeitos do art. 671º, nº 3 do CPC. “

Remetido o processo à Formação, foi proferido o seguinte acórdão:

“(…)

Analisadas as alegações de recurso em conjugação com as respetivas conclusões, distinguimos ter a recorrente sustentado que “(…) A jurisprudência tem vindo a consolidar o entendimento de que, nos casos de acidentes envolvendo peões, deve ser ponderada a responsabilidade pelo risco nos termos do artigo 503.º do Código Civil.”

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2018(Proc. n.º 1256/15.1T8GMR.G1.S1), decidiu-se que: “A circulação de veículos automóveis, sendo uma atividade perigosa, obriga a um acréscimo de dever de diligência, e a culpa do peão apenas pode afastar a responsabilidade objetiva do condutor quando for a única causa do acidente.”

De acordo com o acórdão recorrido, as Instâncias concluíram pela culpa exclusiva do peão, por ter atravessado a faixa de rodagem, e que o condutor do veículo automóvel pesado de mercadorias, apesar de circular a velocidade superior à permitida para o local, não concorreu de forma causal ou contributiva para o atropelamento.

Em face da factualidade provada e da alegação da recorrente, impõe-se determinar se estamos perante uma situação de concorrência entre culpa e risco, de acordo com a interpretação mais recente e atualista do art.º 505º do Código Civil à luz das Diretivas comunitárias do seguro automóvel e da jurisprudência do TJUE, o que foi afastado pelas Instâncias.

A questão da concorrência entre a culpa e o risco é matéria que esta Formação de apreciação preliminar tem considerado assumir relevância jurídica que justifica a admissão de revista excecional, de que são exemplos os acórdãos recentes proferidos em 15 de novembro de 2023 (no âmbito do Processo n.º 313/18.5T8GMR.G1.S2), em 16 de maio de 2024 (no âmbito do Processo n.º 2777/22.3T8PRT.P1.S2) e em 30 de outubro de 2024 (no âmbito do Processo n.º 1686/20.5T8FNC.L2.S1).

Como se afirma no primeiro destes arestos, proferido a 15 de novembro de 2023, “o tema em análise, não obstante ser objeto de recorrente análise por parte dos Tribunais, tem vindo a suscitar renovado debate doutrinário e jurisprudencial, à luz dos desenvolvimentos da jurisprudência do TJUE na matéria e da necessidade de revisitação da problemática atinente à culpa e causalidade e à articulação entre o direito europeu do seguro automóvel e o direito da responsabilidade civil.”.

No caso, importa densificar o conceito do que são vítimas vulneráveis e apurar a preponderância do risco geral da circulação de um veículo automóvel na definição de responsabilidades pelos danos.

Não se encontrando ainda sedimentada a jurisprudência sobre esta temática, justifica-se no presente caso, com esse enfoque, a intervenção clarificadora e estabilizadora do Supremo Tribunal de Justiça, cuja resolução demanda a valoração jurídica de um contexto factual não linear, em que está em causa o atropelamento de um peão por um veículo automóvel pesado de mercadorias, que circulava à noite, numa estrada nacional.

4. Tudo visto, entendemos que se justifica a apreciação da questão colocada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil.

III. DECISÃO

Pelo exposto, admite-se a revista excecional.”

Após, veio a autora formular pedido de reenvio prejudicial com vista à submissão ao TJUE da questão de saber se o art. 3.º da Directiva 2009/103/CE consente a exoneração integral da seguradora quando o sinistro (atropelamento de peão) é imputado à culpa exclusiva da vítima, não obstante o veículo circular em excesso de velocidade, durante a noite, em estrada nacional.

Cumpre decidir.

A Relação deu como provados os seguintes factos:

“1. No dia 30 de Setembro de 2019, cerca das 21h00m, o veículo de matrícula V1, marca Renault, modelo Magnum, propriedade de S... Sociedade de Transportes Lda., conduzido por CC, circulava na sua faixa de rodagem na Estrada Nacional 4 (EN4), sentido Borba-Elvas, com as luzes de iluminação do veículo em médios.

2. Nesse mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, concretamente ao Km 158.333, BB invadiu a referida faixa de rodagem e foi colhido pela frente direita do veículo V1, concretamente pelo pára-choque e farolim frontais do lado direito.

3. Em consequência, BB faleceu de imediato no local.

4. No referido circunstancialismo, BB seguia a pé e não usava vestuário retro-reflector.

5. O local é uma recta com dois sentidos de trânsito, encontrando-se o eixo da via delimitado, na zona central, por um separador físico em cimento.

6. No sentido de marcha do veículo de matrícula V1, a faixa de rodagem, por onde seguia o veículo V1, é delimitada à direita por uma faixa de desaceleração com tracejado descontinuo, para mudança de direcção à direita e acesso à localidade de Borba.

7. No local, atento o sentido de marcha do veículo, a profundidade de visão é superior a 100 metros.

8. À data existia no local, atento o sentido de marcha do veículo, um sinal vertical C14a - Proibição de ultrapassar e marcas rodoviárias M17a - Raia oblíqua delimitada por uma linha contínua.

9. O condutor da viatura de matrícula circulava pela via acima identificada à velocidade de 90 km/h..

10. O condutor do veículo V1 não viu o peão.

11. Era noite, o tempo estava bom e o piso estava seco.

12. Não existia iluminação pública no local.

13. Na sequência da reclamação apresentada pela Autora, a Ré, por carta datada de 26/03/2021, comunicou àquela que “nesta data não podemos assumir a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização. Aguardamos elementos de prova…”, tudo conforme decorre do documento n.º 3 apresentado com a petição inicial e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

14. Em 30 de Setembro de 2019 a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula V1 encontrava-se transferida para a Ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º .......35.

15. Foi apreendido na residência de BB um bilhete da “rede expressos” referente a uma viagem de Borba para Lisboa para o dia 01/10/2019, às 09h00. [aditado na apreciação do recurso]”

E como não provados os seguintes factos:

“a) No circunstancialismo de tempo acima referido, circulava trânsito em sentido contrário ao do veículo V1.

b) O peão procedia ao atravessamento da artéria e já tinha percorrido metade da faixa de rodagem quando foi atropelado.

c) À data a velocidade máxima permitida para o local era de 70 km/h.

d) À data do acidente encontrava-se aposta no local, atento o sentido de marcha do veículo, um sinal vertical A16 – travessia de peões, um sinal vertical C13 – proibição de exceder a velocidade máxima de 70km/h – um sinal vertical I2C – Pré-aviso gráfico, um sinal B9b – entroncamento com via sem prioridade.

e) Encontravam-se ainda colocadas no local as seguintes marcas rodoviárias: M20 - Bandas cromáticas; M15d - Setas de selecção.

f) BB tinha consigo um bilhete de expresso adquirido para viajar no dia seguinte para Lisboa. [eliminado na apreciação do recurso]

g) A A. sentiu dor pela perda do filho, o que lhe destroçou a respectiva vida familiar; e lhe causou intranquilidade, amargura e tristeza, ficando inconsolada pela perda do filho.”

Do âmbito do recurso:

Tem-se vindo a entender neste Supremo que “no âmbito da revista excepcional, os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do art. 672.º do CPC” pois “se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal” (cfr. Ac. STJ de 19.6.2019, proc. 2100/11.2T2AGD-A.P2.S2, que cita o Ac. STJ de 11.4.2019, proferido no proc. 622/08.1TVPRT.P2.S1).

No caso presente, decorre da decisão da Formação que o objecto do recurso se cinge à questão da eventual concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo que o atropelou.

Entendemos, todavia, que a ponderação da eventual concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo implicará, necessariamente, a revisitação da questão de saber se, como se considerou nas instâncias, o acidente se deveu única e exclusivamente à actuação culposa do lesado ou se os riscos do veículo, designadamente, o facto de automóvel pesado de mercadorias, circular a velocidade superior à permitida para o local, concorreram também de forma causal ou contributiva para o atropelamento.

Do reenvio prejudicial:

Como se disse atrás, a autora formulou pedido de reenvio prejudicial com vista à submissão ao TJUE da questão de saber se o art. 3.º da Directiva 2009/103/CE consente a exoneração integral da seguradora quando o sinistro (atropelamento de peão) é imputado à culpa exclusiva da vítima, não obstante o veículo circular em excesso de velocidade, durante a noite, em estrada nacional.

A dispensa de obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação, por insusceptibilidade de recurso, tem sido admitida pela jurisprudência do TJUE, desde o acórdão Cilfit 6.10.1982, proc. C-283/81:

a) quando a questão de direito da UE suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do caso judicando;

b) quando, atento o efeito erga omnes das suas decisões, o TJUE já se tenha pronunciado de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou noutro meio processual; e

g) quando o tribunal nacional considere que as normas da UE aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas, ou sejam suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente; clareza, essa, resultante da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas.

Tal orientação tem sido reiterada pelo TJUE, v.g. acórdão de 18.10.2011, processos apensos C 128/09 a C 131/09, C 134/09 e C 135/09; de 9.9.2015, processo C 160/14; de 1.10.2015, proc. C 452/14; de 28.7.2016, proc. C 379/15; de 4.10.2018, proc. C 416/17; de 30.1.2019, proc. C‑587/17P.

Correlativamente, nas recomendações dirigidas aos órgãos jurisdicionais nacionais, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 257/1 de 20-7-2018, sobre a apresentação de processos prejudiciais, nos pontos 5 e 6, é esclarecido que:

“5.Os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (ver artigo 267.o, segundo parágrafo, do TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito. 6. Quando for suscitada uma questão no âmbito de um processo pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão jurisdicional é no entanto obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça (ver artigo 267.o, terceiro parágrafo, do TFUE), exceto quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável.”

Os critérios e fundamentos de dispensa referidos na jurisprudência do TJUE têm sido acolhidos e aplicados na jurisprudência do STJ, designadamente no acórdãos de 14.3.2017, proc. nº 736/14.9TVLSB.L1.S1; de 5.12. 2017, proc. nº 11256/16.7T8LSB.L1.S2-A; de 2.2. 2016, proc. nº 326-C/2002.E1.S1; de 4.2.2016, proc. nº 536/14.6TVLSB.L1.S1; de 17.3.2016, proc. nº 588/13.6TVPRT.P1.S1; de 30.9.2014, proc. nº 1020/13.0TBCHV-D.P1.S1; de 16.10. 2014, proc. nº 1279/06.0TVPRT-C.P1.S1; de 29.9.2015, proc. n.º 1740/12.7TBPVZ.P1.S1.

Ora, observando o caso sub judice, verifica-se que, sobre a matéria em causa, não se suscitam dúvidas interpretativas: a matéria já foi abordada pelo TJUE. Entre a semelhança e a diferença (embora sob outra Directiva, o objecto e a regulação material são coincidentes), não se vislumbra razão fáctica ou normativa que imponha o reenvio pretendido.

O que está em causa é saber se à Directiva se opõe a legislação nacional que limite ou exclua o direito à indemnização do lesado pelo facto de a responsabilidade da produção do dano caber, em parte ou em exclusivo, ao próprio lesado.

A resposta já dada pelo TJUE é clara: só é admissível limitação (ou exclusão) com base numa apreciação individual e apenas quando a contribuição da vítima para o dano seja exclusiva ou muito significativa (Caso Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, C-409/09, reforçado pelo Caso Marques Almeida, C-300/10).

Acresce que o TJUE já esclareceu que a(s) Directiva(s) não visa(m) a harmonização da regulação normativa da responsabilidade civil dos Estados-Membros, mas os Estados não podem esvaziar o efeito útil da protecção das vítimas.

Conclui-se, pois, sem necessidade de maiores considerandos, que a resposta sobre questão análoga não exige a obrigatoriedade/necessidade do reenvio, sendo certo que, ante a posição adoptada pelo TJUE, as normas aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas.

Da concorrência entre a culpa do lesado e os riscos do veículo que o atropelou:

Como é sabido, o Supremo tem aderido à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste Supremo Tribunal de 4.10.2007, proc. 07B1710, que admitiu a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado, nos seguinte termos: “[o] texto do art. 505.º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro,”

Tem sido o caso de outros acórdãos, como o acórdão de 1.6.2017, proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, que foi assim sintetizado:

“I. - O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505.º e 570.º do Código Civil deve ser interpretado, em termos atualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.

II.- Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.”

Com relevo, também se pode ler no sumário do Ac. STJ de 17.10.2019, proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1:

“ (…)

VI. Tradicionalmente, desvalorizando o elemento literal que decorre do direito substantivo civil, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, sendo que actualmente está firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.

VII. Quando se alude a acidente imputável ao próprio lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do lesado, importando saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pelo lesado.

VIII. Quando se apure que o acidente ocorreu devido à actuação da lesada - que o causou - sem que se possa atribuir ao condutor do veículo (à culpa do condutor) ou aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, esta circunstância encerra causa excludente da responsabilidade objectiva do condutor ou proprietário do veículo

Nesta secção, no Ac. STJ de 25.5.2021, proc. 3883/18.4T8FAR.E1.S1, seguiu-se a mesma posição:

“I – Por força de uma interpretação atualista e sistemática do preceito, que tem em conta a conjuntura do momento em que a lei é aplicada (a crescente perigosidade e frequência dos acidentes de viação e as necessidades de proteção dos lesados), bem como a unidade da ordem jurídica (vejam-se os lugares paralelos do sistema no regime da responsabilidade do produtor, responsabilidade por acidentes de trabalho e por acidentes causados por aeronaves e embarcações de recreio), aderimos à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-10-2007, que admite a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado.

II - No mesmo sentido concorre o princípio da interpretação conforme ao Direito Comunitário, de acordo com o qual o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite atribuir à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com o direito originário e derivado da União Europeia.

III - O TJUE, apesar de reconhecer que a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros, e que a culpa da vítima pode excluir ou limitar a indemnização, através de uma apreciação individualizada de cada caso, veda uma exclusão automática da indemnização ou uma redução desproporcionada desta, visando, sobretudo, que os lesados mais vulneráveis, entre os quais incluiu os peões e as crianças, sejam objeto de um tratamento mais favorável.”

Com relevância, proferiu-se, também, o Ac. STJ de 5.5.2022, proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, de que se retira o seguinte sumário:

“I- O art. 505.º do Código Civil deve ser objecto de uma interpretação actualista, admitindo-se o concurso da culpa do lesado com o risco do veículo.

II- Face à interpretação actualista do art. 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º restringe-se aos casos em que haja dolo ou por culpa grave do lesado, ou em que o facto do lesado deva considerar-se como causa exclusiva do acidente.”

No Ac. STJ de 30.11.2022, proc.1896/20.5T8FNC.L1.S1, sintetizou-se assim:

“I. De acordo com uma interpretação actualista dos arts. 505.º e 570.º do CC, é de admitir a concorrência causal entre os riscos próprios do veículo automóvel e a conduta do lesado, culposa ou não culposa, sendo que tal entendimento não constitui apenas uma via interpretativa ao lado da interpretação tradicional que excluía tal concorrência, mas antes a única via interpretativa conforme ao DUE em matéria de seguro automóvel.

II. No caso dos autos sufraga-se o entendimento do acórdão recorrido segundo o qual a morte do sinistrado foi devida a culpa leve deste último, mas também aos riscos próprios do veículo segurado na ré; sendo, por isso, igualmente de sufragar o juízo de adequação e proporcionalidade realizado pelo tribunal a quo ao atribuir a causalidade da morte em 25% ao lesado e em 75% aos riscos próprios do veículo.”

Nesta secção foi proferido, também, o acórdão de 27.2.2024, proc. 313/18.5T8GMR.G1.S1, assim sumariado:

“I- Deve seguir-se a orientação jurisprudencial do STJ quanto à interpretação actualista do art. 505.º do CC, no sentido de acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo automóvel.

II - Porém, admissibilidade da concorrência não é automática só porque o interveniente no acidente tenha sido um veículo, exigindo-se um juízo de adequação sobre a imputação objectiva do acidente.

III - Provando-se a culpa exclusiva do lesado na produção do acidente e não se verificando qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo, fica afastada a possibilidade de ponderar a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo interveniente no acidente.”

Ainda em 2024, foram proferidos outros dois acórdãos.

O de 4.7.2024, proc. 2777/22.3T8PRT.P1.S1, sumariado deste modo:

“I– É hoje dominante, na jurisprudência do Supremo, que não é a ocorrência de uma qualquer conduta culposa do lesado, que, sem mais, apaga ou exclui o dever de indemnizar fundado na criação de um risco genérico associado à circulação de um veículo automóvel, ou seja, é hoje dominante que deve fazer-se uma interpretação atualista do art. 505.º do CC e que deve admitir-se a concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios associados à circulação de um veículo automóvel.

II – Porém, tal não significa que basta o mero envolvimento dum veículo num acidente para responsabilizar parcial ou totalmente o seu detentor, na medida em que comportamentos do lesado que se traduzam numa violação grosseira das mais elementares regras de prudência na utilização das vias de circulação serão idóneos a excluir a responsabilidade objetiva do veículo (decorrente do art. 503.º/1 do C. Civil).”

E o mais recente de 1.10.2024, proc.1918/20.0T8VRL.P1.S1, com o seguinte sumário:

“I - A responsabilidade fixada pelo nº. 1 do art. 503º do Código Civil, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

II - A culpa afasta o risco, nos termos do preceito, quando o facto do próprio lesado tiver sido a causa exclusiva do acidente.

III -A interpretação atualista do art. 505º do Código Civil permite que se acolha a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, perante as circunstâncias de cada caso concreto.”

Ou seja:

O STJ tem admitido que o outro interveniente possa responder pelo risco, admitindo a concorrência da culpa com o risco, sujeitando-se a quantificação da indemnização à ponderação prevista no art. 570º do Código Civil, desde que o acidente não seja exclusivamente imputável ao lesado ou a terceiro.

Sobre o risco, escreve Dário Martins de Almeida, em Manual de Acidentes de Viação, Almedina, 3ª edição, a pág. 318 e seg.: “Dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco. Para traduzir esta ideia, a lei refere-se aos “danos provenientes dos riscos próprios do veículo”. O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco, não sendo, todavia, necessário um contacto material entre o veículo e o sinistrado ou entre duas viaturas (…). O dano terá sempre de ser condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta, com o facto em que se materializa o risco “.

Revertendo ao caso sub judice, concluiu a 1ª instância:

“A conduta da infeliz vítima – ao invadir a faixa de rodagem da Estrada Nacional n.º 4, onde circulava um veículo pesado de mercadorias, à noite e em local sem iluminação pública e situado fora da localidade – configura uma acção totalmente inesperada e imprevisível para qualquer condutor médio – e, por isso, também para o condutor do veículoV1 -, não só porque feita ao arrepio das elementares regras estradais acima já citadas, mas também porque contrária ao normal comportamento dos peões e, sendo a mesma totalmente imprevisível, não podia o condutor do veículo V1 impedir a produção do embate, ainda que circulasse à velocidade permitida e utilizando as luzes de estrada, tanto mais que nem sequer chegou a ver a vítima.”

E acrescentou que não se justificava a formulação de qualquer juízo de censura ou de reprovação da conduta do motorista do veículo V1, por nenhum outro comportamento lhe ser exigível, em abstracto, para evitar o acidente, “sendo, por isso, de afastar a imputação do acidente ao condutor do veículo V1 em termos de culpa, não havendo fundamento para formular um juízo de censura relativamente à forma como aquele exerceu a condução nos momentos que antecederam o acidente dos autos”.

Quedando prejudicada a responsabilização extracontratual por facto ilícito, a sentença passou à responsabilidade pelo risco, art. 503.º, 505.º e 570.º do CC, afastando-a do seguinte modo:

“(…) verifica-se que o atropelamento do lesado ocorreu porque o mesmo invadiu, de forma inopinada e imprevista, a faixa de rodagem por onde seguia o veículo V1, conduta que o lesado empreendeu em circunstâncias em que não poderia deixar de ver o referido veículo a circular na sua direção. Donde se considera que o atropelamento foi desencadeado exclusivamente pelo comportamento do lesado, não emergindo de qualquer risco acrescido gerado pela circulação rodoviária. Nessa medida, consideramos que o acidente se deveu única e exclusivamente à actuação do lesado, que adoptou um comportamento em violação do disposto no artigo 101.º, do Código da Estrada, conduta que foi causa adequada, suficiente e única da eclosão do acidente, o que determina o afastamento da responsabilidade pelo risco.”

A Relação referiu, por sua vez:

“ (…) Em primeiro lugar, importa referir que o que ficou provado foi que a vítima invadiu a faixa de rodagem da EN4 por onde circulava o V1, de noite e em local sem qualquer iluminação pública, não fazendo uso de roupa que evidenciasse a sua presença.

E não está provado que estivesse a fazer o atravessamento da via e já se encontrasse no meio da faixa de rodagem (cfr. factos não provado enunciado na al, b), factos estes que poderiam fazer presumir que o condutor teria que a ter visto, o que não sucedeu.

Assim como também não se provou que no local estivesse assinalada qualquer travessia de peões, nem a existência da sinalização a que se reportam as alíneas d) e e) dos factos não provados, nem que a velocidade no local estivesse limitada a 70 Km/h, como se havia invocado na petição inicial, que imporiam que o condutor adequasse a condução às limitações e avisos existentes.

Circulando o V1 com as luzes de médios ligadas, e tendo a via onde se dá o acidente uma profundidade de visão superior a 100 mts, em face do apurado no ponto 2 dos factos provados, impõe-se a conclusão de que o atropelamento do lesado ocorreu porque o mesmo invadiu, de forma inopinada e imprevista, a faixa de rodagem por onde seguia o veículo V1, conduta que o lesado empreendeu em circunstâncias em que não poderia deixar de ver o referido veículo a circular na sua direcção. Ou seja, o peão invadiu a faixa de rodagem por onde seguia o V1 quando este veículo ali passava, não se tendo certificado de que o podia fazer em segurança, em violação do prescrito no artigo 101º do Código da estrada.

Mas será que era exigível ao condutor do V1 outra conduta no sentido de adequar a sua condução às circunstâncias de lugar e tempo então verificadas?

É certo que o V1 é um veículo pesado, que acarreta o risco de, em caso de acidente, causar maiores danos pessoais e/ou patrimoniais, e que, tendo em conta a massa que desloca, necessita de mais espaço para se imobilizar. Daí que se justifique que haja limitações à velocidade máxima permitida para este tipo de veículos, que, no caso era de 80 Km/h.

Também é certo que o veículo se aproximava de um cruzamento, o que implica que, ainda que circulasse em estrada com prioridade, devesse moderar a velocidade.

Porém, o acidente ocorreu antes do entroncamento, embora próximo, de acordo com o croqui elaborado, mas não se provou que houvesse trânsito a circular em sentido contrário ou veículos a pretender entrar no cruzamento, o que imporia a redução da velocidade e maior atenção do condutor.

É certo que o V1 circulava com as luzes dos médios ligadas e não havendo trânsito em sentido contrário, nem veículos próximos à sua frente ou no cruzamento, podia/devia circular com as luzes de máximos, mas não se apuraram factos que permitam concluir que o acidente se deu por o V1 circular apenas com os médios ligados, nem nada nos permite presumir, que tendo o peão invadido a via quando o V1 passava, se circulasse com os máximos ligados, o condutor teria visto o peão e conseguido evitar o atropelamento. É que a invasão pelo peão da via de circulação do V1, como resulta da conjugação dos factos provados enunciados em 1 e 2, dá-se quando o V1 vai a passar no local.”

Quanto ao excesso de velocidade, salientou:

“Quanto à velocidade, não se provou que à data houvesse limitação da velocidade no local para 70 Km/h, mas sabemos que o veículo pesado em causa não podia exceder a velocidade instantânea de 80 Km/hora fora das localidades [com excepção das auto-estradas e vias reservadas – cfr. artigo 27º, n.º , do Código da Estrada].

Porém, não vemos que o facto de o V1 circular a 90 Km/h, portanto a mais 10 Km/h do que lhe era permitido, tenha sido causal do acidente, nem que este “excesso” tenha contribuído para a produção do mesmo. Para tal seria necessário que se provasse ou pudesse concluir que tal diferença na velocidade instantânea tivesse permitido ao condutor ver o peão e evitar o acidente, o que não sucedeu, tendo em conta que se provou que o peão invadiu a faixa de rodagem quando o V1 ali passava e se concluiu que o fez de forma inopinada e imprevista.

Assim, concordamos com o decidido, no sentido de que o acidente se deveu única e exclusivamente à actuação do lesado, que adoptou um comportamento em violação do disposto no artigo 101.º do Código da Estrada, conduta que foi causa adequada, suficiente e única da eclosão do acidente”.

Assim, e pese embora o facto de o veículo ser um veículo pesado animado de velocidade excessiva para o local (e de circular apenas com médios em local sem iluminação pública, podendo usar os máximos), as instâncias consideraram que a conduta culposa do lesado foi causa adequada, suficiente e única do acidente.

A questão que se coloca é a de saber se se verifica, ao invés, qualquer contribuição causal dos riscos próprios do veículo para o acidente.

É certo que não se demonstrou que o respeito pela velocidade legal (80 Km/h) teria permitido ao condutor evitar o acidente; e que, também, não se apurou que a utilização dos máximos (o que podia fazer) teria permitido ao condutor utilizasse os máximos ver o peão e evitar o acidente.

Porém, não se demonstrou o contrário, ou seja, que o acidente se produziria sempre por culpa do peão ainda que o condutor respeitasse a velocidade de 80Km/h e utilizasse os máximos (sendo certo que no local, atento o sentido de marcha do veículo, a profundidade de visão é superior a100 metros)

Os pormenores do acidente não permitem excluir essa possibilidade.

Assim, não podemos olvidar que, não obstante a “invasão“ da faixa de rodagem, o peão foi colhido pela frente direita do veículo V1, concretamente pelo pára-choque e farolim frontais do lado direito, o que não exclui a “invasão” ou o atravessamento da faixa de rodagem do peão da direita para a esquerda, depois de atravessar a faixa de desaceleração com tracejado descontinuo.

Por outro lado, no local, atento o sentido de marcha do veículo, a profundidade de visão é superior a 100 metros.

Deste modo, não se pode excluir aa hipótese de que, conduzindo à velocidade legal e com o uso dos máximos, o condutor pudesse ter visto o peão e evitado o embate.

Não se tendo apurado a indiferença dos riscos do veículo para a produção do acidente, cremos que estes devem ser normativamente considerados como causa adequada ao embate.

Não se trata de considerar a mera força cinética (constituída pelo facto de o veículo estar em andamento) causa adequada dos danos ocorridos, em qualquer circunstância (v. Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação”, em Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs, citada por Rui Mascarenhas Ataíde, em “Concurso de imputações no âmbito dos acidentes de viação. Os riscos próprios do veículo e o facto do lesado, culposo ou meramente causal», em Revista de Direito Civil, 2021, nº 2, págs. 319 e segs”, de acordo com a referência feira no supra citado Ac. STJ de 30.11.2022; v., ainda, a anotação de Sónia Moreira, ao citado acórdão, em CDP nº 85, pág. 61 e segs; v., no sentido de que o risco imanente à circulação rodoviária não se pode traduzir na introdução sub-reptícia de uma presunção juris e de jure de ocorrência de risco, o acórdão do STJ de 20.01.2009, CJ/STJ, ano XVII, 1º, pág. 62 a 66).

Trata-se de se considerar que o risco do automóvel não se cinge aqui ao risco genérico de circulação mas a um risco potenciado resultante de o veiculo pesado circular à velocidade superior à legal e não utilizar, podendo, luzes máximas em local sem iluminação pública, criando, assim, riscos acrescidos para a produção de qualquer embate.

Como reflecte Lopes do Rego, em “A problemática da concorrência da responsabilidade objetiva, decorrente dos riscos de circulação do veículo, com a culpa do lesado”, em Revista Julgar, nº 46, Janeiro-Abril 2022, a págs. 52 e 53, será necessário “operar uma cuidadosa distinção entre o campo dos riscos genéricos de circulação do veículo interveniente no acidente e o de determinados riscos específicos e agravados que se verificavam face às circunstâncias particulares e concretas em que ocorreu o acidente “, sendo que “estes segundos podem desde logo ser decorrentes de características peculiares ou particulares do veículo automóvel em questão que, pelo seu peso, dimensões , dificuldades de visibilidade ou de ser percepcionado pelos outros utentes da via, bem como por dificuldades em operar o pleno controlo do veículo pelo condutor, podem envolver um perigo acrescido para os utentes das vias de circulação”. Afigura-se-nos, aliás, que esta interpretação é a que melhor se quadra com a prevalência que o Direito Comunitário tem dado à necessidade de protecção das vítimas mais vulneráveis, entre os quais incluem os peões (cfr. o supra citado Ac. STJ de 25..5.2021, e Lopes do Rego, artigo citado, págs. 49 a 51).

Nestas circunstâncias, considerando que os riscos identificados do veículo (peso, velocidade e luzes) potenciaram a produção do embate e dos danos, entende-se que tais riscos não devem ser totalmente descaracterizados pela culpa do lesado e que devem entrar em concorrência com esta.

Ora, sopesando, por um lado, o comportamento da vítima – o descuido, a invasão da faixa, a circunstância de não usar vestuário adequado que a pudesse sinalizar – e, por outro, o risco próprio de circulação do veículo pesado de mercadorias, a velocidade praticada, o tipo de via e condições de visibilidade – afigura-se adequada e proporcional a fixação da responsabilidade em 80% imputáveis ao comportamento culposo do lesado e 20% imputáveis ao risco próprio do veículo.

Tendo sido expressamente excluída no art. 679º do CPC a aplicação remissiva do estabelecido no art. 665º do mesmo diploma, designadamente do nº 2, está o Supremo Tribunal de Justiça impedido de agir como tribunal de substituição, razão porque deve ser decidida a remessa dos autos à Relação para a determinação qualitativa e quantitativa da obrigação de indemnização (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, págs. 425 , 426, 440 e 441).

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e determinar a baixa dos autos para o apuramento da indemnização devida à autora.

Custas pela recorrida.

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Lisboa, 28 de Outubro de 2025

António Magalhães

Maria João Vaz Tomé

Nelson Borges Carneiro