RECURSO DE REVISTA
ESTAFETA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
INTERPRETAÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO
Sumário


I. As alterações derivadas da Agenda do Trabalho Digno e introduzidas no Código do Trabalho de 2009 vieram dar, através da consagração do regime constante do artigo 12.º-A desse diploma normativo, expressão legal concreta às dúvidas e problemas que as particularidades da mencionada prestação de serviços por parte daqueles trabalhadores vinha suscitando junto da doutrina nacional e estrangeira e da jurisprudência internacional – designadamente, daquela emitida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia -, bem como no seio da sociedade civil de muitos Estados [com especial incidência para os sindicatos] e de organizações transnacionais como a Organização Internacional do Trabalho [OIT] ou a já referida União Europeia [que, a propósito, emitiu diversos Regulamentos e Diretivas].
II. A pretendida qualificação jurídica nas relações de natureza profissional que se estabelecem entre os referidos trabalhadores e as empresas que exploram tais plataformas digitais tem naturalmente de considerar os contratos-quadro firmados entre ambos, mas não pode ignorar também a prática mais ou menos quotidiana que deriva das relações que, efetivamente, entre os primeiros e as segundas se verificam e que podem ou não respeitar ou sequer corporizar, de alguma maneira, os diversos aspetos e facetas que formalmente foram definidos nos ditos contratos-tipo para essas relações.
III. As decisões judiciais nacionais proferidas pelos tribunais da primeira e segunda instância evidenciam uma divisão acentuada entre a correta e adequada perspetiva a adotar na interpretação e aplicação da presunção ilidível constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e na perceção e valoração da subordinação jurídica reclamada no quadro da atividade das plataformas digitais, por referência ao relacionamento mais ou menos profissional que as mesmas estabelecem com os prestadores de serviços [conhecidos como estafetas].
IV. Mostram-se verificados cinco dos seis requisitos de laboralidade que se acham elencados no número 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e que, nessa medida, sustentam, sólida e fortemente, a natureza laboral do vínculo jurídico-profissional entre o estafeta e a Ré UBER.
V. A Ré não logrou afastar minimamente a dita presunção de laboralidade, que se mostra consolidada pelo preenchimento de cinco das suas alíneas/características, quando só bastavam duas para a mesma funcionar e produzir os efeitos jurídicos inerentes.

Texto Integral


RECURSO DE REVISTA N.º 30383/23.8T8LSB.L1.S1 (4.ª Secção)

Recorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO

Recorrida: UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA.

(Processo n.º 30383/23.8T8LSB – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo do Trabalho de Lisboa - Juiz 2)

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I – RELATÓRIO

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou, no dia 14/12/2023, ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho com processo especial [ARECT], contra UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA., com os sinais de identificação constantes dos autos, tendo, para o efeito, apresentado a correspondente Petição Inicial onde pediu que fosse judicialmente declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA. e AA, com início reportado a 1 de Maio de 2023.

Para tanto alegou, em síntese, que desde 10 de abril de 2023 que entre a Ré e AA existe uma relação laboral, já que este integra a sua estrutura organizativa, recebe uma quantia mensal, sem negociação, e toda a sua atividade é controlada pela Ré através dos meios eletrónicos ou de gestão algorítmica, fazendo uso da geolocalização, possuindo AA, por regra, um horário de trabalho e sendo avaliado.

Mais refere que o AA não se pode fazer substituir, tendo uma credencial unipessoal e confidencial podendo a Ré restringir o seu acesso à plataforma e que a prestação de trabalho é fixada pela Ré, sendo a mesma supervisionada em tempo real por meio da geolocalização e que a plataforma é o instrumento de trabalho utilizado, concluindo pela existência de um verdadeiro contrato de trabalho.


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2. A Ré devidamente citada contestou a Petição Inicial do Ministério Público, negando a existência de ordens, de subordinação, de poder disciplinar, de horário, de qualquer controlo.

Refere, em síntese, que o estafeta pode trabalhar quando quer e onde quer, e durante o tempo que quer, podendo até ficar longos meses ou anos sem ligar-se à plataforma.

Pode o estafeta escolher o percurso que entende para entregar os pedidos sem interferência e decidir ele próprio aceitar ou recusar pedidos.

É ainda o estafeta quem fixa o valor mínimo que quer receber (valor mínimo das propostas) mas que ainda assim pode aceitar abaixo desse valor.

Esclarece que a geolocalização é para que o mesmo receba as propostas e para o cliente poder acompanhar a entrega e contactá-lo, sendo caso disso.

Durante o período de tempo em que trabalha para a Ré pode trabalhar para outras plataformas.

A Ré que não tem, nessa medida, uma relação de exclusividade com o estafeta, que pode ter os seus próprios clientes, não exerce poder disciplinar sobre o mesmo.

Conclui no sentido de inexistirem indícios que permitam concluir pela existência de um contrato de trabalho.


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3. O trabalhador, notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho (CPT), não deduziu qualquer pretensão.

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4. Efetuada a Audiência de Discussão e Julgamento com observância do legal formalismo, foi proferida sentença, com data de 11/10/2024, que julgou a ação totalmente improcedente por não provada, e em consequência, absolveu a Ré do pedido, tendo ainda sido decidido fixar o valor da ação em € 30.001,00, atentos os interesses imateriais em apreço.

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5. O Ministério Público, não se conformando com a decisão proferida, interpôs recurso de Apelação, que tendo sido admitido, subiu ao Tribunal da 2.ª instância e aí seguiu a sua normal tramitação.

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6. Por Acórdão de 29/01/2025, o Tribunal da Relação de Lisboa [TRL] julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.

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7. O Ministério Público, não se conformando com o douto Aresto do tribunal da 2.ª instância, veio interpor recurso de revista, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, todos do NCPC, com efeito meramente devolutivo (artigo 676.º, do CPC/2013) e com subida nos próprios autos (artigo 675.º, n.º 1, do CPC), considerando que não se verifica uma situação de dupla conforme por a decisão recorrida possuir “fundamentação substancialmente diferente” da sentença do Tribunal de Primeira Instância (artigo 671.º, n.º 3, do CPC).

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8. O Autor conclui as suas alegações de recurso nos seguintes moldes:

«1. Apesar de, quer o Tribunal de Primeira Instância, quer o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, terem decidido pela improcedência da ação, não se verifica dupla conforme, uma vez que a decisão do Venerando TRL possui uma fundamentação substancialmente diferente da fundamentação da sentença recorrida.

2. O Tribunal de Primeira Instância julgou a ação totalmente improcedente, entendendo que, perante a factualidade dada como provada, não se verificava nenhuma das caraterísticas previstas nas diversas alíneas do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, concluindo e decidindo, por isso, no sentido de que não existia presunção de existência de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.

3. O Venerando TRL entendeu que, tendo em consideração que a relação jurídica estabelecida entre a Recorrida UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e o estafeta AA se iniciou numa data anterior à entrada em vigor do referido artigo 12.º-A do Código do Trabalho (aditado pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril), se deve aplicar ao caso concreto o regime jurídico do contrato individual de trabalho previsto no artigo 12.º do Código do Trabalho, não tendo, por isso avaliado a presunção que emerge do atual artigo 12.º-A daquele diploma.

4. Verifica-se, assim, que, perante a mesma factualidade assente:

4.1. O Tribunal de Primeira Instância julgou a ação totalmente improcedente, por entender que não se verificava nenhuma das caraterísticas previstas nas diversas alíneas do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

4.2. O Tribunal da Relação de Lisboa, julgou o recurso improcedente, por entender que não se verificava nenhuma das caraterísticas previstas nas diversas alíneas do artigo 12.º do Código do Trabalho.

5. Conclui-se, assim, que o douto acórdão do TRL tem uma “fundamentação essencialmente diferente” da do Tribunal de Primeira Instância, razão pela qual se entende que, tendo em consideração o disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, não se verifica uma situação de dupla conforme que obste a que seja admitido o presente recurso de revista.»


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9. A Ré contra-alegou, sustentando, muito em síntese, o seguinte quanto à admissibilidade do presente recurso de revista:

«O Recurso de Revista é inadmissível por não verificação dos requisitos estabelecidos no artigo 615.º, 671.º n.º 3 e 674.º do CPC.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, não se alcança o fundamento legal para o Recurso de Revista interposto pelo Recorrente.

Decorre do disposto no artigo 671.º, n.º 1 do CPC que “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.”, resultando do preceituado no artigo 674.º, n.º 1 do mesmo diploma que “A revista pode ter por fundamento: a) A violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável; b) A violação ou errada aplicação da lei de processo; c) As nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º.

Ora, o único fundamento que o Recorrente avança para apresentar um Recurso de Revista ordinário é o seguinte: “verifica-se que o Venerando Tribunal da Relação, apesar de concordar com a improcedência da ação não se debruçou sobre a requerida análise da situação à luz do recente artigo 12.º-A do CT”.

Assim, o Recorrente defende a interposição do Recurso de Revista ordinário numa alegada “fundamentação essencialmente diferente” do Tribunal da Relação relativamente à sentença do Tribunal de 1.ª instância, pretendendo assim obviar a dupla conformidade decisória verificada. Todavia, o Recorrente nada explicita ou fundamenta relativamente a essa alegada fundamentação essencialmente diferente, ficando-se por uma alegação genérica e vaga, certamente na esperança de o Tribunal ad quem vislumbre essa fundamentação essencialmente diferente, suprindo assim a sua insuficiência de alegação e fundamentação.

Ora, de acordo com o artigo 671.º, n.º 3, do CPC, a designada dupla conforme verifica-se quando seja confirmada a decisão da 1.ª instância sem voto de vencido (in casu, não houve) e sem uma fundamentação “essencialmente diferente”.

Como é entendimento unânime na doutrina e jurisprudência, existe uma fundamentação “essencialmente diferente”, designadamente, se se confirmar a decisão da 1.ª instância “a partir de um quadro normativo substancialmente diverso[1], o que, salvo melhor opinião, não sucedeu nos presentes autos.

Assim, estando-se perante uma situação de dupla conformidade decisória, o recurso pertinente seria o de Revista excecional, cujos fundamentos específicos, aludidos no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) do CPC, não foram indicados pelo Recorrente (nem, em qualquer caso, existiriam).

Em face do exposto, e atento o teor do Acórdão recorrido, deverá o presente recurso de revista ser liminarmente rejeitado por não preencher os requisitos previstos nos artigos 615.º, 671º n.º 3 e 674.º do CPC, uma vez que a decisão do Tribunal da Relação foi proferida sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente da decisão proferida na 1.ª instância.»


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10. Por despacho judicial de 11/03/2025, o Tribunal da Relação de Lisboa admitiu o recurso de revista, que subiu, oportunamente a este Supremo Tribunal de Justiça [STJ].

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11. O relator do recurso neste STJ considerou, depois de se mostrar cumprido o princípio do contraditório, em despacho judicial de 21/3/2025, o seguinte, quanto a tal questão da existência ou não de «dupla conforme» no que respeita ao confronto entre a sentença da 1.ª instância e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:

«O recurso ordinário de revista interposto nos termos dos números 1 dos artigos 629.º e 671.º do NCPC, foi-o em prazo, por quem tem legitimidade, em processo com valor superior à alçada do tribunal da relação e por referência a acórdão que é recorrível, por ter decidido de mérito o litígio dos autos e se traduzir, no que concerne à recorrente, numa sucumbência superior a 15.000,00 € [metade da alçada do tribunal da relação].

Resta saber se, por referência às questões suscitada neste recurso, se verifica ou não uma situação de dupla conforme entre o Aresto recorrido e a sentença da 1.ª instância [número 3 do artigo 671.º do CPC/2013].

Resulta da exposição introdutória deste despacho liminar [relatório, se assim o quisermos denominar] que as partes divergem quanto à existência, no confronto entre as duas decisões judicias das instâncias, de um cenário de dupla conforme, ressaltando, em nosso entender, dos autos, uma situação de fronteira, suscetível a leituras contraditórias, que legitima a referida discordância e as dúvidas que temos nesta matéria em particular.

Estabelece o artigo 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

No caso vertente não estamos perante um caso em que o recurso é sempre admissível (artigo 629.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

Por outro lado, o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1.ª Instância sem voto de vencido.

Há que averiguar se a fundamentação entre a sentença do Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é essencialmente distinta da desenvolvida pelo Aresto proferido, em recurso de Apelação, pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

A 1.ª Instância começou por considerar que não se justificava discutir a aplicação no tempo do artigo 12.º-A do Código do Trabalho na medida em que o resultado seria idêntico ao da aplicação da norma geral. De seguida a sentença apreciou se a matéria de facto assente preenchia as alíneas daquele preceito, concluindo em sentido negativo. Após, apreciou a questão à luz das noções de contrato de trabalho e de contrato de prestação de serviço, fazendo alusão aos factos-índice e à sua consagração no artigo 12.º do Código do Trabalho, bem como à subordinação jurídica. Conclui no sentido de não resultarem resquícios de subordinação jurídica da factualidade apurada.

Por seu turno, o Tribunal da Relação considerou inaplicável o artigo 12.º- A do Código do Trabalho atenta a data do início da relação jurídica, tendo aplicado o artigo 12.º do mesmo diploma. O acórdão recorrido aferiu se a factualidade assente preenchia alguma das alíneas deste preceito, tendo concluído em sentido negativo.

Analisadas as duas decisões parece-nos que, no que concerne ao artigo 12.º do Código do Trabalho, ainda que com graus de desenvolvimento argumentativo distintos, as instâncias decidiram no mesmo sentido, i.e., no não preenchimento das alíneas do n.º 1.

Já quanto ao artigo 12.º-A do mesmo diploma legal as decisões judiciais parecem-nos distintas.

O Tribunal da Relação afastou a aplicabilidade desta norma com fundamento na data do início da relação jurídica, não tendo por isso procedido à sua análise.

Por seu turno, a 1.ª Instância, apesar de suscitar a questão da aplicação da norma no tempo, acabou por apreciar a factualidade assente à luz das alíneas deste preceito.

Quanto a esta questão, a fundamentação do acórdão é assim fundamentalmente distinta.

Em face do exposto e salvo melhor opinião, parece-nos que não existe dupla conforme quanto às questões relativas à aplicação do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, mas já poderá suscitar-se a existência de dupla conforme quanto à aplicação do artigo 12.º do mesmo preceito.

Temos, contudo, sérias reservas quanto à possibilidade de separar tais problemáticas, pois não nos parece que estejamos perante segmentos decisivos estanques e motivações, de facto e de direito, distintas e autónomas, por referência à aplicação ou não aplicação do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009, assim como quanto à interpretação e aplicação do artigo 12.º do mesmo diploma legal.

De qualquer forma, dado que a questão da aplicação da presunção do artigo 12.º do Código do Trabalho é colocada pelo recorrente a título subsidiário, relega-se a apreciação da admissibilidade do seu conhecimento para momento posterior [Acórdão a proferir].

Logo, não sendo de considerar, pelos fundamentos expostos, a ocorrência de uma dupla conforme pelo menos quanto à aplicação do artigo 12.º-A do CT/2009, há que admitir a presente revista ordinária, ao abrigo dos artigos 629.º, número 1, 671.º, número 1 e 674.º, número 1, alínea a), e número 2, todos do NCPC .

Logo, este recurso foi, nessa medida, corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto pelo tribunal da 2.ª instância.

Nada obsta, assim, ao conhecimento do objeto do presente recurso de revista, com os contornos deixados antes expostos.

Notifiquem-se as partes para, querendo, deduzirem reclamação para Conferência deste despacho, no prazo de 10 dias.

Caso seja apresentada reclamação pelas partes ou depois de decorrido o prazo para tal, de novo, abra-se-me, então, conclusão. D.N.»


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13. As partes não reclamaram para a Conferência de tal despacho de admissão da Revista como um recurso ordinário ou comum, nos termos dos números 1 dos artigos 629.º e 671.º e ainda 674.º, todos do NCPC.

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14. O Autor MINISTÉRIO PÚBLICO, quanto ao objeto deste recurso de revista comum, formulou as seguintes conclusões:

«6. O douto acórdão recorrido limitou-se a analisar a relação jurídica estabelecida entre a Recorrida UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e o estafeta AA com base o disposto nas diversas alíneas do artigo 12.º do Código do Trabalho, por considerar que o regime jurídico para o enquadramento da relação jurídica estabelecida entre as partes tinha que ser definido em função do momento em que se constituiu aquela relação, a qual efetivamente teve início em data anterior à entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Trabalho pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril.

7. Sem embargo do profundo respeito que nos merece a referida decisão, entendemos que a lei não obriga a que, na qualificação de uma relação jurídica estabelecida antes da entrada em vigor das alterações legislativas que vieram estabelecer o novo regime da presunção de laboralidade no âmbito de plataforma digital, se deve aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se iniciou essa relação jurídica.

8. Sabemos que a questão não é nova e, se na jurisprudência conhecida se verificava um entendimento quase uniforme, na doutrina essa nunca foi uma opinião pacífica, tal como aliás foi salientado no douto acórdão do STJ de 04.07.2018 (processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1, relator CHAMBEL MOURISCO), referido pelo TRL como indicador de que nesta matéria existia uma jurisprudência consolidada.

9. Acresce que, já depois da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril – que alterou o Código do Trabalho e legislação conexa, no âmbito da agenda do trabalho digno – foi aprovada e publicada a Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32024L2831), relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais.

10. Como fazem notar JOÃO LEAL AMADO e TERESA COELHO MOREIRA [2] esta Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho esclarece que, no tocante ao âmbito temporal da presunção legal: «No que diz respeito às relações contratuais que entraram em vigor antes da data estabelecida no artigo 29.º, n.º 1 [data da transposição da diretiva], e estejam ainda em vigor nessa data, a presunção legal a que se refere o presente artigo só é aplicável ao período iniciado a partir dessa data» (artigo 5.º, n.º 6).

11. Ou seja, a presunção só se aplicará para o futuro, mas abrangerá os contratos celebrados antes de a mesma ser criada, desde que tais contratos ainda subsistam após a sua criação.

12. Como também salienta Mário Branco Coelho no seu voto de vencido no acórdão do TRE de 05/12/2024 (processo n.º 1964/23.1T8TMR.E2, relatora PAULA DO PAÇO), «em termos de coerência do ordenamento jurídico, se as presunções legais estabelecidas na Diretiva são aplicáveis ao período do contrato iniciado após a sua entrada em vigor, o mesmo procedimento se deve adotar quanto ao novo art.º 12.º-A – tal não é excluído pelo art.º 35.º n.º 1 da Lei n.º 13/2023, que ressalva apenas as condições de validade e os efeitos de factos ocorridos anteriormente, não ressalva a aplicação das novas presunções ao período do contrato decorrido após 01.05.2023».

13. Pelo exposto, considerando que o douto acórdão do TRL decidiu de forma errada ao entender que o artigo 12.º-A do Código do Trabalho não se aplicava à relação jurídica em causa nos autos(estabelecida entre a Recorrida UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e AA), requer-se que:

13.1. Seja decidido que a presunção prevista no artigo 12.-A do Código do Trabalho só se deve aplicar para o futuro, mas abrange os contratos celebrados antes de a mesma ser criada, desde que esses contratos subsistam após a entrada em vigor do referido preceito legal.

13.2. Seja avaliado e decidido se o contrato que está na base da relação jurídica estabelecida entre a Recorrida UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e o estafeta AA, que teve início em 10 de abril de 2023, mas prosseguiu após o dia 1 de maio de 2023, deve, ou não, ser reconhecido como sendo um contrato de trabalho, tendo em consideração as características previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

14. Foi a evidência de que os estafetas que exercem funções para plataformas digitais necessitam de proteção na determinação do seu estatuto profissional que motivou a referida alteração legislativa operada pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, no âmbito da agenda do trabalho digno, e foi também essa necessidade que esteve na base da referida Diretiva (UE)

15. A nova legislação interna e comunitária espelha a intenção do legislador de melhorar o acesso pelos trabalhadores das plataformas digitais aos direitos laborais e à proteção social, melhorando a qualidade global do trabalho disponível e as condições de emprego oferecidas, com acesso a opções de pagamento por doença, subsídios de desemprego ou regimes de apoio ao rendimento.

16. Porém, embora a legislação laboral se aplique aos trabalhadores das plataformas digitais que são assalariados, muitos trabalhadores dessa plataformas continuam a ser tratados como trabalhadores por conta própria, verificando-se que os tribunais vêm tomando decisões sobre o estatuto profissional dos trabalhadores das plataformas digitais numa base casuística, com decisões em sentidos completamente opostos, diríamos mesmo contraditórios.

17. Embora se conheçam decisões em sentidos inversos, são já vários os arestos que se pronunciaram no sentido de que os estafetas que trabalham para plataformas digitais não são “empresários”, mas sim trabalhadores dependentes.

18. São disso exemplo, o acórdão do TRL de 05/12/2024 (processo n.º 4306/23.2T8VFX.L1-4, relator SÉRGIO ALMEIDA), o acórdão do TRC de 11/12/2024 (processo n.º 5090/23.5T8VIS.C1, relatora PAULA MARIA ROBERTO) e o acórdão do TRG de 03/10/2024 (processo n.º 2800/23.4T8VRL.G1, relatora VERA SOTTOMAYOR), sendo ainda de destacar os votos de vencido de EMÍLIA RAMOS COSTA nos acórdãos do TRE de 07/11/2024 (processo n.º 1451/23.8T8PTG.E1, relatora PAULA DO PAÇO) e de 16/01.2025 (processo n.º 3848/23.4T8PTM.E1, relator JOÃO LUÍS NUNES) e os votos de vencido de MÁRIOBRANCO COELHO nos acórdãos do TRE de 07/11/2024 (processo n.º 1625/23.1T8BJA.E1, relatora PAULA DO PAÇO) e de 05/12.2024 (processo n.º 1964/23.1T8TMR.E2, da mesma relatora).

19. Tendo em consideração o que foi decidido naqueles doutos arestos e perfilhando a abordagem fática e jurídica que Ministério Público junto da Primeira Instância defendeu nas suas alegações de recurso relativas à douta decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância (Referência CITIUS n.º 1, de 19.10.2024), apela-se no sentido de ser decidido que, tendo por base as características previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, a factualidade assente pelo Tribunal de Primeira Instância permite e implica concluir no sentido do reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre AA e a UBER EATS PORTUGAL – UNIPESSOAL, LDA., com efeitos desde 1 de maio de 2023.

20. Com efeito, tal como se invocou no referido recurso da sentença do Tribunal de Primeira Instância, uma análise daquela relação jurídica à luz do artigo 12.º-A do Código do Trabalho e da presunção de laboralidade ali prevista, levam a que se considerem verificadas várias das características que, de acordo com o disposto naquele preceito legal, implicam que se presuma a existência de um contrato de trabalho.

21. Essa conclusão resulta da análise da titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho, do poder de direção e de conformação do modo como é prestada a atividade pelo estafeta, do exercício do poder sancionatório pelo empregador e do modo de cálculo da retribuição, o que leva a que se conclua que resultaram provados indícios relevantes de um contrato de trabalho, o que deveria ter sido declarado na douta sentença e no douto acórdão recorridos.

22. Acresce que o preenchimento da presunção de laboralidade que o legislador estabeleceu no artigo 12.º-A do Código do Trabalho (o qual tem por objetivo dispensar o encargo do ónus da prova que recairia sobre o trabalhador de todos os elementos que caracterizam o contrato de trabalho) está dependente da verificação de apenas duas das características elencadas nas diversas alíneas daquele preceito legal.

23. No entanto, na situação em causa nos autos, como em muitos outros casos similares como os que foram apreciados nas decisões jurisprudenciais anteriormente referidas e citadas, verificam-se vários desses requisitos, designadamente os previstos nas seguintes alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho: na alínea a) [A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela], na alínea b) [A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade], na alínea c) [a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica], na alínea e) [a plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta] e na alínea f) [os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação].

24. Estando preenchidos os referidos factos índice da presunção, enumerados nas mencionadas alíneas do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, podemos concluir que, no caso, se verifica a presunção de laboralidade plasmada naquele artigo, ao contrário do que considerou a sentença do Tribunal de Primeira Instância que não considerou preenchido nenhum item elencado nesta presunção.

25. A isto acresce que a Recorrida UBER EATS PORTUGAL – UNIPESSOAL, LDA. não ilidiu aquela presunção de laboralidade, pois as questões a que se referiu, designadamente as relativas ao horário, à exclusividade e à assiduidade, não se adequam a analisar o trabalho prestado no âmbito de uma plataforma digital.

26. A Recorrida não se limita a ser um mero intermediário na prestação de serviços entre comerciantes e estafetas. A mesma tem como fim a prestação de um serviço de recolha e entregas, que fixa o preço e as condições do pagamento do serviço, assim como as condições essenciais para a prestação do referido serviço.

27. O estafeta AA não dispõe de uma organização empresarial própria e autónoma. Ele presta os seus serviços enxertados na organização de trabalho da Recorrida, submetido à sua direção e organização, como bem demonstra o modo como a Recorrida estabelece os preços dos serviços de entrega. O estafeta não negoceia preços ou condições do serviço com os proprietários dos estabelecimentos onde efetua a recolha dos bens, nem recebe a retribuição dos clientes finais.

28. Em suma, a prestação de trabalho do estafeta está sujeita a uma organização do trabalho determinada pela Ré, a qual estabeleceu meios de controle do processo produtivo em tempo real que operam sobre a atividade e não apenas sobre o resultado final, mediante a gestão algorítmica do serviço e a possibilidade de conhecer constantemente a geolocalização do trabalhador, o que evidencia a ocorrência do requisito da dependência e subordinação jurídica própria de uma relação laboral.

29. Para o caso, que só por mera cautela se admite e pondera, de se entender (como o fez o Tribunal da Relação de Lisboa no douto acórdão recorrido), que a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho não se aplica à relação jurídica estabelecida entre a Recorrida UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e AA, então apela-se no sentido que seja reavaliada a decisão do TRL quanto à presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho, pois este Venerando Tribunal concluiu que não se provaram factos que permitissem preencher qualquer das alíneas a que alude aquela norma, nem os respetivos indícios de laboralidade ali previstos., com o que também não concordamos inteiramente.

30. São conhecidas diversas decisões jurisprudenciais onde, mesmo considerando que nos casos em análise não se aplicava a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital introduzida pela Lei 13/2023, de 3 de abril, foi decidido que, à luz do artigo 12.º do Código do Trabalho, se devia considerar que os estafetas que prestam trabalho para uma plataforma digital – como é o caso da UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. – o fazem no âmbito de uma relação laboral e não de um qualquer outro contrato, designadamente de prestação de serviços.

31. São disso exemplo os acórdãos do TRG de 03/10/2024 (processo n.º 2838/23.1T8VRL.G1, relatora MARIA LEONOR BARROSO), de 17/10/2024 (processo n.º 2793/23.8T8VRL.G1, relator ANTERO VEIGA) e de 31/10/2024 (processo n.º proc. 2783/23.0T8VRL.G1, relatora VERA SOTTOMAYOR).

32. Cremos que, tendo em conta o que resulta daqueles arestos onde foram analisadas situações similares à que está em causa nos presentes autos, mesmo à luz do referido artigo 12.º do Código do Trabalho, pode e deve-se entender que o estafeta AA se encontra numa relação de trabalho subordinado.

33. Com efeito, usando as sugestivas expressões de JOÃO LEAL AMADO (in “As plataformas digitais e o novo art.º 12-A do CTP: empreendendo ou trabalhando” – Rev. TST, Porto Alegre, vol. 89, n.º 2, abr./jun. 2023, pág. 300) acreditamos que “ao olhar para um qualquer estafeta, daqueles que percorrem velozmente as ruas nas suas motos (ou, mais lentamente, pedalando nas suas bicicletas)” ninguém se convence, seriamente, que ali vai um empresário – seja um microempresário, um moto empresário ou um ciclo empresário.

34. Apela-se, por isso no sentido de que, mesmo entendendo que a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital prevista no artigo 12.-A do Código do Trabalho não é aplicável à relação jurídica em causa nos autos – o que se espera não aconteça –, V. Exas., Venerandos Conselheiros do STJ decidam que, apenas com base nos indícios de laboralidade previstos no artigo 12.º do Código do Trabalho, a factualidade assente pelo Tribunal de Primeira Instância é suficiente para concluir no sentido do reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre AA e a UBER EATS PORTUGAL – UNIPESSOAL, LDA..

35. Pelo exposto, porque o douto acórdão do Venerando TRL violou não só o disposto no art.º 12.º-A, como o disposto no artigo 12.º, ambos do Código do Trabalho, deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo-se que o Venerando Supremo Tribunal revogue o douto acórdão objeto deste recurso, substituindo-o por uma decisão que reconheça que a relação jurídica entre o estafeta AA e a Recorrida UBER EATS PORTUGAL – UNIPESSOAL, LDA. reveste a natureza de trabalho dependente, reconhecendo, assim, a existência de um contrato individual de trabalho.

Pelo exposto, entendemos que deverá ser admitido o presente recurso e concedido provimento ao mesmo, revogando-se o acórdão recorrido, de acordo com os fundamentos acima explanados, substituindo-o por outro que, acolhendo as posições acima firmadas:

1. Decida que a presunção prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho só se deve aplicar para o futuro, mas abrange os contratos celebrados antes de a mesma ser criada, desde que esses contratos subsistam após a entrada em vigor do referido preceito legal.

2. Avalie e decida se o contrato que está na base da relação jurídica estabelecida entre a Recorrida UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e o estafeta AA, que teve início em 10 de abril de 2023, mas prosseguiu após o dia 1 de maio de 2023, deve ser reconhecido como sendo um contrato de trabalho, com efeitos desde 1 de maio de 2023, tendo em consideração as características previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

3. Caso se entenda que a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho não é aplicável à relação jurídica em causa nos autos – o que se espera não aconteça – decida que, mesmo só com base nos indícios de laboralidade previstos no artigo 12.º do Código do Trabalho, a factualidade assente pelo Tribunal de Primeira Instância é suficiente para concluir no sentido do reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre AA e a UBER EATS PORTUGAL – UNIPESSOAL, LDA.

Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!»


*


15. A Recorrida UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA. apresentou contra-alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões, na parte que para aqui releva, fazendo-as acompanhar de dois Pareceres Jurídicos da autoria do Dr. PEDRO MADEIRA DE BRITO e da Dra. JOANA VASCONCELOS:

«4. Tendo a relação contratual entre o prestador de atividade e a Recorrida iniciado antes de 1 de maio de 2023, não será aplicável o regime decorrente do indicado artigo 12.º- A do Código do Trabalho, mas apenas o que decorre do artigo 12.º do mesmo diploma, tal como decorre da posição uniforme e consolidada do Supremo Tribunal de Justiça.

5. Aplicando-se a presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho, não se vislumbra que alguma das características previstas nas várias alíneas do indicado artigo esteja verificada, tal como se constata da análise dos seguintes factos provados: 14, 15, 17, 24, 26, 33, 35, 36, 37, 41.

6. Aplicando-se a presunção prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, defende o Recorrente que se encontram verificadas as alíneas a), b), c), e) e f). A Recorrida não pode concordar com tal entendimento, em linha com o preconizado nas Alegações que, por economia processual, aqui não se reproduz; em resumo:

7. Para se verificar a alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho é necessário que a plataforma digital fixe a retribuição dos prestadores de atividade, e, caso tal não aconteça, que esta estabeleça os limites máximos e mínimos da referida retribuição.

8. A retribuição legalmente definida no artigo 258.º do Código do Trabalho não corresponde à taxa de entrega, ao preço do serviço de entrega ou a qualquer contrapartida específica por uma entrega realizada.

9. A retribuição deve ser uma prestação regular e periódica, devida pela mera disponibilidade do trabalhador, e não apenas pela realização efetiva de um serviço ou obtenção de um resultado e, enquanto elemento essencial do contrato de trabalho, deve apresentar regularidade, periodicidade e correspetividade, características ausentes no modelo de remuneração do prestador de atividade.

10. A remuneração dos estafetas não está associada à sua disponibilidade ou ao tempo que permanecem ligados à aplicação, mas sim à quantidade e ao ritmo de entregas realizadas, sem qualquer padrão fixo (Facto Provado 26).

11. A Recorrida não fixa unilateralmente a retribuição, uma vez que os estafetas podem aceitar ou recusar propostas de entrega, tendo ainda têm liberdade para estabelecer um valor mínimo por quilómetro, influenciando diretamente os montantes que pretendem receber pelas entregas.

12. O facto de os estafetas poderem recusar propostas sem consequências negativas demonstra que o preço não lhes é imposto, mas sim negociado com base na aceitação individual de cada serviço.

13. A remuneração dos estafetas baseia-se no número de entregas realizadas e no preço ajustado para cada uma, e não no tempo de trabalho ou na mera disponibilidade, afastando a natureza de retribuição laboral.

14. Os valores recebidos pelo estafeta não podem ser considerados retribuição laboral, pois não são fixados unilateralmente pela plataforma, não apresentam regularidade ou periodicidade e dependem exclusivamente da aceitação e realização de cada entrega.

15. O poder de direção (alínea b)) é um elemento central e essencial em qualquer relação laboral, permitindo ao empregador orientar, instruir e adaptar a prestação de trabalho de acordo com os interesses da empresa, dentro dos limites legais e contratuais estabelecidos, e exercer poder disciplinar sempre que as tais orientações e instruções não sejam acatadas

16. Quer isto dizer que a primeira parte da alínea b) do n.º1 do artigo12.º-A do CT impõe, assim, que, em cada caso e partindo dos Factos Provados, se avaliem os concretos termos em que se desenrola a execução da prestação pelos prestadores de atividade.

17. Analisada a factualidade assente nos presentes autos, constata-se que a mesma é manifestamente demonstrativa de que o prestador de atividade visado desenvolve a sua atividade de forma totalmente autónoma e segundo as condições o próprio define. Não recebe ordens, muito menos individualmente dirigidas.

18. O facto de o prestador de atividade se encontrar previamente registado para poder proceder à entrega dos produtos não pode relevar para efeitos do preenchimento da alínea b) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

19. Não se pode falar, nessa fase, de qualquer prestação de atividade, pelo que tais regras não têm a virtualidade de fazer funcionar a presunção, como infundadamente defende o Recorrente.

20. Note-se, com efeito, que a alínea em apreço se refere expressamente a “regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade” e não a regras específicas para o acesso à prestação da atividade na plataforma, diferença que pode passar despercebida e que deve, por isso, ser salientada.

21. Por conseguinte, assumir a definição de regras para registo na plataforma como uma regra específica quanto à prestação da atividade não pode deixar de ser vista como uma interpretação demasiado extensiva, sem qualquer base legal ou interpretativa que o sustente.

22. A necessidade de registo não é (nem pode ser) uma regra quanto à prestação da atividade, antes sim um passo essencial para aceder a qualquer tipo de plataforma ou aplicação informática.

23. A Recorrida acredita que a referência do Recorrente à determinação da “conduta do prestador de atividade perante o utilizador do serviço e ainda regras específicas quanto à prestação da atividade” se trate de um mero lapso, uma vez que tal referência não tem qualquer sustentação no elenco de factualidade dada como provada.

24. Note-se que de acordo com o Facto Provado 28, o prestador de atividade não está obrigado a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal.

25. Como apontou o Tribunal de 1.ª instância não foram alegados quaisquer factos pelo Autor que permitam sustentar o poder direção da Recorrida perante o estafeta.

26. No mesmo sentido, concluiu o Tribunal recorrido que “quando no confronto com outros, não nos consentem concluir pela existência do exercício de qualquer poder de autoridade da apelada, neste concreto caso, cujo objetivo seja o de dirigir ou de dar ordens na execução da prestação do estafeta”.

27. Não se vislumbra um único facto passível de concluir por qualquer controlo (alínea c)) por parte da Recorrida, antes pelo contrário.

28. O prestador de atividade não tem qualquer imposição relativamente ao tempo de cada entrega e podem utilizar os sistemas de navegação GPS que preferirem utilizar ou até mesmo não utilizar nenhum sistema de navegação GPS (Facto Provado 33), pelo que não é possível concluir pelo controlo ou orientação por parte da Recorrida na forma como o prestador de atividade desempenha a sua atividade.

29. O simples facto de o estafeta precisar de estar ligado à plataforma e ter o GPS ativo para receber pedidos não é suficiente para demonstrar a existência de um poder de direção e/ou controlo por parte da entidade responsável pela aplicação, porquanto tal necessidade decorre da própria natureza do serviço prestado e não da existência de uma relação de subordinação típica de um contrato de trabalho.

30. Para além disso, importa ainda realçar que a necessidade de o GPS estar ligado para a atribuição de pedidos não significa qualquer imposição relativamente a como e quando o estafeta deve prestar a sua atividade.

31. Acrescenta ainda o Recorrente, novamente sem uma única referência a qualquer facto concreto, que a necessidade de manter o GPS ativo “não se circunscreve ao momento da proposta de entrega, prolonga-se durante o período de execução da tarefa, cedendo a Ré este registo de geolocalização ao cliente, para que este possa consultar em tempo real, qual o tempo que a encomenda irá demorar a chegar ao seu destino final”.

32. Note-se, no entanto, que o legislador não quis estabelecer a verificação deste indício com a simples existência de um sistema de geolocalização, sendo que do elenco dos factos provados não constam sequer factos que permitam concluir que o Sr. AA alguma vez tenha sido sujeito a controlo e/ou supervisão através do GPS, antes pelo contrário.

33. Em face do exposto, não se pode concluir pela existência de controlo na prestação da atividade, razão pela qual não se pode considerar verificado este indício, contrariamente àquele que é o entendimento do Recorrente.

34. Para que a característica elencada na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho se encontre verificada é necessário que fique provado que a Recorrida “exerce poderes laborais”.

35. Nas palavras de Joana Vasconcelos – “São três os “poderes patronais” conferidos ao empregador pelo contrato de trabalho: diretivo, disciplinar e regulamentar (artigos 97.º, 98.º e 99.º do CT).

36. O poder diretivo já se encontra coberto pela alínea b) e c) do n.º 1, pelo que se impõe “uma interpretação restritiva desta norma, que limite o seu âmbito ao poder disciplinar e ao poder regulamentar na estrita medida em que este se concretiza em normas sobre “disciplina do trabalho” (artigo 99.º, n.º 1, do CT).

37. O poder de exclusão da plataforma poderá indiciar a existência de poder disciplinar, mas não prova a sua existência. Nem tão-pouco prova a existência de poder regulamentar.

38. No que diz respeito ao poder regulamentar, sempre se dirá que o mesmo se refere à capacidade que o empregador possui de emitir normas internas que regulam a organização e a disciplina do trabalho dentro da empresa.

39. O poder disciplinar corresponde a um poder punitivo do empregador que visa atuar sobre condutas do trabalhador consideradas censuráveis no contexto da relação laboral estabelecida e que se consubstancia na capacidade de aplicar sanções disciplinares aos trabalhadores em caso de incumprimento dos seus deveres, sejam eles principais ou acessórios, legais ou convencionais.

40. Percorrido o elenco dos factos provados, não se encontra um único facto que evidencie que a Recorrida, de algum modo, exerce ou exerceu algum tipo de poder disciplinar ou regulamentar sobre o prestador de atividade, no sentido de ter a possibilidade de sancionar um comportamento do mesmo que não respeitasse as suas obrigações/deveres ou os padrões de comportamento que eventualmente fossem determinados pela mesma.

41. Todos os contratos, sejam eles de que natureza forem, podem ser cessados e não é por isso que se qualificam como contratos de trabalho – no caso concreto, trata-se, inclusivamente, de uma prorrogativa dos serviços de intermediação em linha, que se encontra prevista no artigo 4.º do designado Regulamento P2B – Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, que promove a equidade e a transparência para os utilizadores profissionais que recorrem aos serviços de intermediação em linha disponibilizados pelos operadores das plataformas digitais.

42. A desativação de contas, enquanto forma de reação a, por exemplo, uma situação de incumprimento dos termos e condições da plataforma, não é necessariamente, ao contrário do que o Tribunal Recorrido entendeu, uma manifestação do poder disciplinar.

43. O Recorrente defende que a aplicação informática UBER EATS deve ser considerada um verdadeiro instrumento de trabalho.

44. Da matéria de facto provada nos presentes autos, em particular Factos Provados 54, não resulta que a Recorrida é proprietária da aplicação UBER EATS, o que inviabiliza a argumentação do Recorrente.

45. Sem prejuízo, um software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), ou seja, o equipamento de trabalho é o telemóvel onde é instalada a aplicação informática e não esta.

46. A referência do legislador à possibilidade de exploração de instrumentos de trabalho por contrato de locação não pode deixar de ser vista como um indício de que o legislador estava a pensar em bens corpóreos (como sejam uma mota, uma mochila, um capacete ou um telemóvel), passíveis de ser disponibilizados ou locados por uma entidade a um pretenso prestador de serviços, escamoteando uma verdadeira relação laboral.

47. Não é despicienda a utilização do plural, indicador de que o legislador pretendeu abarcar um conjunto de bens essenciais à prestação da atividade, cuja posse e domínio por parte da entidade beneficiária da prestação poderiam configurar um indício de subordinação jurídica.

48. Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte do Tribunal, uma vez que o recurso ao artigo 12.º-A pressupõe sempre o recurso a uma plataforma digital (uma aplicação informática, um software) pelo prestador de atividade.

49. O legislador quis claramente distinguir plataforma digital, onde inclui o conceito de aplicação informática (cfr. artigo 12.º-A, n.º 2 do Código de Trabalho), de equipamento e instrumento de trabalho (previsto no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea f) do Código do Trabalho). A Recorrida não pode ser, simultaneamente, o sujeito da relação contratual e o equipamento ou o instrumento de trabalho do prestador de atividade.

50. Caso o Tribunal ad quem entenda de forma diferente e conclua que se verificam alguns dos pressupostos para a aplicação das presunções de laboralidade – o que se admite apenas por dever de patrocínio –, certo é que a Recorrida ilidiu qualquer presunção que eventualmente se verificasse.

51. O que se afirma resulta clarividente da análise dos Factos Provados 14, 15, 16, 17, 18, 22, 24, 26, 28, 33, 35, 36, 37, 38, 41, 57, 58, 59, 60.

52. A prova produzida relativamente à autonomia na prestação da atividade é suficientemente robusta para afastar qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse, sob pena de tornar absolutamente redundante a possibilidade de elisão da presunção criada.

53. Estaríamos, neste cenário, perante uma mera aparência legal, sem qualquer substrato prático.

54. No contrato de trabalho, acentua-se a obrigação de disponibilidade do trabalhador, que se compromete a uma prestação contínua de atividade.

55. O acervo de factualidade dada como provada nos presentes autos permite concluir que o prestador de atividade não está, nem nunca se comprometeu a estar, disponível para prestar a sua atividade, muito menos de forma contínua.

56. A relação entre prestador de atividade e a Recorrida não preenche um dos elementos essenciais do contrato de trabalho, uma vez que a atividade prestada não se pode qualificar, quanto ao cumprimento, como uma atividade laboral, por lhe faltar o compromisso na prestação.

57. Da análise das Alegações e Conclusões apresentadas pelo Recorrente resulta que este limitou, de forma expressa e consciente, o seu recurso à aplicação das presunções previstas no artigo 12.º-A e 12.º do Código do Trabalho, não se vislumbrando qualquer razão e/ou mecanismo legal que permita ampliar esse recurso por forma a abranger a discussão relativamente ao tradicional método indiciário. Sem prejuízo do exposto, e sempre sem conceder, cumpre, por cautela de patrocínio, referir o seguinte:

58. O que distingue o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviços é o seu objeto e a subordinação jurídica, que se traduz no poder do empregador de conformar, através de ordens, diretivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou.

59. A este propósito, dão-se por reproduzidas as conclusões já aduzidas a propósito do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, acrescentando, pela sua relevância e pertinência nesta sede, os pontos 62, 63, 69 a 72 e 79 do Parecer do Professor Madeira de Brito.

60. Numa ação de reconhecimento de contrato de trabalho o que se visa avaliar e sopesar é, no fundo, o grau de subordinação jurídica, tendo sempre em conta a factualidade concretamente apurada.

61. A mera referência genérica ao uso de um algoritmo não é suficiente para demonstrar que este exerce controlo efetivo sobre a atividade do prestador, de forma a configurar uma relação de subordinação jurídica.

62. Como de forma acertada concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 15 de janeiro de 2025, proferido no âmbito do processo 29383/23.2T8LSB.L1-4 (Relatora: Manuela Fialho), disponível em www.dgsi.pt,“dir-se-á que o algoritmo exerce tal controle e que os tradicionais indícios como sejam a ausência de dever de assiduidade ou não concorrência, e mesmo a circunstância de não se estar vinculado a um horário de trabalho não constitui obstáculo à presença de subordinação jurídica. Porém, isso não ficou demonstrado no caso concreto e, logo, não pode pressupor-se”.

63. A Recorrida não desconhece a existência de uma corrente doutrinária e jurisprudencial, citada nas Alegações a que ora se responde, que defende o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho para todo e qualquer caso em que esteja em causa uma plataforma digital, muitas das vezes com base numa argumentação genérica e apresentada como universal, mas assente em perceções teóricas e não em factualidade concretamente demonstrada.

64. Todavia, partir desse pressuposto é errado, uma vez que o que se pretende avaliar na presente ação é a forma como a relação contratual do prestador de atividade com a Recorrida é efetivamente executada na prática com base nos factos concretamente apurados.

65. Os termos dessa execução prática assentam (ou deveriam assentar) em factos concretos, devidamente apurados e demonstrados caso a caso.

66. Não basta, pois, invocar construções teóricas ou suposições generalizadas para justificar a existência de uma relação de subordinação jurídica.

67. E isso mesmo tem sido, aliás, reiteradamente expressado pela doutrina e pelo Supremo Tribunal de Justiça, que tem afirmado que a qualificação jurídica de uma relação laboral deve basear-se em elementos objetivos e concretos e que deve ser sempre analisada caso a caso.

68. Do elenco da factualidade dada como provada nos presentes autos, resulta que, para além de ser autónomo na fixação do tempo e local de prestação da sua atividade, o prestador de atividade visado tem uma profunda liberdade para definir que tarefas aceita ou não prestar, uma vez que inexistem limites ou consequências para a não aceitação das propostas de entrega, o que se afigura de difícil compatibilização com a ordenação típica da relação laboral em vigor.

69. Para além disso, foi essa independência que fundou a decisão do Tribunal Justiça da União Europeia proferido no Caso B/YODEL DELIVERY NETWORK, sendo que as quatro características identificadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia como inconsistentes com a qualificação de trabalhador estão todas verificadas nos presentes autos, o que cumpre realçar.

70. Em sentido convergente, ainda que considerando um enquadramento legislativo distinto, destaca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, proferido em 21 de novembro de 2023 , no qual se decidiu que os estafetas que prestam atividade não podem ser considerados trabalhadores subordinados, uma vez que são “livres de rejeitar ofertas de trabalho, de se tornarem indisponíveis e de realizar trabalhos para concorrentes”. O tribunal concluiu que “estas características são fundamentalmente inconsistentes com qualquer noção de relação de trabalho”.

71. A noção de trabalho e de trabalhador analisada pela vasta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é a mesma que se discute nos presentes autos, na medida em que não se registou qualquer alteração legislativa nesse domínio.

72. A possibilidade de prestar a atividade a concorrentes em simultâneo (Facto Provado 58) afigura-se especialmente relevante pois evidencia a intermitência e reduzido grau de compromisso que o prestador tem na sua relação com a Recorrida

73. Neste sentido, Madeira de Brito refere: “A possibilidade de o prestador poder realizar a sua atividade para terceiros também se constitui como fator de apreciação para efeitos de determinação da existência de subordinação jurídica” .

74. A ausência de exclusividade assume decisiva importância neste tipo de ações e na análise da relação jurídica em apreço, porquanto os deveres e obrigações a que estão adstritos os trabalhadores não permite a prestação de trabalho simultâneo a duas (ou mais) entidades concorrentes distintas, muito menos em simultâneo, situação que é admitida no âmbito de uma prestação de serviços, na qual é o próprio prestador, dotado de autonomia na organização da sua atividade, quem decide quando presta a sua atividade, para quem, e de que forma, tal como sucede in casu.

75. A atividade prestada em determinado dia pode não se repetir no futuro, o que compromete a estabilidade da organização produtiva – o que se afirma “resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas” (Facto Provado 39).

76. Uma organização produtiva pressupõe isso mesmo: organização, o que implica planeamento e disponibilidade de mão-de-obra para o efeito, sendo impossível organizar o que não é conhecido.

77. A Recorrida não determina a atividade dos prestadores de maneira alguma, tanto assim que é que resultou provado que não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega (Facto Provado 40).

78. Ainda que se possa considerar que o prestador de atividade se insere na organização produtiva da Recorrida, o que por mero dever de patrocínio se concebe, é necessário ponderar a verificação do exercício de poderes de autoridade por esta, uma vez que a eventual integração de um prestador de serviços na estrutura da beneficiária dos serviços não significa automaticamente a existência de subordinação jurídica.

79. Ficou provado (Facto Provado 57) que o prestador de atividade tem efetivamente o direito de se fazer substituir na prestação da sua atividade, o que não tem de justificar.

80. O processo de substituição não está sujeito a qualquer autorização por parte da Recorrida, existindo apenas a necessidade de o substituto ter também de estar registado na plataforma UBER EATS, o que se prende com as seguintes questões legais e de segurança, nomeadamente cumprimento do artigo 3.º, n.º 5, do Regulamento P2B.

81. A Recorrida, em cumprimento da legislação aplicável, tem o dever de exibir, de forma transparente, a identidade do prestador de atividade, por forma a garantir a segurança a todos os utilizadores, para além de conduzir a uma melhor orientação do consumidor no mercado.

82. A indiscriminada e sem qualquer critério seria suscetível de provocar efeitos bastante perversos, nomeadamente de colocar em risco a segurança de todos os utilizadores da aplicação, bem como, e sobretudo, de promover o trabalho não declarado, trabalho infantil, e a imigração ilegal, o que constituiria um efeito bastante pernicioso, uma vez que é também isso que, pelo menos em parte, este tipo de ações visa acautelar.

83. O que se afirma já aconteceu, aliás, noutros ordenamentos jurídicos, como por exemplo no Reino Unido (onde não é aplicável o Regulamento P2B), onde o próprio Governo teve de intervir e requerer às plataformas digitais para deixarem de permitir a substituição não verificada de estafetas, exigindo a adoção de processos de verificação rigorosos, de modo a garantir que apenas pessoas legalmente aptas pudessem realizar entregas, prevenindo abusos e riscos à segurança pública.

84. Sem prejuízo, caso este Supremo Tribunal entenda que a possibilidade de o prestador de atividade se fazer substituir por outros estafetas também registados na plataforma constitui uma limitação a esse direito, sempre deverá concluir que, quando analisados de forma global os indícios e o respetivo peso, é evidente que essa possibilidade [a substituição por estafeta também registado] reforça a autonomia da prestação de serviços, afastando a relação de dependência que é característica dos contratos de trabalho.

85. Em suma, da factualidade provada resulta que para a Recorrida é absolutamente indiferente quem exerce a função de estafeta, não detendo com o prestador de atividade qualquer relação de confiança ou de dependência jurídica. Não se demonstrou, pela factualidade provada, que sejam dadas instruções, ordens ou quaisquer regras de como cumprir as suas tarefas, bastando que, aceitando o serviço que lhe é proposto, leve a encomenda do ponto A ao ponto B.

86. A subordinação jurídica, fica, portanto, totalmente arredada, não exercendo a Recorrida qualquer controlo sobre a atividade desempenhada.

87. Ao concluir o registo na plataforma e concordar com os termos e condições aplicáveis, o prestador de atividade não se comprometeu a prestar qualquer atividade em nome da Recorrida.

88. Por isso, caso se entendesse que existe um contrato de trabalho entre os prestadores de atividade e a Recorrida, esse contrato nunca poderia ser igual àquele que atualmente vincula as partes; de outro modo, os prestadores de atividade poderiam sempre imiscuir-se de cumprir a principal obrigação de um trabalhador (a de trabalhar) e a Recorrida nada poderia fazer quanto a isso.

89. Ainda que a doutrina ou a jurisprudência possam ser sensíveis à alegada precaridade e dependência económica de alguns prestadores de serviços, a verdade é que a solução não poderá passar por ignorar a definição de contrato de trabalho prevista na lei (definição essa que não é dada nem pelo artigo 12.º-A, nem pelo artigo 12.º nem pelo método indiciário, que preveem apenas factos índice da sua existência).

90. Tudo considerado, e salvo o devido respeito, não estamos perante uma situação de facto que permita, com a necessária segurança, qualificar a relação dos autos como constituindo um contrato de trabalho, uma vez que o prestador de atividade desempenha a sua atividade de um modo e com características que são “fundamentalmente inconsistentes” com qualquer relação laboral de acordo com a legislação em vigor.

91. Nestes termos, deve Acórdão recorrido ser mantido, não se reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrida e o prestador de atividade visado, o Sr. AA.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis,

i. Deverá ser rejeitado, por inadmissível, o Recurso de Revista interposto pelo Recorrente; ou, caso assim não se entenda,

ii. Deverá ser negado provimento ao recurso de revista, sendo, em consequência, confirmada a decisão do Douto Acórdão recorrido, só assim se fazendo o que é de Lei e de JUSTIÇA!»


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16. O relator deste recurso proferiu o seguinte despacho judicial, com data de 20 de junho de 2025:

«Notifiquem-se as partes no sentido de ser nosso entendimento que não se justifica o prévio cumprimento do disposto no artigo 3.º do NCPC quanto à eventual aplicação em sede do Acórdão a prolatar do regime dos artigos 12.º-A ou 12.º do Código de Trabalho de 2009 ou até do clássico método indiciário, com vista a evitar decisões surpresa, dado as instâncias já terem procedido, de uma forma direta ou indireta, à convocação daquelas duas disposições legais, tendo sido, aliás, por tal motivo – ou seja, por inexistência de uma fundamentação essencialmente idêntica quanto a essas presunções legais, que assim nos afastou da modalidade de revista excecional prevista no número 3 do artigo 671.º e 672.º do NCPC – que se admitiu este recurso de revista como comum ou ordinário, nos termos dos números 1 dos artigos 629.º e 671.º do mesmo diploma legal. D.N.»


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17. O Ministério Público colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça, na sua qualidade de Autor, veio apresentar requerimento onde se pronunciou nos seguintes moldes sobre o teor do despacho judicial reproduzido no ponto anterior:

1 – Verifica-se dos autos que desde a petição inicial que se invoca a aplicação do art.º 12.º-A do CT à relação laboral em causa, norma ao abrigo da qual, de resto, a mesma foi apreciada pela douta sentença de 1.ª instância.

2 – Entendimento diverso teve o Tribunal da Relação de Lisboa, já que no douto aresto recorrido não foi considerado como aplicável àquela relação laboral o referido normativo, tendo sido a factualidade assente analisada ao abrigo do art.º12.º do CT.

3 – A aplicar-se uma destas presunções, ou até nenhuma delas, sempre o método indiciário será seguido no sentido de se apurar se o empregador afastou, ou não, a presunção, ou, em caso da sua inaplicabilidade, se o autor conseguiu provar os elementos de subordinação jurídica típicos do contrato de trabalho.

4 – Em consequência, e salvo melhor opinião, nunca o acórdão a prolatar por este Supremo Tribunal sobre esta matéria, em concreto com a aplicação das presunções do art.º 12.º-A do CT ou do art.º 12.º do CT, ou até do método indiciário, pode ser considerada uma «decisão surpresa».

5 – Com efeito, e como se refere no acórdão do STJ de 08-09-2020, proc. n.º 602/18.9T8PTG.E1.S1 [3], «[s]ó estaremos perante uma decisão surpresa quando, a mesma, comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando lhes não era exigível que a houvessem perspetivado no processo.».

6 – E, conforme se sintetiza no sumário do acórdão do STJ de 13-07-2022, Proc. n.º 14281/21.2T8LSB.P1-A.S1 [4]:

«II. Decisão-surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, do Tribunal, a quem tais julgamentos continuam a pertencer em exclusividade. Não se podendo falar de surpresa quando os mesmos devam ser conhecidos como viáveis, como possíveis.»

7 – Pelo que, utilizando o acórdão a proferir qualquer um daqueles fundamentos, não existirá, seguramente, qualquer surpresa.

8 – Em consequência, não se afigura, de facto, e conforme se refere no mencionado douto despacho, existir qualquer necessidade de, em relação a esta matéria, dar prévio cumprimento ao disposto no artigo 3.º do CPC.»


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18. A Ré UBER veio igualmente responder a tal despacho judicial, tendo-o feito nos seguintes moldes:

«1. No que respeita à eventual aplicabilidade do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, a sua aplicação pelo Supremo Tribunal de Justiça não constituirá uma decisão surpresa, uma vez que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente à sua inaplicabilidade integra o objeto do recurso interposto pelo Recorrente.

2. De igual modo, e pelo mesmo motivo, a eventual aplicação da presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho não constituirá uma decisão surpresa.

3. O mesmo já não se pode dizer relativamente à eventual aplicação do método indiciário, uma vez que tanto das Alegações como das conclusões apresentadas pelo Recorrente não consta qualquer referência à aplicação do método indiciário, mas apenas às presunções previstas no artigo 12.º-A e 12.º do Código do Trabalho.

4. Ou seja, o Recorrente limitou, de forma expressa e consciente, o seu recurso à aplicação das presunções previstas no artigo 12.º-A e 12.º do Código do Trabalho, não se vislumbrando qualquer razão e/ou mecanismo legal que permita ampliar esse recurso por forma a abranger a discussão relativamente ao tradicional método indiciário.

Sem prejuízo do exposto, por mera cautela de patrocínio e sempre sem conceder, a Recorrida não pode deixar de referir o seguinte:

A interpretação do artigo 11.º do Código do Trabalho segundo a qual a inserção numa organização alheia é suficiente para se entender pelo reconhecimento de um contrato de trabalho é inconstitucional por violação do princípio da livre iniciativa económica.

5. O artigo 11.º do Código do Trabalho define contrato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.

6. Ao substituir a “direção” pela “organização”, a atual redação do artigo 11.º do Código do Trabalho não confere mais relevância ao elemento organizativo face ao exercício (potencial ou efetivo) do poder diretivo, pois a norma mantém o vetor da autoridade, o qual “contém o essencial da ideia de direção[5].

Como bem refere, Madeira de Brito: “a mera inserção na organização à luz dos normativos do Código do Trabalho (artigo 11.º do Código do Trabalho) apenas releva como indício de subordinação jurídica, mas não como a subordinação ela mesma[6].

7. Uma interpretação no sentido de que a inserção na organização só por si resulta na existência de subordinação jurídica e, consequentemente, no reconhecimento de um contrato de trabalho, é inconstitucional por violação do princípio da livre iniciativa económica, que visa garantir a todos o direito de desenvolver livremente atividades económicas dentro dos limites da lei [7]. Se a mera inserção numa organização alheia for suficiente para se entender que existe um contrato de trabalho, há uma restrição indevida à livre iniciativa, pois impede a contratação de prestadores de serviços independentemente de os mesmos exercerem funções com efetiva autonomia, limitando as escolhas organizacionais das empresas.

8. A livre iniciativa económica implica a liberdade de estruturar a organização da empresa e de estabelecer diferentes tipos de relações contratuais. A contratação de prestadores de serviço independentes é e sempre foi legítima e amplamente utilizada em diversos setores de atividade.

9. Algumas interpretações do artigo 11.º têm enfatizado excessivamente a inserção na organização do tomador do serviço, deixando de exigir uma verificação rigorosa da subordinação. Sucede que, tal entendimento resulta numa ampliação excessiva do conceito de contrato de trabalho, que restringe indevidamente a autonomia dos operadores económicos, sejam eles as empresas, sejam eles os indivíduos.

10. Em face do exposto, caso se venha a considerar que a mera inserção em organização alheia é suficiente para reconhecer a existência de contrato de trabalho na situação sub judice, o que não se aceita e teoriza apenas para efeitos de patrocínio, invoca-se desde já e para os devidos efeitos legais que a norma constante do artigo 11.º do Código do Trabalho quando interpretada nesse sentido, é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da livre iniciativa económica, consagrado no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa, por o resultado da sua aplicação resultar numa restrição à liberdade económica das empresas, bem como dos prestadores de atividade que ela recorrem.»


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19. Cumpre decidir, depois de o coletivo ter tomado conhecimento dos autos, recebido o projeto de Acórdão elaborado pelo relator e debatido o seu teor.

II. FACTOS

20. Com relevância para o presente Aresto, há a considerar os seguintes factos, que são os considerados pelo tribunal da 1.ª instância, sem impugnação recursória das partes ou alteração oficiosa pelo Tribunal da Relação de Lisboa:

A - FACTOS PROVADOS PELAS INSTÂNCIAS:

«1. A Ré é uma sociedade que tem como objeto social: “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; Atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; Consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”;

2. A Ré é uma plataforma de prestação de serviços de entregas on line, nomeadamente de refeições, através de uma aplicação informática criada e desenvolvida para tal efeito, efetuando a mencionada plataforma a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre o estafeta e o cliente, assegurando ainda as necessárias parcerias com empresas do setor da restauração e do comércio;

3. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;

4. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito;

5. As funções desempenhadas pelo estafeta consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente final.

6. Assim, a Ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma:

- Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo);

- Os utilizadores estafetas; e

- Os utilizadores clientes;

7. A atividade da Ré inclui:

- A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e

- A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas;

8. AA, natural da República Popular do Bangladesh, NIF 1, NISS 1, Autorização de Residência n.º 1, titular do endereço eletrónico ...@gmail.com, com residência na Rua 1 com o n.º de telefone 1 presta a referida atividade de estafeta para a Ré plataforma digital UBER EATS desde 10/4/2023;

9. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;

10. No decurso de uma ação inspetiva realizada pela ACT no dia 27/09/2023, pelas 20H30, foi verificado que AA se encontrava no acesso ao McDonalds sito na Av. de Roma, em Lisboa, a aguardar a preparação para recolha de pedido efetuado por cliente na aplicação móvel UBER EATS e posterior entrega na morada indicada pelo cliente, tendo-se apurado que desenvolve a sua atividade da seguinte forma:

- O estafeta estava registado na plataforma digital UBER EATS, como “Parceiro de Entregas Independente”, através da criação de uma conta na plataforma, na aplicação disponibilizada na internet para o efeito;

- Visando o registo em causa, e de acordo com exigência da aplicação UBER EATS, foram submetidos pelo estafeta na referida aplicação os seus documentos de identificação, bem como o certificado de registo criminal, o comprovativo de abertura de atividade como trabalhador independente, entre outros;

- Foi ainda associado à conta do estafeta o meio de transporte em que este se desloca, conforme requerido pela plataforma;

- O estafeta, para finalizar o registo, ficou ainda obrigado a aderir aos termos e condições aplicáveis constantes do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”;

11. Embora a UBER EATS não mantenha um suporte em papel da adesão aos termos e condições aplicáveis, tem um registo eletrónico de adesão aos mesmos com data e hora;

12. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;

13. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, o estafeta teve de se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta e de uma palavra-passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;

14. Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, este tinha de ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;

15. Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.

16. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.

17. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique aceite e efetuado por parte da UBER;

18. A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”);

19. Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores;

20. Não existe também qualquer intervenção do estafeta no processo de negociação de preços entre a plataforma e os parceiros de negócio, nomeadamente, restaurantes e estabelecimentos comerciais;

21. Cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor;

22. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”;

23. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma;

24. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta “CASHOUT”, tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do “CASHOUT” é que os mesmos são pagos semanalmente;

25. O estafeta é pago por transferência bancária e fica disponível na plataforma o registo de todos os pagamentos recebidos ao longo de um ano, assim como o comprovativo da transferência.

26. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;

27. A plataforma exige que a prestação da atividade do estafeta seja efetuada fazendo uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos UBER EATS, sendo que, para a plataforma validar o perfil no ato de criação da conta o estafeta tem de submeter prova de detenção da mochila de transporte, a qual deve cumprir requisitos mínimos quanto às dimensões – 44 cm de largura x 35 cm de profundidade x 40 cm de altura - assim como quanto ao estado de conservação e limpeza;

28. O estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal;

29. A partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma, ora Ré, fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes;

30. O GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;

31. A localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;

32. O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o Estafeta a recolhe;

33. O Estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar escolhendo o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou até nem o utilizar;

34. A plataforma tem a possibilidade de recolher a classificação efetuada ao estafeta, quer pelo cliente quer pelo comerciante/restaurante, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação;

35. O estafeta é livre para escolher o seu horário;

36. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;

37. E durante quanto tempo permanece ligado;

38. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender;

39. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.

40. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega;

41. O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.

42. E a sua conta continua ativa;

43. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela Plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel;

44. A prática de partilha de contas, por motivos de segurança e conformidade legal, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da Cláusula 5.n. dos termos e condições aplicáveis;

45. Ou seja, o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo;

46. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;

47. A Plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos do contrato de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros não autorizados, ou por comportamentos fraudulentos;

48. Conforme decorre da Cláusula 9 e da Cláusula 14.b. dos termos e condições aplicáveis a Ré tem o direito de restringir o acesso à Plataforma e a resolver o contrato com o prestador de serviços nas seguintes situações:

- Quando a Ré está a cumprir uma obrigação legal;

- Quando o prestador de atividade não cumpre as suas obrigações contratuais;

- Quando está em causa a segurança dos clientes; e

- Por motivos de autoproteção (situações de fraude);

49. O sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos;

50. O estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está ligado;

51. Aliás, se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à Plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha;

52. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido podem introduzir dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega;

53. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes;

54. A aplicação e o site da UBER EATS PORTUGAL (ora Ré) são pertença da UBER EATS dos Estados Unidos;

55. A Ré contratou um seguro de responsabilidade civil com a seguradora ALLIANZ e um seguro de proteção de parceiros de entrega que abrange o «Prestador de Atividade»;

56. Após aceitar a entrega o estafeta não se pode fazer substituir por ninguém.

57. Antes de aceitar uma entrega existe na plataforma a possibilidade de o estafeta designar um substituto, o qual tem de estar registado na UBER com conta ativa e como substituto, para que este aceite os pedidos que entre ambos entenderem, sendo que a Ré procederá ao pagamento ao estafeta substituído.

58. O estafeta pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma. A Plataforma é uma das muitas ferramentas que eles têm para realizar entregas. Os prestadores de atividade podem ter sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à UBER EATS. Eles também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na Plataforma. Cabe esclarecer que os prestadores de atividade não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à UBER EATS.

59. Para se registarem na Plataforma, os prestadores de atividade não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, no sentido de não haver análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção, exceto o preenchimento dos requisitos contratuais já mencionados supra;

60. A Ré não faz uso do feedback dado pelos clientes a cada entrega do estafeta, apenas lhe atribuindo pontos por cada entrega que efetua para efeitos de descontos na aquisição de material diverso.»


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III – OS FACTOS E O DIREITO

21. É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 679.º, 639.º e 635.º, n.º 4, todos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).


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A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

22. Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos autos dos quais depende o presente recurso de revista, atendendo à circunstância da instância da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho [ARECT] ter sido intentada no dia 14/12/2023, com a apresentação, pelo Autor Ministério Público da correspondente Petição Inicial, ou seja, já muito depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.

Tal ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.

Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Revista.

Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.

Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos recursórios terem ocorrido na vigência do Código de Trabalho de 2009, que, como se sabe, entrou em vigor em 17/02/2009, sendo, portanto, o regime dele decorrente que aqui irá ser chamado porventura à colação em função da factualidade a considerar e consoante as normas que se revelarem necessárias à apreciação e julgamento do objeto do presente recurso de Revista.

B – OBJETO DA PRESENTE REVISTA

23. Neste recurso de Revista está em causa decidir as seguintes questões:

No presente recurso está em causa saber se:

a) O artigo 12.º-A do Código do Trabalho é aplicável a contratos que se iniciaram antes de 1.05.2023, quanto ao período posterior a esta data;

b) Deve ser reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre AA e a Ré com efeitos a 1.05.2023.

C – FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA

24. A sentença da 1.ª instância, para julgar improcedente os pedidos do Autor, argumentou juridicamente nos moldes seguintes:

«Assentes os factos importa equacionar o enquadramento jurídico dos mesmos.

E o essencial da presente ação passa pela análise do vínculo contratual existente entre AA e a Ré.

Tudo reside em saber se a realidade contratual é de um contrato de trabalho como postula o Ministério Público a reboque da ACT.

É sabido que por todo o país vieram a ser inundados os tribunais de trabalho com ações de reconhecimento de contratos de trabalho dos estafetas das plataformas. A esse respeito importa dizer que a própria lei de trabalho, sofreu uma alteração em Maio de 2023, na estipulação das presunções da existência do contrato de trabalho a ponto de prever as realidades de trabalho em plataformas digitais. Assim surgiu o art.º 12.º-A do Código de trabalho, como acrescento e especificação à presunção da existência de um contrato de trabalho existente no art.º 12.º do mesmo diploma.

A sua redação, no que ora diz respeito, estatui que: «[texto do artigo]»

Mais do que saber se a lei em apreço se aplica à situação em apreço, e discutir a aplicação de lei no tempo deste artigo, cremos que a situação por via deste artigo, ou da norma geral será sempre idêntica, o que torna, a nosso ver a discussão inócua.

Atentemos pois se as presunções se verificam.

Estatui a primeira alínea que se presume a existência de um contrato de trabalho quando:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela

Ora, efetivamente o Ministério Pública pugnava pela existência de uma retribuição e de estabelecimento de limites mínimos por cada entrega. Mas curiosamente é exatamente o inverso do que alega. Não é a plataforma que estabelece o limite mínimo de cada entrega mas sim o próprio estafeta que o faz. Ele é que fixa o seu valor mínimo. No entanto, mesmo depois de o fazer ele pode aceitar algo que esteja aquém desse valor.

Por outro lado não é a plataforma que fixa a retribuição do trabalho. É, diga-se com esta simplicidade, o estafeta que escolhe quanto quer receber. Se quer auferir mais ou menos (dentro do seu preço mínimo fixado) é determinado por si próprio que escolhe quantos serviços quer aceitar e por que valor quer aceitar. O preço está fixado. Não é negociado. Mas este escolhe o valor que no final do dia vai aferir consoante o número de entregas que efetue e o valor das mesmas.

Nessa medida não apenas a presunção da alínea não se verifica como ainda se verifica a situação inversa. Nada está fixado, os limites mínimos são fixados pelo próprio e não pela plataforma, e não existe limite máximo pois se o estafeta quiser trabalhar 24horas sem descansar pode auferir um valor máximo que trabalhando 8h ou 9h não poderia alcançar.

Facilmente se vê que NADA na alínea se verifica afastando-se assim a mesma para o preenchimento da presunção de existência de contrato de trabalho.


***


b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade

Nem aqui se verifica a presunção. O estafeta não tem qualquer indumentária, qualquer código e conduta, e nem a sua mochila térmica tem de obedecer a algo que a relacione com a UBER. Tem apenas de ser térmica, ter determinada dimensão (até para permitir o transporte de determinadas encomendas maiores ou menores) e na fase da atribuição da licença tem de estar limpa e ser exibida para confirmação. Mas nada na forma de apresentação do prestador ou da sua conduta é determinado pela Uber. NADA.

A alínea refere-se ainda ao poder de direção o que sabemos é a pedra de toque das relações de trabalho. A subordinação jurídica de quem exerce uma atividade/trabalho é sempre crucial para saber se a mesma é desempenhada como modo de um relacionamento de trabalho ou como uma mera prestação de serviços.

O que alega então o Ministério Público para sustentar o poder de direção?!

Salvo o devido respeito uma mão cheia de nada.

Afirma que os termos de utilização da plataforma estão definidos e que é a plataforma que controla toda a atividade do estafeta. Pois naturalmente que os termos de utilização têm de estar, e as regras têm de existir e para todos: para estafetas, comerciantes e clientes. Todas as plataformas de qualquer tipo de serviço têm regras de utilização e funcionamento. Todos os serviços, por ex. um ginásio, tem normas de utilização e condições que têm de ser aceites. Porém, para que se veja que aceitar as regras de utilização da plataforma é um modo de exercício do poder de direção é essencial concretizar que normas é que importam um poder de direção.

Quais em concreto revelam o poder de dar ordens e instruções ao estafeta. Onde se concretizam? Na utilização de uma mala térmica? Na obrigação de ter um veículo próprio? Na obrigação de ter um telemóvel e estar ligado à plataforma?

Creio que não. A obrigação de ter um telemóvel e uma conta registada e aceder à plataforma decorre do modo como o serviço é distribuído pelos comerciantes e aceite pelos estafetas. Sem que tal suceda o trabalho não pode ser aceite, pelo que é apenas um requisito de eficiência geral.

A obrigação de ter uma mala térmica é por condições de higiene, saúde e segurança alimentar. A obrigação de ter um veículo próprio nem é uma obrigação, pois podem sempre ir a pé (se o trajeto for curto) ou pedir um veículo emprestado, e mesmo essa é entre bicicleta ou mota, sendo pois estes livres de escolher.

Afirma o Ministério Público que um dos elementos reveladores do poder de direção desta alínea consiste no seu preenchimento na medida em que os estafetas tiveram de provar a sua identidade para criar uma conta, acendo com reconhecimento facial e têm de ter a plataforma ligada para ser entregue trabalho. Mas voltamos a repetir. Tal é um requisito de eficácia e segurança. O preenchimento de requisitos de identidade para ser atribuída uma conta e de reconhecimento facial é sobretudo uma forma de proteção do cliente, seja ele o comerciante, seja o consumidor final. Há que saber quem faz uma entrega e que quem o faz não é um terceiro sem os requisitos mínimos de concessão da licença atribuída pela Ré. Não é suposto um comerciante entregar mercadoria a alguém que não está identificado. Não é suposto um consumidor final receber à sua porta algo de quem não é um estafeta com os requisitos básicos confirmados pela UBER. Há, pois, mínimos de segurança a observar e há razões de eficácia que determinam que todo o serviço seja atribuído pela plataforma. Não conseguimos sequer vislumbrar como tal pode consistir num poder de direção.

Sustenta ainda o Ministério Público que a ausência de poder de negociação dos estafetas, apenas podendo aceitar ou recusar é uma manifestação desse poder de direção. Mas importa não esquecer que o poder de direção consiste num dos principais poderes das entidades empregadoras: o poder de dar ordens e instruções aos trabalhadores sobre o seu trabalho.

Ora, poder aceitar ou recusar propostas é obrigar a aceitar?! É dar ordens de aceitação?! É determinar qual o valor a aceitar ou quais as ofertas que deve efetuar? Naturalmente que não. Pelo contrário.

Não só não há poder de direção como ainda não há maior autonomia do que a de um estafeta. Este escolhe as horas a que quer trabalhar, o local onde o quer fazer e o tipo de trabalho que quer fazer. Mas se tal for pouco (e diremos algo que me parece demolidor: que trabalhador subordinado pode fazê-lo? Que trabalhador subordinado pode decidir RECUSAR um trabalho? Dizer não faço. Não gosto desse cliente, não o quero aceitar, ou simplesmente hoje, ou agora, não me apetece? Que trabalhador subordinado pode escolher que quer trabalhar uma hora num dia, 20horas no outro, hoje em Lisboa e amanhã no Algarve (desde que mudando o registo da área de trabalho na plataforma), e daqui a um mês ou dois voltar a trabalhar, e parar durante umas férias de vários meses e regressar quando lhe aprouver sem qualquer consequência?

Em rigor, é o estafeta que escolhe o quanto, como e quando e ainda o modo como executa o seu trabalho. Este escolhe de forma totalmente livre o percurso. Donde mesmo o argumento do GPS que o Ministério Publica emprega para afirmar que é um modo de controlo do trabalho do estafeta cai por terra. Este tem GPS para permitir ao cliente (e eventualmente ao comerciante e até em última análise à UBER) saber em que estado está a entrega solicitada. Tem o GPS para que lhe sejam oferecidas entregas que sem esse não fariam sentido (para quê oferecer uma oferta de Trás-os-Montes a quem está no Algarve?). Mas a sua utilização não importa controlo algum pela Ré pois esta nem sequer pode interferir no percurso, nem impor que seja seguido o do GPS.

É ainda falsa a afirmação de que a Ré dá instruções sobre o momento em que devem introduzir na aplicação a informação sobre a recolha. Só o fazem se o entenderem.

Quanto ao facto de o estafeta estar inserido na organização produtiva da Ré facilmente se vê que não é verdade. A Ré não sabe se pode contar com este “trabalhador” nunca. O trabalho que ele fez hoje pode não o fazer amanhã, e pode nunca mais o fazer. O facto de a Ré não saber, a cada dia, quantos estafetas vai ter disponíveis a cada momento faz com que nunca exista uma organização produtiva estável. No limite a Ré pode não poder promover qualquer serviço de entrega por falta de estafeta. Ora, fazer parte da organização produtiva é alguém saber que pode contar na sua cadeia de produção com outrem de forma a que organize o seu trabalho a contar com x mão de obra e x de encomendas. Não é o caso da Ré que nunca sabe se aquele estafeta, ou qualquer outro, vai estar disponível para trabalhar para essa estrutura organizativa de produção.

Em suma. Não só não está verificado o preenchimento da alínea como ainda se constata que NADA nos autos indicia a existência de um poder de direção e antes pelo contrário, inexiste subordinação jurídica e existe total autonomia do estafeta. Nenhuma ordem ou indicação sequer é dada pela Ré, senão a das suas condições de adesão (ter de fazer uso de um veículo e de mochila térmica) o que é apenas revelador de forma de gestão e eficácia do trabalho.


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c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica

Neste tocante tudo quanto já afirmamos é válido e trata-se de repetir o já afirmado. O argumento empregue pelo Ministério Público reside, como já mencionado, na existência do GPS. Sustenta que o mesmo controla em tempo real a sua atividade. Mas já vimos que assim não é. O mesmo serve para o cliente acompanhar a entrega e eventualmente o comerciante. O mesmo serve para que sejam oferecidas ao estafeta ofertas de entregas que sem o GPS não têm forma de saber o local onde pode este aceitar. E se este o desligar durante a execução do serviço nenhuma consequência tem. Se estiver desligado apenas não recebe ofertas. Numa palavra. Não existe monotorização da entrega como sustenta o MP e nem esse resquício de supervisão existe por parte da Ré.

Note-se que o preceito afirma que a plataforma controla e supervisiona. Mas na verdade nenhum tipo de supervisão existe. Existe algo que o revela por completo: fazendo o estafeta um bom ou um mau trabalho, tendo demorado muito tempo por exemplo a efetuar uma entrega, o mesmo recebe sempre o mesmo tipo de pontos da Ré (consoante o horário) mas apenas para efeitos de descontos. A classificação que o cliente atribui não é sequer relevante para a futura atribuição de ofertas ao estafeta. Não há supervisão nem controle de forma alguma (em momento algum a Ré vai ver à plataforma onde anda o estafeta ou sequer pode alertá-lo para mudar de itinerário ou apressá-lo) da tarefa desempenhada pelo estafeta. E sobretudo não há consequências exceto nas situações de gravidade previstas como fundamento de resolução do contrato.

Em suma também esta alínea não se encontra preenchida.


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d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma

É sobretudo por força desta alínea que se percebe que a realidade existente nem proximidade com a realidade de um contrato de trabalho tem.

A autonomia do estafeta é total. Este escolhe onde, quando, quanto e como quer trabalhar. Se o quer fazer ou não. E como quer fazer e por que preço.

É certo que não pode negociar mas salvo o devido respeito num contrato de trabalho o ordenado até pode ser negociado inicialmente mas raramente é passível de posterior negociação, e se a houver pode, ou não ser aceite.

Mas toda a organização do trabalho do estafeta é feita por este. Escolhe o seu horário e os seus períodos de ausência. Escolhe até se quer trabalhar ou não e sempre sem qualquer consequência. E isso é uma realidade que nenhum trabalhador subordinado pode ter sem consequências. Quem falta ao trabalho porque não lhe apetece trabalhar tem consequências decorrentes dessa ausência que no limite podem conduzir ao exercício do poder disciplinar e à cessação do contrato de trabalho. No caso do estafeta não conduzem a nada precisamente porque a sua autonomia é total assim como a ausência de interferência da UBER na mesma.

A plataforma não interfere com escolhas de horários, não interfere com a autonomia de aceitar ou não e até depois de ser o estafeta a fixar o seu valor mínimo de entrega pode o mesmo “voltar atrás” numa entrega sem que tenha de baixar o seu valor mínimo. A plataforma não impõe clientes: o estafeta pode ele próprio decidir que com determinado cliente não quer sequer receber ofertas, ou recusar essa oferta. Como se pode ver subordinação jurídica quando um trabalhador recusa determinado trabalho sem que a entidade empregadora possa reagir?!

E por fim, a plataforma não restringe a autonomia de arranjar substituto, apenas impõe que o trabalho seja pessoal ou com substituto autorizado com licença válida de UBER. E tal não é uma restrição da autonomia é um princípio básico de confiança em qualquer serviço que se presta. Se eu contrato um pedreiro para fazer uma tarefa pequena (que ninguém tem dúvidas não ter cariz laboral) então se nesse trabalho o mesmo se fizer substituir por outra pessoa o mínimo que deve fazer é informar-me e eu aceitar. Quem contrata o A para algo não quer o B precisamente porque contratou o A.. Não se vê que em prol da segurança dos clientes e comerciantes e de algum rigor que deve nortear o serviço a Ré devesse permitir algo distinto. Pelo contrário. Isso porém não é restringir a autonomia do estafeta. É apenas anuir a algo distinto do contratado. Em suma, não só esta alínea não se encontra preenchida como ainda se prova exatamente o inverso. O estafeta tem plena autonomia para tudo fazer e decidir como entender.


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e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta

Novamente nada se verifica nesta alínea desde logo porque não existe poder disciplinar. Se o estafeta fizer um mau trabalho porque decidiu a meio do caminho parar para beber uma cerveja e chegar com um atraso grande e a comida fria nenhuma consequência existe. O que se estranha, pois, até numa prestação de serviços se exige algum controlo e disciplina. Mas a verdade é que não existe. Não há exclusão de ofertas para o prestador. Não há situações em que deixam de receber ofertas exceto quando decidem desativar a conta porque puseram em causa a segurança dos clientes, situações de fraude, por alguma obrigação legal não ser observada ou algum incumprimento grave da relação que possa conduzir à resolução. No mais não existe qualquer poder disciplinar. Por hipótese, como meio de reagir a uma insatisfação de um cliente pela demora no atraso não pode a Ré deixar de atribuir ofertas de entrega ao estafeta por uns tempos, não pode desativar a conta. Pode só resolver o contrato e encerrar a conta mas nas situações previstas no contrato e supra referidas.

Nem se veja na possibilidade de encerramento da conta uma forma de exercício supremo do poder disciplinar. Qualquer contrato, de qualquer natureza, pode ser resolvido, desde que as condições contratuais sejam violadas, e o cometimento de uma fraude, a colocação em causa da segurança dos clientes, ou a não observância de obrigações legais têm necessariamente de conduzir ao mesmo resultado de resolução do contrato. Se a UBER não o fizesse, e permitisse aos estafetas continuar a fazer entregas nessas circunstâncias, estaria a prestar um mau serviço aos comerciantes e clientes que a ela recorrem.

Não é, pois, uma forma de exercício do poder disciplinar mas a regulação e profissionalismo que a prática da sua atividade exigem perante terceiros.

Não está, pois, verificada a presunção constante da alínea referida.


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f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

Quais são os instrumentos usados pelo estafeta?

Veículo, mochila térmica e telemóvel assim como a plataforma.

Vejamos então. Os três primeiros não são pertença da Ré. São próprios do estafeta. Mas nem a plataforma é da Ré mas sim da UBER dos estados Unidos.

Não obstante sempre se dirá que a plataforma é um instrumento, mas é um modo de aceder ao trabalho, e é muito pouco para que se possa sequer dizer que os instrumentos de trabalho são fornecidos pela Ré. E é ainda uma forma de garantir a operacionalidade e eficácia dos serviços que presta a comerciantes e a clientes consumidores finais. Sem esta plataforma seria impossível a prestação de serviços tal qual hoje existe destas entregas por via on line e num tempo quase imediato ou curto.

Vemos pois que também esta alínea não se encontra preenchida.


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Importa porém referir mesmo que a presunção tivesse sido preenchida, o que não sucedeu, ainda poderia ser ilidida. Estatui o n.º 4 do referido art.º 12.º-A que a presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.

Ora, isso tudo mais que ficou demonstrado como já deixamos expresso.

A definição de contrato de prestação de serviços consta do art.º 1154ºº do C. Civil, é aquele em que uma pessoa «se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».

O contrato de trabalho, definido no artigo 1152.º do Código Civil, consubstancia o vínculo através do qual «(…) uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob autoridade e direção desta».

Não obstante a definição do legislador a verdade é que a distinção entre um contrato e o outro não é fácil, e para a destrinça das duas realidades a jurisprudência e a doutrina foram recorrendo a indícios ou factos-índice. Estes originaram inúmeros acórdãos e muitas tomadas de posição doutrinal para a distinção dos dois contratos. Eram assim apontados como factos-índice, nomeadamente, o local do trabalho, o horário de trabalho, as ordens do empregador, o modo da prestação do trabalho, a integração na organização do empregador, a forma da retribuição – subsídios de férias e de Natal – a propriedade dos instrumentos do trabalho, a retenção na fonte de impostos e contribuições, a exclusividade de empregador, a inscrição na segurança social e em associação sindical, existência de pessoal assalariado dependente do trabalhador, o risco do produto final – por conta de quem corre – e a vontade das partes.

Grande parte destes indícios passaram agora para as alíneas do n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho de 2009, fazendo presumir a existência de um contrato de trabalho e no caso das plataformas do art.º 12.º-A.

Em traços largos cremos que para a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço, dois elementos serão essenciais: o objeto do contrato (prestação de atividade ou obtenção de um resultado) e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia). Em causa está claramente um resultado e o pagamento à tarefa. O estafeta é pago pela tarefa que faz, pelo resultado da entrega.

A subordinação jurídica do trabalhador traduz-se no poder do empregador de conformar, através de ordens, diretivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou.

Diversamente, no contrato de prestação de serviço, o prestador obriga-se à obtenção de um resultado, que efetiva por si, com autonomia, sem subordinação à direção da outra parte.

Inerente a esta subordinação jurídica, surge a dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora, sujeitando-se às ordens daquela, relativamente aos termos da prestação do seu trabalho, bem como pelo exercício do poder disciplinar, sendo que, ainda que essas ordens, bem como o exercício deste poder, possam não estar, a cada passo da execução do contrato, permanentemente em foco, é suficiente, para concluir pela sua existência, que esses poderes possam ser exercidos a qualquer momento, na medida em que a possibilidade do seu exercício está, em rigor, na disponibilidade/disposição do empregador.

No contrato de prestação de serviço não existe esta subordinação, tendo o trabalhador autonomia relativamente aos termos da execução da atividade a cujo desempenho se propôs, sem prejuízo da vinculação à obtenção do resultado que da mesma decorra.

Certo é que com os factos que temos por assentes, a noção de contrato de trabalho não se encontra preenchida, pois não apenas o trabalhador não se inseria numa organização da Ré, que não sabe sequer se pode contar com este ou quando pode fazê-lo, como não fez o seu trabalho sob a autoridade desta (encarada a autoridade como a ausência de autonomia, sob instruções e poder disciplinar daquela).

Os índices dos artigos 12.º e 12.º-A do CT mais não são do que uma presunção legal, mas tratando-se de uma presunção juris tantum (art.º 350.º do Código Civil), nada impede o beneficiário da atividade de ilidir esta presunção, demonstrando que, a despeito de se verificarem aquelas circunstâncias, as partes não celebraram qualquer contrato de trabalho mas sim um contrato de outra natureza.

De todos estes indícios mencionados não decorre a prova da existência de um contrato de trabalho, mas antes a convicção de existir uma prestação de serviços. Em nenhum contrato de trabalho deixam de existir consequências para uma falta injustificada de um trabalhador, ou para recusas de trabalho ou trabalho mal prestado, e no caso em apreço a única que sucede é meramente a de não ser paga pelo trabalho que não chegou a prestar.

Também a subordinação jurídica, por tudo quanto deixamos exposto, não se verifica. Não existe um único facto provado que permita concluir que a Ré desse ordens ao trabalhador. Pelo contrário. Não tem qualquer interferência no processo de aceitação até à entrega. Não verificava como corre a tarefa, não fiscaliza e não existe sanção. Não dá instruções nem ordens e não há poder disciplinar.

Não há avaliação, e a dos clientes para nada serve, posto que não há consequências que, porventura, adviessem para este nos casos em que desse sistema de avaliação decorresse uma informação negativa, mormente o exercício do poder disciplinar por ausência de uma prestação zelosa ou diligente.

Não existe aqui, cremos, qualquer resquício de subordinação jurídica.

Vejamos.

Se uma pessoa contrata um canalizador para colocar uma torneira em determinado local assiste-lhe o direito de dizer de que modo quer a torneira, onde a quer, que implicações visíveis quer que a mesma tenha. Mas no caso do estafeta nem isso a Ré faz. Limita-se a mediar uma necessidade de um comerciante e um consumidor final oferecendo a ambos uma forma de fazer chegar um a outro através de um estafeta que pode ser o João, a Maria ou o José. Não é de todo uma relação intuito personae, como é típico do vínculo laboral, mas sim alguém que possa executar essa tarefa.

Ora, se a tudo quanto afirmamos juntarmos a ausência de um sistema de descontos e contribuições típicas dos trabalhadores subordinados, e valores mensais muito variáveis e podendo até ser ausentes, tudo dependendo da vontade do estafeta querer aceitar mais ou menos ofertas, do local de trabalho poder variar diariamente consoante a sua vontade (e prévio registo na plataforma da mudança de área), da ausência de controlo de assiduidade e absentismo, a ausência de obrigação de justificação de faltas ou apresentação de documentos comprovativos das mesmas, a ausência de poder disciplinar, a ausência de seguro de acidentes de trabalho, a ausência de exclusividade na prestação da atividade por banda do interveniente e a possibilidade de no mesmo horário trabalhar para uma plataforma concorrente (o que numa relação laboral seria uma violação do dever de lealdade), a ausência de qualquer interferência da área de Recursos Humanos da Ré na gestão das ausências, faltas e períodos de indisponibilidade do mesmos, o não enquadramento deste no mapa de férias e mapa de pessoal da Ré, a ausência de pagamento de uma quantia fixa e certa, todos estes factos não deixam margem para dúvidas que o cariz intuito personae não se verifica, e o vinculo laboral não é o próprio dos contratos de trabalho.

Uma palavra final para se dizer o que não pode deixar de ser dito. Desde o início, da leitura da PI se vê que nunca a presente ação poderia proceder. Nada de concreto existe que permita concluir pela subordinação jurídica. Não é aceitável que quem trabalha quando quer, onde quer, como quer, quanto quer e sem consequências pelo que faz ou deixa de fazer possa ter uma realidade de contrato de trabalho. Mas ainda assim foram intentadas centenas de ações judiciais e entupiram o andamento dos tribunais de trabalho em Portugal. As demais ações pararam em virtude de alegações que nem fumo tinham, quanto mais fogo. O trabalhador que não o das plataformas saiu prejudicado pela demora no andamento da justiça e os contribuintes pagaram com os seus impostos todos os custos inerentes a estas ações judiciais totalmente infundadas.

Muitas situações de reconhecimento de contrato de trabalho acabam por sucumbir. Ao longo de vários anos no Tribunal de trabalho assisti a algumas enchentes de colocação de ações a reboque do ACT. Nenhuma tão infundada quanto esta pois nem o menor indício da existência de algum vínculo laboral existe nesta ação.

Pelos motivos expostos facilmente se vê que não se logrou provar a existência de um contrato de trabalho, donde a presente ação tem de improceder.»

D – FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

25. O Aresto do tribunal da 2.ª instância, para julgar também improcedente o recurso de Apelação e nessa medida confirmar a sentença judicial recorrida, desenvolveu, para o efeito, a seguinte argumentação jurídica:

«1. Nos termos do disposto no art.º 1152.º do Código Civil (CC), por contrato de trabalho entende-se “[texto do artigo]”

Por sua vez a noção legal de contrato de prestação de serviço mostra-se consagrada no art.º 1154.º do CC, que o define como “[texto do artigo]”.

O art.º 11.º do Código do Trabalho (CT)sob a epígrafe “Noção de Contrato de Trabalho” estabelece que “[texto do artigo]”.

A diferença entre os dois contratos é apontada tradicionalmente como residindo nos seguintes elementos distintivos:

1.º - No objeto do contrato: no contrato de trabalho será a prestação da atividade do trabalhador e, no caso da prestação de serviço, a obtenção de um resultado, que aquele efetiva por si, com autonomia;

2.º - No relacionamento entre as partes: aqui, a distinção radica, no contrato de trabalho, na subordinação jurídica, traduzida na conformação com as ordens e diretrizes emanadas do empregador, e a que o trabalhador se obrigou, e no caso do contrato de prestação de serviço assenta na autonomia destituída dessa subordinação, nos termos jurídicos em que é conceptualmente entendida.

Reconhecendo a dificuldade de, em concreto, traçar uma fronteira definida entre os dois tipos de contrato supra enunciados, o legislador optou por consagrar uma presunção, vertida no artigo 12.º do CT, nos termos do qual se presume existir contrato de trabalho sempre que se verifiquem determinadas circunstâncias ali elencadas, com a finalidade de facilitar a prova da existência de contrato de trabalho, uma vez que, nos termos do art.º 350.º, n.º 1, do CT “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto que a ela conduz”.

Assim, nos termos deste artigo 12.º do CT,«[texto do artigo]»

Em 01 de maio de 2023 entrou em vigor o art.º 12.º-A do CT , aditado pela Lei n.º 13/2023, de 03/04, o qual veio estabelecer nova “presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”.

Dispõe este artigo, precisamente sob a epígrafe “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”, que: «texto do artigo]»

No caso em apreço a relação jurídica estabelecida entre a recorrida e AA iniciou-se em 10.04.2023 (cfr. facto n.º 8).

Nesta conformidade e, sem prejuízo do momento a partir do qual o recorrente peticiona o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre AA e a recorrida – 1 de maio de 2023 –, à subsunção dos factos no direito é aplicável o Código do Trabalho de 2009, na versão anterior à publicação da Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, que, como se sabe, apenas entrou em vigor no dia 1 de maio de 2023 (cfr., os artigos 7.º e 14.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, o art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, e o artigo 12.º do CC).

Com efeito o regime jurídico para o enquadramento da relação jurídica estabelecida entre as partes é definido em função do momento em que se constituiu a relação jurídica que, como se viu, é anterior à entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Trabalho pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril.

Este entendimento mostra-se consolidado de forma uniforme na jurisprudência, veja-se, o Ac. de 4/07/2018, Proc.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, onde se pode ler que “(…) estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.”

Neste sentido veja-se, ainda, os Ac. do STJ proferidos nos processos n.º 21116/18.1T8LSB.L1.S1, em 01.06.2022 e n.º 12510/19.1T8SNT.L1.S1, em 25.09.2024, ambos disponíveis in www.dgsi.pt

Assim, tendo a relação entre a recorrida e AA sido estabelecida em abril de 2023 e não se extraindo da restante factualidade provada uma alteração dos termos essenciais de tal relação, consideramos, seguindo a referida jurisprudência, que deve aplicar-se ao caso concreto o regime jurídico do contrato individual de trabalho previsto no art.º 12.º do CT, não tendo lugar a aplicação da presunção que emerge do art.º 12.º-A do CT.

Neste sentido ver os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães proferidos no processo n.º 2781/23.4T8VRL, e no processo n.º 2783/23.0T8VRL.G1, ambos de 31.10.2024 e, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo n.º 1964/23.1T8TMR, em 05.12.2024 todos disponíveis in www.dgs.pi.

2. Na análise de cada uma das alíneas do citado art.º 12.º do CT aqui aplicável ,pode ler-se, no Ac. do STJ proferido no 182/14.4TTGRD.C1.S1, de 2 de Julho de 2015 e disponível in www.dgsi.pt, que «no âmbito da alínea a) do n.º 1 deste dispositivo, surge como elemento indiciário o facto de a atividade prestada ser “realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado”.

O local de prestação da atividade, pertença ele ao beneficiário da atividade prestada, ou seja da sua responsabilidade (por ele determinado), funciona, assim, como um dos factos indiciadores da existência de uma situação de trabalho subordinado, nos termos da lei de contrato de trabalho.

Neste caso é a relação entre o local de exercício da atividade e o respetivo beneficiário que é relevado pelo legislador como elemento caracterizador das relações de trabalho subordinado.

No âmbito da alínea b) é assumido como elemento indiciador o facto de “os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados perten[cerem] ao beneficiário da atividade”.

Trata-se de um elemento que se prende intimamente com o da alínea a), tendo aqui o legislador assumido como elemento referenciador da relação de trabalho subordinado a titularidade pelo destinatário da atividade, ou, no mínimo, a sua responsabilidade pelos “equipamentos e instrumentos de trabalho”.

Está em causa uma multiplicidade de elementos que são necessários à concreta prestação da atividade e que cabem nas categorias de equipamentos ou instrumentos de trabalho, com destaque para as máquinas e outros dispositivos que permitem concretizar e efetivar a atividade prestada.

O elemento caracterizador do facto descrito nesta alínea, como índice de uma situação de trabalho subordinado, encontra-se na disponibilização pelo destinatário da atividade prestada de bens necessários à sua concretização que se enquadrem nos conceitos de equipamentos e instrumentos de trabalho.

Não é excludente do preenchimento desta alínea a circunstância de o destinatário da atividade não ser proprietário em sentido técnico-jurídico dos bens em causa, contentando-se a lei com o facto de o mesmo, por um título legítimo, ter a disponibilidade desses bens e de os facultar ao prestador da atividade de que é destinatário.

Nos termos da alínea c), daquele dispositivo, é caracterizado como indiciador de trabalho subordinado a circunstância de o prestador de atividade “observar horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma”.

É a sujeição da prestação da atividade pelo beneficiário a “horas de início e termo” que é assumido pela lei como elemento relevante na caracterização do trabalho subordinado nesta alínea.

Na abordagem deste elemento importa que se destaque que está apenas em causa a sujeição da prestação da atividade a um tempo concreto, definido pelas horas de início e termo, relevando o tempo da prestação da atividade, ou seja, a sua duração, imposto pelo destinatário da atividade.

Na alínea d), por sua vez, coloca-se o acento na forma de pagamento ao prestador exigindo-se que “seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma”.

A quantia paga há-de ser assumida como contrapartida da atividade prosseguida, deve ser prestada periodicamente, e deve ser “certa”.

A norma faz apelo ao conceito de “quantia certa”, o que pressupõe um quantitativo pré-determinado, líquido, com uma dimensão tendencialmente fixa.

Este critério associa-se e cruza-se com o da periodicidade, igualmente exigido na norma, exprimindo, em conjunto, uma dimensão de estabilidade e continuidade nas tarefas executadas e na sua remuneração, o que evidencia uma relação de subordinação jurídica.

Finalmente na alínea e) consagra-se como elemento indiciador o facto de “o prestador de atividade desempenh[ar] funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa”.

Nesta alínea é assumida como elemento indiciador a integração na estrutura do beneficiário da atividade, ao nível do desempenho de funções de direção ou chefia. Não é a mera integração na estrutura do beneficiário que releva, mas é uma integração qualificada, ao nível do desempenho de funções de direção»

Da verificação, pois, de pelo menos duas das características constantes do citado artigo 12.º, do Código do Trabalho, a lei faz decorrer um efeito jurídico específico, qual seja, a da existência de uma relação de trabalho subordinado entre as partes envolvidas na prestação da atividade.


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Teve já esta Relação de se pronunciar sobre questão idêntica em acórdãos proferidos nos processos n.º 29383/23.2T8LSB.L1 e n.º 31164/23.4T8LSB.L1, em que foram relatoras as Senhoras Desembargadoras Adjuntas, desde já, se referindo não se antever razão válida ou argumento distintivo, decorrente dos presentes autos, que justifique que nos afastemos do juízo decisório deles constante.

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Desde já se adianta que, em nosso entender, não se provaram factos que preencham qualquer das alíneas a que alude o art.º 12.º do CT.

Vejamos.

A al. a) do n.º 1 do art.º 12.º do CT estabelece, como facto índice presuntivo, a circunstância de a atividade ser realizada em local pertencente ao beneficiário ou por ele ser determinado.

Decorre do contexto factológico apurado que o prestador realiza a atividade de entrega de refeições e outros produtos conforme os pedidos disponibilizados na plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através de uma aplicação instalada no seu telemóvel, cfr. factos n.ºs 9 e 12.

A atividade do estafeta não é realizada em local pertencente à ré, mas sim na via pública, sendo que a ré tão pouco determina o concreto local da via pública onde a atividade deve ser prestada; pelo contrário é o estafeta que escolhe a área geográfica onde pretende prestar atividade, sem qualquer tipo de intervenção da ré, escolhendo também o local, dentro dessa área, onde aguarda pelos pedidos, ao que acresce que pode ainda escolher o percurso a efetuar entre o ponto de recolha do pedido e o ponto de entrega, cfr. facto n.º 33.

Em face do que vem de se expor, conclui-se, pois, não estarem provados factos aptos ao preenchimento da al. a) do n.º 1 do art.º 12.º do CT.

A al. b) do n.º 1 do art.º 12.º do CT estabelece, como facto índice presuntivo, a circunstância de os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;

Resultou provado, com relevo, que, para se que se pudesse registar na plataforma, AA tinha de ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel /smartphone e uma mochila para transporte dos bens.

Nenhum destes instrumentos de trabalho pertence à recorrida ou foi por ela disponibilizado, daí que os factos índice integradores da presunção a que alude a citada al. b) se não verifiquem.

Acrescenta-se como se pode ler no citado Ac. desta Relação proferido no processo n.º 31164/23.4T8LSB.L1 “ não se desconhece que a jurisprudência, pelo menos em parte, tem vindo a eleger como instrumento de trabalho a aplicação detida pela plataforma digital e/ou o software que à mesma se associa, enfatizando a circunstância de a noção de equipamentos e instrumentos de trabalho não implicar a sua natureza corpórea.

Sem embargo de nada nos impelir a que assim não seja, isto é, que o conceito de instrumentos e equipamentos de trabalho é suficientemente apto a abranger elementos incorpóreos, há que relevar que, no caso em apreço, o empregador é uma plataforma digital que opera através de meios eletrónicos e, em particular, a partir de uma App ou aplicação. Vale o que vem de ser dito, sem prejuízo, naturalmente, de todo o respeito que nos merecem as considerações em sentido oposto, que a aplicação por via da qual a plataforma opera ou se manifesta não pode desta ser autonomizada e, assim, ser considerada um instrumento ou um equipamento de trabalho, do mesmo passo que não o será o software que nela se incorpora. Uma e outra realidades – a plataforma e o meio por que se manifesta – são indissociáveis, afigurando-se-nos a separação uma da outra, para efeitos de erigir a aplicação em um equipamento ou instrumento de trabalho, operação assinalavelmente artificial.”( fim de transcrição)

Concordando com o exposto acrescentamos, ainda, que a plataforma digital é comummente utilizada, não só por todos os estafetas como também pelos parceiros da ré e mesmo pelos clientes finais;

Em face do que vem de se expor, conclui-se, pois, não estarem provados factos aptos ao preenchimento da al. b) do n.º 1 do art.º 12.º do CT.

A al. c) do n.º 1 do art.º 12.º do CT estabelece, como facto índice presuntivo, a circunstância que o prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

A este propósito assinala-se que nos factos provados não há nenhum do qual resulte que a Ré determine as horas de início e termo de prestação da atividade, sendo antes o estafeta que, sem qualquer intervenção da ré, decide em que dias, a que horas e durante quanto tempo presta a sua atividade, cfr. factos n.º 35, 36, 37 e 41.

Em face do que vem de se expor, conclui-se, pois, não estarem provados factos aptos ao preenchimento da al. c) do n.º 1 do art.º 12.º do CT.

A al. d) do n.º 1 do art.º 12.º do CT estabelece, como facto índice presuntivo, a circunstância de que seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;

No presente caso não se provou quanto é que o estafeta, ao longo do tempo que prestou atividade para a recorrida, auferiu.

Do contexto factológico apurado resulta apenas que o estafeta escolheu ser remunerado à semana, que os valores que lhe são pagos são unilateralmente fixados pela recorrida, sem prejuízo de o trabalhador poder aceitar ou não os pedidos, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)” e de poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro e, ainda que, cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor, cfr. factos n.º 18, 21 e 24

Os factos, assim provados, não consentem que se conclua pela sua integração na presunção que ora se nos apresenta, sendo inequívoco que nada se apurou quanto ao recebimento de uma quantia certa ou, pelo menos, tendencialmente certa, mais a quantia paga, depende do número de entregas efetuadas pelo estafeta.

Em face do que vem de se expor, conclui-se, pois, não estarem provados factos aptos ao preenchimento da al. d) do n.º 1 do art.º 12.º do CT.

A al. e) do n.º 1 do art.º 12.º do CT estabelece, como facto índice presuntivo, a circunstância do prestador de atividade desempenh[ar] funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.”

Não há qualquer facto do qual resulte que estafeta desenvolvesse para a recorrida, qualquer função que se assemelhe às de direção ou chefia.

Em face do que vem de se expor, conclui-se, pois, não estarem provados factos aptos ao preenchimento da al. d) do n.º 1 do art.º 12.º do CT.


*


Assim conclui-se pela não verificação de qualquer dos indícios de laboralidade do art.º 12.º, n.º 1 do CT.

*


3 - Apesar de não se verificarem os indícios do art.º 12, n.º 1 do CT impõe-se, ainda, efetuar um juízo de globalidade em relação à situação concreta evidenciada na factualidade apurada, com mais acuidade, no caso concreto, por forma a abarcar a complexidade e a diversidade da atividade que se desenvolve entre a plataforma digital e o prestador/trabalhador/estafeta, com o objetivo de aferir pela existência ( ou não) de subordinação jurídica que caracteriza uma relação jurídico laboral.

Relativamente aos indícios relacionados com o local onde é exercida a atividade, o horário de trabalho, a utilização de instrumentos ou equipamentos de trabalho pertença do empregador ou por este disponibilizados ou no pagamento de quantia certa, por sobre os mesmos já nos termos pronunciado supra não serão alvo de nova análise, por manifesta desnecessidade.

No presente caso e percorrido o elenco dos factos provados, não se apura que ao estafeta AA fossem concedidas férias ou abonadas quantias que se assemelhassem aos subsídios de férias e de Natal.

A inserção do trabalhador na organização produtiva da recorrente, a existência de controlo externo do modo de prestação da atividade, a obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa serão os indícios sobre os quais nos debruçaremos, por serem eles essenciais à qualificação da relação jurídica em presença ao modelarem o que de essencial encerra o conceito de subordinação jurídica.

Como se refere no citado Ac. 31164/23.4T8LSB.L1 e, sendo a factualidade considerada no acórdão idêntica à destes autos e situação também em tudo idêntica e, por isso pertinente, merecendo a nossa inteira concordância, aí se ponderou que:

“Não há dúvida, de entre o elenco dos factos provados, que a apelada se constitui como ente que, de forma organizada, estabelece a ligação entre o parceiro e o cliente final, usando, para o efeito, como elo de conexão entre um e outro, o estafeta, que, no fundo, é quem é encarregue de recolher o pedido junto do parceiro e de o entregar ao cliente final. A ligação entre uns e outros é toda ela gerida por via de aplicação informática, sendo que a intervenção humana, se assim se pode dizer, se circunscreve à atividade de entrega em si mesma, estando esta acometida ao estafeta.

O conceito de organização pressuposto pela catividade em presença é-lhe intrínseco, na medida em que qualquer catividade, por mais rudimentar que seja, não sobrevive sem aquela. E na organização que nos é sujeita temos por certo que os estafetas são por ela pressupostos, já que sem a sua existência aquele elo de ligação não era possível. Ainda que se conceda, por via do esquema organizativo eleito, pela inserção nele dos estafetas, estamos em crer que a integração organizativa a que apela o método indiciário pressupõe constância e estabilidade, de sorte que o demais elenco dos factos provados acabe por conduzir a uma franca mitigação deste elemento, motivada pela intermitência que se associa à prestação do estafeta. É que, bem vistas as coisas, o estafeta só se integra na organização, a fim de receber pedidos de entrega e de os executar, quando entende; e mesmo recebendo pedidos de entrega, porque se coloca na situação de os poder receber ao ligar-se na aplicação, pode recusá-los sem qualquer justificação adicional. (…) “ e “(…)pode o estafeta, sem que dos factos provados se extraia intervenção da apelada ou necessidade de explicação, bloquear clientes e não aceitar pedidos cujo valor se situe abaixo de um determinado valor (,,,.).

JOÃO LEAL AMADO e TERESA MOREIRA [8] interpelam-nos, na apreciação desta nova realidade, à ponderação do conceito de CROWDWORK OFFLINE ou WORK ON DEMAND via APPS que se traduz na gestão «algorítmica de uma multidão de prestadores de atividade disponíveis para trabalhar (daí o termo CROWDWORK)» por via do qual «estas empresas conseguem desenvolver o seu negócio e usufruir (…) de mão de obra sem necessidade de recorrer a institutos tradicionais do Direito do Trabalho, provindos da era industrial». No fundo, a circunstância de, a dado passo, o empregador poder contar, sempre, com uma multidão de prestadores para levar a bom porto o seu negócio traduzir-se-ia na pouca ou nula importância da intermitência da prestação que fizemos apelo: há sempre alguém disponível para trabalhar.

Neste caso, porém, não é evidente a disponibilidade constante de mão-de-obra que se associa ao conceito em apreço, já que, (…)à intermitência e irregularidade da prestação se associa a impossibilidade de a empregadora saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas, não sendo raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega.”(no caso sub judice vejam-se os factos n.ºs 39.º e 40.º)

E, continuando no citado acórdão refere-se “Essencial é também, no contexto do apuramento do conceito de subordinação, a existência de controlo externo do modo de prestação da atividade, isto é, a sujeição à autoridade do empregador que, podendo não ser exercida a todo o momento, é intrínseca à prestação, mantendo-se potencialmente capaz de se manifestar.

No âmbito do trabalho prestado às denominadas plataformas digitais estamos cientes que lhe estão subjacentes critérios de delimitação objetiva e subjetiva, como, de resto, veio a tornar-se claro em face da atual redação do n.º 2 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho. No fundo, temos uma plataforma digital, erigida pela lei como o empregador, que presta ou disponibiliza serviços à distância, designadamente com recurso a uma aplicação, e que, para isso, se constitui como uma organização que recorre a outros indivíduos, a troco de pagamento, para concretizar a execução dos serviços. E o que é essencial, no nosso modesto entendimento, é que se apure o modo como se concretiza justamente esta execução dos serviços, isto é, se é toda ela modelada, conformada e controlada pela plataforma digital ou se, ao invés, o prestador dispõe de autonomia na sua execução. Da essencialidade da prestação, no contexto organizativo, não deriva, automaticamente, que a mesma assuma cariz laboral; há-de, pois, ser, o modo como ela é executada e conformada o traço distintivo e fundamental na caracterização dessa prestação.

E, com todo o respeito, [d]os factos (…), quando no confronto com outros, não nos consentem concluir pela existência do exercício de qualquer poder de autoridade da apelada, neste concreto caso, cujo objetivo seja o de dirigir ou de dar ordens na execução da prestação do estafeta. Sabemos, claro está, que é a apelada quem define o parceiro no qual há-de ser recolhido o pedido, do mesmo passo que sabemos que é também ela quem define o cliente final a quem será entregue (embora isso derive da própria natureza da atividade e seja, na sua génese, definido em função da opção do cliente final). Sabemos, também, que, para assim proceder, o estafeta tem de se ligar na aplicação, senão não recebe pedidos, e que entre o ponto de recolha e o ponto de entrega tem de manter ativo o sistema de geolocalização. De todo o modo, o que não se apura, de todo, é que este sistema de seja usado, pela apelada, como meio, direto ou indireto, de controlo da prestação ou mesmo da sua fiscalização. E é fundamentalmente isto que nos interessa, sendo indiferentes as vantagens que, desse ponto de vista, o sistema tenha ou o que potencialmente dele derive se nada, nos factos, o demonstre com clareza. É que, veja-se, o estafeta, entre um ponto e outro – de recolha e entrega – pode escolher o percurso que entenda e, também, o tempo de entrega de cada pedido, elegendo o sistema de geolocalização que lhe aprouver para realizar o percurso ou nem sequer usar nenhum (…)E, ainda que a sua prestação seja apta a classificação, aferível pela plataforma, o certo é que a mesma não deriva de intervenção desta, mas antes do cliente ou do parceiro, do mesmo passo que não é usada para efeitos de fiscalização da prestação (….).

Por outro lado, é o estafeta quem elege o local onde irá prestar a sua atividade, podendo alterá-lo quando bem entenda, isto é, sem sujeição a qualquer autorização da plataforma (...); também não tem de estar num local pré-definido a fim de receber pedidos, sendo que, para este efeito, apenas tem de estar ligado na aplicação (....).

A obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa são ambos elementos cuja densificação, do ponto de vista factual, não vislumbramos existam. Nos factos (…) não existe um único apto a integrar o conceito de ordem. A indicação do local de recolha e local de entrega dos pedidos e a utilização dos meios por via dos quais o estafeta se coloca em situação de os receber são próprios da metodologia da organização do trabalho e da forma como se operacionaliza o serviço, não podendo, neste conspecto, integrar o conceito de ordem, sob pena de estas características, porque transversais à prestação, serem elegíveis para toda e qualquer integração do conceito de subordinação jurídica. Também se não surpreende, nos factos provados, que o estafeta esteja sujeito à disciplina da empresa, na aceção da obediência ou conformação a códigos de conduta ou modos de atuação padronizados. (…)sendo que o uso da mochila deriva da atividade que se exerce, eleito enquanto modo de transporte de pedidos, sendo as suas características ditadas por razões de higiene e segurança.

Ao poder disciplinar surge associado, naturalmente, o poder de direção e de fiscalização, bem como o poder de conformação da prestação, destinando-se aquele a sancionar as condutas do trabalhador que sejam desconformes com a disciplina da empresa. Dificilmente, pois, se pode concluir pela sua existência se, a montante, se não provam factos que justamente integrem qualquer um daqueles poderes. O poder disciplinar não sobrevive desligado do substrato que lhe é inerente. Nesta medida e tendo nós concluído, como concluímos, pela inexistência de factos que, provados, se integrem no exercício de algum daqueles poderes, por maioria de razão não podemos ter por existente o poder disciplinar. Este poder disciplinar destinar-se-ia, então, a sancionar que tipologia de condutas? Nesta conformidade, o apelo às condições que permitem à apelada a restrição do acesso do estafeta à plataforma ou mesmo a desativação da sua conta, (…), não podem, no nosso modesto entendimento, ser eleitas enquanto manifestação típica do poder disciplinar, posto que as condições ou obrigações a que cada contraente está sujeito quando contratualmente vinculado sempre poderão conduzir à resolução do contrato se incumpridas, o que é próprio dos contratos sinalagmáticos.

No que aos indícios contratuais externos nada se apurou, de útil, com exceção da circunstância de o prestador, a fim de poder registar-se na plataforma, ter de ter atividade – presume-se como trabalhador independente – na Autoridade Tributária (...), elemento que não é típico da relação subordinada.

Tudo visto e ponderado, conclui-se, pois, que, com exceção da inserção na organização da apelada, fortemente mitigada em face do que se deixou exposto, os demais indícios negociais internos e externos típicos do contrato de trabalho não se colhem dos factos provados.

E a esta conclusão se aditam, ainda, em seu reforço, os seguintes argumentos que têm arrimo nos factos (…).

Por um lado, a circunstância de o estafeta poder prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma, poder ter a sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à apelada. Pode, também, usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que está a prestar a sua atividade na Plataforma (...). Concedendo-se que na tipologia de atividade em presença a ausência de exclusividade possa ser uma característica que se associa à sua natureza, decorrente da já impessoalidade a que fizemos apelo e também do carácter um tanto ou quanto indiferenciado da prestação, há que dizer, no entanto, não ser tanto esse fator que, no caso, nos impressiona, mas antes a inobservância o dever de não concorrência que, neste conspecto, é completamente arredado. Na verdade, se o prestador pode estar ligado, ao mesmo tempo, a mais que uma plataforma, inclusive com atividade que concorre com a da apelada, isso tem por consequência que, perante dois pedidos que porventura surjam ao mesmo tempo, possa escolher aquele que mais lhe convém (seja pelo valor, seja pela distância), não estando adstrito a qualquer ordem de preferência, assim subtraindo à apelada todo e qualquer poder de conformar a prestação e, naturalmente, de a impor. Tratam-se estes de factos que de todo se compaginam com a natureza juslaboral da relação, sendo antes reveladores de autonomia.

Por outro lado, o pagamento que é feito ao prestador surge, na economia da relação jurídica em presença, diretamente indexado a cada serviço que se execute e conclua, não se destinando, por isso, a contra prestar, como é próprio do contrato de trabalho, a atividade. Nesta medida, a ausência de liberdade na fixação do preço de cada serviço que emerge dos factos provados, ainda que mitigada pelo facto de o estafeta poder definir não aceitar pedidos que se não enquadrem no que para si é porventura aceitável, acaba por assumir escassa relevância, antes avultando a natureza do pagamento que é feito e os pressupostos em que assenta.

Mas não só. Diretamente relacionado com o pagamento está a sua certeza e a expectativa de ganho que se lhe associa e que, quando em discussão está a natureza da relação jurídica e pedida a sua integração no regime do contrato de trabalho, assume íntima conexão com o conceito de retribuição. Ora, a retribuição constitui a fonte de rendimento do trabalhador, sendo o seu pagamento suscetível de criar na sua esfera jurídica a expectativa do seu recebimento, não sendo a ela indiferente a sua constância, isto é, a sua regularidade e periodicidade. Ora, no caso em presença, sequer quando e quanto é que (…) auferiu apenas se sabendo que elegeu a semana como momento de pagamento e que ocasionalmente se ligou à plataforma. Deste acervo factual resulta claramente mitigado senão mesmo anulado o desiderato e as características próprias do pagamento que não assume, neste caso, como uma verdadeira e própria retribuição, pela ausência de constância, de regularidade e de periodicidade, não assinalando, por essa via, a expectativa de ganho e a dependência económica típica do trabalho subordinado.

Finalmente, o facto de o estafeta ter a liberdade de se fazer substituir na prestação. Concede-se que, só por si, não é este elemento decisivo embora dele decorra, indiscutivelmente, o maior apego ao resultado da atividade do que os meios que nela são empregues e a postergação de peça que sempre tivemos por fundamental da qualificação jurídica de relações jurídicas: o carácter intuito personae do contrato de trabalho. Mas, como dito, concede-se atenta a natureza da prestação e o seu carácter fungível, o facto de o substituto ter, ele próprio, que estar inscrito na plataforma e também porque mesmo em contratos de trabalho o trabalhador pode ser substituído por outro no exercício das mesmas funções. Sem prejuízo, quando ponderados globalmente os indícios e o seu peso, é para nós evidente que também este aponta para a autonomia da prestação, por oposição ao estado de dependência que é próprio dos contratos de trabalho.”( fim de transcrição)

Conforme se referiu supra a situação dos autos é em tudo idêntica a que consta do acórdão cuja passagem se acaba de transcrever bem como a constante do acórdão também já referido desta Relação proferido no processo 29383/23.2T8LSBO.

Assim, não resultando provados os factos índice consagrados no art.º 12.º do CT, nem sendo possível afirmar a existência de uma subordinação jurídica, não será possível concluir pela existência de um contrato de trabalho entre a ré e o estafeta AA.

Consequentemente terá de improceder o recurso interposto mantendo-se a decisão recorrida.»

E – REGIME LEGAL APLICÁVEL

26. Há que chamar, desde logo, a legislação civil ou laboral potencial ou eventualmente aplicável ao litígio dos autos:

- CÓDIGO CIVIL

Artigo 1152.º

Noção

Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta.

Artigo 1154.º

Noção

Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

- CÓDIGO DO TRABALHO

Artigo 11.º

Noção de contrato de trabalho

Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.

Artigo 12.º

Presunção de contrato de trabalho

1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;

c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;

e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

2 – […]

Artigo 12.º-A

Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.

3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.

4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.

5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.

6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.

7 - A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.

8 - A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos.

9 - Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.

10 – […]

12 - A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que estão reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.

[Aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril - entrada em vigor a 1 de maio de 2023, retificada pela Declaração de Retificação nº 13/2023, de 29 de Maio.]

Interessa, desde logo, chamar a atenção para a importante alteração que o artigo 10.º do Código de Trabalho de 2009 sofreu, por comparação com a definição que tinha o artigo 10.º do Código de Trabalho de 2003 [9], quando passou a dar uma muito maior incidência à integração do trabalhador na organização da empregadora, ainda que sem dispensar a subordinação jurídica, expressada na autoridade pela segunda sobre o primeiro.

Esta legislação – com especial incidência para a resultante do artigo 12.º e do novo artigo 12.º-A do CT/2009 – visa caracterizar, jurídica e tipicamente, na sua essência, o contrato de trabalho, ao mesmo tempo que, tendo perfeita consciência das dificuldades cada vez maiores de distinção ou de qualificação dos vínculos profissionais, procura munir o intérprete e aplicador do direito de mecanismos ou instrumentos que, como as presunções legais que constam dos aludidos dispositivos legais, facilitem tal juízo valorativo.

A nossa doutrina e jurisprudência estão essencialmente de acordo quanto ao facto de se tratar de presunções legais ilidíveis, que implicam a inversão do ónus da prova no que toca à demonstração da existência [10] de um vínculo laboral, cabendo unicamente ao trabalhador a alegação e posterior demonstração cumulativa de dois ou mais dos elementos ou índices elencados nas diversas alíneas do número 1 do artigo 12.º do C.T./2009 [11], para fazer funcionar as mesmas.

O Supremo Tribunal de Justiça sempre defendeu que os regime legais qualificadores das relações de trabalho e suas subsequentes alterações só seriam aplicáveis aqueles contratos que tivessem sido firmados após a entrada em vigor das respetivas normas jurídicas, sendo estas as únicas que poderiam ser convocadas para tal efeito, desde que não ocorresse supervenientemente uma modificação substancial do vínculo profissional em análise, o que implicava que a presunção legal do artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009 só seria convocável para os contratos que se iniciassem após a sua entrada em vigor [12].

Tal posição da Secção Social do STJ conheceu, com a entrada em vigor do artigo 12.º-A do CT/2009, uma importante evolução, que se mostra espelhada, por exemplo, no Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/5/2025, Processo n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1, relator: MÁRIO BELO MORGADO, tirado por unanimidade e publicado em www.dgsi.pt.

O Sumário deste Aresto reza o seguinte:

«Relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu n.º 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).» [13]

Conclui-se da leitura desta nova jurisprudência que a presunção do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 se aplica, de imediato, às relações profissionais vigentes, mesmo que tenham conhecido a sua génese em momento anterior.

Não será despiciendo transcrever aqui cinco das conclusões do recurso do Autor que nos parecem reforçar a tese sustentada por este STJ quanto à aplicação no tempo deste artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009:

«8. Sabemos que a questão não é nova e, se na jurisprudência conhecida se verificava um entendimento quase uniforme, na doutrina essa nunca foi uma opinião pacífica, tal como aliás foi salientado no douto acórdão do STJ de 04.07.2018 (processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1, relator CHAMBEL MOURISCO), referido pelo TRL como indicador de que nesta matéria existia uma jurisprudência consolidada.

9. Acresce que, já depois da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril – que alterou o Código do Trabalho e legislação conexa, no âmbito da agenda do trabalho digno – foi aprovada e publicada a Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32024L2831), relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais.

10. Como fazem notar JOÃO LEAL AMADO e TERESA COELHO MOREIRA [14] esta Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho esclarece que, no tocante ao âmbito temporal da presunção legal: «No que diz respeito às relações contratuais que entraram em vigor antes da data estabelecida no artigo 29.º, n.º 1 [data da transposição da diretiva], e estejam ainda em vigor nessa data, a presunção legal a que se refere o presente artigo só é aplicável ao período iniciado a partir dessa data» (artigo 5.º, n.º 6).

11. Ou seja, a presunção só se aplicará para o futuro, mas abrangerá os contratos celebrados antes de a mesma ser criada, desde que tais contratos ainda subsistam após a sua criação.

12. Como também salienta Mário Branco Coelho no seu voto de vencido no acórdão do TRE de 05/12/2024 (processo n.º 1964/23.1T8TMR.E2, relatora PAULA DO PAÇO), «em termos de coerência do ordenamento jurídico, se as presunções legais estabelecidas na Diretiva são aplicáveis ao período do contrato iniciado após a sua entrada em vigor, o mesmo procedimento se deve adotar quanto ao novo art.º 12.º-A – tal não é excluído pelo art.º 35.º n.º 1 da Lei n.º 13/2023, que ressalva apenas as condições de validade e os efeitos de factos ocorridos anteriormente, não ressalva a aplicação das novas presunções ao período do contrato decorrido após 01.05.2023».

Esta problemática tem um impacto relativo na economia dos autos, dado ter ficado demonstrado, no Ponto 8 da Factualidade Assente, que «AA […] presta a referida atividade de estafeta para a Ré plataforma digital UBER EATS desde 10/4/2023» [logo, apenas 20 dias antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, ainda que o Autor desta ação tenha formulado o pedido de reconhecimento da natureza laboral de tal vínculo profissional somente a partir de 1/5/2023.

F – JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE PLATAFORMAS DIGITAIS

27. Importa realçar, a este propósito, alguma outra jurisprudência emanada deste Supremo Tribunal de Justiça e que tem apreciado a natureza jurídica do vínculo profissional que se estabelece entre as Plataformas Digitais [UBER e GLOVO] e os estafetas, no quadro das ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho [ARECT] que o Ministério Público tem proposto, com base nos elementos que lhes são fornecidos pela Autoridade para as Condições de Trabalho [ACT] na sequência das intervenções inspetivas feitas pelos respetivos inspetores:

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/9/2025, Processo n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1, relator: MÁRIO BELO MORGADO, tirado por unanimidade e publicado em www.dgsi.pt [15].

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/10/2025, Processo n.º 29352/23.2T8LSB.L1.S1, relator: MÁRIO BELO MORGADO, tirado por unanimidade e publicado em www.dgsi.pt [16].

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/10/2025, Processo n.º 28891/23.0T8LSB.L1.S1, relator: JÚLIO GOMES, tirado por unanimidade e publicado em www.dgsi.pt [17]

G – PLATAFORMAS DIGITAIS E SERVIÇOS PRESTADOS – CONSIDERAÇÕES GERAIS

28. Abordemos então a problemática central que se coloca no presente recurso e que tem a ver com a qualificação jurídica da relação profissional firmada entre as Ré e o estafeta AA.

O Supremo Tribunal de Justiça depara-se assim e mais uma vez, no quadro num recurso de revista ordinário, com questões muito controvertidas e fraturantes, que andam na ordem do dia dos tribunais judiciais portugueses, assim como de muitos outros tribunais de inúmeros Estados por esse mundo fora, face à proliferação global de plataformas digitais, nos mais diversos e diferentes setores de atividade, que para o efeito, veem o seu funcionamento depender de algoritmos informáticos desenhados especificamente para concretizar, de uma forma eficiente e eficaz, os objetivos e fins perseguidos por tais plataformas [18].

Os reflexos dessa realidade no plano do mundo do trabalho chegaram finalmente aos juízos e secções laborais do nosso sistema judiciário, essencialmente por iniciativa no Ministério Público, ao propor as inerentes ações de reconhecimento de existência de contrato de trabalho [ARECT], destinadas a obter decisões judiciais que apreciem e declarem a vigência de contratos de trabalho desde uma determinada data ou por um determinado período temporal, na sequência da comunicação e envio dos necessários elementos escritos por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho [ACT], como resultado da atuação prévia e preliminar efetuada por essa entidade estatal junto dos eventuais trabalhadores subordinados e das empresas para os quais estes últimos prestam serviços, que são obrigatoriamente intermediados pela existência e funcionamento das aludidas plataformas digitais.

As alterações derivadas da Agenda do Trabalho Digno e introduzidas no Código do Trabalho de 2009 vieram dar, através da consagração do regime constante do artigo 12.º-A desse diploma normativo, expressão legal concreta às dúvidas e problemas que as particularidades da mencionada prestação de serviços por parte daqueles trabalhadores vinha suscitando junto da doutrina nacional e estrangeira e da jurisprudência internacional – designadamente, daquela emitida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia -, bem como no seio da sociedade civil de muitos Estados [com especial incidência para os sindicatos] e de organizações transnacionais como a Organização Internacional do Trabalho [OIT] ou a já referida União Europeia [que, a propósito, emitiu diversos Regulamentos e Diretivas, com particular realce para a já mencionada Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32024L2831), relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais, que entra em vigor cerca de 1 ano e meio depois do artigo 12.º-A do CT/2009 e que, em grande parte, se vê refletida no regime atual desta disposição nacional].

Diga-se, a este respeito, que as decisões judiciais nacionais proferidas pelos tribunais da primeira e segunda instância evidenciam uma divisão acentuada entre a correta e adequada perspetiva a adotar na interpretação e aplicação da presunção ilidível constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e na perceção e valoração da subordinação jurídica reclamada no quadro da atividade das plataformas digitais, por referência ao relacionamento mais ou menos profissional que as mesmas estabelecem com os prestadores de serviços [conhecidos como estafetas].

Não será despiciendo realçar que as múltiplas atividades desenvolvidas por tais plataformas digitais, com base na numerosa, constante e impressionante doutrina produzida em muitas partes do mundo, assim como em razão das decisões judiciais nacionais e estrangeiras conhecidas, se sustentam em contratos-quadro que, não só vão sofrendo sucessivas modificações em função da evolução da legislação aplicável e da produção doutrinária e jurisprudencial pertinente, como não são, à partida, substancialmente idênticos.

G – CONTRATOS-QUADRO – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Esses clausulados uniformes e gerais, sob a forma escrita, que são elaborados unicamente pelas empresas titulares das plataformas digitais e possuem a natureza jurídica de contratos de adesão [19] e mostram-se sujeitos, pela forma massificada e uniformizada da sua elaboração, em sede de conteúdo, ao regime legal das cláusulas contratuais gerais [20].

São assinados, em termos globais e nessas circunstâncias, quer pelos fornecedores dos bens, quer pelos chamados estafetas que os entregam aos consumidores dos mesmos [cf., a este respeito, os Pontos 10. e 11. dos Factos Provados, assim como o texto de tal contrato juntos aos autos e denominado de «Contrato de Parceiro de Entregas Independente».].

Ora, se bem que seja perfeitamente enquadrável nesta relação dos estafetas com a empresas como a UBER, que desenvolve a sua atividade ou negócio [cf. Pontos 1 a 7 dos Factos Provados], através da plataforma digital existente na Internet [21], vínculos jurídico-profissionais muito diversos, admitindo-se, nessa medida e em tese, a existência de prestadores de serviços autónomos ou independentes, ao lado de trabalhadores subordinados e ainda em paralelo estafetas com outro tipo de negócios jurídicos como base de tal prestação de serviços de recolha, transporte e entrega, essa aferição não se basta – não se pode bastar – com o mero teor do clausulado dos referidos acordos-quadro, mas também de se cruzar e confrontar com a forma como tem lugar a sua concretização ou não concretização no terreno quotidiano, real e prático da vida profissional desses estafetas, na sua relação com a UBER, com os fornecedores e com os clientes. [22]

Interessa também recordar que tais acordos-quadro poderão não coincidir de empresa para empresa, ainda que se movendo dentro da mesma área de negócio e que, inevitavelmente, não corresponderão para atividades e setores produtivos distintos, sendo também suscetíveis de ser diferentes as formas de execução dos mesmos no âmbito de cada uma delas.

A pretendida qualificação jurídica nas relações de natureza profissional que se estabelecem entre os referidos trabalhadores e as empresas que exploram tais plataformas digitais tem naturalmente de considerar esses contratos-quadro firmados entre ambos, mas não pode ignorar também a prática mais ou menos quotidiana que deriva das relações que, efetivamente, entre os primeiros e as segundas se verificam e que podem ou não respeitar ou sequer corporizar, de alguma maneira, os diversos aspetos e facetas que formalmente foram definidos nos ditos contratos-tipo para essas relações.

H – CONTRATO-QUADRO DOS AUTOS E MATÉRIA DE FACTO PROVADA

Impõe-se não olvidar que muitas das cláusulas que, em tais contratos-quadro, parecem dar uma grande margem de liberdade e manobra aos estafetas que para elas prestam serviços de recolha, transporte e entrega dos produtos – no caso dos autos, alimentos - que os consumidores adquirem através dos programas informáticos e aplicações que se acham instaladas, respetivamente, na plataforma digital e nos telemóveis de uns e de outros, são redigidas precisamente com esse objetivo e finalidade, que é como quem diz, para criar uma forte aparência de independência e autonomia, de forma a que que todos os estafetas sejam encarados como trabalhadores liberais, empresários por conta própria, que firmam meros contratos momentâneos de prestação de serviços com aquela, sem que daí advenham quaisquer outros direitos e deveres, efeitos e consequências, nomeadamente, em termos de qualificação como contrato de trabalho e subsequente aplicação do inerente regime legal protetor e conferidor de direitos.

Exemplo do que antes se sustentou encontra-se não apenas em muita da jurisprudência estrangeira que já se debruçou sobre esta problemática, mas, manifestamente, no que o Ponto 3. do «Contrato de Parceiro de Entregas Independente» estabelece ao afirmar o seguinte: «Se concordar com este Contrato, o Parceiro de Entregas Independente opta por ser trabalhador independente ao utilizar a APP. Este Contrato não é um contrato de trabalho, e não cria uma relação de trabalho entre si e nós, ou qualquer afiliada da UBER EATS. Também não cria uma parceria legal, uma JOINT VENTURE ou lhe dá a autoridade para nos vincular ou manter-se como nosso funcionário, trabalhador, agente, parceiro legal ou representante autorizado». [sublinhados a negrito da nossa responsabilidade].

São, designadamente e no caso concreto dos autos, expressão desse propósito empresarial e do persistente afastamento da referida categorização jurídica os Pontos de Facto 15., 16., 26., 28., 35., 36., 37., 38., 41., 42., 57., 58. e, em parte 59., que, há que dizê-lo, reproduzem em parte e simplesmente as cláusulas contratuais do referido acordo-quadro [cf., por exemplo, segunda parte do Ponto 2 dos «TERMOS», relativo aos «Serviços de Entregas», alíneas a., f., l. e o., do Ponto 4 [«Utilização da APP»] e alínea o. do Ponto 5 [“Suas obrigações”].

Não obstante o que se mostra aí afirmado, nada nos autos nos indica se tais faculdades e facilidades são concreta e efetivamente utilizadas pelos estafetas – no caso desta ação e especificamente, pelo estafeta AA – e se o são, com que frequência e com que impacto, quer nos serviços pelos mesmos executados, quer na resposta atempada aos pedidos dos consumidores, quer finalmente na atividade dos fornecedores de bens e, principalmente, da própria UBER.

Também não nos impressiona particularmente, nesta matéria e para efeitos de descaracterização dos vínculos existentes como contratos de trabalho, o que se afirma nos Pontos 39. e 40. [que tem de ser conexionado com o que refere nos Pontos 35. a 38. e 41. e 42.] e que é o seguinte:

«39. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.

40. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega».

Não nos podemos esquecer que a estruturação, organização e desenvolvimento da atividade da UBER através da sua plataforma digital, dos algoritmos e programas informáticos específicos e exigidos, tecnicamente, para tal fim, das aplicações licenciadas dos telemóveis e dos contratos de adesão firmados a jusante e a montante com os estabelecimentos de restauração, estafetas e consumidores, foi criada e implementada pela mesma, sem intervenção, contribuição ou participação dos fornecedores, transportadores e clientes [nada ressalta dos autos nesse sentido, sendo, por outro lado, aconselhável compulsar a obra de JOANA CAMPOS CARVALHO, devidamente identificada em Nota de Rodapé, quanto a algumas dessas vertentes], recaindo assim sobre ela apenas os riscos económicos e outros decorrentes da implementação do negócio que decidiu desenvolver naqueles precisos e particulares moldes.

Logo, se como consequência involuntária ou inesperada do mesmo, ocorrem tais problemas [Pontos transcritos], tal não deriva certamente e em primeiro lugar ou grau, das indicadas falhas e faltas dos estafetas mas antes e fundamental e principalmente, da maneira como tal negócio é implementado em concreto pela UBER.

Se tais carências ou estrangulamentos na prestação de serviços de recolha, transporte e entrega de bens alimentícios por parte dos estafetas, assim como outros percalços ou características do negócio da Ré UBER quanto aos mesmos ou até quanto aos fornecedores e clientes, derivam da forma particular e pormenorizada como a sua atividade económica foi por ela unilateralmente criada, estruturada e organizada, mal se compreende e aceita, até por força do princípio geral da boa fé, que a recorrida venha depois invocar essas dificuldades e características como causas de exclusão da existência dos elementos típicos do contrato de trabalho [ou de qualquer outro que, juridicamente, possa ser equacionado relativamente aos referidos utilizadores da plataforma digital e demais software].

Cruzando, aliás, algumas das Cláusulas do Contrato de Adesão referente ao estafeta AA com os Pontos de Facto dados como Assentes, deparamo-nos com disparidades relevantes como, nomeadamente, a circunstância de ali se estipular que o «Parceiro de Entregas Independente» [PEI], que é como é designado contratualmente o estafeta, não está sujeito a nenhuma forma de avaliação [Ponto 4., al. b.], quando os Factos constantes dos Pontos 34. e 60. afirmam o contrário, como a al. j. do mesmo Ponto contratual diz que o PEI pode ainda cancelar uma Proposta de Serviços de Entrega, mesmo depois de aceite, quando do teor do Ponto 2. do Contrato e da conjugação dos Pontos de Facto 38., 56. e 57. parece resultar um cenário diverso, em que o estafeta terá de realizar o serviço que já aceitou, não podendo sequer fazer-se substituir, dizendo-se ainda, na já referida al. b. do Ponto 4 que o PEI é totalmente livre na forma como executa as suas tarefas, quando existem restrições e regras, desde logo contratuais [Ponto 4., als. e. [restrições geográficas, por motivos de segurança] e j., primeira parte [dever de escolha da forma mais eficaz e segura de chegar ao seu destino [23]] e 5. al. h. [meio de transporte único e fixo], e outras que ficaram demonstradas nos autos e que contrariam tal total e absoluta liberdade de execução [Pontos 17., segunda parte, 19., 20., 21., 27., 44., 45., 56. e 57.].

Essa mesma liberdade surge, contratualmente, quanto à escolha do sistema de GPS da sua preferência na APP ou da não utilização de nenhum, mas, ao mesmo tempo, quer contratualmente, quer depois em sede de Factualidade dada como Provada, impõe-se a existência e funcionamento de tal sistema [que é, aliás, essencial para a UBER e para os estafetas], conforme ressalta, por exemplo, do Ponto 4, al. l. e m. e Pontos de Facto 29. a 32., 49. a 52.

Importa também cruzar a Cláusula contratual 6. [“Taxa de Entrega”] com os Pontos de Facto Assentes 18. a 23. para se constatar que o regime de preços que, negocialmente se acham estipulados não coincidem com a prática do dia a dia dos estafetas – nomeadamente de AA -, dado os mesmos poderem, por exemplo, aceitar entregas por valores inferiores à Taxa Mínima por Quilómetro por eles fixada.

Veja-se ainda que, não obstante, como regra, em termos contratuais, se declare a obrigatoriedade do Estafeta celebrar um ou mais contratos de seguro [designadamente, quanto ao meio de transporte que utilizar e a eventuais acidentes «de trabalho» que possa vir a sofrer durante a sua atividade, numa lógica própria do prestador independente], conforme ressalta do Ponto 4 n. (a) [«Utilização da APP»], 5. i. [“As suas obrigações”] e 15. [“Seguros”], constata-se que, segundo o Ponto 55. dos factos assentes “A Ré contratou um seguro de responsabilidade civil com a seguradora ALLIANZ e um seguro de proteção de parceiros de entrega que abrange o «Prestador de Atividade»”, acionando assim a exceção da alínea g. do referido Ponto 15. [que, no entanto, se refere apenas a uma contrato de seguro celebrado pela UBER a título discricionário]

Não deixa de ser curioso verificar finalmente – embora tal não conste da Factualidade dada como Provada – que segundo a al. k. do Ponto 5. do Contrato de Adesão dos autos, «A UBER EATS compromete-se a reembolsar Portagens suportadas no decurso da prestação de Serviços de Entrega».

Feito este percurso – que reproduz, afinal e numa pequena parte, o que já se deixou expresso no Aresto datado de 17/9/2025 e proferido pela formação do número 3 do artigo 672.º do NCPC, no quadro da Revista Excecional n.º 30191/23.6T8LSB.L1.S2 -, interessa cruzar a factualidade dada como provada e os documentos que a complementam com as diversas alíneas do número 1 do artigo 12.º-A do CT/2009

29. O primeiro elemento caracterizador de uma relação de trabalho subordinado reconduz-se ao seguinte: a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela.

Bastará, quanto a este índice ou elemento qualificativo, chamar à colação os Pontos de Facto Assentes 18. a 23 [que já confrontámos com o teor da Cláusula contratual 6. (“Taxa de Entrega”)] para constatar que, embora seja dada alguma margem de manobra ao estafeta para fixar uma TAXA MÍNIMA POR QUILÓMETRO e para não aceitar serviços inferiores à mesma [muito embora não esteja impedido de o fazer relativamente a estes últimos, conforme Ponto 22., não correspondendo, com rigor e nessa medida, a essa realidade o que acha clausulado no Contrato-Quadro] certo é que, no final, os valores que são cobrados e depois pagos [deduzida a percentagem devida pela UBER] pela recolha, transporte e entrega dos bens por parte daquele são estabelecidos pela Ré, em sede da aludida Plataforma, de forma unilateral e sem qualquer negociação prévia com o mesmo, à imagem aliás do que acontece com as conversações que, a esse mesmo nível, acontecem entre os fornecedores do setor da restauração [cf. também Ponto de Facto 43.].

Os valores são fixados por referência a cada entrega efetuada pelo estafeta e depois liquidados, em bloco, periodicamente, à semana [caso do estafeta em causa nestes autos] ou com diferente regularidade temporal, acontecendo tal pagamento através de transferência bancária ou do «CASHOUT» [Pontos 24. a 26.], sendo certo que a legislação laboral não proíbe o chamado pagamento da retribuição «à peça».

Logo, mostra-se preenchido este primeiro pressuposto de laboralidade da presunção do artigo 12.º-A do CT/2009.

30. O segundo elemento caracterizador de uma relação de trabalho subordinado reconduz-se ao seguinte: b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.

Atendendo não apenas às diversas obrigações que contratualmente foram fixadas para o estafeta que está em causa nos autos mas ainda para diversos dos factos que foram dados como assentes e que, já tendo sido ou ainda indo ser, pelo menos em parte, abordados por este STJ, igualmente consagram deveres funcionais e procedimentais, assim como restrições e proibições, relativas, por exemplo, à utilização da plataforma, ativação do GPS, aplicação instalada no telemóvel, meio de transporte, mochila térmica, condições de aceitação e rejeição dos pedidos, possibilidade de substituição por outros estafetas dos serviços, desde que não aceites, o que já não é consentido no caso contrário, não nos restam quaisquer dúvidas quanto à efetiva existência de um poder de direção por parte da Ré quanto a muitos aspetos da conduta, postura e atividade do estafeta.

Afigura-se-nos, aliás, que muitas das regras, restrições e limites estabelecidos pela UBER derivam, desde logo, da integração de AA na estrutura e organização empresarial da mesma que, em razão do negócio por ela perseguido e prosseguido, reclamam, natural e inequivocamente, a existência de normas de comportamento e funcionamento, assim como a existência de sanções para a violação das mesmas.

Importa ainda dizer que muitas dessas imposições, regulações e disposições juridicamente vinculativas não derivam unicamente de exigências naturais, imprescindíveis e inequívocas da tecnologia utilizada e do seu normal e quotidiano funcionamento mas visam também satisfazer interesses próprios da atividade ou negócio pela Ré desenvolvido, com o contributo necessário dos fornecedores, a montante, e dos estafetas, a jusante.

Dir-se-á, finalmente, que muitas dessas imposições ou regulações não são compatíveis com uma relação de trabalhador autónomo ou independente, como será, manifestamente, o caso, por exemplo e entre outras, da imposição de um único meio de transporte, dos valores cobrados aos consumidores e pagos aos estafetas e dos contratos de seguro firmados pela UBER.

Sendo assim, tal cenário regulamentador e regulamentado, permite-nos considerar preenchido também este requisito de laboralidade do artigo 12.º-A do CT/2009.

31. O terceiro elemento caracterizador de uma relação de trabalho subordinado reconduz-se ao seguinte: c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.

A factualidade dada como assente, ao contrário que o clausulado contratual pretende incutir no intérprete do mesmo, evidencia que a Ré, designadamente através da instalação no telemóvel e funcionamento obrigatório do GPS - porque necessário à realização dos serviços prestados pelo estafeta - lhe permite localizar a todo o tempo o mesmo, assim como acompanhar e valorar, em termos espaciais e temporais, o seu percurso entre o local onde recebeu e aceitou o pedido e os restaurantes e estabelecimentos equiparados que desenvolvem atividade nesse setor e depois, entre estes últimos e o local onde o consumidor irá receber os bens alimentícios encomendados através da plataforma digital da Ré, podendo ainda a UBER recolher a classificação [numa palavra, a avaliação] pelos meios eletrónicos inseridos na plataforma digital do trabalho daquele, quer por parte dos fornecedores, como dos clientes, que depois usa, no mínimo, para os fins descritos no Ponto 60.

O que se deixou antes descrito é mais do que suficiente para que se considere preenchido também este outro requisito de laboralidade do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009.

32. O quarto elemento caracterizador de uma relação de trabalho subordinado reconduz-se ao seguinte: d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma.

Muito embora a Factualidade dada como Provada [Pontos 56. e 57.], assim como o Contrato-Quadro junto aos autos [Ponto 5, al. o], façam menção à possibilidade de os estafetas se poderem fazer substituir, embora apenas por outros estafetas igualmente inscritos na mesma plataforma digital e a prestar serviços de transporte para a mesma empresa que gere e explora aquela, não nos parece que, somente em função dessa possibilidade de conduta [assim como da proibição de rejeição do pedido, depois de aceite, como já antes foi analisado e mencionado], se possa entender que tal requisito se acha minimamente preenchido.

Logo, esta alínea d) do número 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 não se acha verificada.

33. O quinto elemento caracterizador de uma relação de trabalho subordinado reconduz-se ao seguinte: e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.

Se tivermos na devida atenção o texto desta alínea e) do artigo 12.º-A do CT/2009 e a cruzarmos, por exemplo, com os Pontos 45., 46. e 47. [matéria aliás que voltaremos a abordar no próximo ponto] descortina-se, desde logo, logo o exercício do poder disciplinar por parte da Ré, dado que a utilização indevida por terceiros da conta do Estafeta dá logo o direito da UBER a restringir ou mesmo a desativar o acesso do infrator à mesma e aos serviços que por este último são ou eram prestados.

Ao lado desse incumprimento grave das obrigações assumidas pelo estafeta, descortinam-se muitas outras como será, designadamente, o caso da utilização de diversos meios de transporte, ao contrário do que se acha registado na plataforma, relacionamento conflituoso ou mal educado com os clientes, recebimento indevido de quantias [que não gratificações/gorjetas], utilização da mochila térmica que não cumpre as regras exigidas ou que está em mau estado de conservação e limpeza, etc.

Existem assim uma série de cenários de natureza fraudulenta ou não que podem constituir violação culposa das obrigações que recaem sobre o estafeta e que implicam a aplicação de sanções, como as descritas nos Pontos 47. e 48. da Matéria de Facto dada como Provada.

Está assim suficientemente preenchida esta alínea e) do artigo 12.º-A do CT/2009.

34. O sexto elemento caracterizador de uma relação de trabalho subordinado reconduz-se ao seguinte: f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

Nesta matéria dos equipamentos e instrumentos de trabalho será relevante convocar o clausulado do contrato-quadro junto aos autos, por referência ao Ponto 5, alíneas d. e h. [“As suas obrigações”] e ao Ponto 9. [«Dispositivo»], por ser revelador da relativa liberdade que o estafeta possui quanto ao seu meio de transporte profissional e também da utilização do seu “SMARTPHONE» [que, para o efeito, exige a necessária intervenção que uma das associadas da UBER tem de levar a cabo nesse equipamento].

Vejamos, então, o que aí se estabelece:

- «Para prestar Serviços de Entrega deverá apenas utilizar o Meio de Transporte identificado na sua conta connosco. O Meio de Transporte identificado deve ser adequado para utilização no âmbito da APP [tal como determinado a cada momento]. Quando aplicável, o Meio de Transporte deverá cumprir com a legislação aplicável no Território». [cfr. também, a este respeito, penúltimo parágrafo do Ponto de Facto n.º 10.]

- «O Parceiro de Entregas Independente deve usar o Seu próprio dispositivo para aceder às APP. Sujeito às condições deste Contrato, a PORTIER concede uma licença pessoal, não exclusiva, intransmissível, revogável, sem a faculdade de sublicenciar, para instalar na APP no seu Dispositivo apenas para a finalidade de prestar os Serviços de Entrega. A PORTIER concede esta licença gratuitamente. Esta licença cessa com a cessação do Contrato de Parceiro de Entregas Independente. Não pode partilhar o Seu dispositivo ou nas credenciais da sua conta na UBER EATS com ninguém».

Muito embora tais cláusulas, assim como os Pontos 14. e 27. da Matéria de Facto nos informem de que o estafeta tem de possuir meio de transporte próprio, assim como telemóvel e mochila [com determinados requisitos] para transporte de bens e que os mesmos não são disponibilizados pela Ré UBER mas antes pertencem ao estafeta, não só a posse de tais objetos são impostos pela recorrida como, sendo embora instrumentos de trabalho necessários ao serviço de entregas, não têm qualquer serventia ou utilidade sem a existência da plataforma digital na Internet, com o seu ou seus algoritmos informáticos e mais programas dessa mesma natureza nela instalados, como ainda sem a aplicação própria, privada e licenciada inserida no respetivo telemóvel, como facilmente ressalta, por exemplo, dos Pontos 2., 3. 4., 6., 9., 10., 12., 13., 14., 17., 18., 19., 22., 27., 29., 30., 31., 32., 43., 46., 49., 50., 51., 52., 53. e 57.

Importa trazer ainda à colação as proibições constantes dos Pontos de Facto 44. e 45., que vedam a partilha e utilização da sua conta aberta na plataforma digital da Ré UBER por parte de terceiros, o que acarreta para o estafeta deveres de reserva e sigilo quanto ao seu USERNAME, PASSWORD e outros detalhes necessários à abertura e funcionamento da mesma, sob pena de aplicação de sanções como as descritas no Ponto 47. [cf., ainda, Ponto 5, alínea n. [“As suas obrigações”], assim como os Pontos 11. [“Acesso à APP”] e 16., alínea b) (“Cessação”)].

Este conjunto de factos, quando devidamente conjugados, evidenciam à saciedade que os estafetas só exercem a sua atividade para a Ré UBER, por causa, em função e através da referida plataforma digital, com as referidas características particulares e específicas, sendo que o registo obrigatório na mesma assim como as diversas regras de utilização que são determinadas pela Ré a classificam igualmente como instrumento de trabalho que, entre todos os demais, é o principal, por ser absolutamente crucial para o serviço prestado pelos estafetas.

Dir-se-á também que o Ponto de Facto 54. [A aplicação e o site da UBER EATS PORTUGAL (ora Ré) são pertença da UBER EATS dos Estados Unidos] não afasta minimamente o que deixou antes expresso, dado a alínea f) não exigir que tais ferramentas digitais tenham de pertencer à entidade que as explora, podendo ser-lhes cedidas por terceiros.

Pensamos que podemos levar ainda mais longe o raciocínio antes desenvolvido e afirmar que a centralidade da plataforma digital existente na rede, com o respetivo algoritmo ou algoritmos e outros programas informáticos, as aplicações devidamente licenciadas por empresa associada da UBER nos telemóveis [SMARTPHONES] dos estafetas, assim como o estabelecimentos de proibições, critérios e normas necessárias à utilização de uns e ao funcionamento doutras nos moldes pretendidos pela Ré aos estafetas, nos permite [re[afirmar/confirmar que, também por via dessa restrição quanto aos meios de transporte, licenciamentos obrigatórios das Aplicações e regulação do uso dessa multifacetada e complexa tecnologia, se assiste à integração do estafeta AA na estrutura, organização e negócio explorado pela UBER.

Aliás, se lermos atentamente os factos dados como assentes, não descortinamos qualquer dado ou elemento que consinta afirmar que este estafeta AA desenvolve, enquanto empresário em nome individual ou trabalhador por conta própria, a sua atividade de recolha, transporte e entrega de bens alimentícios, fazendo-o com base e através de um suporte mínimo material, estruturado, organizado, funcional, que delineou e edificou para o efeito.

Mostram-se assim verificados cinco dos seis requisitos de laboralidade que se acham elencados no número 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e que, nessa medida, sustentam, sólida e fortemente, a natureza laboral do vínculo jurídico-profissional entre AA e a Ré UBER.

H – ILISÃO DA PRESUNÇÃO DA LABORALIDADE

35. Decorrendo da lei que uma presunção legal como a do artigo 12.º-A do CT/2009 pode ser ilidida, mediante prova em contrário, por parte da Ré UBER, diremos que tal elisão defronta-se desde logo com a intensidade do preenchimento da mesma, dado ter-se considerado que cinco das suas seis alíneas se mostravam efetivamente integradas pelos factos dados como assentes nos autos, não havendo, por outro lado e da parte da Recorrente uma alegação e prova de factos significativos, relevantes e suficientemente impactantes que, em si e só por si, consigam inverter a prova presumida efetuada e convencer este Supremo Tribunal de Justiça de que, afinal, a realidade que sempre se verificou entre a Ré e o estafeta AA é a oposta, ou seja, a de uma relação de trabalhador independente.

Não é a circunstância de o mesmo ter assinado um negócio jurídico denominado de “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, onde se rejeita expressamente a sua natureza laboral e se procura construir um regime jurídico afeiçoado a um estatuto de profissional liberal ou empresário por conta própria, nem o facto de estar inscrito nas Finanças e na Segurança Social como mero prestador de serviços e de passar faturas e emitir recibos à Ré e de não auferir as prestações próprias de um vínculo laboral [subsídios de férias e de Natal, por exemplo] que permitem à UBER conseguir “dar a volta ao texto” [perdoe-se-nos a expressão], que é como quem diz, à presunção que se procura afastar, pois deparamo-nos apenas com sinais aparentes ou indícios meramente formais que, as mais das vezes, são usados apenas para esconder ou disfarçar uma genuína e real relação de trabalho.

A falta de exclusividade dos estafetas – estando, no entanto, por demonstrar nos autos que, quanto a AA era isso que efetivamente se passava, o que, desde logo, retira relevância ao argumento – também não obsta à qualificação do vínculo dos autos como sendo de natureza laboral, bastando pensar no duplo e mesmo triplo emprego que se verifica em diversos setores, como o de saúde, ou dos trabalhadores de serviços de limpeza industrial, comercial ou doméstico que podem ter uma multiplicidade de empregadores, por desempenharem as suas funções subordinadas a tempo parcial.

Não ignoramos, naturalmente, o que refere a Ré nas suas contra-alegações, mais exatamente na conclusão 74.: «A ausência de exclusividade assume decisiva importância neste tipo de ações e na análise da relação jurídica em apreço, porquanto os deveres e obrigações a que estão adstritos os trabalhadores não permite a prestação de trabalho simultâneo a duas (ou mais) entidades concorrentes distintas, muito menos em simultâneo, situação que é admitida no âmbito de uma prestação de serviços, na qual é o próprio prestador, dotado de autonomia na organização da sua atividade, quem decide quando presta a sua atividade, para quem, e de que forma, tal como sucede in casu

A simultaneidade referenciada, ao nível da atividade dos estafetas, não somente é consentida pela própria UBER, ao nível do Contrato-Quadro junto aos autos [Ponto 4, al. f. -«Utilização da APP»] e que se mostra também espelhado na factualidade dada como assente [Ponto 58.] como nem sequer laboralmente é um facto inédito, como deriva, por exemplo do regime previsto no artigo 101.º do CT/2009 para uma pluralidade de empregadores [grupos de empresas, em relação societária ou com estruturas organizativas comuns, sendo comum departamentos como os dos recursos humanos serem únicos a e tratarem de todas as questões da sua competência, independentemente dos empregadores ou empresas a que respeitem, fazendo-o em simultâneo] [24].

Também não nos impressiona, nesta matéria, a possibilidade de o estafeta se poder fazer substituir – embora apenas por um outro estafeta registado e a prestar serviço para a mesma entidade exploradora da plataforma digital e do respetivo negócio – ou de não haver horário ou período normal de trabalho fixados, dever de assiduidade ou não concorrência, pois todo esse quadro contratual foi determinado de forma unilateral, sem negociação mínima prévia e sem que os estafetas possam recusar ou negociar tais aspetos com a UBER, correndo, nessa medida, por conta e risco desta última, a realidade concreta de natureza profissional que, na prática do dia a dia, venha a ocorrer.

Interessa também aqui recordar o que já antes, de uma forma desenvolvida, se disse acerca da atividade económica das empresas, desenvolvida por intermédio de plataformas digitais, algoritmos e aplicações para telemóvel, do contrato-tipo que para esse efeito é celebrado com os fornecedores e os estafetas e do seu conteúdo, propósito e objetivos e da necessidade da passagem do mesmo pelo crivo cru da realidade que ele procura configurar em abstrato e que, como se verificou no caso nos autos, não se refletiu minimamente no espelho da mesma.

Também não será despiciendo realçar o seguinte, acerca da diferente, subtil e mais fina subordinação jurídica que para este tipo de vínculos e contratos deve ser apurada e perspetivada e que, como todos os juslaboralistas estão cientes, corresponde a uma progressiva modificação dos elementos típicos presentes, que se congregam ou reorganizam de muitas e cada vez mais distintas formas e conteúdos, com a inerente alteração das regras do jogo que presidem a cada uma dessas relações laborais [cf. o cada vez maior número de contratos de trabalho especiais existentes, havendo quem defenda tal solução para casos como o dos autos] ou equivalentes [cf., por exemplo, os atuais artigos 10.º a 10.º-B do CT/2009] e à evolução para vínculos profissionais relativamente aos quais convergem, frequentemente, características de mais do que um tipo contratual, subvertendo os modelos contratuais clássicos em presença e em confronto, que antes possuíam as suas diversas vertentes ou aspetos muito mais bem definidos, apartados e identificáveis.

Basta pensar que antes se falava de «trabalhadores» e «entidades patronais», para depois se ter passado a designá-los por «colaboradores» e «empregadores» até desembocarmos em «pessoas» ou «empreendedores» e em «empresas», numa significativa desconstrução de conceitos que não é inocente e que procura acompanhar e traduzir a evolução que tentámos sintetizar, muito sumariamente, no parágrafo anterior.

Nessa medida, embora, como já antes afirmámos, a subordinação jurídica não esteja arredada da noção de contrato de trabalho, ela tem de ser encarada, não somente em função da organização onde se insere o prestador de serviços, como de acordo com critérios e abordagens que se revelem adequadas e adaptadas às novas circunstâncias e condições de trabalho e não em função de uma visão e crivo retrógrados, ultrapassados e, por tal motivo, inócuos ou inoperantes.

Logo, a Ré não logrou afastar minimamente a dita presunção de laboralidade, que se mostra consolidada pelo preenchimento de cinco das suas alíneas/características, quando só bastavam duas para a mesma funcionar e produzir os efeitos jurídicos inerentes.

I - CONCLUSÃO

36. Em conclusão, julga-se o presente recurso de revista interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO procedente, revogando-se, nessa medida, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e, em sua substituição, reconhecendo e declarando a relação firmada entre o estafeta RUMEL HASQUE e UBER EATS UNIPESSOAL, LDA como emergente de um contrato de trabalho subordinado, desde 10 de abril de 2023.

Não desconhecemos que, em sede da Petição Inicial, o Autor pediu que tal declaração fosse efetuada a partir de 1 de maio de 2023, apesar de o vínculo laboral ter começado 20 dias antes, mas não somente nada ficou demonstrado quanto à cessação de tal relação entre AA e UBER EATS UNIPESSOAL, LDA, o que permite o funcionamento do disposto no artigo 74.º do Código de Processo de Trabalho por referência aos direitos irrenunciáveis emergente do contrato de trabalho, como, ainda que assim não acontecesse, os interesses de interesse e ordem pública subjacentes a esta ação [ARECT] obrigam o julgador a fazer coincidir a realidade dos factos dados como provados com a declaração jurídica da existência do vínculo laboral nos moldes precisos demonstrados nos autos.

IV – DECISÃO

37. Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 671.º, 679.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, em julgar procedente o presente recurso de Revista interposto pelo Autor MINISTÉRIO PÚBLICO, revogando-se, nessa medida, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e, em sua substituição, reconhecendo e declarando a relação firmada entre o estafeta AA e UBER EATS UNIPESSOAL, LDA como emergente de um contrato de trabalho subordinado, desde 10 de abril de 2023.


*


Custas da ação e do presente recurso a cargo da Ré - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 29 de outubro de 2025

José Eduardo Sapateiro [Juiz-Conselheiro Relator]

Domingos José de Morais [Juiz-Conselheiro Adjunto]

Júlio Gomes [Juiz-Conselheiro Adjunto]

_____________________________________________




1. «Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, (p. 412), sendo de desconsiderar “discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não [...]representam efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância.” (p. 413).» - NOTA DE RODAPÉ DO EXCERTO DAS CONCLUSÕES TRANCRITO, COM O NÚMERO [1]↩︎

2. «“Plataformas digitais e estafetas: a saga continua!”, in Observatório Almedina, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2024/10/21/plataformas-digitais-e-estafetas-a-saga-continua/» - NOTA DE RODAPÉ DAS CONCLUSÕES TRANSCRITAS, COM O NÚMERO 22.↩︎

3. «Disponível em:   https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fc52f7f5f8f2b96b8025862c0033c741?OpenDocument» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 1.↩︎

4. «Consultável em:   https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7afab0a573c132558025887f0038ccd9?OpenDocument» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 2.↩︎

5. «BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, Manual de Direito do Trabalho, 4.ª Ed., Lisboa, 2020, p. 308.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 1.↩︎

6. «Parecer do PROFESSOR MADEIRA DE BRITO, ponto 79, p. 48, junto com as Alegações.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 2.↩︎

7. «“a liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade económica (liberdade de criação de empresa, liberdade de investimento, liberdade de estabelecimento) e, por outro lado, na liberdade de organização, gestão e atividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade do empresário, liberdade empresarial)”, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, pág. 790» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 3.↩︎

8. «No texto citado na nota de rodapé 12.» -NOTA DE RODAPÉ DA FUNDAMENTAÇÃO TRANSCRITA, COM O NÚMERO 1.↩︎

9. Que estabelecia o seguinte: «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direção destas↩︎

10. Recaindo a elisão ou afastamento de aludida presunção, através da prova do contrário, sobre a entidade demandada como sendo a empregadora do demandante.↩︎

11. Cf., por todos, MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, TRATADO DE DIREITO DO TRABALHO – PARTE II – SITUAÇÕES LABORAIS INDIVIDUAIS, dezembro de 2012, 4.ª Edição, ALMEDINA, páginas 46 a 50 e JOÃO LEAL AMADO, O CONTRATO DE TRABALHO, janeiro de 2010, 2.ª Edição, WOLSTERS KLUWER PORTUGAL/COIMBRA EDITORA, Lda., páginas 74 a 82.↩︎

12. Dir-se-á que com uma cada vez maior discordância da nossa doutrina, que foi progressivamente defendido o oposto quanto à aplicação da presunção legal do artigo 12.º, que entendiam, pela sua própria natureza e finalidade, ser invocada retroativamente e aplicável a relações profissionais que haviam começado antes da sua vigência.↩︎

13. Ver os seguintes Arestos que vão no mesmo sentido:

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/9/2025, Processo n.º 29220/23.8T8LSB.L1.S1, relator: MÁRIO BELO MORGADO, tirado por unanimidade e publicado em www.dgsi.pt [Ponto III do Sumário]

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/9/2025, Processo n.º 31164/23.4T8LSB.L1.S1, relator: MÁRIO BELO MORGADO, tirado por unanimidade e publicado em www.dgsi.pt [Ponto III do Sumário]↩︎

14. «“Plataformas digitais e estafetas: a saga continua!”, in Observatório Almedina, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2024/10/21/plataformas-digitais-e-estafetas-a-saga-continua/» - NOTA DE RODAPÉ DAS CONCLUSÕES TRANSCRITAS, COM O NÚMERO 22.↩︎

15. Com o seguinte Sumário:

«I. O atual Código de Processo Civil consagra um modelo enformado pelos princípios da prevalência do fundo sobre a forma e do aproveitamento (sempre que possível) dos atos processuais, assistindo-se, pois, a uma tendência para a superação do formalismo e rigidez que tradicionalmente dominavam as abordagens desta problemática, com base na ideia de que não há uma exata separação entre a matéria de facto e a matéria de direito.

II. Não obstante, apesar de afastada a rigidez na seleção das questões de facto nos quesitos (em especial, nos atos processuais anteriores à decisão final), não pode o Juiz ignorar a demarcação técnica entre questões de facto e de direito, sendo de afastar − na sentença − expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial .

III. Relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art.º 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu n.º 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento.

IV. Traduzindo a presunção de laboralidade em apreço o empenhamento do legislador e das instituições da União Europeia em combater o falso trabalho independente em plataformas digitais e as inerentes relações laborais encobertas, bem como, conexamente, facilitar a determinação do real estatuto profissional das pessoas que trabalham nessas plataformas, não pode deixar de assumir-se que o legislador, ao exprimir o seu pensamento, consagrou as soluções mais consentâneas com as finalidades visadas no tocante às situações paradigmáticas em questão.

V. No caso vertente, estão verificados os índices da presunção de laboralidade previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, ou seja, um total de cinco elementos em seis possíveis.

VI. Os elementos que de forma mais nítida apontam no sentido de uma relação de trabalho autónomo são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais.

VII. Não tendo a ré logrado ilidir esta presunção de laboralidade, impõe-se concluir pela existência de um contrato de trabalho entre ela e o estafeta em causa.»↩︎

16. Com o seguinte Sumário:

«I. Relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art.º 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu n.º 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento.

II. Traduzindo a presunção de laboralidade em apreço o empenhamento do legislador e das instituições da União Europeia em combater o falso trabalho independente em plataformas digitais e as inerentes relações laborais encobertas, bem como, conexamente, facilitar a determinação do real estatuto profissional das pessoas que trabalham nessas plataformas, não pode deixar de assumir-se que o legislador, ao exprimir o seu pensamento, consagrou as soluções mais consentâneas com as finalidades visadas no tocante às situações paradigmáticas em questão.

III. No caso vertente, estão verificados os índices da presunção de laboralidade previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, ou seja, um total de cinco elementos em seis possíveis.

IV. Os elementos que de forma mais nítida apontam no sentido de uma relação de trabalho autónomo são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais.

V. Não tendo a ré logrado ilidir esta presunção de laboralidade, impõe-se concluir pela existência de um contrato de trabalho entre ela e o estafeta em causa.»↩︎

17. Com o seguinte Sumário:

«1. A presunção constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho aplica-se a relações contratuais anteriores à entrada em vigor da norma desde que as características relevantes ocorram após essa entrada em vigor.

2. A aplicação móvel é o principal instrumento de trabalho dos estafetas e é disponibilizada pela plataforma digital.

3. Verificando-se algumas das características do artigo 12.º-A, designadamente que o principal instrumento de trabalho pertence à plataforma e que esta estabelece os limites máximo e mínimo da retribuição presume-se a existência de contrato de trabalho.

4. Para ilidir a presunção exige-se que a plataforma prove que o estafeta não tem contrato de trabalho, trabalhando com efetiva autonomia.»↩︎

18. Ver, entre muitas outras obras nacionais e estrangeiras, acerca da crescente e multifacetada atividade de tais plataformas digitais, ainda que numa perspetiva não laboral, JOANA CAMPOS CARVALHO, “Os contratos celebrados através de plataformas digitais”, janeiro de 2025, edições ALMEDINA.

Cf., também e a título meramente exemplificativo, os seguintes estudos da nossa doutrina nacional sobre esta problemática e complexa temática das plataformas digitais e os reflexos ao nível do mundo do trabalho e que foram devidamente considerados no quadro do presente Aresto:

- JOÃO LEAL AMADO e CATARINA GOMES SANTOS,A UBER e os seus motoristas em Londres: mind de gap!”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146.º, número 4001, novembro a dezembro de 2016, páginas 111 a 127;

- JOÃO LEAL AMADO e TERESA COELHO MOREIRA, “A lei sobre o TDVE e o contrato de trabalho: sujeitos, relações e presunções”, PRONTUÁRIO DO DIREITO DO TRABALHO, Número/Tomo um, Ano de 2019, Centro de Estudos Judiciários/Almedina, páginas 81 a 111;

- LUÍS FELIPE MIRANDA RAMOS, “Os riscos invisíveis de discriminação na utilização de algoritmos no processo de contratação de pessoal”, in QUESTÕES LABORAIS, número 56, janeiro a junho de 2020, Almedina, páginas 203 a 217;

- RICARDO LOURENÇO DA SILVA, “Se caminha como um pato, nada como um pato e grasna como um pato, provavelmente é um pato!”, in QUESTÕES LABORAIS, número 57, julho a dezembro de 2020, Almedina, páginas 123 a 159;

- JOÃO LEAL AMADO e TERESA COELHO MOREIRA, “A GLOVO, os riders/estafetas e o Supremo Tribunal de Espanha : another brick in the wall?”, in PRONTUÁRIO DE DIREITO DO TRABALHO, Lisboa, n.º 2 (2.º Semestre 2020), páginas 121 a 151;

- BRUNO MESTRE, “As metamorfoses da subordinação jurídica: algumas reflexões”, in PRONTUÁRIO DE DIREITO DO TRABALHO, Lisboa, n.º 2 (2.º Semestre 2020), páginas 185 a 221;

- MILENA ROUXINOL, “O agente algoritmo - licença para discriminar? [um (segundo) a olhar sobre a seleção de candidatos a trabalhadores através de técnicas de inteligência artificial]”, in REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, número/tomo 1, primeiro semestre de 2021, CEJ/Almedina, páginas 235 a 268;

- JOÃO LEAL AMADO, “inteligência artificial, plataformas digitais e robotização: que futuro para o (direito do) trabalho humano?”, in REVISTA JULGAR, número 45, setembro a dezembro de 2021, ASJP/Almedina, páginas 87 a 106;

- JOÃO LEAL AMADO, “As plataformas digitais e o novo art.º 12.°-A do Código do Trabalho: Empreendendo ou Trabalhando?”, in LIVROS DIGITAIS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, XII Colóquio de Direito do Trabalho, Novembro de 2022, p. 112 a 130 e também na REVISTA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, número 3, janeiro a junho de 2023, páginas 83 a 103;

- ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES e LUÍSA TEIXEIRA ALVES, “Trabalho suportado em plataformas digitais : um ensaio de jurisprudência comparada”, in QUESTÕES LABORAIS, n.º 58 (janeiro-junho 2021), Almedina, páginas 7 a 44;

- TERESA COELHO MOREIRA, “A discriminação algorítmica” in QUESTÕES LABORAIS, n.º 58 (janeiro-junho 2021), Almedina, páginas 85 a 103;

- TERESA COELHO MOREIRA, “Direito do trabalho na era digital”, outubro de 2021, Almedina [Livro];

- JOÃO ZENHA MARTINS, “Trabalho e plataformas digitais: algumas notas”, in ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR DOUTOR MANUEL PITA, 1.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2022, páginas 389 a 401;

- ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, “Emprego na era digital: um novo conceito de trabalhador?”, Estudos APODIT, número 9, AAFDL EDITORA, março de 2022, páginas 239 a 246;

- MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, “Autonomia, subordinação jurídica e dependência económica no trabalho em plataformas digitais (breves reflexões)”, in trabalho na era digital: que direito?”, Estudos APODIT, número 9, AAFDL EDITORA, março de 2022, páginas 307 a 323;

- Obra coletiva “Trabalho na era digital: que direito?”, coordenação de MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, CATARINA CARVALHO e JOANA NUNES VICENTE, Estudos APODIT, número 9, Fundação Calouste Gulbenkian/AAFDL EDITORA, março de 2022 [livro, com outros textos de interesse];

- PEDRO SANTOS, “Qualificação contratual: o “estafeta” e a plataforma digital”, in PRONTUÁRIO DE DIREITO DO TRABALHO n.º/tomo II - 2023 (2.º Sem.) – CEJ, páginas 235 a 276;

- MARIA REGINA REDINHA, “Trabalho economicamente dependente: the soft labour approach”, in QUESTÕES LABORAIS, número 63, julho a dezembro de 2023, Almedina, páginas 7 a 16;

- TERESA COELHO MOREIRA, “Luzes e sombras: algumas questões sobre a presunção de contrato de trabalho no âmbito da plataforma digital”, in QUESTÕES LABORAIS, número 63, julho a dezembro de 2023, Almedina, páginas 17 a 35;

- JOSÉ JOÃO ABRANTES e ISABEL VALENTE DIAS, “Regulação do uso do algoritmo nas relações laborais”, in QUESTÕES LABORAIS, número 63, julho a dezembro de 2023, Almedina, páginas 37 a 50;

- CAROLINA DE FREITAS E SILVA, “A máquina como recrutador, empregador e colega de trabalho: alguns aspetos jurídicos de contratar, gerir e lidar com pessoas na era digital”, in QUESTÕES LABORAIS, número 64, janeiro a junho de 2024, Almedina, páginas 47 a 84;

- MONIQUE DE SOUZA ARRUDA, “Algoritmos de recomendação nas plataformas digitais de trabalho: implicações e propostas de ação para um trabalho digno”, in QUESTÕES LABORAIS, número 64, janeiro a junho de 2024, Almedina, páginas 85 a 114;

- MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “O problema da qualificação jurídica do trabalho em plataformas digitais”, in REVISTA DE DIREITO E DE ESTUDOS SOCIAIS, ano LXV, números 1 e 2, janeiro a junho de 2024, almedina páginas 97 a 131;

- CRISTINA MARTINS DA CRUZ, “Os 10 anos da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (2013-2023)”, in REVISTA JULGAR, número 53, maio a setembro de 2024, ASJP/Almedina, páginas 25 a 63;

- JOÃO LEAL AMADO e TERESA COELHO MOREIRA, “Plataformas digitais, qualificação do contrato e substituição de estafetas: a “bala de prata”?”, in REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITO DO TRABALHO, ano IV, junho 2024, n.º 6, páginas 135 a 164;

- TERESA COELHO MOREIRA, “Plataformas digitais e trabalho: a lei, os tribunais e a diretiva no Reino do algoritmo”, in REVISTA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, número 6, julho a dezembro de 2024, páginas 167 a 200;

- VIRIATO REIS, “A ARECT e a presunção do artigo 12.º-A do Código do Trabalho”, XII Colóquio do Supremo Tribunal de Justiça, realizado no dia 28 de novembro de 2024 e que irá ser publicado nos livros digitais do Supremo Tribunal de Justiça;

- DAVID FALCÃO, “A «obsolescência programada» do Direito do Trabalho: Plataformas digitais, algoritmos e sistemas de inteligência artificial”, RED, REVISTA ELETRÓNICA DE DIREITO, número 2, Volume 37, junho de 2025, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, páginas 74 a 93.↩︎

19. No que concerne à aplicação da figura dos contratos de adesão no âmbito do direito do trabalho, veja-se o artigo 104.º do Código de Trabalho de 2009.

Sobre o regime jurídico dos contratos de adesão no quadro do direito nacional cf., a título de exemplo, o estudo feito por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, intitulado de «O novo regime jurídico dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais», que pode ser lido em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2002/ano-62-vol-i-jan-2002/artigos-doutrinais/antonio-pinto-monteiro-o-novo-regime-juridico-dos-contratos-de-adesao-clausulas-contratuais-gerais/ [consultado no dia 21/10/2025].↩︎

20. O Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 e alterado pelos Decretos-Lei n.º 220/95, de 31/08, n.º 249/99, de 07/07 e n.º 323/2001, de 17/12, Lei n.º 32/2021, de 27/05, Decretos-Lei n.º 108/2021, de 7/12 e n.º 109-G/2021, de 10/12, Lei n.º 10/2023, de 3/3 e Decreto-Lei n.º 123/2023, de 26/12.

Importa referir, nesta matéria, o que o artigo 105.º do Código de Trabalho de 2009 estatui: «O regime das cláusulas contratuais gerais aplica-se aos aspetos essenciais do contrato de trabalho que não resultem de prévia negociação específica, mesmo na parte em que o seu conteúdo se determine por remissão para instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.»↩︎

21. Não se reconduzindo, nessa medida, a meras intermediárias passivas, configuráveis como prestando meros »serviços da sociedade de informação», para efeitos de aplicação do artigo 3.º da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8/6/2000, mas antes como executando serviços no domínio dos transportes, conforme decidido pelos Acórdãos do TJUE de 20/12/2017 [UBER SPAIN] e de 10/4/2018 [UBER FRANCE].↩︎

22. O que se deixou dito significa, numa palavra, que este Supremo Tribunal de Justiça concebe que os vínculos de cariz profissional ou outro que se estabeleçam entre a UBER e os estafetas possam ter ou não uma natureza laboral, dependendo tal qualificação jurídica dos factos alegados e provados, do seu cruzamento casuístico com as normas legais aplicáveis [artigos 10.º, 12.º ou 12.º-A do CT/2009] e da eventual aplicação do método indiciário, caso haja tal necessidade [ao nível da qualificação jurídica da relação em causa] sem olvidar, finalmente, a elisão através da prova do contrário das ditas presunções ou das conclusões derivadas de tal método indiciário.↩︎

23. Embora o Ponto 33. dos Factos Provados não vá, aparentemente, nesse sentido, mas antes no da liberdade de percurso e de tempo de entrega por parte do Estafeta.↩︎

24. Não será despiciendo relembrar aqui a noção de contrato de trabalho que consta do artigo 11.º do Código do Trabalho de 2009: «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.»↩︎