I - O privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas antes sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real de garantia.
II - Os privilégios mobiliários gerais são tendencialmente qualificados como meras preferências de pagamento, porquanto não são dotados de sequela. Apenas prevalecem perante os credores comuns na execução do património do devedor.
III - De acordo com o art. 204.º da Lei n.º 110/2009, de 16-09 (que consagra o CRCSPSS), “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil”, acrescentando o n.º 2 que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
IV - Não parece haver qualquer óbice hermenêutico ou interpretativo a que na hipótese de confronto ou conflito bilateral se afirme a prevalência da regra especial – rectius, excecional – de natureza imperativa contida no art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009.
V - O mesmo se pode afirmar a propósito do caso de conflito ou confronto multilateral.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,
I - Relatório
1. A Exequente Banco BIC Português, S.A., apresentou como título executivo uma livrança, subscrita pela sociedade comercial Artefumo – Fumeiro & Produtos Regionais, Lda., e avalizada por AA e BB, a qual lhe fora entregue para titular e garantir o pagamento de todas as obrigações decorrentes do contrato de mútuo com penhor mercantil, celebrado a 7 de fevereiro de 2020, com a Artefumo – Fumeiro e Produtos Regionais, Lda.. Na medida que esta sociedade se encontrava sujeita a um plano de recuperação aprovado e homologado, só executava os avalistas.
2. No decurso do processo, a Exequente informou que a sociedade incumpriu o plano de recuperação, pelo que a interpelou nos termos e para os efeitos do art. 218.º do CIRE. Assim, a execução pode passar a prosseguir também contra ela.
3. Nesse requerimento, explicou que a sociedade comercial “celebrou com o Banco Exequente um contrato de mútuo com penhor mercantil, em 7 de fevereiro de 2020, pelo montante de € 75.000,00 e que para garantia do cumprimento do referido contrato de mútuo foram prestadas as seguintes garantias: a) Entrega de uma livrança em branco subscrita pela mutuária “Artefumo – Fumeiro & Produtos Regionais, Lda.” e avalizada por AA e BB; b) Penhor mercantil sobre os bens livres de ónus e encargos que se encontram nas instalações da mutuária “Artefumo – Fumeiro & Produtos Regionais, Lda.” no valor de € 90.000,00”, conforme documento que juntou.
4. Nesse documento, figurando a sociedade executada como mutuária, lê-se, como título, “CONTRATO DE MÚTUO COM PENHOR MERCANTIL”, e, inter alia, encontram-se as seguintes cláusulas: “ARTIGO PRIMEIRO O banco concede à mutuária um empréstimo no montante de € 75.000,00 ARTIGO DÉCIMO SEGUNDO (Garantias do Cumprimento) A) LIVRANÇA Os valores que se mostrarem em dívida ao banco ficam caucionados pela livrança em branco subscrita pela mutuária e avalizada por (os primeiros executados], destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades, assumidas ou a assumir pela MUTUÁRIA perante o banco, por crédito concedido ou a conceder e valores descontados elou adiantados até ao limite de setenta e cinco mil euros, acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, incluindo, por isso, os valores emergentes deste contrato; juntamente com a livrança, a mutuária entrega ao BANCO a correspondente autorização de preenchimento, assinada por si e pelos avalistas. B)PENHOR MERCANTIL Para garantia do bom pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela mutuária, esta constitui a favor do Banco BIC Português, SA, e este aceita, penhor mercantil sobre os bens livres de ónus ou encargos, que se encontra nas instalações da mutuária, no valor de € 90.000,00 (noventa mil euros) s/ IVA, cuja cópia se anexa a este contrato e que dele faz parte integrante para todos os efeitos legais”.
5. Mais juntou documento com o título “CONSTITUIÇÃO DE PENHOR MERCANTIL”, onde se lê o seguinte: “Para garantia do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações elou responsabilidades assumidas elou a assumir pela sociedade… aquela constitui a favor do banco e este aceita, penhor mercantil sobre os seguintes bens livre de ónus ou encargos e que se encontram nas instalações da sociedade [3ª executada]: - Máquina de Embalar Flowpack "PFM" Tornado LD no Série Dl 905, no valor global de € 90.000,00 (s/ IVA) constante da Fatura no 75/00002 datada de 02/01/2014, cuja cópia se anexa a este documento e que dele faz parte integrante para todos os efeitos legais.”
6. A 4 de julho de 2023, na execução de que estes autos são apenso, foi realizada penhora de uma máquina de embalar de marca Flowpack PFM, na sede da sociedade executada.
7. A 3 de novembro de 2023, o Instituto da Segurança Social, I.P., reclamou um direito de crédito no montante de 130.656,95 €, alegando que a sociedade executada é sua contribuinte e que, nessa qualidade, não procedeu ao pagamento das contribuições devidas. A este valor acrescem ainda os juros de mora vencidos e vincendos até integral e efetivo pagamento.
8. A 6 de novembro de 2023, foi deduzida pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, nos termos do disposto no art. 788.º, n.º 2, do CPC, a reclamação do crédito relativo a IVA, que ascende ao montante de 12.719,33 €.
9. Não foram apresentadas impugnações.
10. Por sentença, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, decido julgar procedente a reclamação de créditos e, em consequência, reconheço os direitos de créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional e pelo ISS, procedendo à graduação dos créditos, para efeitos de pagamento pelo produto da venda dos bens penhorados nos autos principais de execução, da seguinte forma:
I – O Crédito do Estado Português relativo a IVA.
II – O Crédito do ISS.
III - A quantia exequenda.”
11. Não conformada, a Exequente Banco BIC Português, S.A., interpôs recurso de apelação.
12. O Ministério Público respondeu.
13. Por acórdão de 11 de julho de 2024, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu o seguinte:
“Por todo o exposto, julgam-se a apelação parcialmente procedente e em consequência revoga-se a sentença proferida na parte em que graduou os créditos exequendo e os reclamados, substituindo-se a decisão pela seguinte graduação:
-Em 1º lugar:
----------- o primeiro crédito reclamado pela Segurança social
-Em 2º lugar:
----------- a quantia exequenda garantida pelo penhor
-Em 3º lugar:
----------- o crédito reclamado pelo Estado relativo a impostos
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público”.
14. Não conformada, a Exequente Banco BIC Português, S.A., interpôs recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:
“1. O Acórdão recorrido julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo Banco Bic Português, revogando a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, tendo graduado, em primeiro lugar, o crédito reclamado pela Segurança Social, em segundo lugar, o crédito exequendo garantido pelo penhor e, em terceiro lugar, o crédito reclamado pelo Estado relativo a impostos.
2.O Banco Bic Português deu entrada da ação executiva para cobrança da quantia exequenda de € 68.130,64, a qual se encontra garantida por penhor mercantil, constituído em 7 de fevereiro de 2020, sobre os bens localizados na sede da sociedade comercial Artefumo Lda, nomeadamente, uma máquina de embalar Flowpack “PFM” Tornado LD n.º de série D1905, no montante de € 90.000,00, a qual foi penhorada a 4 de julho de 2023.
3. O Instituto da Segurança Social reclamou créditos no montante de € 130.656,95, sendo € 107.224,81 relativos a contribuições devidas entre os anos de 2016 e 2023 e o restante € 23.432,14 relativo a juros de mora e o Estado reclamou créditos no montante de € 12.719,33, relativo a IVA.
4. Os créditos reclamados foram reconhecidos pela sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, a qual graduou em primeiro lugar, o crédito do Estado, em segundo lugar, o crédito da Segurança Social e, em terceiro lugar, o crédito exequendo.
5.Por não concordar com a decisão proferida pelo Douto Tribunal, o Banco Exequente apresentou recurso de apelação com fundamento de que o crédito exequendo, garantido por penhor sobre o bem móvel penhorado nos autos, prevalece sobre os créditos reclamados pelo Estado e pela Segurança Social com privilégio mobiliário geral.
6. O Douto Tribunal a quo graduou em primeiro lugar, o crédito da Segurança Social, relativo a contribuições, seguido do crédito exequendo, garantido por penhor e, em terceiro lugar, o crédito do Estado, relativo a IVA, entendendo que o n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS determina, imperativamente, que o privilégio creditório mobiliário geral, que goza o crédito da Segurança Social, prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, sendo esta uma norma que procura proteger a sustentabilidade da Segurança Social.
7. No entanto, no confronto multilateral de créditos, o n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS tem uma aplicação restritiva, ou seja, apenas se aplica no caso da graduação de créditos entre credores pignoratícios e créditos da Segurança Social, de forma a evitar um tratamento desproporcionado dos interesses do credor pignoratício.
8. O crédito exequendo goza de penhor mercantil sobre o bem móvel penhorado, sendo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 666.º do CC, o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.
9. Os créditos reclamados pelo Estado e pela Segurança Social gozam de privilégio mobiliário geral nos termos do n.º 1 do artigo 736.º do CC e nos termos do n.º 1 do artigo 204.º da Lei n.º 110/2009, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
10.A regra geral resulta do disposto no n.º 1 do artigo 749.º do CC, nos termos do qual, o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.
11. O privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real, mas de crédito que confere ao seu titular a prevalência sobre os credores comuns do devedor.
12. Os privilégios creditórios mobiliários gerais são meras preferências de pagamento, incidindo sobre a generalidade dos bens móveis do devedor e assumindo a eficácia que lhes é própria aquando do ato da penhora.
13.Considerando que o privilégio mobiliário geral não incide sobre bens determinados e, como tal, não goza da sequela que é própria dos direitos reais de garantia, em caso de conflito entre tal privilégio mobiliário geral e o direito real de gozo ou de garantia dum terceiro, oponível ao exequente, é este último que prevalece nos termos do referido artigo 749.º do C. Civil, o qual resolve o conflito “bilateral” entre o privilégio geral e o direito real de gozo ou de garantia de terceiro.
14. No confronto dum direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral e um direito de crédito garantido por penhor, é este que prevalece na ordem de graduação (cfr. art. 666.º/1 do C. Civil).
15.O que significa que o crédito exequendo, garantido por penhor sobre o bem móvel penhorado nos autos, prevalece sobre os créditos reclamados pelo Estado e pela Segurança Social com privilégio mobiliário geral.
16. O n.º 2 do artigo 204.º da Lei 110/2009 dispõe que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, mas a jurisprudência mais recente tem vindo a entender que a referida norma tem uma aplicação restritiva, ou seja, apenas se aplica quando a graduação de créditos envolve exclusivamente créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social.
17. Quando a graduação implica unicamente uma díade formada pelo credor pignoratício e pelo crédito da Segurança Social (conflito bilateral), a graduação respeita o disposto no n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS e prevalece o crédito da Segurança Social sobre o crédito garantido por penhor.
18.Quando estamos perante um conflito multilateral, ou seja, quando a graduação abrange o crédito pignoratício, o crédito da Segurança Social, mas também outros créditos privilegiados, como sejam, os créditos do Estado e das autarquias locais ou os créditos dos trabalhadores, já não se aplica o referido n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS.
19. Nos casos de conflito multilateral, a jurisprudência mais recente tem entendido que prevalece o crédito pignoratício sobre todos os créditos com privilégio mobiliário geral, incluindo o crédito da Segurança Social – cfr. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de abril de 2022.
20. Não são apenas os créditos da Segurança Social de interesse público e social, mas também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais, por impostos e, ainda, os interesses creditórios laborais.
21. Numa situação de conflito multilateral, o legislador remeteu a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando obviar à preterição desproporcionada dos interesses de um conjunto mais alargado de credores, nomeadamente, do Estado e dos trabalhadores e ainda do credor pignaratício.
22. Num conflito “trilateral” em que haja créditos garantidos por penhor, créditos do Estado com privilégio mobiliário geral e créditos da SS com privilégio mobiliário geral, a graduação é feita com a prevalência dos créditos garantidos por penhor.
23. O penhor é uma garantia de natureza real que beneficia da sequela e é oponível erga omnes, enquanto o privilégio mobiliário geral é uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns.
24. No caso em apreço, estamos perante um confronto multilateral de créditos, uma vez que são chamados à graduação os créditos reclamados pela Segurança Social com privilégio mobiliário geral (contribuições), os créditos reclamados pelo Estado com privilégio mobiliário geral (IVA) e o crédito exequendo com penhor.
25. O crédito exequendo, garantido por penhor, deve ser graduado em primeiro lugar, quanto ao produto da venda do bem móvel penhorado, seguido dos créditos do Estado e da SS, garantidos por privilégio mobiliário geral, tendo sido este o entendimento da Exma. Senhora Relatora na respetiva declaração de voto.
26. Deve ser revogado o Acórdão ora em crise proferido pelo Douto Tribunal a quo e, em consequência, ser o mesmo substituído por outro que proceda à correta graduação dos créditos, nomeadamente e em primeiro lugar, o crédito exequendo garantido por penhor.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Douto Acórdão a quo, com todas as consequências, conforme é de JUSTIÇA”.
15. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – Questões a decidir
Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, está fundamentalmente em causa a questão de saber se o um crédito garantido por penhor mercantil prevalece ou não sobre créditos garantidos por privilégio mobiliário geral do Estado e da Segurança Social.
III – Fundamentação
A. De Facto
Relevam os factos mencionados supra.
B. De Direito
1. Pode dizer-se que o crédito exequendo goza da garantia do penhor sobre o bem penhorado, penhor esse constituído a 7 de fevereiro de 2020 (portanto, em data anterior à penhora). Esse penhor incide sobre os bens localizados na sede da Executada Artefumo – Fumeiro & Produtos Regionais, Lda., designadamente sobre uma máquina de embalar Flowpack “PFM” Tornado LD n.º de série D1905, no montante de 90.000,00 €, que foi penhorada nos autos a 4 de julho de 2023.
2. Por seu turno, a Fazenda Nacional e o Instituto da Segurança Social reclamaram créditos referentes, respetivamente, a IVA e a contribuições à Segurança Social, créditos esses que gozam de privilégio mobiliário geral, nos termos do disposto no art. 736.º, n.º 1, do CC, e no art. 204.º, n.º 1, da Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro.
3. De acordo com o art. 604.º, n.º 1, do CC, sob a epigrafe “Concurso de credores”, “Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos” e, conforme o n.º 2, do mesmo preceito, “São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção”.
4. Por seu turno, segundo o art. 666.º, n.º 1, do CC, “o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.
5. Pode, pois, dizer-se, que o penhor de coisas se traduz numa garantia real completa, que incide ab initio sobre uma coisa em concreto, oponível erga omnes.
6. Por sua vez, o “privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” (art. 733.º do CC). “Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente” (art. 735.º, n.º 2, do CC).
7. Em conformidade com o art, 749.º, n.º 1, do CC, sob a epígrafe “Privilégio geral e direitos de terceiro”, “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”.
8. O privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas antes sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real de garantia. É que nem todas as garantias reais são direitos reais de garantia, pois que algumas não incidem sobre bens certos e determinados. Trata-se antes como que de um direito de crédito que confere ao seu titular a prevalência sobre os credores comuns do devedor. Id est, os privilégios creditórios mobiliários gerais consubstanciam meras preferências de pagamento, incidindo sobre a generalidade dos bens móveis do devedor e assumindo a eficácia que lhes é própria aquando da penhora.
9. Os privilégios mobiliários gerais são tendencialmente qualificados como meras preferências de pagamento, porquanto não são dotados de sequela. Apenas prevalecem perante os credores comuns na execução do património do devedor. Por conseguinte, diferentemente do que sucede com os privilégios especiais que, nos termos do art. 750.º do CC, são suscetíveis de prevalecer sobre o direito de terceiro garantido por uma causa de preferência, os privilégios gerais não são, ex vi do art. 749.º CC, oponíveis aos titulares de outros direitos reais, designadamente do penhor.
10. Assim, considerando que o privilégio mobiliário geral não incide sobre bens certos e determinados e, como tal, não goza da sequela que é própria dos verdadeiros e próprios direitos reais de garantia, em caso de conflito entre esse privilégio mobiliário geral e o direito real de gozo ou de garantia de terceiro, oponível ao exequente, é este último que prevalece nos termos do art. 749.º do CC. Por conseguinte, via de regra, no confronto de direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral e direito de crédito garantido por penhor, prevalece o último (art. 666.º, n.º 1, do CC).
11. Contudo, o art. 204.º da Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro (que estabelece o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social – doravante CRCSPSS), dispõe que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil”, acrescentando o n.º 2 que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
12. Assim, no confronto entre o crédito da Exequente e o crédito da Segurança Social, à luz do art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009, prevalece o crédito da Segurança Social.
13. Não parece haver qualquer óbice hermenêutico ou interpretativo a que, neste caso - de confronto ou conflito bilateral -, se afirme a prevalência da regra especial – rectius, excecional – de natureza imperativa contida no art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009, por se tratar de uma norma excecional – aplicando-se aqui o brocardo ex specialis derrogat lex generalis, apesar de se tratar, conforme mencionado, de norma excetional1
14. Já nas situações em que se encontram em concurso mais do que duas categorias de credores que gozam de garantias cobertas por regras de valor normativo equivalente, a Jurisprudência mais recente tem vindo a entender que a referida norma tem uma aplicação restrita, ou seja, apenas se aplica quando a graduação de créditos envolve exclusivamente créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social.
15. Assim, observando essa tendência, nos casos de denominado conflito ou confronto multilateral, alguma jurisprudência tem entendido que prevalece o crédito pignoratício sobre todos os créditos com privilégio mobiliário geral, incluindo aqueles da Segurança Social2.
16. Entende-se, nesta senda, que, numa hipótese de conflito ou confronto multilateral, o legislador remeteu a solução das preferências para as regras gerais do CC que enformam o quadro normal dos créditos em cotejo, procurando obviar à preterição desproporcionada dos interesses de um conjunto mais alargado de credores, entre eles o interesse do credor pignoratício.
17. Por isso, num conflito trilateral - como é o caso dos autos -, em que haja créditos garantidos por penhor, créditos por impostos com privilégio mobiliário geral e créditos da Segurança Social com privilégio mobiliário geral, a graduação deve ser feita mediante a atribuição de prevalência aos créditos garantidos por penhor, já que o penhor se consubstancia num verdadeiro e próprio direito real de garantia que beneficia da sequela e é oponível erga omnes, enquanto o privilégio mobiliário geral (que não se reveste da natureza de direito real) confere uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns.
18. Diz-se, por isso, que é tudo isto que representa a normalidade do sistema em sede de garantias ou preferências creditórias, devendo presumir-se, em caso de dúvida, que o legislador adotou a solução estabelecida como constituindo a regra, e não a solução decorrente da exceção ou desvio a essa normalidade3.
19. Crê-se, porém, muito diferentemente, que quando concorrem e têm em simultâneo de ser graduados créditos garantidos por penhor, créditos garantidos por privilégio mobiliário geral do Estado e da Segurança Social, se aplica também o disposto no art. 204.º, n.º 2 do CRCSPSS (idêntico ao art. 10.º, n.º 2, do DL n.º 103/80, de 9 de maio, anteriormente em vigor) – segundo o qual o privilégio mobiliário geral da Segurança Social “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”4.
20. Pode dizer-se que os vários preceitos legais aplicáveis contêm soluções não dotadas de complexidade para as diversas hipóteses de “concursos/graduações bilaterais”. Contudo, quando se agregam as soluções dos variegados “concursos/graduações bilaterais” (e estão simultaneamente presentes créditos da Segurança Social com privilégio mobiliário geral e crédito garantidos por penhor) não se afigura possível descortinar uma solução/graduação que se mostre coerente com as graduações dos vários “concursos ou confrontos bilaterais”.
21. Na verdade, em caso de confronto ou concurso/graduação trilateral (entre os três créditos referidos), para o crédito da Segurança Social (que goza de privilégio mobiliário geral) ficar à frente do crédito que goza de penhor, ou ficam os créditos do Estado (que gozam de privilégio mobiliário geral) atrás do penhor e, então, ficam também atrás do crédito da Segurança Social (que goza de privilégio mobiliário geral), o que não respeita o que resulta do 204.º, n.º 1, do CRCSPSS; ou ficam os créditos do Estado (que gozam de privilégio mobiliário geral) à frente do crédito da Segurança Social (que goza de privilégio mobiliário geral), o que, ficando o penhor em terceiro e último lugar, não respeita os arts. 749.º e 666.º do CC.
22. Por conseguinte, alguns invocaram a inconstitucionalidade do art. 10.º do DL n.º 103/80 – idêntico ao atual art. 204.º do CRCSPSS – por violação dos princípios da igualdade e da confiança ínsitos no art. 2.º da CRP e decorrentes de Estado de Direito, o que assim não foi considerado pelo Tribunal Constitucional5, de um lado e, de outro, uma interpretação restritiva do art. 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, segundo a qual tal preceito apenas será aplicável no caso de estarem em conflito ou confronto meramente bilateral créditos da Segurança Social e créditos garantidos por penhor.
23. Conforme referenciado supra, não se acompanha, todavia, esta solução, porquanto tal interpretação restritiva faz depender a posição relativa do crédito da Segurança Social da circunstância, aliás aleatória, de também estarem ou não a concurso (para além do crédito garantido por penhor) créditos do Estado ou dos Trabalhadores (com privilégio mobiliário geral)6.
24. Entende-se que o disposto no art. 204.º, n.º 2, do CRCSPSS (e, anteriormente, no art. 10.º, n.º 2, do DL n.º 103/80) exprime o valor decisivo e a importância de que hodiernamente se reveste para o Estado e para os cidadãos em geral a sustentabilidade do Sistema de Segurança Social, a qual, pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos consubstanciados nos restantes créditos. Recorde-se, de resto, a relevância de que este sistema se reveste num contexto em que os bens de natureza intangível se assumem como mais valiosos para a generalidade dos cidadãos do que os bens de caráter tangível. O legislador, sabendo que na ausência de um preceito como o do art. 204.º, n.º 2, do CRCSPP, o penhor ficaria sempre no primeiro lugar de qualquer graduação, veio dizer expressamente que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”. Id est, o legislador, no art. 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, estabeleceu com toda a clareza que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social é que passa a ficar sempre à frente e em primeiro lugar. Não pode dizer-se que a letra da lei diz mais do que o seu espírito, impondo-se uma interpretação restritiva ou redução teleológica do art. 204.º, n.º 2, do CRCSPS e, assim, limitando-se a aplicação dessa norma aos casos em que apenas estejam em confronto ou concurso créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social. De resto, ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
25. Esta é a solução que melhor respeita a letra e o espírito da lei, correspondendo esta, efetivamente, à graduação dos créditos da Segurança Social com privilégio mobiliário geral em primeiro lugar, dos créditos garantidos por penhor em seguida e, por fim, dos créditos do Estado com privilégio mobiliário geral. Tanto a graduação do crédito garantido por penhor em primeiro lugar como em último lugar não observaria os elementos gramatical e teleológico da interpretação da lei. Também o argumento da coerência, exigindo que a lei seja interpretada de forma a não entrar em contradição com outras normas do ordenamento jurídico, aponta no mesmo sentido. De facto, a lei estabelece que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social prevalece sobre que o penhor prepondera sobre os restantes privilégios mobiliários gerais.
26. Daí conformar-se a graduação contida no acórdão recorrido, com o identificado crédito da Segurança Social em primeiro lugar e com o crédito garantido por penhor logo a seguir, em segundo lugar7.
27. Como mencionado supra, no caso em apreço estamos perante um confronto ou conflito multilateral de créditos, uma vez que são chamados à graduação os créditos reclamados pela Segurança Social, com privilégio mobiliário geral (contribuições), os créditos reclamados pelo Estado com privilégio mobiliário geral (IVA) e o crédito exequendo com penhor.
28. Como tal, e quanto ao produto da venda do bem móvel penhorado, o crédito exequendo, garantido por penhor, não deve ser graduado em primeiro lugar.
29. Entende-se, por isso, que o recurso de revista não deve proceder, não se revogando, consequentemente, o acórdão impugnado.
IV – Decisão
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto pela Exequente Banco BIC Português S.A., confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela Exequente.
Notifique-se.
Lisboa, 28-10-2025
Maria João Vaz Tomé (Relatora)
Henrique Antunes
Isoleta Costa
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1. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de setembro de 2021 (José Rainho), Proc. n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1; e do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de fevereiro de 2022 (Isabel Fonseca), Proc. n.º 857/21.1T8VFX-A.L1-1 - disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
2. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de setembro de 2021(José Rainho), Proc. n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1; de 5 de abril de 2022 (Ricardo Costa), Proc. n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1; de 22 de fevereiro de 2024 (Amélia Alves Ribeiro), Proc. n.º 2495/20.7T8STB-A.E1.S1 ; do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de fevereiro de 2014 (Ana Cristina Duarte), Proc. n.º 1216/13.5TBBCL-A.G1; de 8 de julho de 2020 (Fernando Fernandes Freitas), Proc. n.º 159/15.2T8VLN-B.G1; de 5 de maio de 2022 (Maria Eugénia Pedro), Proc. n.º 3863/21.2T8VNF-A.G1; do Tribunal a Relação de Coimbra de 21 de maio de 2019 (Barateiro Martins), Proc. n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1; do Tribunal da Relação do Porto de 11 de setembro de 2018 (Vieira e Cunha), Proc. n.º 1211/17.5T8AMT-E.P1; de 9 de maio de 2019 (Joaquim Correia Gomes), Proc. n.º 1018/11.TYVNG-A.P1; de 5 de março de 2024 (Anabela Dias da Silva), Proc. n.º 439/18.5T8AVR-F.P1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de novembro de 2021 (Renata Linhares de Castro), Proc. n.º 211/11.3TYLSB-C.L1-1; de 24 de novembro de 2020 (Amélia Sofia Rebelo), Proc. n.º 1536/10.0TYLSB-G.L1-1; de 8 de fevereiro de 2022 (Isabel Fonseca), Proc. n.º 857/21.1T8VFX-A.L1-1; do Tribunal da Relação de Évora de 5 de novembro de 2015 (Mário Serrano), Proc. n.º 284/14.7TBRMR-A.E1; e de 24 de março de 2022 (Paulo Amaral), Proc. n.º 485/17.6T8EVR-C.E1 - disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
3. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de setembro de 2021 (José Rainho), Proc. n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1– disponível para consulta in www.dgsi.pt.
4. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de setembro de 1995 (Martins da Costa), Proc. n.º 087303; de 20 de abril de 1999 (Garcia Marques), Proc. n.º 99A200; do Tribunal da Relação de Guimarães de 31 de março de 2016 (António Santos), Proc. n.º 565/14.0T8VCT-B.G1; do Tribunal da Relação de Évora de 30 de abril de 2015 (Conceição Ferreira), Proc. n.º 1277/13.7TBCTX-B.E1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de maio de 2019 (Barateiro Martins), Proc. n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de maio de 2019 (Maria Catarina Gonçalves), Proc. n.º 3810/17.6T8VIS-B.C1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de julho de 2019 (Manuel Marques), Proc. 2789/14.0T8SNT-K.L1; de 9 de maio de.2019 (Jorge Leal), Proc. n.º 2540/16.0T8STB-A.L1-2; do Tribunal da Relação do Porto de 14 de julho de 2020 (Fátima Andrade), Proc. n.º 2645/19.6T8STS-A.P1 – disponíveis para consulta in www.dgsi.pt. Vide, ainda, Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 40/90, de 07.11.1991, disponível em https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/8519.↩︎
5. Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 668/98 de 15 de dezembro de 1998.
6. Acompanha-se, pois, a posição perfilhada pelo acórdão recorrido e pela declaração de voto de vencido (Barateiro Martins) proferida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de maio de 2022 (Ricardo Costa), Proc. n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1, segundo a qual: “Ademais, continuo a entender que o disposto no art. 204.º/2 do CRCSPSS (e, antes, no art. 10.º/2 do DL 103/80 de 9/05) exprime o valor decisivo e a importância que hoje assume para o Estado e para os cidadãos a sustentabilidade da Segurança Social, a qual, pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos direitos conferidos pelos restantes créditos: o legislador – ciente de que, sem um preceito como o do art. 204.º/2 do CRCSPP, o penhor ficaria sempre no primeiro lugar de qualquer graduação (entre os 4 referidos créditos) – veio dizer que o privilégio mobiliário geral da Seg. Social “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”, ou seja, o legislador, no art. 204.º/2 do CRCSPSS, veio dizer que o privilégio mobiliário geral da Seg. Social é que passa a fica sempre à frente e em primeiro lugar (e para tal disse que passa a ficar à frente, a “prevalecer”, sobre o crédito/garantia que até ali ficava sempre à frente e em primeiro lugar: o penhor).Daí que confirmaria a graduação do acórdão recorrido, com o identificado crédito da SS em 1.º lugar e com o crédito garantido por penhor logo a seguir, em 2.º lugar.”
7. Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de abril de 2024 (Maria Catarina Gonçalves), Proc. n.º 1871/23.8T8LRA-B.C1 , segundo o qual, “Pensamos, portanto, que o legislador pretendeu – e disse-o de modo claro, expresso e sem margem para qualquer dúvida – que os privilégios da segurança social prevalecessem sobre o penhor e, perante a clareza e assertividade da norma em questão sem qualquer ressalva ou restrição, pensamos não ser viável qualquer interpretação que contrarie esse pensamento e essa vontade e restrinja o seu âmbito de aplicação.”; e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de março de 2023 (Lina Baptista), Proc. n.º 682/22.2T8AVR-B.P1, conforme o qual, “I - Numa graduação de créditos em processo de insolvência em que coexistam créditos privilegiados reconhecidos ao “Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P.”, um crédito reconhecido por penhor e créditos laborais verifica-se uma aparente incompatibilidade na aplicação conjugada dos art.º 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, dos art.º 749.º e 666.º do Código Civil e do art.º 333.º, n.º 2, alínea a) do Código do Trabalho.II - Analisando todas estas normas legais à luz do princípio da unidade do sistema jurídico, e dando prevalência à vontade do legislador de, através de uma norma especial, dar prevalência aos créditos da Segurança Social face aos créditos garantidos por penhor, concluímos que a única interpretação conjugada das mesmas é a de dar preferência aos créditos da Segurança Social ou do Instituto de Emprego e Formação Profissional sobre os créditos garantidos por penhor e, num segundo momento, dar preferência a estes últimos sobre os demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente sobre os créditos laborais “