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APREENSÃO DE BENS
NECESSIDADE
RESTITUIÇÃO
Sumário
1. A apreensão de bens em processo penal tem uma finalidade probatória – já que o bem apreendido poderá consubstanciar, ele próprio, a prova da prática do facto ilícito, que se procura conservar –, a par do desígnio (confiscatório) de garantir a execução da declaração de perda do bem apreendido a favor do Estado, por ser instrumento, produto, vantagem ou recompensa (directa ou indirecta) da prática de ilícito criminal. 2. Mas, a apreensão tem como regra base o princípio da necessidade, pelo que, no que concerne à revestida finalidade probatória, logo que se torne desnecessário mantê-la, os bens dela objecto são restituídos a quem de direito, nos termos do artigo 186º, n.º 1, do CPP. 3. Já quando se trate de um bem apreendido que tenha a potencialidade de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, a ponderação sobre a sua restituição, em princípio, apenas deve ter lugar em sede de sentença, nos termos do n.º 2 de tal preceito, porque dificilmente poderá ser realizada na fase de inquérito ou na de instrução. 4. Todavia, no caso em apreço, deve determinar-se a restituição imediata da quantia apreendida, pois é indubitável que não subsiste qualquer dos propósitos que poderiam justificar a sua apreensão: é muito remota a hipótese de a mesma vir a ser declarada perdida a favor do Estado, porquanto se mostra fortemente indiciado que proveio licitamente ao património da ofendida, que a sua deslocação para a esfera da arguida apenas teve na sua génese o engodo em que a actuação desta a fez incorrer, sem qualquer outra relação subjacente, e que a ofendida, por tal razão, se encontra numa situação de grave carência.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães
I - Relatório
Nos autos de inquérito (actos jurisdicionais) referentes ao processo n.º 71/23.1T9FAF, a correr termos no Juízo Local Criminal de Fafe, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por decisão proferida em 27-01-2023 foi decretada a apreensão do saldo bancário da conta com o IBAN ...45, sedeada no Banco 1..., titulada por AA, até ao limite de € 67.840,00.
Em 23-10-2024, o Ministério Público, previamente à dedução da acusação, promoveu a restituição da quantia de € 2.840,00 (Dois mil, oitocentos e quarenta euros) à ofendida BB e da quantia de € 65.000,00 (Sessenta e cinco mil euros) à sociedade “EMP01..., Lda.”, através da transferência das aludidas quantias para as contas de origem, ao abrigo do disposto no artigo 186º, n.º 1 do CPP.
Em 12-05-2025 foi proferida decisão a indeferir a restituição.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso cuja motivação rematou com conclusões em que suscita a questão de saber se a decisão recorrida, que indeferiu a restituição das quantias monetárias apreendidas nos autos, deve ser revogada por violação do disposto no art. 186º, n.º 1 do CPP, uma vez que não existem fundamentos de facto e de direito que justifiquem a apreensão, tanto mais que não se perspectiva qualquer futura perda a favor do Estado.
O recurso foi regularmente admitido.
E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procuradora-Geral Adjunto emitiu alicerçado parecer secundando a argumentação do despacho recorrido por considerar prematura a ordem de entrega da quantia apreendida.
Cumprido o disposto no n.º 2, do art. 417º do CPP, feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
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II - Fundamentação
1. Delimitação do Objecto do Recurso
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente (por obstarem à apreciação do seu mérito), importa apreciar a acima enunciada questão, para o que são pertinentes o teor da decisão recorrida, os factos e as ocorrências que se extraem da tramitação dos autos.
2. Da decisão recorrida:
“ No caso sub judice a apreensão do saldo bancário a fls. 25 e ss, tendo em conta a fase processual em que nos encontramos, fundou-se apenas em indícios de que o mesmo, na medida apreendida, tem origem na prática de um crime, sendo que, nem esse despacho, nem a promoção que o antecedeu, nem mesmo o libelo acusatório constituem uma decisão final e definitiva quanto à efectiva prática de crime pelos arguidos, o que caberá ser apurado e discutido em sede própria de audiência de julgamento.
Assim sendo, afigura-se precoce, juridicamente inseguro e contra-indicado nesta fase intermédia dos autos, não estando consolidados os factos aqui em discussão, e podendo ainda sobre os mesmos recair diversas soluções jurídicas, entregar o montante aqui apreendido, seja aos requerentes de fls. 167 e 169, seja até ao arguido, titular da conta bancária onde o montante foi apreendido, ficando assim o mesmo - o qual ascende a uns expressivos €67.840, 00- ainda antes do julgamento, fora do alcance da justiça.
Com efeito, a apreensão de saldos bancários não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos ou direitos apreendidos à ordem do processo até à decisão final.
Ora na presente fase processual - mero final do inquérito - não podemos ainda ter como certo e seguro a “quem de direito” deve ser entregue o montante apreendido, o que se encontra intrinsecamente associado à discussão do mérito da causa, a saber, se os arguidos acusados cometeram ou não os crimes que lhe são imputados, o que será discutido na fase de instrução ou julgamento, devendo ser na sentença a proferir tal questão decidida, de acordo com o que então vier a ser demonstrado e decidido- Art.186.º do CPP (1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário. 2 - Logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado e art. 374.º, n.º3, al. c) do CPP: - “A sentença termina pelo dispositivo que contém: c) A indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas”.
Acresce que os arguidos já constituíram mandatário e informaram os mesmos qual a sua morada no Brasil, tendo recentemente sido expedidas cartas rogatórias pelo MP, pelo que a normal tramitação dos autos se encontra em pleno desenvolvimento.
De referir igualmente que grande parte do montante aqui em causa está igualmente a ser alvo da investigação noutro processo, pois a fls. 260 foi ordenada a extracção de certidão de todo o processado para instauração de inquérito autónomo referente à prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 205º, n.º1 e n.º4, al. b) e 202º, al. b), ambos do Código Penal, tendo aí como ofendida a sociedade “EMP01..., Lda.”, inquérito este co-relacionado com estes autos, que se encontrará ainda em curso, ignorando-se o que até este momento aí se logrou apurar.
Igualmente se nos afigura, face ao acima dito, que os argumentos avançados junto do MP pelos requerentes a fls. 167 e ss e 169 e ss (meros constrangimentos financeiros), não poderão, ainda assim, servir para ultrapassar o peso do acima esgrimido e a fase de pré-julgamento dos autos em que nos encontramos.
Pelo exposto, indefere-se, por ora e nesta fase, a restituição requerida/promovida.”
3. Outros factos e Ocorrências dos autos
No decurso da investigação foi ordenada a extracção de certidão do processado para instauração de inquérito autónomo referente à eventual prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 205º, n.º1 e n.º4, al. b) e 202º, al. b), ambos do Código Penal, tendo como ofendida a sociedade “EMP01..., Lda.”.
Os arguidos, logo após a apreensão em causa, regressaram ao Brasil e, depois, vieram aos autos constituir mandatário e opor-se à restituição das quantias apreendidas, invocando que estas estão intimamente relacionadas com a questão de fundo, sustentando não serem produto da prática de qualquer crime na conta bancária da titularidade do arguido.
4. Apreciação do Recurso - a restituição da quantia monetária apreendida nos autos
De acordo com o disposto no artigo 186º, n.º 1, do CPP, logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário.
E é certo que, nos termos do n.º 2 de tal preceito, quando se trate de um bem apreendido que tenha a potencialidade de vir a ser declarado perdido a favor do Estado – por se suspeitar ser instrumento, produto, vantagem ou recompensa (directa ou indirecta) da prática de ilícito criminal –, a ponderação sobre a sua restituição, em princípio, deve ter lugar apenas em sede de sentença, porquanto, dificilmente poderá ser realizada na fase de inquérito ou na de instrução.
Todavia, é diversa a natureza do caso em apreço. Vejamos:
A arguida vem acusada da prática do crime de burla qualificada, p. e p. das disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º n.º 2 alínea a), por referência ao artigo 202.º alínea b), do Código Penal, e do crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368º-A, do Código Penal, e o arguido da prática do crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs. 1 e 3 do Código Penal. Para tanto, é-lhes imputado, no contexto dos factos descritos na acusação, ter a primeira convencido a ofendida a transferir a quantia apreendida (€ 67.840) duma sua conta bancária e duma conta da sociedade de que era sócia gerente para a conta bancária titulada pelo arguido AA, a qual este foi transferindo, sequentemente, para a conta da arguida.
Ora, mostram-se documentalmente indiciadas a proveniência lícita da quantia em causa e as contas de onde foi retirada e para onde foi transferida, bem como também flui do apontado na acusação que a mesma deslocação patrimonial apenas teve na sua génese o engodo em que a ofendida incorreu por força da actuação da arguida e do seu companheiro, sem qualquer outra relação subjacente.
Por outro lado, mostra-se igualmente indiciado que, para concretizar essa deslocação, a ofendida, para além de retirar valores da empresa de que era sócia gerente, recorreu a um empréstimo bancário, encontrando-se actualmente numa situação de grave carência.
Acresce que os arguidos residem no Brasil e, pese embora tenham constituído mandatário e indicado uma residência, prevê-se que o processo venha a ter um desfecho excessivamente distante, com o evidente prejuízo daí advindo e com o eventual perigo para o Estado na manutenção da apreensão até então.
Assim, resultando fortemente indiciado que a quantia apreendida tem uma origem lícita e que às mencionadas transferências não está subjacente qualquer relação causal que as justifique, a não ser a que consta da douta acusação pública, é muito remota a hipótese de tal quantia vir a ser declarada perdida a favor do Estado, como muito bem salienta o Ministério Público.
Salvo o devido respeito, a argumentação expendida na decisão recorrida quanto à extracção de uma certidão para instauração de inquérito autónomo para investigação sobre a eventual prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 205º, n.º 1 e n.º 4, al. b) e 202º, al. b), ambos do Código Penal, tendo como ofendida a sociedade “EMP01..., Lda.”, não colhe, na medida em que a ofendida é precisamente a entidade que reclamou a restituição de parte da quantia apreendida.
Na verdade, a apreensão tem como regra base o princípio da necessidade. Logo que o mesmo cesse, impõe-se observar a restituição do bem apreendido ([1]).
Similarmente, Paulo Albuquerque ([2]) assevera que os bens apreendidos devem ser restituídos aos respectivos proprietários ou possuidores quando se verificar que os pressupostos da apreensão não se mantêm, sejam os objectos propriedade do arguido ou de terceiras pessoas.
A apreensão, consistindo numa restrição de direitos e liberdades resultantes da aplicação de medidas cautelares em sede penal, está sujeita aos princípios da proporcionalidade e da necessidade, que se traduzem na respectiva redução (quer em extensão, quer temporalmente) ao mínimo indispensável à satisfação dos objectivos processuais que a lei visa satisfazer através de tal medida provisória restritiva do ius utendi, fruendi et abutendi inerente, no caso, ao direito de propriedade e aos direitos de uso a ele associados.
A impossibilidade de utilizar certo bem, ainda que temporária, gera, virtualmente, danos associados (com maior ou menor gravidade), razão pela qual deve ser o mais possível restringida, ainda que sem colocar em perigo o ius puniendi prosseguido pelo Estado.
É na busca desse equilíbrio entre os vários interesses em jogo que se insere o dever de restituição dos bens apreendidos logo que a sua manutenção deixe de ser necessária para assegurar as finalidades visadas pela apreensão, sem as descuidar.
Segundo cremos, constitui entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a apreensão tem uma finalidade probatória – já que o bem apreendido poderá consubstanciar, ele próprio, a prova da prática do facto ilícito, que se procura conservar –, a par do desígnio (confiscatório) de garantir a execução da declaração de perda do bem apreendido a favor do Estado, quer se trate de um instrumento do crime ou de produto, vantagem ou recompensa (directa ou indirecta) obtidos através da prática do crime.
E quanto à respectiva oportunidade, é indubitável que a restituição do bem apreendido deverá ocorrer logo que a apreensão deixe de manter justificação no preenchimento de qualquer dos propósitos que lhe subjazem, por respeito ao princípio da necessidade.
Ora, como se infere do que supra se disse, no caso em apreço, não perdura a razão de ser de qualquer de tais propósitos, pelo que, tudo ponderado, deve revogar-se a decisão recorrida e determinar-se a restituição das quantias apreendidas, através da sua transferência para as contas de origem.
III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e determinar, ao abrigo do disposto no artigo 186º, n. 1 do CPP, a restituição da quantia de € 2.840,00 (Dois mil, oitocentos e quarenta euros) à ofendida BB e a restituição da quantia de € 65.000,00 (Sessenta e cinco mil euros) à sociedade “EMP01..., Lda.”, através da sua transferência para as contas de origem.
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)
[1] Cfr. Vinício Ribeiro, in “Código de Processo Penal, Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2008, a fls. 374. [2] in “Comentário do Código Penal”, p. 504.