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ACUSAÇÃO
NARRAÇÃO DE FACTOS NO TEMPO
CONTRADITÓRIO
TIPICIDADE
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE INJÚRIA
Sumário
1. Atentas as particularidades do crime de violência doméstica, quando praticado no modo reiterado, ainda que as imputações não se mostrem descritas por referência a datas pontuais, desde que tal materialidade se mostre balizada por períodos de tempo e/ou circunstâncias de modo e lugar, será de considerar suficientemente concretizada para o exercício do contraditório. 2. Quando o contexto global dos factos apurados (assentes na especial relação entre agressor e vítima e praticados, na sua maior parte, na residência familiar) transmite um padrão de comportamento, prolongado no tempo, e uma imagem global gravosa de violência, humilhação e apoucamento da vítima, é de concluir que o quadro especialmente desvalioso não é suficientemente protegido pela punição do crime de injúria.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO
1. No processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, nº 242/22.8PBCHV a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo Local Criminal de Chaves, foi proferida, em 10.05.2025, sentença, na qual decide-se: “a) Absolver o arguido AA, da prática em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal. b) Condenar o arguido AA pela prática em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º CP, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 7,00; c) Julgar o pedido civil parcialmente procedente por parcialmente provado e em consequência condenar-se o arguido/demandado a pagar à demandante a quantia de € 1.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados da presente decisão até integral pagamento, absolvendo-se o arguido do demais peticionado. (…)”.
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Inconformada, a assistente BB interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
“A- Houve um claro erro na apreciação da prova na sentença recorrida, porquanto a prova produzida leva indubitavelmente a concluir que os factos dados como não provados sob as als. a), c), k) e o) sob a epígrafe de “factos não provados” todos eles devem ser dados como provados, concretamente que: - Desde o início do relacionamento o arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de “filha da puta”, “porca”, “cabra”, dizendo que “não valia nada” - al. a); - o arguido tratava a ofendida de forma agressiva, e controlava a sua vivência -al. c); - O arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento que manteve com a vítima, no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos, molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação, bem sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, com propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu -al. k); - Em consequência de todas as referidas agressões, físicas e psicológicas, a ofendida sentiu-se aterrorizada, com muito receio, insegura, ansiosa, com medo que pudesse cumprir as ameaças -al. o) Do depoimento das testemunhas: - CC, ex-namorada do filho do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:04:45 a 00:05:27; 00:05:40; 00:06:00 a 00:06:38; 00:07:15; e 00:07:40. - DD, passagem da gravação do seu depoimento de 00:01:50 a 00:02:49; 00:04:18 a 00:04:31; 00:04:45 a 00:04:59; 00:06:06 a 00:06:37; e 00:06:50 a 00:07:03 - EE, filho do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:01:40 a 00:02:50; 00:02:50 a 00:03:19; 00:03:25 a 00:04:03; 00:04:17 a 00:04:53; 00:05:31 a 00:06:08; 00:16:25 a 00:17:05; 00:19:00 a 00:19:23; 00:21:11 a 00:22:25; 00:25:50 a 00:26:00; e 00:27:30 a 00:28:15 - FF, também filha do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:01:40 a 00:2:00; 00:02:20 a 00:02:33; 00:03:14 a 00:03:40; 00:04:12 a 00:04:38; 00:04:50 a 00:05:25; 00:06:20 a 00:06:40; 00:07:22 a 00:07:36; 00:14:10 a 00:15:10; e 00:10:40 a 00:11:18 - GG, igualmente filha do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:01:40 a 00:01:57; 00:02:00 a 00:02:17; 00:02:27 a 00:02:35; 00:03:44 a 00:04:22; 00:04:28 a 00:04:50; a 00:06:08; 00:07:05 a 00:07:32; a 00:07:58; 00:15:34 a 00:15:45; a 00:17:15; e 00:21:10 a 00:21:38 depoimentos gravados nos termos e tempos referidos, decorre claramente a existência e veracidade da matéria de facto vertida sob as aludidas alíneas. B- Igualmente devem ser dados como provados os factos vertidos sob a al. b) da epígrafe de “factos não provados”, concretamente que: - o arguido não deixava que a ofendida da tivesse vida laboral ativa -al. b). Do depoimento das testemunhas, filhos do casal EE, passagem da gravação do seu depoimento de 00:09:20 a 00:09:48, e GG, passagem da gravação do seu depoimento de 00:05:02 a 00:06:00 decorre que esses factos ocorreram efectivamente, tendo a ofendida que abandonar a ocupação que vinha desenvolvendo. C- Do mesmo modo devem ser dados como provados os factos vertidos sob a al. d) da epígrafe de “factos não provados”, concretamente que: - o arguido deixava gravadores escondidos, na sala, na cozinha e na casa de banho para saber o que a ofendida fazia durante o dia, com quem falava e o que dizia -al. d). Do depoimento das testemunhas EE, passagem da gravação do seu depoimento de 00:01:40 a 00:02:50 e de 00:06:40 a 00:07:15, e GG, passagem da gravação do seu depoimento de 00:08:00 a 00:08:58, bem como das declarações do próprio arguido, passagem da gravação do seu depoimento de 00:00:40 a 00:01:49, é possível dar como provada a factualidade vertida sob essa al. d) constante dos factos dados como não provados. D- Foi ainda dado como não provado que: - o arguido, frequentemente, com uma periodicidade pelo menos trimestral, desligava o quadro elétrico para a ofendida não conseguir fazer os seus afazeres ou ver televisão, cortava o acesso à internet para que esta não a utilizasse, escondia-lhe o carregador de telemóvel e os óculos para que esta os procurasse -al. e) Porém, do depoimento da testemunha EE, filho do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:09:55 a 00:11:08; 00:11:50; e 00:12:08 a 00:13:25; Bem como do depoimento de FF, também filha do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:10:40 a 00:11:18; 00:11:35 a 00:12:00; Assim como do depoimento da outra filha do casal, GG, passagem da gravação do seu depoimento de 00:13:10 a 00:13:27; 00:13:54 a 00:14:00; 00:14:55 a 00:15:22 resulta demonstrada a realidade vertida nessa al. e), pelo que devem ser dados como provados os factos aí vertidos. E- Devem ainda ser dados como provados os factos constantes da al. h) da epígrafe de “factos não provados”, concretamente que: - Frequentemente, com periodicidade semanal, o arguido escondia a roupa íntima da ofendida e várias vezes metia a sua roupa no lixo ou na sanita -al. h) Do depoimento da testemunha EE, filho do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:17:38 a 00:17:57, bem como do depoimento de FF, também filha do casal, passagem da gravação do seu depoimento de 00:12:25 a 00:12:47 e 00:12:49 a 00:13:10, e ainda do depoimento da outra filha do casal GG, passagem da gravação do seu depoimento de 00.10.34 a 00.11.05 resulta demonstrada a realidade vertida nessa al. h). F- Se é verdade que, neste tipo de crimes, por ocorrerem normalmente longe de quaisquer olhares estranhos ao casal, geralmente dentro da habitação conjugal, a prova é difícil de obter, na situação concreta foi produzida prova bastante, prova directamente percepcionada pelas testemunhas, que permitem indubitavelmente dar como provados os factos vertidos sob as als. a), b), c), d), e), h), k) e o). G- Ao dar como não provados tais factos, a douta sentença recorrida incorreu claramente em erro notório na apreciação da prova, vício previsto na al. c) do art. 410º C.Pr.Penal, já que é evidente, não escapando a um observador médio, que esses factos estão cabalmente demonstrados pela globalidade da prova produzida em audiência de julgamento. H- E esses factos, juntamente com os dados como assentes na sentença, consubstanciam o tipo de ilícito pelo qual o arguido foi submetido a julgamento, porquanto com o ilícito de violência doméstica pretende-se assegurar, como sentenciado no ac. RP, in processo nº 170/10.0GAVLC.P, uma tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. Para além disso, e I- Mesmo na hipótese de não merecer acolhimento a alteração da matéria de facto nos termos expostos, e tomando apenas como base factual aquela que foi dada como assente na sentença recorrida, mesmo assim entende-se que ela consubstancia o crime de violência doméstica imputado ao arguido na acusação. Na verdade, J- Mediante acusação do MP, a que a assistente aderiu, foi o arguido submetido a julgamento como autor da prática de um crime de violência doméstica agravado da previsão dos arts. 152º, nº 1, al. a), 2, al. a), 4 e 5, todos do C. Penal, vindo a ser absolvido desse crime, mas acabando por ser condenado como autor de um crime de injúrias da previsão do art. 181º C. Penal, na pena de 90 dias de multa. K- Com o art. 152º, que prevê e pune o crime de violência doméstica, teve o legislador em vista prevenir e punir as formas de violência no âmbito da família, protegendo-se a pessoa individual e a sua dignidade humana nas relações conjugais, porquanto é suposto que no seio familiar reine um clima de confiança, solidariedade e respeito característico deste tipo de relações. L- Este tipo de crime exige, como elemento objetivo a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos cometidos dentro de determinadas relações familiares ou análogas, não se exigindo a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral de forma reiterada ou não, podendo assim verificar-se com uma única conduta, mas desde que a sua gravidade intrínseca permita o enquadramento na figura dos maus-tratos e quanto ao elemento subjetivo de ilícito, exige-se o dolo, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual). M- Os maus tratos psíquicos podem revestir as mais variadas formas comportamentais, seja por acção ou omissão, dirigidos directa ou indirectamente à vítima e que atinjam e prejudiquem o seu bem-estar psicológico, e que se podem concretizar em ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desmoralizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, ignorar e exercer chantagem emocional. Como expressiva e acertadamente se decidiu no ac. RG, proferido no processo nº 591/11.0PBGMR, Decisivo para que tais comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos psíquicos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é querevistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar «a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar”. N- Ora, de toda a factualidade dada como provada na sentença recorrida, concretamente os factos vertidos sob os arts. 4 a 16, decorre exaustivamente que o arguido controlava os mais pequenos passos que a assistente dava, inclusive nas caminhadas com as amigas, bem como nas horas de chegada a casa; com frequência semanal desdenhava da comida por ela confecionada, arremessando o seu (do arguido) prato pela mesa e ia fazer as refeições no restaurante; regressada a casa, após a festa de anos de uma filha de ambos, discutiu com a assistente e ameaçou-a de lhe enfiar uma mangueira pela gola caso voltasse a chegar tarde a casa; pisou o telemóvel que ela segurava quando caiu ao chão após lho ter tentado tirar e seguidamente agarrou-a pelos ombros e abanou-a; mais uma vez, próximo do Natal de 2022, tentou tirar o telemóvel à assistente, apelidando-a seguidamente de estúpida, burra, vaca e cabra. O- Estes factos são demonstrativos de que a assistente, ao ser ofendida na sua integridade física, foi vítima de maus-tratos físicos, e ao ser humilhada, provocada, criticada, vigiada nos seus movimentos diários, foi vítima de maus-tratos psíquicos, o que tudo afectou a sua saúde física, psíquica e emocional, diminuindo a sua dignidade enquanto pessoa, esposa e mãe. P- E o arguido, ao agir pelo modo descrito, actuou com dolo, agindo livre, deliberada e conscientemente, com o intuito conseguido de inquietar, perturbar, incomodar, humilhar, ofender a honra e a consideração da assistente provocar medo nesta, nomeadamente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punível por lei. Q- E o comportamento do arguido, além de reiterado e protelado ao longo do tempo, assume uma enorme gravidade que justifica indubitavelmente a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar, como decidido no supra aludido ac. RG, in proc. nº 591/11.0PBGMR. R- Daí que, com a descrita conduta, o arguido tenha efectivamente incorrido na prática de um crime de violência doméstica da previsão do art. 152º, nºs. 1, al. a), 2, al. a), 4 e 5 C. Penal e, como tal, deva ser sancionado em pena adequada à culpa com que actuou e às exigências de prevenção, geral e especial. S- Sancionado não só na pena adequada à gravidade dos actos praticados, bem como ao ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pela assistente, danos cuja gravidade merece a tutela do direito, sendo, por isso, nos termos do disposto no artigo 496º, nº 1, do Código Civil, indemnizáveis, e no montante peticionado, para minorar de algum modo e compensar o sofrimento psicológico em que tais danos se traduzem. T- Pelo que, ao decidir como decidiu, incorreu a sentença recorrida em incorrecta interpretação e aplicação do disposto no art. 152º, nºs. 1, al. a), 2, al. a), 4 e 5 C. Penal”.
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
“1. O presente Recurso circunscreve-se às seguintes alegações: 1- Impugnação da matéria de facto relativa à absolvição do arguido AA pela prática em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal; 2- Face à matéria de facto dada como provada impunha-se a condenação do arguido AA pela prática em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea b), n.º 4 e 5 do Código Penal. 3- Da pena em que o arguido AA deve ser condenado pela prática, em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal. 2. No tocante à impugnação da matéria de facto relativa à absolvição do arguido AA pela prática em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal, o que se contesta, em concreto e, por isso, se impugna, é o facto de o Tribunal ter dado como não provado: - “Desde o início do relacionamento arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de «filha da puta», «porca», «cabra», dizendo que «não valia nada»” [ponto a) dos “Factos Não Provados”]; - “O arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento que manteve com a vítima, no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos, molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação, bem sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, com propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu” [ponto k) dos “Factos Não Provados”]; - “Não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente entre ambos, o arguido não se coibiu de agir como agiu” [ponto l) dos “Factos Não Provados”]. 3. Relativamente ao ponto a) dos factos não provados a falta do artigo definido “o” antes do “arguido” trata-se de um lapso de escrita, sendo a redação correta: “Desde o início do relacionamento o arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de «filha da puta», «porca», «cabra», dizendo que «não valia nada»”. 4. A título prévio o Tribunal considerou que os factos constantes do ponto a) dos factos não provados tratam-se de imputações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, não constando das mesmas qualquer contextualização de tempo, lugar ou modo, ou qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido. 5. Ora, entendemos que se tratou de um erro de julgamento. De facto, a factualidade descrita no ponto a) dos factos não provados encontra-se concretizada no tempo. De facto, é referido “Desde o início do relacionamento o arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de «filha da puta», «porca», «cabra», dizendo que «não valia nada»” (negrito nosso). Tais imputações perduradas no tempo mostram-se balizadas no tempo pelo que consideramos esclarecida e suficientemente concretizadas para o exercício do contraditório, não se verificando a violação do disposto no artigo 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal, nem tampouco do consignado no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. 6. Assim, não vemos como o direito do contraditório por parte do arguido ficou precludido. Veja-se que o próprio arguido negou ter insultado a ofendida nos termos descritos na acusação. 7. Acresce que a factualidade descrita no ponto a) dos factos não provados, também, encontra-se concretizada no espaço. De facto, a factualidade da alínea a) dos “Factos Não Provados” (que era o ponto 4 da acusação) tem de ser conjugada com a factualidade da alínea k) dos “Factos Não Provados” (que era o ponto 23 da acusação). Assim, no despacho de acusação foi imputado ao arguido que, desde o início do relacionamento, nomeadamente 7 de agosto de 2005 até 9 de fevereiro de 2023, no interior da habitação que partilhava com a ofendida, o arguido insultava a ofendida diariamente de «filha da puta», «porca», «cabra», dizendo que «não valia nada». 8. São as seguintes, as concretas provas que, em nosso entender, impõem decisão diversa da recorrida relativamente aos pontos a), k) e l) dos “Factos Não Provados” (cfr. artº 412º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal): I. – O depoimento da testemunha EE; II - O depoimento da testemunha FF; III - O depoimento da testemunha GG; IV – Assentos de nascimento de EE, de FF e de GG; V - Declarações para memória futura, prestadas pela ofendida BB. 9. Prova nº 1: Os trechos do depoimento da testemunha EE que, no entender do Ministério Público, impõe decisão diversa da recorrida relativamente aos pontos a), k) e l) dos “Factos Não Provados” são os seguintes: -Trecho com início/rotação aos 00M:26S, com termo/rotação aos 0M:36S; - Trecho com início/rotação aos 00M:48S, com termo/rotação aos 0M:57S; - Trecho com início/rotação aos 1M:25S, com termo/rotação aos 5M:24S; - Trecho com início/rotação aos 14M:21S, com termo/rotação aos 15M:15S; - Trecho com início/rotação aos 21M:27S, com termo/rotação aos 21M:57S. 10. Pela análise do depoimento da testemunha EE, filho do arguido AA e da ofendida BB, conclui-se que o arguido durante o relacionamento com a ofendida, com uma frequência diária, no interior da residência de ambos sita na rua ..., Chaves, insultava a ofendida de “filha da puta”, “porca”, “que não valia nada” e que a ofendida face a tais insultos sentia-se triste. 11. Prova nº 2: Os trechos do depoimento da testemunha FF que, no entender do Ministério Público, impõe decisão diversa da recorrida relativamente aos pontos a), k) e l) dos “Factos Não Provados” são os seguintes: - Trecho com início/rotação aos 0M:37S, com termo/rotação aos 0M:41S; - Trecho com início/rotação aos 0M:57S, com termo/rotação aos 1M:01S; - Trecho com início/rotação aos 1M:28S, com termo/rotação aos 2M:55S; - Trecho com início/rotação aos 4M:07S, com termo/rotação aos 6M:40S; 12. Pela análise do depoimento da testemunha FF, filha do arguido AA e da ofendida BB, conclui-se que o arguido, com uma frequência diária, insultava a ofendida de “puta”, “filha da puta”, “cabra”, “burra” e a ofendida em virtude de tais insultos sentia-se triste e chorava com frequência no quarto da habitação do arguido e da ofendida. 13. Prova nº 3: Os trechos do depoimento da testemunha GG que, no entender do Ministério Público, impõe decisão diversa da recorrida relativamente aos pontos a), k) e l) dos “Factos Não Provados” são os seguintes: - Trecho com início/rotação aos 0M:50S, com termo/rotação aos 0M:56S; - Trecho com início/rotação aos 1M:07S, com termo/rotação aos 1M:11S; - Trecho com início/rotação aos 1M:32S, com termo/rotação aos 3M:21S; - Trecho com início/rotação aos 17M:08S, com termo/rotação aos 17M:47S. 14. Pela análise do depoimento da testemunha GG, filha do arguido AA e da ofendida BB, conclui-se que o arguido, durante o relacionamento com a ofendida, com uma frequência diária, insultava a ofendida de “puta”, “vaca”, “estúpida”, “analfabeta”, “porca”, “cabra” e que a ofendida face a tais insultos sentia-se triste e chorava frequentemente. 15. Prova nº 4: Pela análise dos assentos de nascimento de EE, de FF e de GG constantes, respetivamente, de fls. 293 (verso) e 294, de fls. 295 e de fls. 292, constata-se que: - A testemunha EE nasceu em ../../2001 e é filho do arguido AA e da ofendida BB; - A testemunha FF nasceu em ../../2004 e é filha do arguido AA e da ofendida BB; - A testemunha GG nasceu em ../../2004 e é filha do arguido AA e da ofendida BB; 16. Prova nº 5: Os trechos das declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB que, no entender do Ministério Público, impõe decisão diversa da recorrida relativamente aos pontos a), k) e l) dos “Factos Não Provados” são os seguintes: - Trecho com início/rotação aos 00M:33S, com termo/rotação aos 0M:40S; - Trecho com início/rotação aos 2M:05S, com termo/rotação aos 4M:19S. 17. Pela análise do depoimento da ofendida BB, conclui-se que o arguido, com uma frequência diária, insultava a ofendida de “puta”, “vaca”, “andas aqui por ver os outros”, “vai dormir com as ovelhas”. 18. A conjugação das provas referidas impunham ao Tribunal que tivesse dado como provado a factualidade constante dos pontos a), k) e l) dos “Factos Não Provados”. 19. Relativamente, ainda, à factualidade constante dos pontos k) e l) dos “Factos Não Provados” a prova da mesma decorre da prova indiciária. Com efeito, sendo o dolo um elemento da vida interior do agente, por isso que impossível de apreender diretamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. No caso, atenta a conduta do arguido, com um significado evidente, mais do que a probabilidade séria daquele elemento subjetivo há certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que evidencia a vontade da prática dos factos. 20. Assim, impunha-se a condenação do arguido AA pela prática em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal. 21. O arguido foi acusado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº al. b) do Código Penal, todavia, tratou-se de um lapso de escrita sendo o tipo legal correto o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 al. a) e c) do Código Penal atendendo a que o arguido e a ofendida no período compreendido entre o dia 7 de agosto de 2005 e o dia 27 de novembro de 2023 foram casados um com o outro e tem filhos em comum, nomeadamente EE, FF e GG, FF. 22. Relativamente à segunda alegação, os factos constantes da matéria de facto dada como provada - nomeadamente os factos constantes pontos 1º a 16º dos factos provados - preenchem os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal. 23. Cremos que da análise da matéria de facto dada como provada resulta que a conduta do arguido representou uma humilhação para a ofendida BB que não é suficientemente protegido pelo crime de injúria e acarretou para a saúde psíquica e emocional da ofendida danos suficientemente graves, incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. Sempre se dirá que mesmo que se entenda que da matéria de facto provada não constam os elementos subjetivos do crime de violência doméstica agravado os mesmos resultam provados com recurso à prova indiciária como referimos supra. 24. No que se refere à terceira alegação, atendendo às elevadas exigências de prevenção geral do crime de violência doméstica, ao grau elevado da culpa do arguido, à gravidade da ilicitude da conduta do arguido em virtude da reiteração dos insultos diários, e a sua dilação temporal, à falta de arrependimento do arguido, às óbvias sequelas nefastas para saúde mental da ofendida e à ausência de antecedentes criminais do arguido, o arguido AA deve ser condenado pela prática, em autoria material, e sob a forma consumada de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a), e c) n.º 2, alínea b), n.º 4 e 5 do Código Penal na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução. 25. A suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido deve ser condenado, deve ser subordinada a regime de prova, bem como à frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, dinamizado pela DGRSP, o qual deverá ser útil a promover a interiorização pelo arguido do desvalor da sua conduta, a prevenção da reincidência, e a aquisição de competências pessoais e sociais que lhe permitam adotar um padrão comportamental de reação ajustada. 26. Entendemos que o Tribunal devia ter fixado em €5.000.00 (cinco mil euros) acrescido de juros à taxa legal desde a prática do crime o quantum indemnizatório por danos não patrimoniais devido pelo demandado/arguido à ofendida/demandante. 27. Incorreu o Tribunal a quo na violação dos artigos 26.º, e 152.º, nºs 1 e 2 ambos do Código Penal e 127.º do Código de Processo Penal”.
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Os recursos foram admitidos para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho datado de 17.06.2025, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O arguido AA apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões: “I) O Tribunal a quo motivou e justificou a douta sentença proferida, explicando as razões de facto e de direito que levaram à prolação da mesma naquele sentido, ou seja, o Tribunal expôs os fundamentos que o levaram a decidir de determinada maneira, seja em relação à matéria de facto (os acontecimentos) ou de direito (a aplicação das leis), de forma lógica e coerente, sem contradições e apresentando um raciocínio claro e compreensível. II) Relativamente aos depoimentos dos filhos do dissolvido casal, o Tribunal observou e, a nosso ver, muito bem que ficou por perceber, em termos objetivos, de onde surge tamanho desapego e afastamento do pai, o que necessariamente minou a credibilidade dos mesmos. III) Compulsada a matéria vertida na acusação constata-se e constatou o Tribunal que não estamos perante uma verdadeira imputação de factos, suscetíveis de sustentar uma condenação penal, mas sim perante meras imputações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, não constando das mesmas qualquer contextualização de tempo, lugar ou modo, ou qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido, ou o seu grau de participação ou as datas concretas do seu cometimento, quando é certo que a relação entre ambos perdurou, pelo menos, 18 anos. IV) Vincou com assertividade o Tribunal que as imputações genéricas não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e impedirem o exercício do direito de defesa, constitucionalmente consagrado, designadamente no artigo 32.º da CRP. V) Considerou-se na douta sentença recorrida, portanto, que as imputações genéricas, para que possam assumir relevância jurídico penal, para efeitos de condenação criminal, carecem de ser concretizadas em factos, sendo irrelevantes ou inócuas as imputações que não encontram no texto respetivo aquele limiar indispensável de concretização, pelo que, das duas uma, ou essa concretização é feita ou não podem essas imputações ser consideradas na decisão condenatória. VI) Conforme eloquentemente se verteu no aresto que motivou, a nosso ver injustificadamente, os recursos, existem situações em que a reiteração das condutas criminosas ao longo de anos é de tal forma persistente que se revelará quase como uma prática habitual, não permitindo concretizar, com o mínimo de precisão, a localização temporal dessas condutas. VII) Contudo, sendo essa a situação, tem de haver a especificação dos concretos atos praticados pelo arguido e a contextualização de alguns deles, para que seja possível à defesa o pleno exercício do contraditório, o qual só pode ser plenamente assegurado se o arguido souber quais os factos concretos de que é acusado para que deles se possa defender. VIII) Com efeito, no âmbito do direito penal, atenta a sua natureza acusatória e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime, impõem-se particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos atos imputados, de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender e daí que a própria norma processual impõe a narração dos factos imputados e, sendo possível, “o lugar, o tempo e a motivação da sua prática…” - artº 283º 1b) do CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do dto de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência do crime. IX) Consignou o Tribunal a quo assertivamente que o crime de violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que, no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroativamente, o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de “regime”. Nem tão pouco é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial. X) Transpôs o Tribunal a quo este entendimento para o caso dos autos e analisou a factualidade que se levou à matéria julgada não provada, comprovando que, embora os episódios estejam localizados temporalmente - por referência ao período em que o arguido e a ofendida estiveram casados – entre 07 de Agosto de 2005 e 27 de novembro de 2023 - as imputações continuam a ser vagas, não só quanto à concreta atuação daquele, mas também quanto à sua motivação, contexto, grau de participação, consequências que daí advieram para a integridade física e/ou psíquica da ofendida ou quanto ao dia e local onde as mesmas tiveram lugar. XI) Portanto, perante um tipo legal com a estrutura do crime que vem imputado, a aceitação da imputação de factos genéricos, desta natureza, sem qualquer concretização, significaria, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2018, processo 204/10.8GASRE.C1, www.dgsi.pt, a multiplicação da imputação deste tipo legal uma vez que bastaria ao seu preenchimento cobrir toda uma vida em comum com a nuvem da violência, bastando para tanto dizer que o agente desde sempre/desde o casamento (…). XII) O resultado é que seria muito mais fácil acusar e condenar pelo crime de violência doméstica – por dispensar qualquer esforço de concretização e localização –, do que pelos crimes em que o mesmo se decompõe, menos graves do que aquele. XIII) E daqui resultaria a tentação de enquadrar todas as agressões físicas e verbais perpetradas num determinado contexto no tipo da violência doméstica. Ou seja, aquela norma não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos. XIV) Sendo certo que a vítima tem direito à tutela penal, o arguido tem direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos que fundamentam a condenação. Vale isto por dizer que, neste tipo de crimes, onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo, a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, por conseguinte, o cerne do direito de defesa. XV) E assim se a alegação factual – em qualquer imputação penal – não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal. XVI) Em resumo, na decorrência do que antecede, vincou o Tribunal de julgamento, para efeitos de responsabilização criminal, os factos que se levaram à matéria não provada, deveriam, até, considerar-se como não escritos. XVII) Compulsando a factualidade que se julgou provada – factos provados 6) a 11) - e ainda que tenha sido considerada reveladora de desrespeito e falta de consideração para com a ofendida, a sua gravidade não atinge intensidade bastante para poder ser qualificada como «maus tratos físicos ou psíquicos», nos termos que se deixaram consignados na douta sentença recorrida. XVIII) Dito de outro modo, os episódios de vida em apreciação são, tão só, reveladores de um quadro de relacionamento deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo, mas num contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestava, não espelhando, por isso, uma situação de maus tratos exigidos para o tipo legal de crime. XIX) Desde logo porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos. XX) Notou o Tribunal que o crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que ações suscetíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. XXI) Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5-7-2016, processo 662/13.9GDMFR). XXII) Mas dos factos concretamente apurados não se extrai nem extraiu o Tribunal essa configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. XXIII) Assim sendo, ficou, desde logo, afastado o preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, impondo-se, em consequência, a absolvição do arguido da referida imputação criminal. XXIV) Não obstante, o Tribunal considerou que as condutas descritas não se têm necessariamente por irrelevantes e que os factos descritos poderiam em abstrato configurar a prática pelo arguido de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º CPC, um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º e de um crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º CP. XXV) Cotejando a factualidade provada, considerou o Tribunal a quo que o arguido havia cometido na pessoa da ofendida um crime de injúria e que este, não obstante a falta de acusação particular, a prescrição do direito de queixa e a circunstância de a ofendida, no inquérito, não se ter oposto à suspensão provisória do processo, o que poderia ser entendido como, no que ao crime de natureza particular (injúria) respeita, uma desistência de queixa com subsequente extinção do procedimento criminal, deveria ser objeto de punição. XXVI) Hesitámos, inicialmente, quanto à decisão de recorrer a título principal quanto a esta condenação. Hesitámos, posteriormente, quanto à possibilidade de recorrer subordinadamente. Tamanha e persistente hesitação redundou no acatamento da condenação e no respeito pela douta sentença no seu todo”.
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Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que “os recursos interpostos pela assistente e pelo do Ministério Público deverão obter provimento”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJETO DOS RECURSOS
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o art. 410º do C.P.Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ nº 7/95, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (art. 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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As questões suscitadas são analisadas pela ordem de precedência lógica indicada nos art 368º e 369º do C.P.Penal, por remissão do art. 424º, nº 2 do C.P.Penal.
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, por ordem de precedência lógica, cumpre apreciar:
1. Relativamente ao recurso interposto pela recorrente BB:
a) Erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410º, nº 2, al. c) do C.P.Penal;
b) Erro de julgamento quanto aos pontos a), b), c), d), e), h), k) e o) da matéria de facto dada como não provada;
c) Qualificação jurídica (caso proceda tal alegação, se os factos que deverão ser tidos por provados deverão subsumir-se ao crime de violência doméstica pelo qual o arguido se encontrava acusado ou, ainda que tal alegação não proceda, se os factos considerados provados se enquadram no crime de violência doméstica);
d) Medida da Pena;
e) indemnização por danos não patrimoniais (se a indemnização civil por danos não patrimoniais que o arguido/demandado foi condenado a pagar à assistente/demandante deve ser elevada).
2. Relativamente ao recurso interposto pelo recorrente Ministério Público:
a) Erro de julgamento quanto aos pontos a), k) e l) da matéria de facto dada como não provada;
b) Qualificação jurídica (caso proceda tal alegação, se os factos que deverão ser tidos por provados deverão subsumir-se ao crime de violência doméstica pelo qual o arguido se encontrava acusado ou, ainda que tal alegação não proceda, se os factos considerados provados se enquadram no crime de violência doméstica);
c) Medida da Pena;
d) indemnização por danos não patrimoniais (se o valor da indemnização civil por danos não patrimoniais que o arguido/demandado foi condenado a pagar à assistente/demandante deve ser aumentado).
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III. FUNDAMENTAÇÃO
Factualidade relevante para apreciação do mérito do recurso: 1.A sentença recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos, com a seguinte motivação: “a. Factos Provados 1. O arguido AA e BB casaram em 07 de agosto de 2005. 2. Dessa relação existem três filhos já maiores, nascidos antes da celebração do casamento. 3. Tal casamento foi dissolvido por divórcio em 27 de novembro de 2023, sendo certo que o arguido e vítima encontravam-se separados de facto, pelo menos, desde 9 de fevereiro de 2023. 4. A ofendida gostava de caminhar com vizinhas, o que fazia, pelo menos, semanalmente. 5. Quando a ofendida fazia tais caminhadas, o arguido ia no seu encalço de automóvel, para verificar o percurso que fazia e quem a acompanhava. 6. No Verão de 2020, o arguido pretendeu retirar à ofendida o telemóvel enquanto esta falava com o filho EE, agarrando o telemóvel com força e provocando a sua queda. 7. De imediato o arguido pisou-o e agarrou a ofendida pelos ombros, abanando-a. 8. No dia 17.07.2020 a ofendida deslocou-se à residência do filho EE a fim de comemorarem o aniversário da sua filha GG, tendo regressado por volta da meia noite. 9. Quando regressou a casa, o arguido iniciou mais uma discussão tendo lhe dito no decurso da mesma “Se voltas a chegar tarde a casa, enfio-te uma mangueira pela gola para te engasgares”. 10. Em data não concretamente apurada, mas que se situa dias antes do natal de 2022, por volta das 19,00h, quando se encontravam na residência comum, o arguido tentou retirar à ofendida o telemóvel que a mesma se encontrava a utilizar, apelidando-a de “estupida, burra, vaca, cabra”. 11. Tendo apenas cessado tal conduta por intervenção da filha FF. 12. Durante as refeições, o arguido, com uma frequência semanal, desdenhava a comida que a ofendida confecionou, arremessando o seu prato pela mesa, e de seguida ausentava-se da residência e ia fazer a sua refeição no restaurante. 13. O arguido, nas situações descritas atuou com o propósito conseguido de ofender a honra e o bom nome da ofendida. 14. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa mesma avaliação. 15. Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sentiu-se ofendida na sua honra e dignidade, humilhada. 16. Os factos ocorreram em casa, na presença dos filhos do casal, o que mais a fez sofrer e envergonhar. 17. 18. Encontra-se reformada, auferindo € 1.500,00/mês. 19. Vive em casa própria. 20. Já sofreu 6 AVC’S, o que lhe limita alguns movimentos. 21. Não tem antecedentes criminais registados.
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b. Factos Não Provados a) Desde o início do relacionamento arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de “filha da puta”, “porca”, “cabra”, dizendo que “não valia nada”. b) O arguido não deixava que a ofendida tivesse vida laboral ativa. c) O arguido tratava a ofendida de forma agressiva, e controlava a sua vivência comportamentos estes que se têm vindo a adensar após o mesmo ter sofrido vários AVC´s, o primeiro em 2016. d) O arguido deixava gravadores escondidos, na sala, na cozinha e na casa de banho para saber o que a ofendida fazia durante o dia, com quem falava e o que dizia. e) O arguido, frequentemente, com uma periodicidade pelo menos trimestral, desligava o quadro elétrico para a ofendida não conseguir fazer os seus afazeres ou ver televisão, cortava o acesso à internet para que esta não a utilizasse, escondia-lhe o carregador de telemóvel e os óculos para que esta os procurasse. f) O arguido, descontente por a mesma efetuar tais caminhadas, molhava-lhe as sapatilhas de molde a que esta não possa sair. g) Nos últimos dez anos, quando a ofendida ia deitar o lixo no contentor, o arguido cronometrava o tempo que a mesma despendia em tal tarefa e se demorava mais tempo do que este julgava razoável, discutia com a ofendida chamando-lhe “puta, filha da puta, estúpida burra, ignorante, vaca e cabra”. h) Frequentemente, com periodicidade semanal, o arguido escondia a roupa íntima da ofendida e várias vezes metia a sua roupa no lixo ou na sanita. i) Em data não concretamente apurada o arguido proibiu a vítima de aceder a redes sociais, tendo-lhe retirado o telemóvel de que fazia uso, entregando-lhe um com maior antiguidade, com teclas e sem acesso à internet, obrigando-a ainda a mudar de número de telemóvel. j) Nas circunstâncias referidas em 10., o arguido desferiu vários empurrões na ofendida k) O arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento que manteve com a vítima, no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos, molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação, bem sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, com propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu. l) Não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente entre ambos, o arguido não se coibiu de agir como agiu. m) O arguido chegou mesmo a esconder o pão que o padeiro deixava à porta, ficando a ofendida e os filhos em alimento para o pequeno-almoço. n) A ofendida não se sentia segura na sua própria casa pois o arguido dormia no quarto ao lado do seu. o) Em consequência de todas as referidas agressões, físicas e psicológicas, a ofendida sentiu-se aterrorizada, com muito receio, insegura, ansiosa, com medo que pudesse cumprir as ameaças. p) A demandante sempre foi e é uma pessoa respeitada, sendo-lhe reconhecida uma grande autoridade moral, profunda honestidade e educação;
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Não se provaram quaisquer outros factos que não se encontrem descritos como provados ou não provados ou que se mostrem em oposição a estes ou por eles prejudicados. Os restantes factos não especificamente dados como provados ou não provados, ou são a negação de outros especificamente considerados provados ou não provados ou são repetições, ou conclusivos ou encerram juízos de valor ou questões de Direito.
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c. Motivação A convicção do tribunal assentou na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, atendendo-se designadamente à prova pessoal, pericial e documental produzida, tudo sob o crivo das mais elementares regras da experiência comum. Concretamente Ponderou o Tribunal todos os documentos juntos autos, como sejam • certidões judiciais autos de divórcio n.º 1885/22.5T8CHV e de maior acompanhado n.º 1224/23.8T8CHV • Assentos de nascimento e de casamento; • fotogramas de fls. 168; • Ficha RVD. Estes documentos não foram colocados em crise, quer quanto à sua existência, quer quanto ao respetivo conteúdo, por qualquer dos sujeitos processuais pelo que não coloca o Tribunal dúvidas quanto àquilo que objetivamente resulta demonstrado pelos mesmos. No mais, o arguido prestou declarações, admitindo o contexto temporal dos factos e bem assim todos os factos pessoais ali descritos. Quanto ao mais, contestou os factos imputados, fixando-se em pormenores de circunstância e aduzindo argumentos justificativos, que, no entanto, resultam numa não negação da situação de confronto ou conflito em si, pretendendo que os factos que lhe são imputados pelos seus familiares apenas porque estes lhe querem mal, não adiantando qualquer razão plausível para tais queixas e manifestando, em simultâneo, pela sua postura e forma de verbalizar as suas razões, uma hostilidade latente para com os mesmos, que, ao invés de desacreditar as imputações que lhe são feitas, lhe conferem verosimilhança; Confirmou igualmente ter colocado um gravador na casa de banho a fim de perceber a quem a ofendida se dirigia nas conversas. Depôs igualmente quanto à sua situação económica e de vida. Por sua vez, prestou declarações a ofendida, em sede de memória futura, a qual apresentou a sua versão dos factos, coincidente com o despacho de acusação, narrando a sucessão de acontecimentos vividos, esclarecendo o tribunal quanto à relação mantida com o arguido e bem assim as razões que levaram ao seu termo e, bem assim, das consequências que as condutas do arguido tiveram na sua vida. De resto, tais efeitos comportamentais mostram-se como consequência de verificação provável, à luz de um critério de normalidade do acontecer, de condutas com a natureza da imputada ao arguido. Confirmou as expressões injuriosas que lhe foram dirigidas, bem como as ameaças, reportando-se não apenas às situações concretamente referidas nos autos, mas também a outras similares, evidenciando relatar os factos ocorridos, na exata medida da sua perceção e recordação dos mesmos, independentemente de corresponderem ou não à versão da acusação e sem qualquer pretensão de empolamento do sucedido, sem, contudo, lograr contextualizar a factualidade relatada. De outro lado, prestaram também depoimento os filhos do extinto casal - EE, FF e GG – os quais seguiram o diapasão da mãe. Referiram os primeiros que não se dão bem com o pai, pese embora sempre tenha sido aquele que tenha sustentado a casa e a família. As afirmações dos filhos chegam a ser surpreendentes pela veemência com que são feitas; mais emocionais as do EE e da FF do que a GG, que demonstrou mais distanciamento quanto às dores da mãe, do que os outros dois, mas todos desprovidos de afeto para com o arguido e de notório apego para com a assistente. Terão os seus motivos para tal assumir de posição, mas do que descreveram, mesmo que estivéssemos perante um pai mais autoritário do que a mãe, fica por perceber, em termos objetivos, de onde surge tamanho desapego e afastamento do pai, o que necessariamente minou a credibilidade dos seus depoimentos. Foram também considerados os depoimentos de DD e CC, amiga da filha do dissolvido casal e ex companheira do filho, respetivamente, as quais puderam confirmar os concretos episódios a que assistiram, os quais não mostraram contudo contextualizados no tempo. De outro passo, e relativamente aos depoimentos das testemunhas da defesa, no sentido de que não se aperceberam de má vivência do casal, estando assim em oposição aos factos relatados pela ofendida, foram ponderados com as devidas reservas, uma vez que aquelas não acompanhavam a dinâmica do casal, na sua intimidade diária, mas apenas no que mostravam para o exterior. Note-se que, e assim nos ensinam as regras da experiência comum, as mais das vezes, este tipo de factos é cometido na intimidade da família, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal. Por fim, no que se refere ao juízo formulado acerca da factualidade atinente ao fim com que o arguido agiu, ao conhecimento e vontade com que atuou bem como à sua consciência quanto à ilicitude da conduta levada a cabo foi aquele extraído dos factos objetivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso, sendo que, em faco do que se descreveu, não podia ser outra intenção do arguido se não aquela que ali se descreve. De sublinhar ainda que qualquer pessoa sabe que tal conduta é proibida por lei. Quanto aos antecedentes criminais do arguido tomou-se em consideração o Certificado de Registo Criminal junto e quanto à condição económica do arguido e bem assim à sua personalidade, o tribunal teve em consideração as declarações prestadas pelo próprio, que neste particular se revelaram credíveis, inexistindo nos autos elementos que as contrariem e pelos depoimentos das testemunhas por si arroladas, que convivem com este com frequência e se pronunciaram quanto à forma como o mesmo é visto no meio social e profissional onde está inserido.
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Quanto aos factos integradores do PIC o tribunal valorou, uma vez mais, as declarações da ofendida e das testemunhas ouvidas, cujos depoimentos, neste particular, se mostraram seguros e escorreitos, demonstrando um conhecimento direto dos factos sobre que declararam, sendo que os danos que concretamente vinham alegados, e que se deram como demonstrados, são consentâneos, razoáveis e compatíveis, de acordo com as regras da experiência comum, com situações como a dos autos.
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Quanto à matéria julgada não provada elencada em a) a i) assim resultou de prova do seu contrário e, sobretudo, por em bom rigor tais alegações não configurarem factos em si mesmos, passíveis de serem contraditados pelo arguido, o que inviabiliza, no entender deste Tribunal, a sua utilização para apuramento de responsabilidade criminal do arguido. E assim porque compulsada a matéria vertida na acusação constatamos que não estamos perante uma verdadeira imputação de factos, suscetíveis de sustentar uma condenação penal, mas sim meras imputações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, não constando das mesmas qualquer contextualização de tempo, lugar ou modo, ou qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido, ou o seu grau de participação ou as datas concretas do seu cometimento, quando é certo que a relação entre ambos perdurou, pelo menos, 18 anos. Ora, como é sabido, as imputações genéricas, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e impedirem o exercício do direito de defesa, constitucionalmente consagrado. – artigo 32.º CRP. Aliás, vem sendo entendimento consolidado, na jurisprudência dos Tribunais Superiores, que as imputações genéricas, sem qualquer concretização das condutas em que se traduziu a atuação do agente e do tempo, modo e lugar em que aconteceram, por não permitirem o pleno exercício do contraditório e, portanto, do direito de defesa, constitucionalmente consagrado (cf. artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente e, como tal, à sua condenação penal. – cfr. entre muitos outros, Ac. do STJ de 12/07/2008, proc. 07P3861, Ac. da RE de 22/11/2018, proc. n.º 526/16.4 GFSTB.E1, Ac.s da RP de 17/06/2020, proc. n.º 2541/19.7JAPRT.P1 e de 08/09/2020, proc. n.º 672/19.2GBAMT.P1, acessíveis in www.dgsi.pt. Dito de outro modo, as imputações genéricas, para que possam assumir relevância jurídico-penal, para efeitos de condenação criminal, carecem de ser concretizadas em factos, sendo irrelevantes ou inócuas as imputações que não encontram no texto da decisão aquele limiar indispensável de concretização, pelo que, das duas uma, ou essa concretização é feita ou não podem essas imputações ser consideradas na decisão condenatória. - Neste sentido, cfr., entre outros, Ac.s da RE de 01/10/2013, proc. n.º 948/11.7PBSTR.E1 e de 12/09/2011, proc. n.º 331/08.1GCSTB.E1, Ac. da RG de 05/07/2021, proc. n.º 2/20.0GEBRG.G1, Ac. da RP de 15/06/2016, proc. n.º 1170/14.6TAVFR.P1, acessíveis in www.dgsi.pt. É certo que situações há em que a reiteração das condutas criminosas ao longo de anos é de tal forma persistente que se revelará quase como uma prática habitual, não permitindo concretizar, com o mínimo de precisão, a localização temporal dessas condutas. Contudo, sendo essa a situação, tem de haver a especificação dos concretos atos praticados pelo arguido e a contextualização de alguns deles, para que seja possível à defesa, o pleno exercício do contraditório, o qual só pode ser plenamente assegurado se o arguido souber quais os factos concretos de que é acusado para que deles se possa defender.
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.07.2015 “(…)no âmbito do direito penal, o qual revestindo quanto ao processo natureza acusatória, e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos atos imputados de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender, e daí que a própria norma processual impunha a narração dos factos imputados e sendo possível “o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica…” artº 283º 1b) CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do dto de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência de crime. O crime de violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroativamente o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de “regime”. Nem tão pouco é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial. Transpondo este entendimento para o caso dos autos, se atentarmos na factualidade que, por facilidade de raciocínio, se levou à matéria julgada não provada, temos que, embora os episódios estejam localizados temporalmente - por referência ao período em que o arguido e a ofendida estiveram casados – entre 07 de Agosto de 2005 e 27 de novembro de 2023 - as imputações continuam a ser vagas, não só quanto à concreta atuação daquele, mas também quanto à sua motivação, contexto, grau de participação, consequências que daí advieram para a integridade física e/ou psíquica da ofendida ou quanto ao dia e local onde as mesmas tiveram lugar. Ora, perante um tipo legal com a estrutura do crime que vem imputado, a aceitação da imputação de factos genéricos, desta natureza, sem qualquer concretização, significaria, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2018, processo 204/10.8GASRE.C1, www.dgsi.pt, a multiplicação da imputação deste tipo legal uma vez que bastaria ao seu preenchimento cobrir toda uma vida em comum com a nuvem da violência, bastando para tanto dizer que o agente desde sempre/desde o casamento deu (…) Continua o citado aresto, com o que se concorda e que pela sua pertinência para os autos, se transcreve, (…) O resultado é que seria muito mais fácil acusar e condenar pelo crime de violência doméstica – por dispensar qualquer esforço de concretização e localização –, do que pelos crimes em que o mesmo se decompõe, menos graves do que aquele. E daqui resultaria a tentação de enquadrar todas as agressões físicas e verbais perpetradas num determinado contexto no tipo da violência doméstica. Ou seja, aquela norma não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos. É certo que a vítima tem direito à tutela penal. Contudo, o arguido tem direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos que fundamentam a condenação.” Vale isto por dizer que, neste tipo de crimes, onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo, a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, por conseguinte, o cerne do direito de defesa. E assim se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal. E por ser assim, cremos que ter como legal uma imputação deste teor, aceitar este tipo de descrição factual, significaria o abandono de todo o rigor na investigação e prova dos factos neste tipo de crime. – v. Acórdão da Relação de Évora de 17-9-2013, processo 97/11.8PFSTB. Na decorrência do que antecede, para efeitos de responsabilização criminal, tais factos que se levaram, por clareza de raciocínio, à matéria não provada, deveriam, até, considerar-se como não escritos. Quanto à factualidade descrita em j), assim resultou da ausência de prova cabal a esse respeito. Com efeito, o arguido admitiu que tentou retirar o telemóvel à ofendida, esta por sua vez não logrou diferenciar este episódio do anterior também ocorrido com o telemóvel e, por fim, a testemunha que sobre ele também depôs, a FF, demonstrou uma animosidade e um distanciamento quanto ao pai, assumindo claramente as dores da assistente que não permitiu, neste particular superar a dúvida. Por assim ser, e na medida em que tal facto se assumia como desfavorável ao arguido, em nome do principio do in dúbio pro reo, considerou-se tal factualidade como não provada. Por fim, a factualidade dada como não provada elencada em k e l) estava na dependência dos factos que a precediam, pelo que soçobrando estes, nos termos vindos de expor, igualmente pereceram aqueles.
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Quanto à factualidade julgada referente ao pedido civil julgada como não provada resultou da ausência de prova concludente sobre a mesma, o que não permitiu ao Tribunal sustentar um juízo de certeza sobre os factos em causa, pois não resultou das declarações da ofendida, nem sustentado por outros meios de prova que sustentassem a convicção do Tribunal, quanto a tal matéria. Na verdade, e se se aceita, sem qualquer dificuldade, que a ofendida se tenha sentido ofendida, face à conduta do arguido, o que está conforme às regras da normalidade e da experiência comum, a verdade é que as consequências, intensidade e efeitos desse vexame não ficaram demonstrados através de depoimentos suficientemente seguros ou documentos que o atestassem, para sustentar um juízo de certeza sobre o nexo de causalidade entre o factos e o dano reportado, sobretudo, quando é certo que a assistente era parte interessada na demanda. E assim, à mingua de outra (ou melhor) prova, mais não restou que levar tal factualidade à matéria julgada não provada”.
2. Consta de sentença recorrida, no que respeita à “Fundamentação de Direito”: “(…) E compulsando a factualidade que se julgou provada – factos provados 6) a 11) - e ainda que seja reveladora de desrespeito e falta de consideração para com a ofendida mesmo, a sua gravidade não atinge intensidade bastante para poder ser qualificada como «maus tratos físicos ou psíquicos», nos termos que se deixaram consignados. Dito de outro modo, os episódios de vida em apreciação são, tão só, reveladores de um quadro de relacionamento deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo, mas num contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestava, não espelhando, por isso, uma situação de maus tratos exigidos para o tipo Desde logo porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos. (…) Mas dos factos concretamente apurados não se extrai essa configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. Assim sendo, fica, cremos nós, e desde logo, afastado o preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, impondo-se, em consequência, a absolvição do arguido da referida imputação criminal.
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De todo o modo, as condutas descritas não se têm necessariamente por irrelevantes. Com efeito, os factos descritos poderiam em abstrato configurar a prática pelo arguido, de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º CPC, um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º e de um crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º CP (…) Quanto ao primeiro, é certo que a assistente não deduziu nos autos acusação particular, o que nos levaria a concluir que não tendo a assistente assim agido, não podia o arguido ser punido pela prática de tal ilícito atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir criminalmente contra o arguido. Contudo, resulta da análise dos autos que, apesar de não ter deduzido acusação autónoma, a assistente apresentou queixa e acompanhou a acusação pública nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 284º, do Código de Processo Penal, ou seja, fez sua aquela acusação e não há dúvida em como os factos provados estão contidos naquela acusação, pelo que podemos considerar que aquele acompanhamento contém implicitamente a acusação pela prática de outros crimes. Posteriormente, a mesma ofendida revelou ao longo de todo o processo, de forma reiterada e inequívoca, vontade no sentido de ser desencadeado procedimento criminal contra o arguido quanto aos factos ali denunciados. E se assim é, cremos nós, nada obsta a que se aprecie a responsabilidade penal do arguido pela prática daquele ilícito. Note-se, aliás, que estes institutos – queixa e acusação particular - não se destinam por isso a proteger algum interesse do suspeito da prática de algum ilícito, mas sim a possibilidade de aferição, por parte do ofendido, da melhor forma de tutela dos seus interesses, que pode não passar pelo procedimento criminal e eventual punição do autor do ato ilícito, colocando a lei na disponibilidade dos ofendidos – enquanto portadores concretos do bem jurídico violado - a decisão relativamente à instauração e prosseguimento do procedimento criminal. No mesmo sentido, foi fixada jurisprudência no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2024, proferido no proc. 560/19.2PATVD.L1-A.S1, em 29.05.2024, no sentido de que «O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.» (Diário da República nº 131/2024, Série I de 09.07.2024). Concorda-se com tal desiderato, pois, a entender-se de outro modo, seria apresentada ao ofendido uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade com a qual não poderia anteriormente contar, porque então inexistente. De igual forma e sendo, como vem de se dizer, irrelevante a não apresentação de queixa relativamente a alguns dos factos, por maioria de razão irrelevante é que a queixa apresentada apenas pudesse abranger a atividade desenvolvida nos seis meses anteriores à data da inquirição, sendo assim, neste caso, de se concluir pela extinção, por caducidade de um direito de queixa que não era então exigível. De outro passo, e não obstante a acusação ter sido deduzida por toda uma série de atos delituosos, ofensivos da dignidade humana da assistente, enquanto ex-mulher do arguido e com ele já convivente num determinado agregado familiar, apenas se provaram factos que, ainda que parcialmente coincidentes com os acusados, que isoladamente constituem crimes mas que foram integrados na acusação numa conduta mais ampla, entendida como de violência doméstica. E estando, necessariamente, em causa, um menos relativamente ao mais constante da acusação, entendemos que não há situação que se subsuma à previsão das normas dos artºs 358º ou 359º, do CPP. (…) Analisando as expressões proferidas pelo arguido identificadas no facto provado 7, atendendo ao contexto em que foi proferida, dirigida, mais de uma vez, à pessoa da assistente, não traduz um simples desabafo verbal do arguido, nem uma simples descortesia ou má educação, revelando, outrossim, um juízo de valor gravemente depreciativo e humilhante, capaz de incomodar, perturbar e ofender a assistente (ou, cremos nós, qualquer outro cidadão colocado naquelas circunstâncias). O uso das expressões “estupida, burra, vaca, cabra “nestas circunstâncias, não cabe na margem de tolerância (sensata e razoável) que deve atribuir-se à comunicação entre os normais cidadãos (na qual, muitas vezes, se formulam juízos e se utilizam palavras que nem sempre são agradáveis). No que toca aos elementos subjetivos, o arguido dirigiu à assistente as referidas expressões com intuito de ofender a honra e consideração daquela, pois que o foram no contexto de animosidade, sabendo o arguido, necessariamente, da suscetibilidade de tais expressões serem ofensivas da assistente, tendo pretendido isso mesmo. Inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude da atuação do arguido, que atuou livremente, estando consciente de que tais condutas eram proibidas e punidas por lei. Deve, por isso, ser condenado pela a prática de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal”. (…) No caso em apreço, resulta da matéria de facto provada, que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 6) o arguido agarrou a ofendida pelos ombros e abanou-a. (…) Na economia dos autos, o que se apurou foi que o arguido abanou os ombros da ofendida, sem que, com isso tenha afetado a sua integridade física. Não pode, assim, tal abanão deixar de considerar-se insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado por este ilícito. Conclui-se, assim, que o concreto contacto físico, apesar de provocado voluntariamente pelo arguido, analisado à luz da adequação social, e por se não ter apurado o grau de violência, não surge como manifestamente reprovado do ponto de vista ético-social, não atingindo dessa forma o bem jurídico-penal em causa (a integridade física da ofendida) de forma significante, pois que se não mostra intolerável, não exigindo a intervenção jurídico-penal na sua função tutelar do bem jurídico fundamental violado, na sua vertente preventiva e reintegradora, revelando-se, assim, atípica a referida conduta, obstando à condenação do arguido. (…) E vistos os factos residuais acima realçados, temos que não configuram o crime de ameaça, por inexistência do elemento subjetivo. com efeito nada se apurou quanto ao conhecimento do arguido de que, ao proferir as expressões descritas a sua conduta era adequada a provocar no ofendido receio pela sua integridade física e perturbá-la na sua vida, o que quis, representou e conseguiu. (…)
3. Consta de sentença recorrida, no que respeita ao “Pedido Cível”: “(…) Volvendo ao caso dos autos, analisada a factualidade alegada e provada, permite constatar que se encontram preenchidos os elementos que integram a referida responsabilidade. Na verdade, provou-se que os atos descritos como praticados pelo arguido causaram na demandante sofrimento, humilhação, vergonha, pelo que não restam dúvidas de que os danos sofridos pela demandante não podem deixar de merecer a tutela do direito. Os sentimentos vivenciados pela ofendida – e que resultaram demonstrados - perduram necessariamente no tempo e causaram-lhe forte consternação e constrangimento. O seu bom nome e a sua honra como mulher e mãe foram afetados o que certamente muito a abalou. Acresce que os valores fixados a título de indemnização por danos morais não podem ser irrisórios ou tão insignificantes que se tornem humilhantes para aqueles que os sofrem. Têm que, de algum modo e da melhor forma possível, compensar o dano sofrido. Assim, partindo do valor que vem peticionado, considerando a matéria de facto em concreto apurada, o grau de culpabilidade do agente, o modo de cometimento do facto, a sua motivação, e as respetivas consequências, o hiato temporal em que os factos se foram sucedendo e a situação económica do lesante e lesada, julga-se adequado fixar a indemnização civil por danos não patrimoniais no valor de € 1.000,00”.
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Apreciação dos Recursos
Nos termos do estatuído no art. 368.º aplicável ex vi do disposto no art. 424º nº 2 do C.P.Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer em primeiro lugar das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Nessa medida, independentemente da sequência pela qual os recorrentes suscitam as questões, na sua apreciação o tribunal de recurso deve seguir uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras, tendo por referência a ordem indicada na disposição legal citada.
Assim sendo, será de começar pelas questões que podem determinar a anulação do julgamento e eventual reenvio (nulidades da decisão), seguidas daquelas que podem determinar a alteração da matéria de facto (erros de julgamento) e, finalmente, as questões de direito suscitadas.
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1. Erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410º, nº 2, al. c) do C.P.Penal
A recorrente alega que a sentença incorreu em erro notório na apreciação da prova pois considera que não escapa “a um observador médio, que esses factos estão cabalmente demonstrados pela globalidade da prova produzida em audiência de julgamento” (conclusão G).
Antes de mais, importa relembrar os pressupostos da impugnação da matéria de facto em sede de recurso.
Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (art. 428º do C.P.Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (art. 410º, nº 1 do C.P.Penal).
Como é sobejamente sabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
a) no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no mencionado art. 410º, nº 2 do C.P.Penal;
b) através da impugnação ampla da matéria de facto.
Estabelece o art.º 410º, nº 2 do C.P.Penal que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova”.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e, uma vez demonstrada a existência desses vícios e a impossibilidade de se decidir a causa, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio (art.º 426º, nº1 do C.P.Penal).
Estes vícios são de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17. ª ed., pág. 948). Mas, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127º do CPP. Pois o que releva “é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410º, nº 2 do C.P.Penal, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos” (Cfr. Acórdão do STJ de 2008.11.19, Proc. nº 3453/08-3 referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9.ª ed., 2020, pág. 76).
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O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 341).
Este vício distingue-se, assim, do erro de julgamento da matéria de facto pois que este último apenas é percetível através da análise da prova produzida.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9ª ed., pág. 81). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício.
Quanto a este vício – erro notório na apreciação da prova – importa referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
O art. 127º do C.P.Penal dispõe que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
No entanto, tal não significa apreciação arbitrária ou valoração puramente subjetiva da prova, mas antes apreciação motivada de acordo com critérios lógicos e objetivos em função da razoabilidade e das regras da experiência comum.
Por conseguinte, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
A recorrente invoca a existência de erro notório na apreciação da prova porquanto foram dados como não provados os factos vertidos sob as alíneas a), b), c), d), e), h), k) e o), os quais deveriam ter sido dados como provados por se mostrarem sustentados na prova produzida, a qual impõe a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica.
No entanto, o que, na realidade, a recorrente não aceita é a apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal, pretendendo, com esta invocação, questionar a apreciação que o tribunal fez dos elementos probatórios perante si produzidos.
Com efeito, a recorrente não concorda com o juízo probatório do tribunal a quo. Mas tal constitui uma discordância da recorrente face ao resultado da apreciação da prova. Nessa medida, já não nos movemos no âmbito do erro notório na apreciação da prova, que tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida (o que, no caso, não se verifica), mas antes em contexto de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, com base em erro de julgamento, nos termos do preceituado no art. 412º nº 3 e 4 do C.P.Penal.
Em suma, concluímos pela inexistência de erro notório na apreciação da prova, improcedendo, nesta parte, o recurso em análise.
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2. Erro de julgamento quanto aos pontos a), b), c), d), e), h), k) e o) da matéria de facto dada como não provada
Os recorrentes entendem que o tribunal a quo errou ao considerar que a factualidade não provada resume-se a “meras imputações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, não constando das mesmas qualquer contextualização de tempo, lugar ou modo”, pois tal factualidade encontra-se concretizada no tempo (“Desde o início do relacionamento” – al. a) dos factos não provados) - ou seja, desde ../../2005 (data em que se casaram) e até ../../2023 (data em que se separaram de facto) -, e no espaço (“no interior da residência que partilharam” – al. k) dos factos não provados). Também consideram que consta dessa mesma factualidade o modo de atuação do arguido, por referência às expressões e aos comportamentos que lhe são imputados.
No que respeita à “matéria julgada não provada elencada em a) a i)”, o tribunal a quo começou por afirmar que não configuram “factos em si mesmos, passíveis de serem contraditados pelo arguido, o que inviabiliza … a sua utilização para apuramento de responsabilidade criminal do arguido”, pois, na sua perspetiva não se trata de “uma verdadeira imputação de factos, suscetíveis de sustentar uma condenação penal, mas sim meras imputações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, não constando das mesmas qualquer contextualização de tempo, lugar ou modo, ou qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido, ou o seu grau de participação ou as datas concretas do seu cometimento, quando é certo que a relação entre ambos perdurou, pelo menos, 18 anos”.
Posteriormente, fez constar que “embora os episódios estejam localizados temporalmente - por referência ao período em que o arguido e a ofendida estiveram casados – entre 07 de Agosto de 2005 e 27 de novembro de 2023 - as imputações continuam a ser vagas, não só quanto à concreta atuação daquele, mas também quanto à sua motivação, contexto, grau de participação, consequências que daí advieram para a integridade física e/ou psíquica da ofendida ou quanto ao dia e local onde as mesmas tiveram lugar”.
E, concluiu que “neste tipo de crimes, onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo, a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, por conseguinte, o cerne do direito de defesa”, pelo que “tais factos que se levaram, por clareza de raciocínio, à matéria não provada, deveriam, até, considerar-se como não escritos”.
No que concerne à factualidade constante das alíneas k) e l) da matéria mencionou que “estava na dependência dos factos que a precediam, pelo que soçobrando estes, nos termos vindos de expor, igualmente pereceram aqueles”.
Desta forma, o tribunal a quo anunciou que os factos que constam das alíneas a) a i) da matéria de facto não provada consubstanciam imputações genéricas que inviabilizam o direito de defesa do arguido (constitucionalmente consagrado no art. 32º da Constituição da República Portuguesa), enquanto que os recorrentes consideram que a factualidade se encontra concretizada no tempo e no espaço.
Efetivamente, é indubitável resultar da experiência comum a existência de comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram.
É o que sucede no caso destes autos, em que ocorre uma imputação de um comportamento reiterado, durante um período de tempo longo, num local determinado, mas que é o habitual (mais especificamente a casa de habitação).
Como se referiu no Acórdão do STJ 20.02.2019 (Proc. nº 25/17.7GEEVR.S1) “… a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida (…). Acresce que, perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta”.
A questão central que se coloca a respeito do crime de violência doméstica consiste em saber qual o grau de precisão e concretização factual, designadamente temporal e espacial, exigível para a integração de tal ilícito, no qual a reiteração e a intensidade da ação do agente está no centro da sua definição e se vai prolongando ao longo de muitos anos e, por outro, em que medida é que tal se compatibiliza com o direito de defesa do arguido.
Como sobredito, relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer da vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente.
Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com maior ou menor significado.
Caso a caso terá de se ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório.
Na falta de concretização da data ou janela temporal da ocorrência, cuja relevância varia em função do maior ou menor período em que os factos perduraram, essa garantia será assegurada a partir de quaisquer circunstâncias marcantes e individualizadoras que permitam, por si e/ou conjugadamente com outras, no contexto da narração dos factos, localizar e/ou identificar os concretos episódios designadamente pela excecional intensidade ou gravidade do(s) ato(s), a singularidade e/ou narrativa detalhada do seu modo de execução, o contexto dos atos parciais nomeadamente pelos termos espácio-temporais ou motivacionais.
Vejamos, então, se os factos constantes das als. a), b), c), d), e) e h) consubstanciam imputações vagas, genéricas e conclusivas, sem qualquer concretização temporal e se, nessa medida, impediram o efetivo exercício do direito ao contraditório por parte do arguido.
Uma vez que a questão colocada é de suficiência descritiva (cfr. arts. 283º, nº 3 al. b) e 374º, nº 2 do C.P.Penal), atendendo aos considerandos expostos, antecipamos que, no nosso modesto entender, os factos em causa encontram-se situados e contextualizados e por isso singularizados e identificáveis.
Desde logo, resulta do teor da alínea a), da qual as restantes alíneas estão dependentes, por subsequentes, que os factos imputados ao arguido estão localizados temporalmente, como o próprio tribunal a quo acaba por considerar (“embora os episódios estejam localizados temporalmente - por referência ao período em que o arguido e a ofendida estiveram casados”).
Tais factos também se mostram contextualizados no espaço, pois diz-se na alínea k) que ocorreram “no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos”, e nalguns deles é mencionada a frequência com que sucediam (alínea a) - “diariamente”; alínea e) – “frequentemente, com uma periodicidade pelo menos trimestral”; alínea h) – “frequentemente, com periodicidade semanal”). Mostram-se também especificadas as condutas em que se concretizou o imputado mau trato físico e/ou psíquico (cfr. os insultos mencionados na al. a), os comportamentos de controlo da ofendida constantes das als. b) e d); as humilhações referidas nas als. e) e h)), bem como a motivação subjacente a tais comportamentos (“molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação … com o propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu”).
Estes pontos, embora sem data individualizada, não são fórmulas vazias, pois indicam condutas determinadas (insultos reiterados de vocábulos concretos, comportamentos de controlo - utilização de gravadores – e de humilhação – desligar do quadro elétrico e corte de acesso à internet, colocação de roupa no lixo e na sanita).
Concluímos, assim, que tais factos contêm a materialidade suficiente para permitirem o exercício do contraditório, que, aliás, não seria diferente se outra fosse a formulação da acusação dado que o arguido, conforme explana o tribunal recorrido, “contestou os factos imputados”, fixou-se “em pormenores de circunstância”, apresentou “argumentos justificativos”, mas não negou a “situação de confronto ou conflito em si”, referindo que os factos que lhe são imputados pelos seus familiares têm na sua génese o facto de “estes lhe querem mal”, ao mesmo tempo que manifestou “uma hostilidade latente para com os mesmos, que, ao invés de desacreditar as imputações que lhe são feitas, lhe conferem verosimilhança”.
Tendo presente as particularidades do crime em causa, quando praticado no modo reiterado (trato sucessivo), a descrição das condutas num período de tempo identificado (algumas das quais até à data de separação por tal decorrer da leitura factual como um todo) permite ao arguido localizar e/ou identificar os concretos episódios bem como o período em que perduraram, podendo assim defender-se[1].
Em suma, ainda que as imputações – perduradas no tempo – não se mostrem descritas por referência a datas pontuais e, nessa medida, contenham alguma imprecisão temporal, tal materialidade mostra-se balizada por períodos de tempo e/ou circunstâncias de modo e lugar em termos que consideramos esclarecida e suficientemente concretizados para o exercício do contraditório, não se verificando a violação do disposto no art. 283º, nº 3, al. b) do C.P.Penal, nem tampouco do consignado no art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Por conseguinte, reportando-se toda a factualidade (provada e não provada) ao mesmo contexto familiar e ao mesmo período temporal e não encerrando as atuações objeto de recurso, imputações genéricas, vagas, sem qualquer concretização, impeditivas de um exercício efetivo do direito ao contraditório, mas, ao invés, factos, entendidos como acontecimentos ou comportamentos da realidade temporal em apreço, relevantes para aferir da existência dos elementos integrantes dos crimes em causa, há que verificar se se verifica o invocado erro de julgamento, pois esta alegação é improcedente.
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A recorrente defende que existe erro de julgamento quanto aos pontos a), b), c), d), e), h), k) e o) da matéria de facto dada como não provada (conclusão F).
O recorrente considera a conjugação da prova produzida em audiência de julgamento impunha que o tribunal recorrido tivesse dado como provada a factualidade constante dos pontos a), k) e l) (conclusão 18ª)
O erro de julgamento (previsto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal) ocorre quando o tribunal recorrido considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância e a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.Penal.
Quando se pretenda a impugnação ampla da decisão de facto, o recorrente tem de cumprir o aludido ónus de tríplice especificação, impondo-se que o recorrente, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal, especifique: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”.
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das “provas que devem ser renovadas” implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, o que pressupõe a existência de um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C.P.Penal (no atual quadro legal a renovação, na Relação, da prova que foi produzida em 1ª instância só é admitida se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo – artº 430º do C.P.Penal). “Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)” – cfr. Acórdão do TRL de 02.12.2020, Proc. nº 3606/15.0T9SNT.L1-5.
Se o recorrente assim proceder pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida concretamente indicada e vir a modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos do artº 431º, al. b) do C.P.Penal.
Como bem refere o Acórdão do TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9: “embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (cfr. artº 428º e 431º, al. b) do C.P.Penal), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»). O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.
Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Nessa medida, na reapreciação da prova há que articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.Penal (nos termos do qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente), e com princípio do in dubio pro reo (postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - que impõe a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado e constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do Tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto), princípios que valem também para o tribunal de recurso.
No entanto, nesse poder de fiscalização ou reapreciação o tribunal de recurso está condicionado pela ausência de imediação e de oralidade que acontece na grande maioria dos recursos em que tal questão é suscitada (pelo facto de não haver a produção direta da prova) e se realizam plenamente em 1ª instancia onde o tribunal “viu e ouviu o arguido, as testemunhas e os peritos, apreciou o seu comportamento não verbal, formulou as perguntas que considerou pertinentes da forma que entendeu ser mais conveniente e confrontou essas pessoas com a prova pré-constituída indicada pelos sujeitos processuais, tudo faculdades que o tribunal da Relação, pelo menos quando não é requerida a renovação da prova, não pode não beneficiar. Por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância, só podendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida – alínea b) do n.º3 do artigo 412.º do C.P.P.” (Acórdão do TRL de 10.10.2007, Proc. nº 8428/2007-3).
Como bem refere o Acórdão do TRL de 02.12.2020, supra referido, cumpre “não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.
Face ao exposto e tendo presente estes princípios vejamos a impugnação de facto de cada um dos recorrentes.
Os recorrentes identificaram os concretos pontos de facto que entendem terem sido incorretamente julgados - pontos a), b), c), d), e), h), k) e o) e pontos a), k) e l) da matéria de facto dada como não provada, respetivamente; especificaram os pontos do suporte informático em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados de que se socorreram, passagens que transcreveram parcialmente na sua motivação de recurso e explicaram as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.
A recorrente alega, no essencial, a análise que a mesma faz da prova produzida, com recurso às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas CC, EE, FF e GG (por referência às passagens das gravações áudio que identifica).
O recorrente também sustenta o recurso na análise da prova produzida, com recurso às declarações para memória futura da ofendida, ao teor dos assentos de nascimento do EE, da FF e da GG, bem como aos depoimentos das testemunhas EE, FF e GG.
Em suma, os recorrentes mencionam provas que consideram impor decisão diversa da recorrida quanto aos mencionados pontos de facto que consideram terem sido incorretamente julgados e indicam as provas e os segmentos das gravações áudio que suportam os seus entendimentos divergentes, do que se conclui que cumpriram as exigências legalmente impostas no art. 412º do C.P.Penal para a impugnação ampla da matéria de facto relativa aos mencionados pontos da matéria de facto dada como não provada, pelo que se conhecerá da mesma, nos termos infra expostos.
No entanto, “não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal” (Acórdão do TRP de 10.01.2024, Proc. nº 16/20.0T9STS.P1).
No que concerne aos meios de prova testemunhal elencados pelos recorrentes importa, desde logo, sublinhar que os mesmos têm que ser apreciados concatenadamente, devendo ser conjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
A prova é analisada conjuntamente e não basta indicar provas que permitam uma diferente convicção para alterar a decisão do tribunal sobre a matéria de facto, antes exigindo a lei provas que imponham uma convicção diferente.
Na verdade, as razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras não dependem do critério de cada um, mas antes do juízo de valoração livremente realizado por quem compete julgar os factos, de acordo com a imediação (que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e tendo por base as regras da experiência comum.
E, a imediação[2] confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
O exposto não significa “que o tribunal de recurso não possa pôr em causa essa credibilidade através da análise dos depoimentos prestados e com base neles escrutinar a aplicação das máximas da experiência comum que estiveram na base da opção do julgador. Ou seja, o tribunal superior não pode criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova; não pode dizer que rejeita o convencimento do juiz de 1.ª instância porque este optou por um determinado depoimento por ser mais credível. Porém, já tem o dever de analisar o depoimento prestado em si mesmo considerado e concluir se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum. Não se trata de o tribunal superior se convencer do depoimento e da sua certeza mas de o considerar como uma conclusão razoável” (cfr. Acórdão do STJ de 19.12.2007, Proc. nº 07P4203).
O que se pretende num julgamento é conhecer um acontecimento pretérito e por isso, a valoração das provas sobre o mesmo tem de traduzir uma atividade racional, objetivada e motivada, para além de toda a dúvida razoável, consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.
Os recorrentes não se limitaram a invocar a prevalência do seu juízo pessoal sobre a livre apreciação que serviu de base à factualidade não provada e ao resultante juízo de absolvição da prática do crime de violência doméstica, antes pretendem demonstrar que a prova por si indicada só poderia ter conduzido, no domínio factual, a uma decisão diversa da que foi proferida e ao consequente juízo condenatório do arguido pela prática do crime de violência doméstica.
Vejamos se lhes assiste razão.
Percorrida a motivação da matéria de facto constatamos que o tribunal a quo formou a sua convicção quanto à factualidade provada:
a) nas declarações do arguido que “prestou declarações, admitindo o contexto temporal dos factos … contestou os factos imputados … que, no entanto, resultam numa não negação da situação de confronto ou conflito em si, pretendendo que os factos que lhe são imputados pelos seus familiares apenas porque estes lhe querem mal, não adiantando qualquer razão plausível para tais queixas e manifestando, em simultâneo, pela sua postura e forma de verbalizar as suas razões, uma hostilidade latente para com os mesmos, que, ao invés de desacreditar as imputações que lhe são feitas, lhe conferem verosimilhança; Confirmou igualmente ter colocado um gravador na casa de banho a fim de perceber a quem a ofendida se dirigia nas conversas”;.
b) nas declarações para memória futura da ofendida que “apresentou a sua versão dos factos, coincidente com o despacho de acusação, narrando a sucessão de acontecimentos vividos, esclarecendo o tribunal quanto à relação mantida com o arguido e bem assim as razões que levaram ao seu termo e, bem assim, das consequências que as condutas do arguido tiveram na sua vida. De resto, tais efeitos comportamentais mostram-se como consequência de verificação provável, à luz de um critério de normalidade do acontecer, de condutas com a natureza da imputada ao arguido. Confirmou as expressões injuriosas que lhe foram dirigidas, bem como as ameaças, reportando-se não apenas às situações concretamente referidas nos autos, mas também a outras similares, evidenciando relatar os factos ocorridos, na exata medida da sua perceção e recordação dos mesmos, independentemente de corresponderem ou não à versão da acusação e sem qualquer pretensão de empolamento do sucedido, sem, contudo, lograr contextualizar a factualidade relatada”;
c) nos depoimentos das testemunhas DD e CC, amiga da FF e ex-companheira do EE respetivamente, que confirmaram “os concretos episódios a que assistiram, os quais não mostraram contudo contextualizados no tempo”.
Por outro lado, o tribunal recorrido não considerou credíveis os depoimentos das testemunhas EE, FF e GG (filhos do ex-casal), tendo ficado surpreendido com a veemência das afirmações das mesmas por se mostrarem “desprovidos de afeto para com o arguido e de notório apego para com a assistente. Terão os seus motivos para tal assumir de posição, mas do que descreveram, mesmo que estivéssemos perante um pai mais autoritário do que a mãe, fica por perceber, em termos objetivos, de onde surge tamanho desapego e afastamento do pai, o que necessariamente minou a credibilidade dos seus depoimentos”.
Também não considerou credíveis os depoimentos das testemunhas da defesa que “foram ponderados com as devidas reservas, uma vez que aquelas não acompanhavam a dinâmica do casal, na sua intimidade diária, mas apenas no que mostravam para o exterior”. Acrescentou que “assim nos ensinam as regras da experiência comum, as mais das vezes, este tipo de factos é cometido na intimidade da família, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal”.
No caso vertente, a prova produzida relativa aos factos imputados ao arguido terá de resultar da conjugação das declarações do arguido com as declarações da ofendida e com os demais elementos testemunhais e documentais do processo, em obediência às regras da ciência, da lógica e da experiência.
Escrutinada a prova constante dos autos, com destaque para a audição integral das declarações do arguido, das declarações para memória futura da assistente e dos depoimentos das testemunhas referidas pelos recorrentes, não sufragamos o juízo probatório realizado na sentença recorrida, sobretudo no que se reporta à desvalorização das declarações da ofendida e dos depoimentos de tais testemunhas, pois estamos convictos que tais meios de prova permitem formar convicção probatória segura relativamente à veracidade de alguns dos factos tidos por não provados e que se encontram impugnados nos recursos.
No que respeita às declarações do arguido (atento o seu interesse no desfecho do processo), as mesmas deverão ser valoradas desde que não se mostrem contrariadas por outros meios de prova credíveis. Neste particular, há que atender à circunstância de o arguido ter assumido que colocou um gravador na casa de banho, que comprou na Worten, “a ver com quem é que ela estava a falar” (gravação áudio 00:44-01:39), o que foi referido pela ofendida (“nem em casa estava à vontade … Tínhamos gravadores em casa” – gravação áudio 11:15), bem como pela testemunha EE (“uma vez vi na casa de banho … em cima do armário … ...”, “ele fica na cozinha, nós estamos a comer, está na cozinha a gravar e a tirar fotos” – gravação áudio 7:16, 33:49 e 27:54) - que afirmou que, na sequência dessa situação em que defendeu a mãe, o pai expulsou-o de casa (tinha a testemunha 20/21 anos – 2021/2022) - e pela testemunha GG que disse ter visto gravadores ligados na casa de banho e no sofá da sala, o que viu mais do que duas vezes (gravação áudio 8:17, 8:32, 9:35).
Os argumentos utilizados pelo tribunal a quo para descredibilizar os depoimentos das testemunhas, filhos do arguido e da ofendida, afiguram-se-nos desprovidos de lógica e razoabilidade e mostram-se contrariados pelas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.
Na nossa perspetiva, a credibilidade de tais depoimentos mostra-se assente nas circunstâncias de facto por eles reveladas que presenciaram por viverem no local onde parte dos factos ocorreram.
Desde logo, tais depoimentos mostram-se coerentes com as declarações da ofendida e com os depoimentos das testemunhas CC e DD e congruentes entre si.
É de esperar, segundo as regras da experiência comum, que depoimentos reportados a factos que ocorreram, desde que têm memória, e se repetiram ao longo de vários anos, apresentem imprecisões e dissemelhanças, o que se nos afigura perfeitamente compreensível.
Tais depoimentos (analisados e valorados em conjugação com as demais provas produzidas, à luz das regras da experiência e do princípio da livre apreciação da prova) não nos surpreendem pela veemência com que foram feitos, tal como não nos surpreende que se mostrem “desprovidos de afeto para com o arguido e de notório apego para com a assistente”, pois compreendemos perfeitamente “de onde surge tamanho desapego e afastamento do pai”.
Com efeito, os três filhos Com efeito, os três filhos afirmaram, de forma coincidente, terem crescido num ambiente de conflito (em que o arguido se pegava com a ofendida “por qualquer coisa” – EE, gravação áudio 3:27; “sem razão aparente”, sendo o pai que começava as discussões, “porque tudo o incomodava” – FF, gravação áudio 2:00-2:16; “só porque lhe dava na cabeça” – GG, gravação áudio 3:20) conforme ao retratado pela ofendida (“quer dizer a violência psicológica e verbal foi sempre … às vezes por nada ele começava a mandar vir”- gravação áudio 2:30 e 3:48).
Aquando da descrição do ambiente familiar em que viveram, os três filhos e a ofendida referiram os insultos dirigidos pelo arguido à ofendida, bem como o controlo e as humilhações de que era vítima por parte do arguido, o que se verificou desde sempre mas agravou-se após o arguido ter sofrido vários AVCs, o primeiro em 2016 (cfr. ofendida – gravação áudio 6:39), o que, para além da utilização dos gravadores, se concretizou no seguinte:
a) diariamente insultava-a de “filha da puta”, “porca”, “cabra” e dizia-lhe que “não valia nada”, o que sucedia à frente dos filhos (cfr. ofendida – gravação áudio 3:21 e 4:00; EE – gravação áudio 2:56 e 3:07; FF – gravação áudio 4:25 e GG – gravação áudio 2:07)
b) com frequência não concretamente apurada, desligava o quadro elétrico para a ofendida não conseguir fazer os seus afazeres ou ver televisão e cortava o acesso à internet para que esta não a utilizasse (cfr. ofendida – gravação áudio 5:00; EE – gravação áudio 11:45-14:00; FF – gravação áudio 10:47; 11:13-12:10 e GG – gravação áudio 12:26 e 13:11);
c) com frequência não concretamente apurada, escondia a roupa íntima da ofendida e metia a sua roupa no lixo ou na sanita (cfr. EE – gravação áudio 17:41-18:02; FF – gravação áudio 12:35 e GG – gravação áudio 10:35).
Ora, por assistirem ao comportamento agressivo do arguido e ao sofrimento da ofendida, todos os filhos avaliam negativamente esse comportamento para com a ofendida (pessoa que consideram injustiçada pois em nada contribuía para tal comportamento do assistente), o que se nos afigura perfeitamente compreensível, e, ouvidas, na íntegra, as declarações dos filhos, consideramos, sem qualquer dúvida, que tal não afetou a credibilidade dos respetivos depoimentos. Mesmo quando não se recordavam das situações, assumiram-no, com manifesta a preocupação em descrever os factos de forma objetiva e verdadeira.
Da prova produzida resulta evidente que o ambiente familiar era de tal forma tóxico que todos os filhos saíram de casa dos pais: a FF saiu de casa dos pais depois do divórcio porque não gostava do ambiente (“não gostava de ficar lá, nunca gostei” – gravação áudio 6:15), tendo o EE mencionado uma crise de ansiedade da FF, provocada pelas discussões (gravação áudio 16:00); a GG descreveu ofensas diárias (“constantemente, todos os dias” - gravação áudio 2:24) e o EE afirmou ter sido expulso de casa quatro vezes, a primeira das quais com 17 anos de idade, tendo regressado a casa dos pais porque tem medo que o pai “faça alguma coisa à mãe” (gravação áudio 1:40, 8:55 e 14:59), manifestando, assim, enquanto filho mais velho, um legítimo e compreensível sentimento de proteção da mãe.
Porém, com fundamento nestas circunstâncias, o tribunal a quo retirou conclusões relativas à credibilidade dos depoimentos dos filhos do arguido e da ofendida que, como já expusemos, no nosso modesto entender, não se mostram suportadas nas regras da lógica e da experiência, antes de mostram por elas contrariadas.
A corroborar a versão da ofendida e das mencionadas testemunhas temos os depoimentos das testemunhas CC (ex-namorada do EE, durante sete anos e até 2021, altura em que frequentou a casa aos fins de semana – gravação áudio 4:08) e DD (amiga da FF há dez anos, tendo frequentado a casa uma vez por semana – gravação áudio 5:12 e 5:30), cuja credibilidade não foi posta em causa pelo tribunal a quo. Cada uma destas testemunhas descreveu uma concreta situação, a que, respetivamente, assistiu, demonstrativa da agressividade e desrespeito com que o arguido tratava a ofendida.
Ambas as testemunhas adjetivaram o ambiente familiar como tenso e conflituoso, sendo percetível para ambas que a ofendida tinha medo do arguido (CC - gravação áudio 7:28 e 6:40 - e DD – gravação áudio 4:26).
O medo que a ofendida tinha do arguido e a ansiedade que o comportamento deste lhe provocava foram também referidos pelos filhos EE (gravação áudio 25:57), FF (gravação áudio 6:42) e GG (gravação áudio 17:15).
A CC relatou uma situação, a que assistiu quando estava sozinha em casa com o casal, em que o arguido levantou uma cadeira, com a qual ameaçou atingir a ofendida, na sequência de esta ter pedido à testemunha para fechar a porta da sala que o arguido insistia que devia ser mantida aberta, tendo a ofendida ficado assustada (gravação áudio 4:45-6:06).
Por seu turno, a testemunha DD descreveu uma situação a que assistiu (em 2022/2023), em que, no início do jantar, o arguido exaltou-se e ficou agressivo com a ofendida “devido a como a comida estava feita”, tendo atirado com o prato na direção da mesa, com o qual quase atingiu a testemunha (gravação áudio 2:00-3:15). Acrescentou que, na sequência de tal comportamento do arguido, a ofendida ficou assustada e a chorar (gravação áudio 6:55). Tal situação também foi mencionada, de forma coincidente, pela FF (gravação áudio 3:15).
Ora, os comportamentos agressivos do arguido, aquando das refeições foram enfatizados tanto pela ofendida (gravação áudio 7:37) como pelos filhos EE (gravação áudio 4:21) e GG (gravação áudio 3:50).
Por conseguinte, conjugando as declarações do arguido (no que respeita à utilização de gravadores), as declarações para memória futura da ofendida e os depoimentos testemunhas supra referidos (EE, FF, GG, CC e DD), entre si e tudo conjugado com as regras da ciência, da lógica, da experiência e normalidade do acontecer, podemos concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que, desde o início do relacionamento, o arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de “filha da puta”, “porca”, “cabra”, dizendo que “não valia nada”; tratava a ofendida de forma agressiva, e controlava a sua vivência comportamentos estes que se têm vindo a adensar após o mesmo ter sofrido vários AVC´s, o primeiro em 2016; deixava gravadores escondidos, na sala, na cozinha e na casa de banho para saber o que a ofendida fazia durante o dia, com quem falava e o que dizia; com frequência não concretamente apurada, desligava o quadro elétrico para a ofendida não conseguir fazer os seus afazeres ou ver televisão e cortava o acesso à internet para que esta não a utilizasse; com frequência não concretamente apurada, escondia a roupa íntima da ofendida e metia a sua roupa no lixo ou na sanita.
Por fim, cumpre acrescentar que não resultou da prova produzida que o arguido não deixava que a ofendida tivesse vida laboral ativa pois a ofendida nada disse a tal respeito, o EE disse que a mãe sempre trabalhou fora de casa (gravação áudio 9:30 e 22:41) e a FF especificou que, desde que se lembra, a mãe sempre trabalhou nas limpezas (gravação áudio 6:50). Também não resultou da prova produzida, dado que não foi mencionado pela ofendida, nem por nenhuma das testemunhas inquiridas, que o arguido escondia o carregador do telemóvel da ofendida, bem como os óculos para que esta os procurasse, nem que o facto descrito na alínea e) dos factos não provados ocorria com uma periodicidade, pelo menos, trimestral, nem que o facto descrito na alínea h) dos factos não provados ocorria com uma periodicidade semanal.
Face ao exposto, a decisão proferida, quanto a estes concretos pontos de facto, em função do princípio in dubio pro reo não merece acolhimento.
Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Com efeito, este princípio (do in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Posto isto, perante versões contraditórias sobre os factos, considera-se legítima a dúvida sobre a verdade do ocorrido.
No caso em apreço e nos termos expostos, a prova produzida é demonstrativa da ocorrência dos factos, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o nosso acolhimento, pelo que, inexistindo uma encruzilhada dubitativa, não há necessidade de fazer apelo ao princípio in dubio pro reo.
Cumpre dar nota que, na sequência do referido e da decisão que julgou, agora em sede de recurso, como provada a factualidade constante da alínea o) dos factos não provados, impõe-se alterar também a factualidade constante da alínea
alínea n) dos factos não provados da decisão recorrida no segmento respeitante ao sentimento de insegurança da ofendida, passando tal factualidade a ser julgada como provada, sob pena de contradição.
Face ao exposto, tratando-se de contradição ultrapassável por este tribunal ad quem, e por razões de coerência da própria decisão, impõe-se que essa factualidade também passe a constar do elenco dos factos provados na parte em que se refere que “a ofendida não se sentia segura na sua própria casa”.
Também resultou da prova produzida, em conformidade com o exposto, que o arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento que manteve com a vítima, no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos, molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação, bem sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, com propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu. Também resultou manifesto que, não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente entre ambos, o arguido não se coibiu de agir como agiu, tendo a ofendida, em consequência de todas as referidas agressões, físicas e psicológicas, se sentido aterrorizada, com muito receio, insegura, ansiosa, com medo que pudesse cumprir as ameaças.
Como se sabe, a integração jurídico-penal dos elementos subjetivos típicos, do foro interior e íntimo do agente, excetuando situações, raras, de confissão, apenas é possível por via da leitura de prova indiciária, ou seja, da conjugação de factos externos ao agente, segundo regras de lógica e experiência, concludentes de uma conexão psicológica com o facto ilícito típico[3].
Assim sendo, a sua prova assenta em inferências extraídas dos factos apurados e tidos como provados, analisados à luz da globalidade da prova produzida e das regras de experiência comum.
Entre os factos exteriorizadores dessa intenção (nomeadamente, de molestar a saúde física e psíquica da ofendida, de a humilhar e desconsiderar) avultam as expressões utilizadas (insultuosas e ameaçadoras), a forma como agrediu a ofendida (agarrou-a e abanou-a após ter pisado o telemóvel desta), os comportamentos controladores (utilização de gravadores), persecutórios (seguia a ofendida quando esta ia fazer caminhadas) e vexatórios (o desligar do quadro elétrico, o corte do acesso à internet e sobretudo o esconder da roupa íntima da ofendida e o colocar a roupa desta no lixo ou na sanita).
Por conseguinte, impõe-se considerar como provados os seguintes factos (eliminando-os do elenco dos factos não provados): 3a). Desde o início do relacionamento arguido controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de “filha da puta”, “porca”, “cabra”, dizendo que “não valia nada”. 3b) O arguido tratava a ofendida de forma agressiva, e controlava a sua vivência comportamentos estes que se têm vindo a adensar após o mesmo ter sofrido vários AVC´s, o primeiro em 2016. 3c) O arguido deixava gravadores escondidos, na sala, na cozinha e na casa de banho para saber o que a ofendida fazia durante o dia, com quem falava e o que dizia. 3d) O arguido, com frequência não concretamente apurara, desligava o quadro elétrico para a ofendida não conseguir fazer os seus afazeres ou ver televisão e cortava o acesso à internet para que esta não a utilizasse. 3e) Com frequência não concretamente apurara, o arguido escondia a roupa íntima da ofendida e metia a sua roupa no lixo ou na sanita. 13a) O arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento que manteve com a vítima, no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos, molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação, bem sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, com propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu. 14a) Não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente entre ambos, o arguido não se coibiu de agir como agiu. 15a) A ofendida não se sentia segura na sua própria casa. 15b) Em consequência de todas as referidas agressões, físicas e psicológicas, a ofendida sentiu-se aterrorizada, com muito receio, insegura, ansiosa, com medo que pudesse cumprir as ameaças.
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o presente segmento do recurso e altera-se a matéria de facto provada e não provada nos termos expostos.
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3.Qualificação jurídica (Da condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica)
O arguido encontrava-se acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. b), nº 2, al. a), nº 4 e 5 do C.Penal e foi condenado pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do C.Penal.
Os recorrentes sustentam que se encontram preenchidos os pressupostos da prática pelo arguido do crime de violência doméstica pelo que consideram que se impunha a sua condenação pela prática, em autoria material, e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, als. a) e c), nº 2, al. a), nº 4 e 5 do C.Penal, constando da acusação um lapso de escrita relativamente às alíneas do nº 1, “atendendo a que o arguido e a ofendida no período compreendido entre o dia 7 de agosto de 2005 e o dia 27 de novembro de 2023 foram casados um com o outro e tem filhos em comum, nomeadamente EE, FF e GG, FF” (conclusão 21ª do recurso do Ministério Público).
Conforme decorre do teor dos pontos 1 a 4 da acusação, o arguido e a ofendida foram casados entre si, têm três filhos e os factos imputados reportam-se ao período em que viveram juntos (de ../../2005 a ../../2023).
Neste contexto, a parte final da acusação (“um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal”) consubstancia um lapso manifesto e, como tal, suscetível de retificação nos termos do art. 380º, nº 1, al. b) e nº 2 e 3 do C.P.Penal, procedendo o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, à correção dos atos decisórios previstos no art. 97º do C.P.Penal, quando contiverem “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial” (cfr. Acórdão do TRC de 15.06.2011, Proc. nº 465/10.2PCCBR.C1).
Trata-se, portanto, de um lapso material da acusação, suscetível de correção nos termos previstos no art. 380º, nº 1, al. b) e nº 2 e 3 do C.P.Penal, mediante a substituição da al. b) do nº 1 do art. 152º do CPenal pelas als. a) e c) do nº 1 do art. 152º do CPenal, o que se determina.
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Nos termos do disposto no art. 152º, nº 1, al. a) do C.Penal (na parte relevante para estes autos), comete o crime de violência doméstica: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada ou não, afetem a dignidade pessoal e o desenvolvimento da personalidade e do bem-estar da vítima — pretende-se, pois, evitar formas de violência na família, educação e trabalho.
A vítima, que é qualquer pessoa indicada nas várias alíneas do nº 1 do art. 152º do C.Penal, que tem, ou tenha tido, uma relação de proximidade (maior ou menor) com o agressor.
Considerando a inserção sistemática da incriminação (no título dos crimes contra as pessoas), o bem jurídico protegido relaciona‐se com a proteção da pessoa individual e, nessa perspetiva, com a defesa da sua dignidade humana.
Poder-se-á, pois dizer-se, tal como refere Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 512): “o bem jurídico diretamente protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e (…) que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex‐conjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem‐estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.
Segundo Plácido Conde Fernandes (in “Violência doméstica. Novo Quadro Penal e Processual Penal”, pág. 31, e-book do CEJ, abril 2021, in www.cej.pt): “A tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação, ou em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo relacional, presente ou pretérito, de vida em comum, numa acepção ampla do termo, sendo em certos casos para tutela do seu património afectivo comum”.
Face ao exposto, concluímos que “o bem jurídico tutelado pela incriminação do crime de violência doméstica consiste na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana bem como da própria saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, pretendendo aqui prevenir-se todas as violações deste bem jurídico que ocorram no seio da família, entendida esta num conceito lato. Na verdade, o crime em apreço pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos, sempre pressupondo um nexo relacional presente ou pretérito, de vida em comum, numa acepção ampla do termo, sendo em certos casos para tutela do património afectivo comum - a tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação ou mesmo em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa, entendendo o legislador existir uma necessidade acrescida de tutela quando as vítimas estejam nalguma das referidas relações com o agente dos factos. O crime imputado ao arguido é aquilo que a doutrina considera um crime específico, que desde logo pressupõe a existência de uma determinada relação entre o seu agente e o sujeito passivo dos comportamentos em causa, relação essa que é, precisamente, a ratio desta incriminação” (Acórdão do TRL de 09.11.2023, Proc. nº 1169/19.6PASNT-9).
O “Mau trato” só por si é qualquer ato de violência que, em geral, consiste na prática de uma ação (podendo ser cometida por qualquer meio), mas que também pode acontecer por omissão, desde que o agente tenha posição de garante (como sucede, por exemplo, quando o agressor deixa o ofendido, que está sob a sua responsabilidade, ao frio ou sem tomar a devida medicação, sem comer, ficando em perigo para a sua saúde), que produz ou pode produzir um efeito, dor, dano ou sofrimento, seja físico, sexual, psicológico, emocional ou económico (ver definição do art. 3.º, al. a) da Convenção de Istambul).
Pelo que, como refere Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2ª Ed., 2012, p. 519 e 520, § 11, parte final): “(…) após a Revisão Penal de 2007, não se exige sempre (…), para haver o crime de violência doméstica, a reiteração; mas tal não significa que, tratando-se de infracções de pouca gravidade, baste uma única infracção para a sua qualificação como crime de violência doméstica ou de maus tratos; nesta segunda situação continua a ser exigível a reiteração.”
Assim, o âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada (traduzindo-se cada uma das condutas, à sua maneira, na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos à vítima), ou não - podendo ocorrer uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar -, afetem a dignidade pessoal e o desenvolvimento da personalidade e do bem estar da vítima. Em suma, pretende-se evitar formas de violência na família, educação e trabalho.
A conduta típica tanto pode consistir num único ato, como numa pluralidade de atos ligados por uma unidade contextual, embora em ambas as situações se verifique uma unidade de ação. As condutas típicas que integram o elemento objetivo do tipo do ilícito podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais voluntárias simples) e maus tratos psíquicos (insultos, críticas e monetários destrutivos, achincalhantes e vexatórios, humilhações, provocações, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaças).
Inclui, além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima (ver art. 25º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa).
Tais comportamentos, se apreciados isoladamente, podem não assumir relevância criminal, ou podem ser suscetíveis de configurar outros tipos de crime menos graves do que a violência doméstica, nomeadamente crimes de ofensa à integridade física simples (art. 143º), ameaça, simples e agravada (art. 153º e 155º/1), coação (art. 154º), difamação (art. 180º), injúria (art. 181º), violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190º), etc.
Porém, o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, pois está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, afetadas através de um clima de medo, angústia, intranquilidade.
A panóplia de ações que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se, pois, em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.
Nesta conformidade, podemos assentar, partindo do bem jurídico aqui tutelado, que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa.
O crime de violência doméstica é agravado, nos termos do nº 2 do art. 152º do C.Penal, quando os factos sejam praticados contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima. Tal justifica-se por se entender, na primeira e segunda situações, que existe uma maior gravidade do facto, na medida em que o agente impõe a uma pessoa especialmente indefesa em razão da idade, a sua conduta agressiva, ou impõe-lhe que assista à violência dirigida a uma terceira pessoa. Quanto à terceira situação, por se entender que, em tal circunstância, a vítima se encontra mais desprotegida, já que tudo se passa no recato do lar, supostamente um local de intimidade e de privilegiadas proteção e tranquilidade, fator que tem levado muitos autores a dizer que a casa é um dos lugares mais “perigosos” das sociedades modernas.
No caso vertente, o arguido e a vítima contraíram matrimónio no dia ../../2005, tiveram três filhos já maiores, nascidos antes da celebração do casamento (EE, FF e GG), separaram-se em ../../2023 e o casamento foi dissolvido por divórcio decretado no dia ../../2023.
Resulta da factualidade provada que, desde o início do relacionamento, o arguido:
a) controlava a ofendida BB, insultando-a diariamente de “filha da puta”, “porca”, “cabra”, dizendo que “não valia nada”;
b) tratava a ofendida de forma agressiva, e controlava a sua vivência comportamentos estes que se têm vindo a adensar após o mesmo ter sofrido vários AVC´s, o primeiro em 2016;
c) deixava gravadores escondidos, na sala, na cozinha e na casa de banho para saber o que a ofendida fazia durante o dia, com quem falava e o que dizia;
d) com frequência não concretamente apurara, desligava o quadro elétrico para a ofendida não conseguir fazer os seus afazeres ou ver televisão, cortava o acesso à internet para que esta não a utilizasse e escondia a roupa íntima da ofendida e metia a sua roupa no lixo ou na sanita;
e) ia no encalço da ofendida de automóvel, quando esta fazia caminhadas, para verificar o percurso que fazia e quem a acompanhava;
f) agarrou o telemóvel da ofendida com força, enquanto esta falava com o filho EE, provocando a sua queda, pisou-o e agarrou a ofendida pelos ombros, abanando-a;
e) disse à ofendida, numa discussão após ela ter ido festejar o aniversário da filha GG: “Se voltas a chegar tarde a casa, enfio-te uma mangueira pela gola para te engasgares”;
f) tentou retirar o telemóvel à ofendida e apelidou-a de “estupida, burra, vaca, cabra”, o que apenas cessou com a intervenção da FF;
g) desdenhava, com uma frequência semanal, da comida confecionada pela ofendida, arremessando o seu prato pela mesa, após o que se ausentava para fazer a sua refeição no restaurante.
Provou-se ainda que o arguido (ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente entre ambos) agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento que manteve com a vítima, no interior da residência que partilharam e na presença dos filhos, molestar física e psicologicamente BB, atemorizá-la, ofendê-la na sua honra e consideração pessoal e prejudicar a sua liberdade de ação, bem sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, com propósito de molestar a sua saúde física e psíquica, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu.
Do exposto resulta que os factos são claros e demonstram que o arguido infligiu agressões físicas e psíquicas à aqui ofendida.
Está igualmente provado o dolo (direto), pois o arguido sabia que a ofendida era a sua companheira e mulher, e quis ofender (e ofendeu) a sua integridade física e psíquica. E, bem assim, a ilicitude (o desvalor jurídico-penal da sua conduta e do resultado).
Não temos qualquer dúvida de que os episódios descritos, no seu conjunto e assentes na especial relação entre agressor e vítima, traduzem um padrão de comportamento, prolongado no tempo, consubstanciado no sentimento de posse, no achincalhamento, humilhação e desprezo pela vítima, na ameaça e no insulto e espelham um quadro especialmente desvalioso (através da criação de um clima de medo, fragilidade, humilhação, controlo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade) que não é suficientemente protegido pela punição do crime de injúria.
Todo o contexto global dos factos apurados (assentes na especial relação entre agressor e vítima e praticados, na sua maior parte, na residência familiar) transmite uma imagem global gravosa de violência, humilhação, controlo e apoucamento da vítima que vai muito para além da mera imputação de factos lesivos da honra e consideração da ofendida. Tais factos (pela reiteração, intensidade e repercussão) permitem concluir inequivocamente pelo preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do tipo em legal em apreço e, inexistindo circunstâncias excludentes da ilicitude ou da culpa, impõem a condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. a) e c) e nº 2, al. a) do C.Penal.
Pelo exposto, o presente segmento de recurso é procedente.
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4.Medida da pena
Feito o preenchimento jurídico da conduta criminosa há que determinar a medida da pena concreta adequada ao arguido.
A prática de um crime de violência doméstica prevista no art. 152º, nº 1, als. a) e c), e nº 2, al. a) do C.Penal é punida com pena de prisão de 2 a 5 anos (de acordo com a agravante decorrente da prática de factos criminosos no domicílio comum e na presença dos filhos).
O Ministério Público considera adequada a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, “subordinada a regime de prova, bem como à frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, dinamizado pela DGRSP, o qual deverá ser útil a promover a interiorização pelo arguido do desvalor da sua conduta, a prevenção da reincidência, e a aquisição de competências pessoais e sociais que lhe permitam adotar um padrão comportamental de reação ajustada”.
No que respeita à determinação da medida da pena, de acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa – art. 40º, nº 1 e 2 do C.Penal) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – art. 71º, nº 1 do C.Penal), deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os fatores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido art. 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da ação e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.
Sendo assim, a primeira operação da determinação da pena deve ser a graduação qualitativa da culpa, isto é, do desvalor jurídico da atuação voluntária contrária ao Direito, materializada numa ação violadora da lei penal.
Regressando ao caso concreto, há que atender:
- à postura do arguido que apenas assumiu ter colocado um gravador na casa de banho;
- às circunstâncias e ao período durante o qual praticou os factos (desde o início do relacionamento – tendo casado no dia ../../2005, separaram-se em ../../2023 e divorciaram-se em ../../2023);
- ao modo de execução, à diversidade de comportamentos do arguido e à reiteração dos mesmos num período prolongado de tempo;
- às consequências da sua conduta (fez com que a vítima se sentisse aterrorizada, com muito receio, insegura, ansiosa e com medo do que pudesse cumprir as ameaças) - molestou a sua saúde física e psíquica, atemorizou-a, ofendeu-a na sua honra e consideração pessoal, prejudicou a sua liberdade de ação, humilhou-a e desconsiderou-a;
- à culpa de grau elevado (sob a forma de dolo direto);
- à elevada ilicitude dos factos;
- às elevadíssimas exigências de prevenção geral para este tipo de crime;
- às consideráveis necessidades de prevenção especial (na medida em que o arguido tem de ser alertado para a gravidade do seu comportamento, de modo a corrigir-se, evitando-se assim futuros atos de delinquência) mas também à sua inserção social e à ausência de antecedentes criminais.
Tudo ponderado, tomando como referências a culpa do agente, como limite absoluto da pena, ponderados os mínimos exigíveis pela prevenção dissuasiva e os limites decorrentes da prevenção especial positiva como critério último para determinação da medida ótima da pena, quanto ao arguido entendemos que se afigura justo, adequado e proporcional aplicar uma pena de dois anos e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Tal pena deverá ser subordinada a regime de prova, bem como à frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, dinamizado pela DGRSP, o qual deverá ser útil a promover a interiorização pelo arguido do desvalor da sua conduta, a prevenção da reincidência, e a aquisição de competências pessoais e sociais que lhe permitam adotar um padrão comportamental de reação ajustada.
Por outro lado, atendendo à condenação do arguido no pagamento de uma indemnização à ofendida afigura-se idóneo condicionar ainda a sua suspensão ao pagamento, por parte do arguido, da totalidade da indemnização até ao final da suspensão, nos termos do art. 51º, nº 1, al. a) do C.Penal, .
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5. Se o valor da indemnização civil por danos não patrimoniais que o arguido/demandado AA foi condenado a pagar à assistente/demandante BB deve ser aumentado
Os recorrentes insurgem-se contra o arbitramento da indemnização sustentando que fica aquém da justa compensação que a assistente merece para atenuar os sofrimentos por que passou, pelo que, no entender do Ministério Público, deve ser aumentada para € 5.000,00 (conclusão 26ª).
A assistente peticionou a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 5.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a prática do ilícito.
O tribunal recorrido condenou o arguido/demandado a pagar à demandante/assistente a quantia de € 1.000,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados da decisão recorrida até integral pagamento.
Nos termos do art. 400º, nº 2 do C.P.Penal, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em metade desta alçada.
Em matéria cível, a alçada dos tribunais de 1ª instância é de € 5.000,00 (cfr. art. 44º, nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Assim sendo, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições:
- que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00, e
- que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.
No caso concreto, o valor do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante é de € 5.000,00 e, tendo o demandado sido condenado no pagamento da quantia de € 1.000,00, é de € 4.000,00 o valor do decaimento.
Nessas circunstâncias, facilmente se constata que, desde logo, não verifica a primeira das aludidas condições, pois o valor do pedido formulado não é superior a € 5.000,00, mostrando-se a sentença insindicável no que tange à condenação no pedido cível, por intermédio de recurso ordinário.
Sendo, por conseguinte, inadmissível o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil, motivo pelo qual dele não se pode conhecer.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, após conferência, em:
a) Julgar inadmissível o recurso quanto ao pedido de indemnização civil, por falta de alçada;
b) Proceder à correção da acusação, mediante a substituição da al. b) do nº 1 do art. 152º do CPenal pelas als. a) e c) do nº 1 do art. 152º do CPenal;
c) Revogar a sentença recorrida quanto à condenação de AA pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181º do C.Penal;
d) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do art. 152º, n.º 1, alíneas a) e c), e nº 2, alínea a) do C.Penal, na pena de dois anos e nove meses de prisão; Suspender a pena de prisão aplicada por igual período de tempo (art. 50º do C.Penal), subordinada:
- a regime de prova, bem como à frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, dinamizado pela DGRSP, o qual deverá ser útil a promover a interiorização pelo arguido do desvalor da sua conduta, a prevenção da reincidência, e a aquisição de competências pessoais e sociais que lhe permitam adotar um padrão comportamental de reação ajustada, nos termos do art. 53º do C.Penal, bem como, ao abrigo do disposto no art. 51º do C.Penal; - ao pagamento, por parte do arguido, da quantia de € 1.000,00 (mil euros) à ofendida, até ao final da suspensão, nos termos do art. 51º, nº 1, al. a) do C.Penal;
Sem custas.
[1]“A repetição, réplicas e a frequência das condutas ao longo de determinado período de tempo (“x” vezes por mês; por ano; ou um número indeterminado durante 3 anos), integram a singularidade e a ontologia desse facto (maus tratos), enriquecendo o processo de identificação do mesmo pela defesa” – Ac. TRP de 16.03.2022 disponível in www.dgsi.pt. [2]“A imediação é absolutamente fundamental para avaliar a prova produzida, designadamente para aferir da credibilidade de um depoimento, uma vez que este não ocorre no vazio, numa realidade assética, antes desenvolve-se num contexto captado pelo julgador, em audiência de julgamento, na observação da respetiva posição corporal, gestos, olhares e hesitações, tom de voz, embaraços e desembaraços evidenciados ao longo do mesmo” (Acórdão deste TRL de 14.11.2023, Proc. nº 30/22.PEAMD.L1-5). [3] Sobre o reconhecimento e validade jurídico-processual da prova indireta ou indiciária, o Acórdão do TRG de 19.01.2009, Proc. nº 2025/08-2