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REJEIÇÃO DO RECURSO
NÃO INDICAÇÃO DAS NORMAS VIOLADAS
EXTINÇÃO DA QUEIXA
PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE
DIFAMAÇÃO
PEÇA PROCESSUAL
ADVOGADO
Sumário
I- Na hipótese de o recorrente defender, quer na motivação, quer nas conclusões do recurso, uma subsunção jurídica diversa daquela que foi seguida na decisão recorrida, a qual considera errada, fazendo referência às normas em causa, o recurso não deverá ser rejeitado com fundamento na falta de indicação expressa das normas violadas. II- No caso de crime de difamação alegadamente cometido por advogado em peça processual por ele subscrita não é legalmente possível presumir uma situação de comparticipação entre o advogado e o cliente. Ou seja, é necessário que se comprove / indicie uma situação de comparticipação, uma vez que apenas neste caso, tendo sido apresentada queixa contra um dos comparticipantes, é possível concluir pela violação do princípio da indivisibilidade da queixa e da acusação particular a que se referem os artigos 115º, nº 3 e 117º do Código Penal, o mesmo é dizer pela falta de uma condição de procedibilidade.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
1. No processo nº 3482/23.9T9VCT, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal – Juiz ..., em que é arguido AA e assistente BB, sendo também ofendida CC, todos com os demais sinais nos autos, tendo o assistente deduzido acusação, que o Ministério Público declarou não acompanhar, o arguido requereu instrução, no final da qual foi proferida decisão instrutória com o seguinte dispositivo (transcrição)[1]:
Em conformidade com o exposto, O TRIBUNAL DECIDE:
II. Ao abrigo do disposto no artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
a) Declarar-se nula a acusação particular quanto ao crime de difamação, p. e. p. pelo artigo 180.º do Código Penal, imputado ao arguido pela ofendida CC, atenta a falta de uma condição de procedibilidade, conforme acima referido, determinanado-se, neste particular, consequentemente, o arquivamento dos atos.
b) Declarar-se extinto o procedimento criminal da douta acusação particular apresentada pelo assistente BB quanto ao crime de difamação, p. e. p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, deduzida quanto ao arguido AA, pelo não preenchimento de uma condição de procedibilidade, de acordo com o disposto nos artigos 115.º n.º 3 e 117.º, ambos do Código Penal, Determinando-se o arquivamento dos autos nesta parte.
c) Fica prejudicada a abertura de instrução requerida pelo arguido quanto ao demais invocado em sede de RAI.
2. Não se conformando com a mencionada decisão, dela interpôs recurso o assistente, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A. Foi proferida decisão instrutória, decidindo o Digno Tribunal nos termos que infra se transcrevem:
Em conformidade com o exposto, O TRIBUNAL DECIDE:
II. Ao abrigo do disposto no artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
a) Declarar-se nula a acusação particular quanto ao crime de difamação, p. e. p. pelo artigo 180.º do Código Penal, imputado ao arguido pela ofendida CC, atenta a falta de uma condição de procedibilidade, conforme acima referido, determinanado-se, neste particular, consequentemente, o arquivamento dos atos.
b) Declarar-se extinto o procedimento criminal da douta acusação particular apresentada pelo assistente BB quanto ao crime de difamação, p. e. p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, deduzida quanto ao arguido AA, pelo não preenchimento de uma condição de procedibilidade, de acordo com o disposto nos artigos 115.º n.º 3 e 117.º, ambos do Código Penal, Determinando-se o arquivamento dos autos nesta parte.
c) Fica prejudicada a abertura de instrução requerida pelo arguido quanto ao demais invocado em sede de RAI.
B. O recorrente por não se conformar com a douta decisão instrutória interpõe competente recurso.
C. Na verdade, salvo o devido respeito por melhor opinião, o recorrente entende que a matéria sujeita a exame pelo tribunal recorrido merece outra apreciação, nomeadamente no que toca à apreciação dos normativos legais e subsunção dos mesmos aos factos, conforme se procurará demonstrar.
D. O Digno Tribunal a quo decidiu pela extinção do procedimento criminal sustentando a sua decisão na falta de um pressuposto positivo de punição ou de uma condição legal de procedibilidade.
E. É entendimento do Tribunal que nos presentes autos o mandante dos autos de processo administrativo n. 431/23.8BEBRG, o Município ..., deveria ter sido participado criminalmente e não o tendo sido, tal equivale a uma desistência, quer da queixa, quer da acusação, que aproveita ao arguido, resultando daqui que o procedimento criminal não poderá prosseguir apenas contra este, atento o disposto no art.º 115.º, n.º 3, do CPenal.
F. O arguido vem acusado pela prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180.º, n.º 1 do CPenal.
G. O Tribunal decidiu pelo não preenchimento de uma condição de procedibilidade, de acordo com o disposto nos artigos 115.º n.º 3 e 117.º, ambos do Código Penal.
H. Quanto a tal sempre diremos que aquele princípio significa, simplesmente, que a queixa deverá ser apresentada contra todos os comparticipantes conhecidos.
I. Este princípio da indivisibilidade da queixa - e da acusação – tem como objetivo evitar que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso, em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado.
J. In casu, temos uma situação em que se discute a eventual comparticipação criminosa (cfr. art.º 26.º do CP), entre o advogado subscritor de uma peça processual e o respetivo mandante.
K. Porém, o recorrente discorda atenta a natureza da parte omissa na participação crime e devido à natureza do mandato forense e às regras que o aqui arguido estava sujeito.
L. Quanto à primeira, o tipo de crime aqui em causa, não se coaduna com a prática por uma pessoa coletiva, dado que, só a pessoa humana estará apta, em virtude de reunir todas as potencialidades que o permitem, a praticar um crime como o dos autos e, nunca, uma pessoa coletiva, que não têm a individualidade e a natureza intrínseca da pessoa, e, apenas, age por intermédio dos seus representantes legais, ou seja, de pessoas singulares.
M. Por tudo isto, nunca e em momento algum, poderá uma pessoa coletiva ter praticado ou praticar um crime da natureza do que está em causa nos presentes autos, dado não ter as qualidades para agir autonomamente face aos seus representantes legais, ficando claro que os presentes autos não padecem de qualquer vício relativamente ao princípio da indivisibilidade da queixa – cfr. o plasmado no n.º 3 do art.º 115.º do CPenal.
N. Quanto ao princípio da indivisibilidade da queixa propriamente dito, não vislumbramos qualquer desrespeito pelo mesmo, uma vez que o recorrente participou criminalmente de quem tinha indícios, mais precisamente do mandatário judicial, não deixando dúvidas de que a autoria da peça processual que deu origem aos presentes foi da exclusiva autoria do advogado e não do mandante.
O. Aliás, é o advogado subscritor da peça que, lançando mão das suas legis artis e do seu know how, é o único e efetivo redator do texto e foi o arguido, nessa qualidade de autor, quem escolheu o conteúdo e a forma das menções desonrosas que se discutem nos presentes autos.
P. Sendo do mandante do efetivo teor das palavras escolhidas pelo advogado, aqui arguido e muito menos se, foi o mandante quem as elegeu para serem expressamente mencionadas na peça processual.
Q. Além disso, um advogado tem o dever acrescido, relativamente às partes, de saber que o uso de determinadas expressões e juízos ético-valorativos poderá desencadear consequências jurídicas graves, como efetivamente desencadeou.
R. Além de que, o mandatário forense, se agir de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade e, in casu, para que tivesse havido comparticipação no crime de difamação, ou seja, para que a legitimidade processual da parte englobasse outros sujeitos, no concreto caso o mandante, pelo crime cometido através de peça processual, seria necessário que existisse um acordo prévio, ainda que tácito, entre mandatário e mandante, para afirmação ou propalação de factos inverídicos.
S. Assim, se dos autos não decorre que o crime de difamação foi praticado em comparticipação entre o mandante e o seu advogado, subscritor da peça processual difamatória, ao ter sido deduzida queixa apenas contra o advogado, não se verifica a falta da condição de procedibilidade consignada no n.º 3 do art.º 115.º do CPenal.
T. Pelo que, não faz sentido a invocação da violação do princípio da indivisibilidade da queixa consagrado no referido normativo legal, o qual estipula: “O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.
U. Ademais, qualquer princípio admite exceção, pelo que no caso dos presentes autos não poderemos olvidar que estamos perante um mandato forense ou judicial, com os poderes conferidos pelo mandante que além dos gerais, conferiu também os “(…) poderes específicos para confessar, desistir e transigir em todo e qualquer processo judicial”, sendo nesse contexto e circunstância que o mandatário agiu em nome de outrem, a Câmara Municipal ..., a qual lhe conferiu todos os poderes para o efeito.
V. Perante o caso dos autos, temos para nós que a peça processual em causa, subscrita pelo arguido, abstratamente considerada, expressa o exercício de um direito ilegítimo, no que se refere às expressões e factos legados numa peça processual (processo administrativo n.º 431/23.8BEBRG).
W. As afirmações propaladas contêm um teor ofensivo da honra do recorrente, causando-lhe prejuízos na sua esfera profissional, social, pessoal e processual e relembrando, neste ponto, as expressões que nos art.ºs 80.º, 100.º e 101.º da contestação apresentada pelo arguido junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proc. n.º 431/23.8BEBRG:
X. Quanto ao art.º 80.º o arguido, neste ponto, reconheceu que se tratou de matéria diferenciada, o que demonstra a consciência de divulgar, no âmbito de um processo administrativo, um assunto relacionado com alegada atividade criminal que envolve o recorrente, mas que sequer foi condenado, juntando à contestação do processo administrativo, cópias de notícias que envolvem o recorrente e que em nada contendem com a causa administrativa em análise.
Y. Alegou tais fatos sem qualquer necessidade processual de os integrar na peça, descontextualizando-os, diminuindo e debilitando a posição processual do recorrente com o intuito de prejudicar a honra e imagem deste junto do julgador do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e de todos quantos se cruzassem com o processo.
Z. Quanto aos art.ºs 100.º e 101.º da contestação, o arguido equipara a conduta do recorrente à atitude de um assaltante de um banco, o que é de todo inconcebível e ofensivo, sendo patente que o arguido tinha conhecimento das inveracidades que escreveu na peça processual, da sua falta de fundamento e ainda da sua descontextualização.
AA. Mais, é notório que o único fito do arguido ao carrear considerações desnecessários foi denegrir a figura do ofendido, desconhecendo-se se foi ou não o mandante quem, expressamente exigiu que tais expressões figurassem na peça processual.
BB. Pelo que, pode concluir-se que não estamos perante uma situação de comparticipação criminosa, uma vez que o mesmo extravasou as regras deontológicas a que estava obrigado, havendo lugar, em nosso entendimento, ao prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido não havendo qualquer violação do princípio da indivisibilidade consagrado no art.º 115.º, n.º 2 do CPPenal.
CC. Mais, estando em causa a prática de atos por advogado, importa fazer algumas considerações sobre o mandato, que é um contrato de prestação de serviços «pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.» (cfr. artigo 1157.º, do Código Civil).
DD. O exercício da advocacia tem um estatuto e regulamentação próprios que se sobrepõem ao regime do mandato consagrado no referido código, sendo que o advogado, como mandatário judicial, pratica atos jurídicos por conta do mandante tendo em conta, regra geral, a factualidade narrada pelo cliente.
EE. Pois bem, segundo a normalidade do desenvolvimento processual, para haver comparticipação num crime de difamação, numa peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo que tácito, entre mandatário e mandante, para afirmar ou propalar factos inverídicos, ou seja, o conhecimento e vontade de realização do fato anti-jurídico.
FF. O mandatário forense, de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade, sendo este é o princípio que deve estar subjacente.
GG.Os princípios da boa-fé e da colaboração entre os intervenientes processuais impõem tal premissa, sob pena de se tornar perverso, à partida, o acesso aos Tribunais, sem prejuízo da necessidade de estar atento a eventuais desvios que, justamente devido à sua natureza, devem ser alegados e provados e não tomados aprioristicamente.
HH.Há nos autos referências a que o respetivo mandatário ao transferir para a peça processual aquilo que lá consta, sabia que afirmava ou propalava factos inverídicos de carater valorativo, não tendo fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros esses factos inverídicos, resultando expressões com carácter difamatório, havendo, porém, necessidade de uso de critérios da necessidade e da proporcionalidade para balancear o uso da linguagem e as necessidades de defesa de direitos e, com “concretude” e tendo presentes as circunstâncias do caso, emitir esse juízo de necessidade e proporcionalidade adequado à defesa da causa.
II. Assim, por tudo isto, deve ser revogado o despacho de não pronúncia proferido nos presentes autos por um despacho de pronúncia e consequentemente, pronunciado o arguido pelo crime de que vinha acusado, com os factos constantes da acusação particular.
JJ. Quanto ao demais invocado em sede de RAI pelo arguido, este alegou a ausência da prática de qualquer infração criminal das afirmações expostas nos autos do processo administrativo, porém o arguido deliberada e intencionalmente, extravasou o âmbito do patrocínio judiciário.
KK. Aliás, o arguido, no art.º 42.º do Requerimento de Abertura de Instrução (RAI) alega que as notícias anexas ao processo administrativo na sua contestação eram “pertinentes para o êxito da defesa”,
LL. porém, a natureza daquele processo, relacionado com licenciamento urbanístico de muros em nada coincidia com as alegações e documentos que juntou administrativo.
Logo, não se consegue retirar esta pertinência e necessidade na escolha de junção de documentos, retirados do seu contexto original, acompanhados de alegações com o objetivo de diminuir e denegrir a honra e a imagem pessoal e processual do recorrente.
MM. Neste contexto, citamos o Tribunal da Relação do Porto, no Processo n.º 1687/21.6T9PVZ.P1 de 22/01/2025 5 que “o Advogado, pelos especiais conhecimentos que detém, deve discernir, de acordo com as instruções que recebeu e o objetivo conferido através do mandato, quais os factos relevantes para a procedência da sua pretensão processual e aqueles que nada acrescentam a essa defesa, reconduzindo-se a meras ofensas da honra da assistente.”
NN.Também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/01/2025, Processo n.º 4314/21.8T9LSB.L1-9 6 , afirma que “(…) no exercício dessa liberdade, que existe, insista-se, quanto à substância e quanto à forma, pode usar de palavras duras, cáusticas e agressivas, conquanto o que diz ou escreve não se consubstancie num insulto gratuito e apresente ligação ao caso concreto e uma suficiente base de facto.”
OO.Assim como, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/11/2023, Processo n.º 663/20.0KRLSB-A.L1-9, em que afirma que enquanto “(…) colaborador imprescindível à administração da justiça, o advogado goza assim de uma quase-imunidade no que toca a eventuais ofensas à honra ou consideração das pessoas visadas pelas suas intervenções processuais, na medida em que estas sejam necessárias ao exercício do patrocínio”,
PP. o que não se verifica no concreto caso.
QQ.De notar, que sequer o recorrente tem cadastro criminal, por conseguinte, o despropósito do afirmado é total.
RR. O arguido acha incompreensível e inaceitável, sem sentido e vexatória a analogia ao seu processo - uma impugnação judicial criminal de um ato administrativo relativo a um licenciamento urbanístico, em que é autor, a assaltantes de bancos.
SS. Aliás, é o próprio arguido que admite no art.º 52.º do RAI que os danos que necessariamente resultariam das notícias divulgadas na imprensa seriam sérios e graves, mas, ainda assim, optou, não se inibindo, de os juntar à peça processual.
Posto isto,
TT. e citando o Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Processo n.º 555/16.8T9STS.P1. de 23/02/2022: “à difamação e à[s] injúria[s] verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão, nos termos do art. 182º, do Código Penal”.
UU.Assim, a junção daqueles documentos à peça e o subscrito pelo arguido na peça processual que subscreveu, com recurso a analogias descontextualizadas e incriminatórias, demonstra a intenção do arguido ofender a honra formulando juízos negativos sobre o recorrente.
VV. Pelo que, também quanto a este ponto, deverá ser revogado o despacho de não pronúncia, sendo substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime de que vinha acusado.
Termos em que,
Requer-se a V. Exa. se digne admitir o presente recurso, devendo ao mesmo ser concedido provimento, revogando-se o Douto Despacho de não pronúncia, substituindo-o por outro que pronuncie o recorrido pelo crime de difamação p.e.p. art.º 180.º do Código Penal
Assim, farão V.ª Exas. a habitual justiça.
3. O Exmo. Procurador da República, na primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo assistente, sem formular conclusões, pugnando pelo não provimento do recurso.
4. O arguido respondeu ao recurso, tendo concluído nos seguintes termos ( transcrição):
I. A pessoa colectiva faz-se representar pelos respectivos representantes legais, o que significa que estes podem ser passíveis de imputação da prática de crimes, nomeadamente de um crime de difamação enquanto representantes daquela.
II. A queixa deveria ter sido apresentada igualmente contra o Presidente da Câmara Municipal ..., enquanto representante legal do Município ..., na medida em que os factos vertidos na peça processual que deram origem à participação criminal e aos presentes autos foram comunicados ao mandatário (ora recorrido) pelo mandante.
III. Os factos alegados na contestação que deu origem aos autos foram fornecidos ao recorrido, como sucede em todos os processos do mesmo, pelos serviços do Município, que era o Réu na acção administrativa n.º 431/23.8BEBRG pendente na U. O. 1 do TAF de Braga, em que eram Autores o ora recorrente e mulher e Réu o Município ..., os quais lhe forneceram igualmente os dois documentos que foram juntos com essa contestação sob os n.ºs. 34 e 35 e referidos na queixa, com o objetivo de se defender da matéria relativa ao pedido de condenação em indemnização do montante de € 305.000,00 pelos danos alegados na ação.
IV. O recorrido não tinha a mais leve razão para duvidar da autenticidade dos documentos que lhe foram entregues e da veracidade do conteúdo dos mesmos, uma vez que se tratava da reprodução feita pela imprensa do conteúdo de uma nota publicada pelo Ministério Público na sua página oficial da Internet, onde são divulgadas, desde há vários anos, as acusações que vai deduzindo no âmbito da sua atividade de investigação criminal.
V. A ter-se verificado – e não se verificou, – a prática de qualquer crime de difamação, o mesmo sempre teria de considerar-se imputável, em comparticipação, ao recorrido e ao representante legal do Município ..., ou seja, o Presidente da sua Câmara Municipal.
VI. A acusação particular deduzida pelo assistente (ora recorrente) foi-o apenas em relação ao recorrido, sendo certo que nem na queixa apresentada, nem na acusação particular consta qualquer circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva do mesmo pelas expressões e documentos juntos com a contestação do Município ....
VII. O próprio recorrente contradiz-se, ao reconhecer expressamente nas suas alegações, que o recorrido se limitou a alegar os factos que o mandante lhe transmitiu, actuando sempre no pressuposto da sua veracidade. – cfr. item 64. das suas alegações.
VIII. Uma vez que estamos perante factos imputados ao recorrido constantes de uma peça processual por si assinada enquanto advogado do mandante (Município ...), suscetíveis de, em abstracto, configurarem a prática de um crime de difamação, não pode aceitar-se a responsabilidade exclusiva do mesmo (recorrido).
IX. Também o mandante da peça processual (contestação) apresentada nos autos de processo administrativo n. 431/23.8BEBRG, no caso, o legal representante do Município ..., deveria ter sido visado na queixa, pressupondo a lei que esta omissão equivale a uma desistência, quer da queixa, quer da acusação, que aproveita aos restantes arguidos, donde resulta que o procedimento criminal não podia prosseguir apenas contra o recorrido, atento o disposto no artigo 115.º, n.º 3, do CP.
X. Nos artigos 114.º a 116.º do CP consagra-se o princípio da indivisibilidade da queixa, nos termos do qual se proíbe a possibilidade de escolha do ou dos comparticipantes ou agentes do crime, em caso da existência de crime.
XI. De acordo com tal princípio, o queixoso não pode escolher os comparticipantes contra os quais vá deduzir acusação e haverá lugar no processo penal, não poderá haver uma escolha de agentes do crime, pelo que o legislador não coloca, sem mais, na disponibilidade do titular do direito à acusação, o exercício dele contra um ou todos os participantes, antes fá-lo depender da existência de razões justificativas, como por exemplo da falta de indícios.
XII. Tratando-se de um pressuposto positivo da punição, ou de uma condição legal de procedibilidade a imposta pelo artigo 115.º, n.º 3 do Código Penal, aplicável à acusação particular nos termos do disposto no artigo 117.º do Código de Processo Penal, se o titular do direito de acusar não deduzir acusação contra todos os comparticipantes, essa omissão aproveita aos demais, não podendo o processo prosseguir por renúncia tácita do titular do direito – vide artigo 116.º do mesmo diploma.
XIII. A responsabilidade jurídico-criminal do mandatário forense ou judicial não configura qualquer excepção ao princípio da indivisibilidade do direito de queixa, antes sendo o princípio plenamente aplicável neste âmbito, como tem considerado a Jurisprudência nacional.
XIV. Em função do tempo decorrido, nem sequer pode já ser renovada a queixa, por ter desde há muito decorrido o prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1 do CP, sendo que, tendo já sido formulada acusação particular apenas contra o ora recorrido e não contra todos os comparticipantes do pretenso crime, extinguiu-se o direito de queixa e de acusação particular quanto a todos eles (pretensos comparticipantes).
XV. Em consequência da renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes do pretenso crime – o constituinte do recorrido, no caso, o representante legal do Município ... –, encontra-se extinto o procedimento criminal no que respeita ao recorrido, conforme considerou a douta decisão instrutória.
XVI. Os factos que são imputados ao recorrido na acusação particular ilegalmente deduzida pelos dois queixosos quando apenas o ora recorrente se tinha constituído assistente, constam da contestação apresentada pelo mesmo no processo judicial nº 431/23.8BEBRG, ou seja, no âmbito do patrocínio judiciário por si exercido enquanto consultor jurídico e advogado constituído pelo Município ....
XVII. O recorrido não conhecia, e ainda hoje não conhece, qualquer dos queixosos, nem faz a mínima ideia de quem sejam, jamais tendo tido qualquer relação, profissional, pessoal, social ou outra, com qualquer deles, nem sequer os conhecendo “de vista”, sendo que, por isso, e nesse sentido, são para si pessoas completamente estranhas ou pessoas anónimas.
XVIII. Os factos alegados na referida contestação foram transmitidos ao recorrido, como sucede em todos os processos do mesmo, pelos serviços do Município, Réu no processo, os quais lhe forneceram igualmente os dois documentos que foram juntos com essa contestação sob os n.ºs. 34 e 35 e referidos na acusação particular.
XIX. Perante o seu teor, o recorrido não tinha a mais leve razão para duvidar da autenticidade dos documentos que lhe foram entregues e da veracidade do conteúdo dos mesmos, uma vez que se tratava da reprodução feita pela imprensa do conteúdo de uma nota publicada pelo Ministério Público na sua página oficial da Internet, onde são divulgadas, desde há vários anos, as acusações que vai deduzindo no âmbito da sua atividade de investigação criminal.
XX. O recorrido entendeu que os mesmos eram efectivamente pertinentes para o êxito da defesa que lhe incumbia fazer dos interesses do seu representado no que se refere aos danos que os ali Autores (o ora recorrente e mulher) tinham alegado na petição inicial do processo, particularmente aos danos não patrimoniais.
XXI. Os factos referidos nos dois documentos passaram a ser do conhecimento público a partir do momento em que constam do conteúdo da citada nota publicada pelo Ministério Público e, sobretudo, a partir do momento em que foram divulgados pela imprensa.
XXII. O recorrido não teve qualquer intenção de diminuir ou atingir a honra e consideração social dos ali Autores, nem tinha qualquer razão para o fazer, nem o fez, sendo que o único objetivo que o norteou foi a defesa a apresentar na ação administrativa referida quanto aos danos alegados por estes na mesma.
XXIII. O recorrido não lhes imputou, nem direta, nem indiretamente, qualquer facto, muito menos ofensivo da sua honra e consideração social, nem formulou sobre eles qualquer juízo, muito menos ofensivo, nem lhes imputou a prática de qualquer crime, nem sequer sob a forma de suspeita, nem sob qualquer outra forma, nem tratou de diminuir, vexar ou humilhar a pessoa dos queixosos, como resulta claramente do conteúdo da contestação que elaborou.
XXIV. O facto de o Ministério Público deduzir contra qualquer pessoa uma acusação pela prática de qualquer crime e a divulgação desse facto numa nota oficial e, na sua sequência, pela própria imprensa, não é, em si mesmo, um facto ofensivo da honra e consideração social de quem quer que seja, nem se vê que a reprodução dessa nota oficial num articulado processual, depois de tornada pública e de ser amplamente reproduzida através da imprensa, pudesse, essa sim, constituir um crime de difamação.
XXV. Não houve qualquer descontextualização de factos, sendo certo que do contexto da peça processual em que tais factos são referidos (contestação) resulta claramente que os mesmos se reportam à parte do articulado dos queixosos ali Autores (petição inicial) relativa aos danos não patrimoniais pelos mesmos invocados.
XXVI. O que o recorrido tratou de fazer foi exclusivamente defender o Município, tal como lhe competia no exercício do mandato judicial que o mesmo lhe conferira, relativamente à pretensa responsabilidade por quaisquer danos, procurando demonstrar a falta de razão dos queixosos quanto aos pretensos danos invocados e à alegada causa dos mesmos e de demonstrar, por isso, a falta de fundamento da respetiva indemnização pedida do valor global de € 305.000,00.
XXVII. Por isso procurou dar a noção da irrelevância dos danos alegadamente sofridos pelos queixosos ali Autores em consequência do indeferimento da pretensão relativa a uns muros quando comparados com os danos que necessariamente resultariam de notícias divulgadas na imprensa sobre a instauração e acusação de processos de natureza criminal pelo Ministério Público e que, por essa via, se tornaram do domínio público em consequência da sua divulgação pela imprensa e que, essas sim, poderiam causar os sintomas e damos alegados.
XXVIII. O recorrido considerou, tal como continua a considerar, que a matéria alegada na contestação que elaborou era adequada e necessária à defesa do Município relativamente à responsabilidade civil que lhe era imputada pelos Autores na referida acção ação administrativa, pelo que a sua atuação foi perfeitamente legítima no contexto de um articulado processual, não se verificando, por consequência, qualquer “exercício ilegítimo”, “violação do dever de urbanidade”, ou extravasamento das “regras deontológicas”, muito menos qualquer espécie de crime, nomeadamente aquele pelo qual o mesmo veio acusado.
XXIX. A expressão referida no item 19. da acusação particular (arts. 100º e 101º da contestação), nada tem a ver com qualquer comparação dos queixosos ali Autores com assaltantes de bancos, comparação essa que seria completamente absurda, incompreensível e sem o mais leve sentido quando estava em causa a impugnação de um mero despacho de indeferimento do licenciamento de uns muros.
XXX. A dita alegação não passa de um exemplo académico perfeitamente recorrente nos casos em que o alegado infrator urbanístico, para se tentar desresponsabilizar dos factos por si praticados tenta, invertendo os papéis, responsabilizar quem tenha por missão fiscalizar, porque não se apercebeu do facto praticado por aquele, porque não o detetou, porque não fiscalizou ou porque não o impediu, e alijar a sua própria responsabilidade decorrente da prática efetiva do facto violador da lei.
XXXI. O recorrido não imputou qualquer facto ou proferiu expressão injuriosa ou difamatória dirigida à pessoa dos queixosos que, mas antes e apenas alegou, com recurso a um exemplo académico, que, ao contrário daquilo que os mesmos alegaram, a culpa na produção dos pretensos danos não era de quem fiscalizava, mas de quem cometera a infração urbanística apontada no processo, pelo que nenhuma indemnização era devida pelo Município aos mesmos.
XXXII. Entende o recorrido que não lhe pode legitimamente ser imputada a prática de qualquer crime, tendo-se limitado a exercer o patrocínio forense na ação administrativa referida e a defender de forma legítima e intransigente, como sempre o fez ao longo de quase 45 anos no exercício legítimo da sua profissão, e continuará a fazer, os interesses dos seus constituintes, dentro dos limites e nos termos em que a lei, enquanto advogado, lho permite.
XXXIII. Na acusação e novamente em sede do presente recurso, o recorrente limita-se a dar às expressões referidas um sentido pessoal, completamente subjectivo, desfasado da realidade e descontextualizado da peça processual em causa, distorcendo a letra e o sentido da alegação feita no articulado elaborado.
XXXIV. O n.° 1 do artigo 13.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça, reconhecendo-lhes, designadamente, na alínea b) do n.º 2, o direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão e o artigo 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil dispõe que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”.
XXXV. A responsabilidade jurídico-criminal do mandatário forense deverá constituir sempre uma exceção, pois que o advogado, quando intervém em representação judicial de um seu constituinte, não defende interesses próprios mas alheios, atuando profissionalmente no exercício de mandato forense que lhe foi conferido e podendo, em defesa dos interesses dos seus constituintes, socorrer-se de meios contundentes, firmes e incómodos para com os intervenientes.
XXXVI. O patrocínio judiciário é reconhecido constitucionalmente como elemento essencial à administração da justiça (artigo 208.º da CRP), configurando a livre atuação do Advogado no exercício do patrocínio forense uma exigência do Estado de Direito e que reveste indiscutível interesse público.
XXXVII. Deverá «reconhecer-se ao advogado a liberdade de dizer, por escrito ou oralmente, tudo o que for necessário à defesa da causa que lhe está confiada” e admitir-se que há circunstâncias em que se compreende e justifica um certo vigor de linguagem », como tem considerado a nossa Doutrina e Jurisprudência, havendo de fazer cedências no direito à honra dos participantes processuais em função da liberdade de expressão do Advogado, e isto mesmo nos casos em que tenha havido ofensa do direito à honra de terceiros, o que, salvo o devido respeito, nem sequer é o caso.
XXXVIII. O recorrido não praticou o crime de que vem acusado, pelo que, salvo o devido respeito, não pode deixar de improceder o presente recurso, devendo manter-se na íntegra o douto despacho de não pronúncia, que declarou extinto o procedimento criminal da douta acusação particular apresentada pelo assistente e ora recorrente BB quanto ao crime de difamação, p.e.p. pelo artigo 180.º do CPP, deduzida contra o ora recorrido, em função do não preenchimento de uma condição de procedibilidade, e em consequência, ordenou o arquivamento dos autos, o qual não merece, qualquer censura ou reparo, antes se tendo limitado a fazer a correcta aplicação do Direito ao caso.
PEDIDO:
TERMOS EM QUE, E NOS DO DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXªS., DEVE SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO APRESENTADO PELO RECORRENTE BB, DEVENDO SER MANTIDA A DOUTA DECISÃO INSTRUTÓRIA DE NÃO PRONÚNCIA DO ARGUIDO E ORA RECORRIDO, COM O CONSEQUENTE ARQUIVAMENTO DO PROCESSO E A NÃO SUBMISSÃO DO MESMO A JULGAMENTO, DEVENDO, SUBSIDIARIAMENTE, SER CONSIDERADO QUE NENHUM CRIME DE DIFAMAÇÃO FOI PRATICADO PELO RECORRIDO, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, COMO É, ALIÁS, DE INTEIRA JUSTIÇA
5. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, suscitando, como questão prévia, a circunstância de o recurso dever ser rejeitado por não indicação, quer na motivação, quer nas conclusões do recurso, das normas violadas. E, no caso de assim não se entender, sustentou dever o recurso ser julgado improcedente, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida e para a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância. 6. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, não foi produzida qualquer resposta. 7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º, e 412º, nº 1 do CPP.
Assim, a questão essencial a decidir, tal como se encontra delimitada pelas respetivas conclusões, consiste em saber se o procedimento criminal podia ter sido declarado extinto por ausência de queixa e, consequentemente, de acusação contra um dos alegados comparticipantes, ou o mesmo é dizer se foi violado o princípio da indivisibilidade da queixa consagrado no artigo artigos 115º, nº 3 do Código Penal, aplicável à falta de acusação particular por força do disposto no artigo 117º do mesmo código.
Antes, porém, importa apreciar a questão prévia, suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, da rejeição do recurso, por não terem sido indicadas as normas violadas.
2. A decisão recorrida (despacho de não pronúncia), tem o seguinte teor (transcrição integral):
Declaro encerrada a instrução que o arguido AA requereu e a que se procedeu.
*
I RELATÓRIO :
Em 05-11-2024 , o assistente BB e a ofendida CC , vieram deduzir acusação particular (fls 114 a 118 ), imputando ao arguido:
AA , casado , advogado , nascido em ../../1956 , filho de DD e de EE , residente na R, ... , ... , ... ,
A prática , em autoria material , e sob a forma consumada , de um crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , n. 1 , do CPenal.
*
A Digna Magistrada do M. P. proferiu despacho de não acompanhamento da acusação particular deduzida pelo assistente e pela ofendida , conforme despacho constante de ref. ...38 , aqui tido por integralmente reproduzido , por razões de economia processual, para todos os efeitos legais.
*
Não se conformando, o arguido AA veio requerer a abertura de instrução (cfr. folhas 136 a 171 ) pugnando pela declaração de não pronúncia .
Para tanto , alega , em síntese , que :
. A ofendida CC não se constituiu assistente e , como tal, encontra-se extinto o seu direito de intervenção no procedimento criminal.
. Os factos participados seriam o Município ... e o arguido , sendo que os queixosos apenas apresentaram queixa contra este último.
. Os factos alegados na contestação apresentada no âmbito da ação administrativa n. 431/23.8BEBRG , foram-lhe transmitidos pelos Serviços do Municipio , Réu no aludido processo, os quais lhe forneceram dois documentos que foram juntos com a respetiva peça processual , sendo que o seu objetivo era o de defender-se da matéria relativa ao pedido de condenação em indeminização pelos danos alegados na ação pelos queixosos .
Foi requerida como diligência de prova :
a) A notificação dos Serviços do M. P. para informarem se o processo referido nos documentos juntos com a contestação apresentada nos autos de processo da ação administrativa n. 431/23.8BEBRG existe ou não, de forma a verificar-se se a noticia constante da imprensa é ou não verdadeira .
*
Por despacho proferido em 20-02-2025 , foi declarada aberta a instrução , indeferida a realização da diligência id. em a ) , supra ,pelos fundamentos fáctico-juridicos constantes do despacho de ref. ...43, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido , por razões de economia processual, para todos os efeitos legais , e designada data para a realização de debate instrutório .
*
Realizou-se o debate instrutório , com observância do legal formalismo , conforme se alcança , de resto , da ata constante de ref. ...38..
II. Saneamento
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio.
Decorre do preceituado no nº 3 do artigo 308º do Código de Processo Penal que no despacho de pronúncia/não pronúncia, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Questão prévia/incidental :
A Quanto à falta de constituição de assistente de CC :
O assistente BB e a ofendida CC , vieram , nos termos e para os efeitos do artigo 285º, n.º 1, do Código de Processo Penal, deduzir acusação particular contra o arguido AA , imputando-lhe a prática , em autoria material , e sob a forma consumada , de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180, n. 1 , CPenal.
Nos termos do art. 188º do Cód. Penal, o procedimento criminal pelos crimes de difamação, injúria, ofensa à memória de pessoa falecida e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, dependem de acusação particular.
Dispõe o art. 50º do C.P.P. que "Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular".
Conforme refere Maia Gonçalves - Cfr. Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 13ª edição, pág. 186 - , nos crimes particulares não poderá haver inquérito sem prévia queixa e constituição de assistente, nem acusação do MºPº sem acusação do particular que se queixou e constituiu assistente.
A queixa, constituição de assistente e acusação particular são, assim, condições de procedibilidade, pois que, sem elas, o MºPº não tem legitimidade para promover o processo penal.
Constata-se que, em 13/11/2023 - cfr. fls. 32 - o MºPº ordenou a notificação dos denunciantes – BB e CC - nos termos e para os fins do disposto nos arts. 68 , n. 2 e 246º n.º 4 do C.P.P.
Em 29/11/2023, o denunciante BB veio requerer a sua constituição como assistente.
Notificada a denunciante CC – cfr. fls. 35 - , não veio a mesma constituir-se assistente .
Analisando .
Conforme dispõe o art. 48º do C.P.P., o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos arts. 49º a 52º.
Nos termos do art. 188º do Cód. Penal, o procedimento criminal pelos crimes de injúria e difamação p. e p. pelo art. 180º n.º 1 do mesmo Código depende de acusação particular.
Dispõe o art. 50º do C.P.P. que "Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular".
Nos termos do disposto no citado art. 50º na 3 e art. 49º n.º 3 do C.P.P. "A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais".
Conforme refere Maia Gonçalves – Cfr. Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 13ª edição, pág. 186 - , nos crimes particulares não poderá haver inquérito sem prévia queixa e constituição de assistente, nem acusação do MºPº sem acusação do particular que se queixou e constituiu assistente .
Neste conspecto, sendo inegável que no caso de infracções de natureza particular o legislador instituiu determinados procedimentos que, não sendo cumpridos, nos moldes e tempo estabelecidos, fazem precludir o direito à constituição como assistente, qualidade que, por sua vez, é necessária para exercitar o direito de deduzir acusação particular, como decorre da previsão do art. 68º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, na interpretação firmada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2011 [“em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal”], dúvidas não subsistem que ocorre , « in casu » , uma falta de uma condição legal de procedibilidade imposta pelo art. 50 , do CPPenal quanto à acusação particular deduzida pela ofendida CC , pois a mesma não se constituiu como assistente nos autos.
Importa, assim, atento o disposto no art. 308 , n. 3 , do CPPenal , decretar a nulidade da acusação particular, quanto ao crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , do CPenal, imputado ao arguido pela ofendida CC , atenta a falta de uma condição de procedibilidade , conforme acima referido , determinando-se , neste particular, consequentemente , o arquivamento dos autos . B Quanto à imputação ao arguido , por parte do assistente BB , de um crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , n. 1 , do CPenal .
Analisado o teor da douta acusação particular , verifica o Tribunal que a factualidade consiste na formulação de afirmações em peça processual, dirigida a Tribunal e subscrita por advogado – v. g. uma contestação apresentada nos autos de processo administrativo n. 431/23.8BEBRG -.
O assistente imputa a conduta apenas ao arguido AA , contra quem apresenta a respetiva acusação particular .
Analisando.
Nas situações em que é imputada a prática de um crime, através de peça processual subscrita por advogado, a jurisprudência tem entendido que são equacionáveis três hipóteses , a saber :
a) uma situação de responsabilidade criminal exclusiva de advogado, o que acontecerá quando os factos são descritos sem interferência e conhecimento do mandante;
b) do mandante, nomeadamente, nos casos em que o constituinte relata factos que sabe não serem verdadeiros com o objetivo de o advogado os descreva na peça processual, convencido de que correspondem à verdade; ou
c) responsabilidade conjunta, o que ocorrerá nos casos em que o advogado tem conhecimento de que os factos descritos não correspondem à verdade e opta por, mesmo assim, escrevê-los em peça processual.
O assistente apenas apresentou queixa contra o arguido Advogado , subscritor da contestação apresentada nos autos de processo administrativo n. 431/23.8BEBRG , em que era Réu o Município ... .
Da análise do item 27 da queixa apresentada extrai-se o seguinte teor : «(…) o teor das afirmações transcritas na contestação apresentada acarreta , além do mais , sérios constrangimentos e prejuízos na esfera profissional e pessoal dos participantes , sentindo-se estes, além do mais , vexados e humilhados (…) » (sic).
Resulta evidente que o assistente apresentou queixa ( e consequente acusação particular ) apenas contra o arguido , Advogado , quando certo é que resulta evidente que os participados referidos no aludido item 27 da queixa seriam o arguido e o legal representante do Município ... .
Sucede que, tratando-se de crime particular, dispõe o artigo 50.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, «quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.»
Por seu turno, dispõe o artigo 115.º do Código Penal: «1 - O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz. (…) 3 - O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa. 4 - Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles.»
O que se retira das normas transcritas conjugadas entre si e dos atos processuais praticados nestes autos, é que o direito de queixa relativamente ao Advogado subscritor da referida contestação extinguiu-se, o que aproveita aos restantes comparticipantes, neste caso, o legal representante do Município ...
Veja-se neste mesmo sentido, a título de exemplo, entre muitos outros, os acórdãos:
do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-11-2022, processo n.º 4980/20.1T9LSB.L13: «A imputação a outrém de conduta que se consubstancie numa ofensa à honra e consideração praticada mediante factos vertidos num articulado processual, apresentado por advogado, no exercício do mandato forense, é da autoria do mandante e do seu advogado. // A apresentação de queixa apenas contra o mandante é configurada na lei como desistência, quer da queixa quer da acusação, que aproveita aos restantes. // Logo o procedimento criminal não podia prosseguir contra qualquer dos comparticipantes, por se verificar a falta da condição de procedibilidade prevista no nº. 3 do artigo 115º. do Código de Processo Penal.» (sic), consultável in www.dgsi.pt ;
do Tribunal da Relação de Évora de 17-09-2013, processo n.º 854/11.5TASTR.E1: «I - Quando numa peça processual sejam feitas afirmações suscetíveis de ofenderem a honra ou consideração de outrem, subscrita por advogada, de acordo com as informações prestadas pela sua cliente, e não tiver sido alegado (mesmo na acusação particular) que a advogada agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pela cliente correspondem à verdade, deve ser liminarmente afastada a responsabilidade exclusiva da cliente, ora arguida, pois trata-se de um caso de comparticipação criminosa. // II – Uma vez que o assistente não apresentou queixa contra a senhora advogada subscritora da peça processual que contém afirmações atentórias da sua honra e consideração e que a acusação particular (que o Ministério Público acompanhou) apenas foi deduzida apenas contra a arguida cliente e já não contra a advogada, falta um pressuposto positivo da punição – a condição legal de procedibilidade imposta pelo n.º3 do art. 115.º do Código Penal – que conduz à extinção do procedimento criminal.» (sic), consultável in www.dgsi.pt ;
do Tribunal da Relação do Porto de 14-04-2021, processo n.º 219/18.8T9AND.P1: «I – Nos casos em que eventuais afirmações difamatórias se mostram vertidas em peças processuais, podemos estar perante três hipóteses distintas: uma em que o advogado transferiu para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, após tê-lo advertido expressamente das consequências que daí podem advir, designadamente em termos penais (caso em que estaremos perante uma situação de comparticipação criminosa; outra em que o autor do escrito na peça processual é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente (caso em que estaremos perante uma responsabilidade penal exclusiva do advogado); e outra em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros com o objetivo de que o advogado os verta na peça processual convencido de que correspondem à verdade (caso em que a responsabilidade penal será apenas do cliente). // II – No caso vertente, na queixa apresentada pelo assistente não consta nenhuma circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva do arguido na apresentação em Juízo de contestação assinada pelo seu advogado de onde constam afirmações alegadamente difamatórias.// III – Assim sendo, não tendo o assistente deduzido acusação contra todos os comparticipantes, faltando o advogado subscritor da peça processual em causa, e nada tendo alegado quanto a ele, atento o princípio da indivisibilidade da queixa, consagrado nos artigos 114.° a 116.° do Código Penal, deve considerar-se que o assistente renunciou ao direito de acusação particular quanto a esse advogado, pelo que falta um pressuposto positivo da punição, ou uma condição legal de procedibilidade: a prevista no art.° 115°, n.° 3 desse Código, aplicável à acusação particular por força do art.° 117.° do mesmo diploma..» (sic), consultável in www.dgsi.pt .
No caso dos autos, como se vê, a peça processual é da autoria de advogado, o que se retira da acusação particular, ao referir que « (…) no âmbito daquele processo , o aqui arguido apresentou contestação , onde afirma (…) » (sic).
Da factualidade alegada não se explicita, minimamente ,em que termos ocorreu a dinâmica entre mandante naqueles autos de processo a que respeita a peça processual contestação ( o Município ... ) e o respetivo mandatário.
Por seu turno , o assistente não alega sequer que a atuação do mandatário teve origem em ordens do Municipio ou sequer se a autoria dos « escritos » era apenas da lavra do Advogado , o aqui arguido .
Ora, importa não esquecer que se trata de uma acusação em processo penal, ainda que de natureza particular, e que não pode o Tribunal presumir que o mandatário atuou ao abrigo das instruções dos clientes, sob pena de acrescentar factos essenciais à acusação que não constam da mesma. Também não pode o Tribunal presumir que o advogado desconhecia que as afirmações ali descritas não correspondiam à verdade, pois cabe ao assistente na acusação explicitar «o grau de participação que o agente» teve nos factos e ter presente que em caso de comparticipação, a extinção do direito de queixa contra um aproveita aos restantes, nos termos do artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal.
Assim, não pode deixar o Tribunal de concluir que falta uma condição legal de procedibilidade, nos termos dos artigos 115.º, nºs 2 e 3 e 117.º do Código Penal.
No caso em apreço, não se mostra preenchida uma condição de procedibilidade, não sendo a acusação , assim, suscetível de, a mostrar-se provada em audiência de discussão e julgamento , permitir a condenação do arguido pelo crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , do CPenal , de que vem acusado.
A omissão da queixa contra um dos participantes, fê-la incorrer na alçada do artº 115º nº 3 que dispõe “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.
Esta norma é um reflexo da indivisibilidade da queixa, que se traduz em negar-se a titular do direito de queixa, em caso de comparticipação criminosa, a faculdade de escolher a pessoa que há-de ser punida.
A este princípio está subjacente a ideia de política criminal informadora do nosso sistema jurídico de que em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime, ou seja a violação do bem jurídico protegido com a incriminação, e, reflexamente, os seus autores, de tal modo que em caso de comparticipação o titular do bem ofendido com o crime não pode escolher a ou as pessoas que hão-de ser punidas em detrimento de outras . Solução contrária seria de todo irrazoável, pois que permitiria situações de vingança privada, o que o direito penal moderno repudia. O que está em causa é a perseguição de um crime e só reflexamente a satisfação de interesses de natureza pessoal.
Não podendo a queixa ser renovada por há muito ter decorrido o prazo a que se reporta o artº 115º nº 1 do CPenal, e tendo já sido formulada acusação apenas contra o arguido , Advogado nos autos de processo a que respeita a peça processual contestação , operou a extinção do direito de queixa e de acusação particular quanto a todos os participantes ( o legal representante do mandante Município ... ).
Assim sendo, e uma vez que estamos perante factos imputados ao arguido numa peça processual por si assinada enquanto advogado do mandante ( Município ... ), suscetíveis de configurarem a prática de um crime de difamação, não pode, sem mais, aceitar-se a responsabilidade exclusiva do aqui arguido.
Flui do exposto que, in casu, também o mandante da peça processual contestação apresentada nos autos de processo administrativo n. 431/23.8BEBRG , no caso , o legal representante do Município ... , deveria ter sido visado na queixa, pressupondo a lei que esta omissão equivale a uma desistência, quer da queixa, quer da acusação, que aproveita aos arguidos , de onde resulta que o procedimento criminal não podia prosseguir apenas contra estes , atento o disposto no art.º 115.º, n.º 3, do CPenal. Destarte , e ao abrigo do disposto nos artigos 308 , n. 3 , do CPPenal , 115 , n. 3 e 117 , ambos do CPenal , declara-se extinto o procedimento criminal da douta acusação particular apresentada pelo assistente BB quanto ao crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , n. 1 , do CPenal , deduzida quanto ao arguido AA , pelo não preenchimento de uma condição de procedibilidade, determinando-se o arquivamento dos autos nesta parte .
III DECISÃO : Em face do exposto , e ao abrigo do disposto no art. 308 , n. 3 , do CPPenal : a) Declara-se nula a acusação particular quanto ao crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , do CPenal, imputado ao arguido pela ofendida CC , atenta a falta de uma condição de procedibilidade , conforme acima referido , determinando-se , neste particular, consequentemente , o arquivamento dos autos . b) Declara-se extinto o procedimento criminal da douta acusação particular apresentada pelo assistente BB quanto ao crime de difamação , p. e p. pelo art. 180 , n. 1 , do CPenal , deduzida quanto ao arguido AA , pelo não preenchimento de uma condição de procedibilidade, , de acordo com o disposto nos arts. 115,n. 3 e 117 , ambos do CPenal, determinando-se o arquivamento dos autos nesta parte . c)Fica prejudicada a abertura de instrução requerida pelo arguido quanto ao demais invocado em sede de RAI.
Custas a cargo do assistente BB - cfr 515 , n. 1 , al. a ) , do CPPenal -,fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs – cfr. art. 8, n. 9 do RCP e Tabela III .
Notifique.
3- Apreciação do recurso 3.1- Importa conhecer da questão prévia relativa à não indicação pelo recorrente, quer na motivação, quer nas conclusões do recurso, das normas jurídicas violadas, suscitada pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
Vejamos.
O requerimento de interposição de recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso, cfr. nº 3 do artigo 411º do CPP.
O nº 1 do artigo 412º do CPP, por sua vez, prescreve o seguinte:
“A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.”
Resulta claro da conjugação das referidas normas que a motivação deverá conter “especificadamente os fundamentos do recurso”, assim se consagrando o ónus de impugnação especificada dos fundamentos do recurso, cfr. também o nº 1 do artigo 403º do CPP.
Sem prejuízo do conhecimento dos vícios de conhecimento oficioso, é o recorrente quem define o âmbito do recurso.
Assim, o recorrente deverá indicar claramente os fundamentos, de facto e de direito, do recurso, sendo este um aspeto fundamental para o conhecimento do recurso.
O recurso constitui um meio de impugnação de uma decisão judicial destinando a corrigir eventuais erro judiciários.
O objeto do recurso é a decisão recorrida e não diretamente a questão material ou processual que lhe subjaz, constituindo a decisão de recurso “uma decisão judicial sobre uma decisão judicial”, cfr. Helena Morão, Direito Processual dos Recursos, Almedina, pág. 213, citando Cunha Rodrigues.
Como é sabido, no sistema processual penal português, o recurso está configurado como remédio jurídico processual referido a vícios concretos da decisão recorrida. E se o recurso se destina a remediar o mal cometido, ao recorrente incumbe indicar especificamente esse mal.
Como bem refere Sérgio Gonçalves Poças, in “Processo Penal. Quando o Recurso Incide Sobre A Decisão Da Matéria de Facto, Revista Julgar nº 10 – 2010, pág. 23, “(…) só o recorrente sabe do que discorda e por que razão discorda” (…) “…se o recurso pretende remediar o mal feito, desde logo, o recorrente está onerado a identificar devidamente o mal da decisão e as razões porque é mal”. (...) o Tribunal de recurso só pode apreciar a razão do recorrente se este for claro nas razões da sua razão”.
Na mesma linha, vide Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª edição., Rei dos Livros, pág. 128, para quem (…) os recursos são havido pelo Código como remédios jurídicos que não podem ser utilizados com o único objetivo de obter uma justiça melhor, só relevando a eventual injustiça, produto de vício de julgamento, quando seja resultado de violação de direito material, tendo de ser indicados expressamente no recurso os erros in judicando ou in procedendo em que se traduzem os vícios de julgamento invocados, dentro de um critério orientador do regime de recursos a que já se chamou de lealdade processual.”.
Por seu lado, nas conclusões do recurso o recorrente deverá fazer uma síntese de tudo o que referiu antes na motivação. Porém, sendo as conclusões uma síntese da motivação do recurso, não poderão acrescentar algo de novo. Os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões, cfr. Sérgios Gonçalves Poças, ob. cit. pág. 24.
Para além do que deverá constar genericamente na motivação de qualquer recurso (fundamentos de facto e de direito), importa também ter em conta os concretos e acrescidos requisitos da motivação do recurso da decisão proferida sobre matéria de facto ou de direito.
Ora, este propósito, refere o nº 2 do artigo 412º do CPP
“2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Acresce que os nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP referem que:
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
No caso apreço, como decorre da motivação e das conclusões do recurso, o assistente / recorrente insurge-se contra a decisão instrutória proferida na parte em que decidiu declarar extinto o procedimento criminal quanto ao imputado crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, nº 1 do CP, pelo não preenchimento de uma condição de procedibilidade de acordo com o previsto nos artigos 115º, nº 3 e 117º do CP, cfr. alínea b) do dispositivo da decisão recorrida.
Ora, ao contrário do defendido pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, mostram-se indicadas, quer na motivação, quer nas conclusões do recurso, as normas jurídicas violadas, ainda que tal referência, é certo, não seja referida pelo recorrente por forma literal e expressa.
Na verdade, na decisão recorrida, tendo sido declaro extinto o procedimento criminal por se ter entendido ter sido violado o princípio da indivisibilidade da queixa e da acusação particular em conformidade com o disposto nos artigos 115º, nº 3 e 117º do CP, pretendendo o recorrente atacar este segmento da decisão, a sua discordância reside, fundamentalmente, como não poderia deixar de ser, na subsunção jurídica destas normas ao caso concreto destes autos.
Com efeito, é este o entendimento perfilhado pelo recorrente na motivação do recurso, primeiro ao delimitar o objeto do recurso no ponto I, e, depois, no ponto II, mais precisamente, no artigo 38º, quando sustenta, em sentido oposto ao decidido, não se verificar a falta de condição de procedibilidade consignado no nº 3 do artigo 115º do CP. Entendimento este que reafirma nas conclusões G, J, M e S do recurso. Ou seja, defendendo o recorrente uma subsunção jurídica diversa daquela que foi seguida na decisão recorrida, a qual considera errada, isso significa que, no seu entender, as referidas normas foram violadas ao ter-se decidido da forma que se decidiu.
Nesta conformidade, julgamos dever efetivamente conhecer do presente recurso, não sendo, pois, o mesmo de rejeitar por falta de indicação pelo recorrente das normas jurídicas violada, assim improcedendo a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador – Geral Adjunto. 3.2- Posto isto, a questão essencial a decidir no presente recurso reconduz-se à questão prévia apreciada na decisão instrutória (decisão recorrida) proferida ao abrigo do disposto no artigo 308º, nº 3 do CPP (questões prévias ou incidentais), que conduziu à decisão de extinção do procedimento criminal por não se mostrar preenchida uma condição de procedibilidade – ausência de queixa contra um dos comparticipantes e também da consequente acusação particular - sem que tenha sido apreciada a suficiente indiciação dos factos descritos na acusação deduzida pelo assistente em ordem a submeter o arguido a julgamento e que foi objeto da instrução requerida por este último.
O assistente imputou ao arguido, na acusação que contra ele deduziu, a prática de um crime de difamação, o qual assume natureza particular, em conformidade com o disposto nos artigos 180º, nº 1 e 188º do Código Penal, o que significa que o procedimento criminal depende de queixa do ofendido e de acusação particular, cfr. artigos 113º e 117º do CP.
Segundo esta acusação, o autor material do referido crime é o arguido, advogado de profissão, que redigiu e subscreveu, enquanto mandatário com procuração forense, uma peça processual, no caso uma contestação numa ação judicial.
A queixa do ofendido foi apresentada apenas contra o advogado que subscreveu a dita contestação, e não também contra o mandante.
No despacho recorrido foi entendido, nomeadamente, que:
“(…uma vez que estamos perante factos imputados ao arguido numa peça processual por si assinada enquanto advogado do mandante ( Município ... ), suscetíveis de configurarem a prática de um crime de difamação, não pode, sem mais, aceitar-se a responsabilidade exclusiva do aqui arguido.
… também o mandante da peça processual contestação apresentada nos autos de processo administrativo n. 431/23.8BEBRG , no caso , o legal representante do Município ... , deveria ter sido visado na queixa, pressupondo a lei que esta omissão equivale a uma desistência, quer da queixa, quer da acusação, que aproveita aos arguidos , de onde resulta que o procedimento criminal não podia prosseguir apenas contra estes , atento o disposto no art.º 115.º, n.º 3, do CPenal.”
Ora, segundo estabelece o artigo 114º do CP “A Apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”. Mas isto não quer dizer que o Ministério Público, que vai proceder à investigação, possa, em caso de comparticipação, existindo apenas queixa contra um dos comparticipantes, prescindir da queixa do ofendido relativamente aos demais comparticipantes e, no caso de crime particular, da respetiva acusação particular, pois que o que releva neste caso é o crime.
Efetivamente, é isso que decorre do nº 3 do artigo 115º do CP ao estabelecer que “O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”, regime este aplicável à acusação no caso de crime de natureza particular, cfr. artigo 117º do CP.
Em face da norma acabada de transcrever encontra-se, pois, consagrado no direito penal português o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa quanto aos crimes semipúblico e particulares. Uma vez apresentada queixa pelo ofendido, estando em causa vários comparticipantes, o legislador releva apenas a investigação do crime e a punição dos seus autores e não apenas o interesse pessoal do ofendido.
Como refere Germano Marques da Silva[3], “A justificação destas normas é evidente. Pretendem obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado”.
No mesmo sentido Maia Gonçalves[4] ao referir que “Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido em caso de comparticipação; o que está em causa é o crime”. E Simas Santos e Leal-Henriques[5], quando sustentam que “O que não pode, de maneira nenhuma, é escolher-se a pessoa que há-de ser criminalmente perseguida. Seria essa uma solução que se reputa de todo desrazoável e que, em certa medida, faria reviver ou relembrar a instituição primitiva da vingança privada «Que a lei posa escolher as pessoas objetivamente, em função de certas qualidades, parece evidente; que o posa fazer o ofendido é solução que parece ser de todo de repudiar»[6]”
Em suma, o não exercício do direito de queixa ou de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes aproveita aos restantes, porquanto o que essencialmente está em causa é a perseguição do crime praticado e não apenas a satisfação dos interesses de natureza pessoal do ofendido.
No caso vertente, encontra-se em discussão a possibilidade de haver comparticipação ente o arguido, que subscreveu, enquanto advogado e mandatário, uma peça processual na qual foram descritos factos e referidas expressões alegadamente ofensivas da honra do assistente, e o seu cliente, ou seja, o respetivo mandante.
Ora, relativamente a esta precisa questão, pelo menos desde o acórdão da Relação de Coimbra de 01.03.1989, in CJ, Ano XIV, tomo 2, pág. 76, a jurisprudência tem vindo a assinalar que três hipóteses são possíveis de ocorrer, as quais são as seguintes:
1ª- Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer;
2ª· Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido;
3ª· Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.
Na primeira hipótese em princípio é de admitir a ocorrência de comparticipação entre o advogado e o cliente, sendo a responsabilidade exclusiva deste último de afastar quando na peça processual sejam relatados factos ou formulados juízos de valor objetivamente ofensivos da honra de outrem. Isto porque o advogado é um profissional do foro, encontrando-se vinculado pelo seu estatuto profissional, que lhe impõe um conjunto de deveres, designadamente o dever de urbanidade, que naturalmente deverá cumprir quando subscreve peças processuais, cfr. artigo 95º do EOA, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro.
Na segunda hipótese, a responsabilidade obviamente é exclusiva do advogado, enquanto autor material dos factos, aos quais o cliente é completamente alheio.
Na terceira e última hipótese, a responsabilidade é exclusiva do cliente, porquanto o advogado age no convencimento de que os factos que lhe são relatados pelo cliente são verdadeiros. E, nessa medida, não atua com a intenção, nem sequer configura a possibilidade, de praticar o crime, faltando-se o dolo do tipo, sendo apenas o cliente o autor mediato do crime de difamação, em conformidade com o disposto no artigo 26º do Código Penal, segundo o qual “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
No domínio penal a doutrina distingue a autoria medita, a autoria imediata, a instigação e a cumplicidade.
Como ensina Paulo Pinto de Albuquerque[7] “A autoria imediata consiste na execução do facto pelo próprio agente (“quem executar o facto, por si mesmo”), verificando-se nele os elementos típicos objetivos e subjetivos.
(…)
A autoria mediata consiste na execução do facto por intermédio de um homem-da-frente (“quem executar o facto…por intermédio de outrem”), verificando-se no homem-de-trás os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime. O homem-da-frente é instrumentalizado pelo homem- de-trás ou, dito de outro modo, o homem-de trás tem o domínio da vontade do homem-da-frente. A punição do homem-de-trás não depende do início da execução do facto pelo homem-da-frente, ao contrário do instigador.
(…)
A coautoria consiste na execução conjunta do facto por uma ou mais pessoas(“quem executar o facto…por acordo ou juntamente com outro ou outros”), com base num acordo dos agentes sobre a divisão de tarefas com vista à realização do facto (teoria do domínio do faco funcional, de Claus Roxin e Figueiredo Dias).
O acordo pode ser expresso ou tácito, desde que haja uma “consciência da colaboração”, na expressão de Eduardo Correia…
(…)
A instigação consiste na determinação de outra pessoa à prática de um facto ilícito típico concreto quando esta pessoa não tivesse anteriormente dolo desse facto típico (“quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”). O instigador tem um dolo duplo, reportado, por um lado, à determinação do instigado e, por outro lado, ao facto concreto (consumado ou tentado) cometido pelo instigado, devendo verificar-se no instigador todos os elementos típicos subjetivos….”.
Se, em abstrato, é possível configurar as três referidas hipóteses, importa que, em face de cada caso concreto, se averigue qual delas se verifica. Acresce que não é legalmente possível presumir uma situação de comparticipação entre o advogado e o cliente sempre que os factos em causa sejam vertidos em peça processual subscrita por aquele, como se fez no caso em apreço no despacho recorrido. Ou seja, é necessário que se comprove / indicie uma situação de comparticipação, uma vez que apenas neste caso, tendo sido apresentada queixa contra um dos comparticipantes, é possível concluir pela violação do princípio da indivisibilidade da queixa e da acusação particular a que se referem os artigos 115º, nº 3 e 117º do Código Penal, o mesmo é dizer pela falta de uma condição de procedibilidade.
Neste sentido, vide, v.g., Ac. RE de 07.03.2017, 488/14.2PBELV.E1, acessível em www.dgi.pt, a propósito de um caso que pese embora não seja coincidente com o presente, mas em que está em causa o crime de difamação cometido através de peça processual subscrita por advogado, quando refere que “Sendo louvável, a sistematização exposta pode causar vícios de raciocínio se nos bastarmos com ela, como aliás já realçado em posteriores arestos”.
Como bem se refere no sumário do Ac. RP de 24.01.2024, processo 2169/20.9T9VFR.P1, acessível em www.dgsi.pt, “Se dos autos não decorre que o crime de injúria foi praticado em comparticipação entre a mandante e o seu advogado, ao ter sido deduzida queixa apenas contra a primeira, não se verifica a falta da condição de procedibilidade consignada no n.º 3 do artigo 115.º do CP.”. E no sumário do Ac. RP de 09.02.2005, processo 0346713, disponível em www.dgsi.pt “Se a expressão eventualmente ofensiva da honra ou consideração do visado consta de articulado apresentado em processo civil e subscrito por advogado, para que se possa imputar a autoria dessa expressão à parte, é necessário que haja acordo prévio entre ela e o advogado sobre o uso da mesma expressão.”
Ainda no mesmo sentido vide, vg. o Ac. RC de 22.05.2013, processo 365/10.6T3OBR.C1, acessível em www.dgsi.pt, num caso em que a queixa foi apresentada apenas contra o mandante em cujo sumário se pode ler: III - Nestes termos, para que haja comparticipação num crime de difamação, cometido através de peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo tácito, entre mandatário e mandante, para afirmação ou propalação de factos inverídicos. IV - Consequentemente, se dos autos não decorre que o crime de difamação foi praticado em comparticipação entre o mandante e o seu advogado, subscritor da peça processual difamatória, ao ter sido deduzida queixa apenas contra o primeiro, não se verifica a falta da condição de procedibilidade consignada no n.º 3 do artigo 115.º do CP.”
In casu, a verificar-se uma situação de comparticipação, o autor mediato seria o Presidente da Câmara Municipal ..., porquanto sendo o mandante um município, ou seja, uma pessoa coletiva, o artigo 11º, nº 2 do CP não prevê o crime de difamação no catálogo dos crimes nele previstos como suscetíveis de serem praticados por uma pessoa coletiva. Mas isto não afasta obviamente a responsabilidade da pessoa singular que tenha atuado em sua representação, no caso o Presidente da Câmara que subscreveu a procuração forense a favor do advogado / arguido.
De forma que a questão concreta que se coloca é a de saber se a pessoa singular representante do município agiu com culpa, por forma a poder afirmar-se que ocorre uma situação de comparticipação criminosa quanto ao imputado crime de difamação entre o advogado que subscreveu a peça processual, no caso uma contestação, e o Presidente da Câmara Municipal.
No despacho recorrido, como dissemos, a questão da falta de uma condição objetiva de procedibilidade foi apreciada como questão prévia, ou seja, sem entrar no conhecimento do mérito do requerimento de abertura de instrução.
Por seu lado, o recorrente defende a ideia de que não se verifica no caso uma situação de comparticipação, tendo em conta, nomeadamente, que “(…) é o advogado subscritor da peça que, lançando mão das suas legis artis e do seu know how, é o único e efetivo redator do texto e foi o arguido, nessa qualidade de autor, quem escolheu o conteúdo e a forma das menções desonrosas que se discutem nos presentes autos.”, conclusão O.
E, como bem se refere no Ac. RP de 09.02.2005, processo 0346713, acima citado, “Em princípio, o advogado atua em representação do cliente, no exercício do mandato conferido, sendo um profissional dotado de liberdade e autonomia técnicas e assumindo, portanto, a autoria de tudo quanto escreve nos articulados processuais por ele subscritos.”
A verdade é que, considerando os termos em que se encontra redigida a peça processual relativamente aos pontos alegadamente ofensivos da honra do assistente, as normas decorrentes do Estatuto da Ordem dos Advogados[8], as regras da experiência, bem assim os elementos disponíveis nos autos, indicia-se que os factos, supostamente ofensivos da honra do assistente, são exclusivamente da iniciativa e da lavra do advogado que subscreveu a peça processual, ou seja, do ora arguido.
Com efeito, quando um cidadão procura um advogado e pede-lhe que o patrocine numa ação – no caso contestar uma ação -, descreve o caso que pretende ver resolvido, expondo-lhe os factos e nada mais, sendo este o ponto de partida e a base de trabalho do advogado. A partir daí, o advogado tem completa liberdade e autonomia técnica, designadamente para redigir as peças processuais e os respetivos termos, pelas quais é naturalmente responsável.
No caso, tendo o assistente e a sua esposa instaurado uma ação administrativa comum contra o Município ..., na qual pedem, para além do mais, que sejam indemnizados por danos não patrimoniais por eles sofridos decorrentes do indeferimento do licenciamento da edificação de uns muros da sua moradia, na contestação apresentada por aquele município estão em causa duas passagens ou situações, as quais se podem resumir, por um lado, ao artigo 80º, e por outro, aos artigos 100º e 101º, com o seguinte teor:
Relativamente ao vertido no artigo 80º da contestação, importa notar que, ao contrário do que é possível concluir da alegação do arguido, não está em causa a falsidade dos documentos juntos com a contestação, nem consequentemente, a veracidade de ter sido publicada a notícia nos meios de comunicação socia. De facto, os artigos existem e foram efetivamente publicados, sendo este um facto não questionado. O que releva para o caso, uma vez que é disso que o assistente se considera ofendido, é somente o facto de ter sido invocado num processo de natureza cível /administrativa, com o propósito de vexar e humilhar, a pendência de um processo crime (de diferente natureza) no qual os autores da ação foram acusados pelo Ministério Público da prática do crime de fraude fiscal qualificada, facto que foi divulgado pela comunicação social.
O arguido alega que tal facto foi levado à contestação como forma de defender o seu cliente do pedido de condenação em indemnização civil, por forma a demonstrar a sua falta de razão, ou seja, a inexistência dos danos não patrimoniais invocados pela parte contrária na ação ( o assistente e a esposa), sendo que, na própria contestação, é referido tratar-se de um facto amplamente divulgado em .... Ou seja, segundo a alegação, se os autores da ação se sentiram tristes e humilhados não seria por causa do simples indeferimento do licenciamento de uns muros (facto de somenos importância) mas sim por motivo bem mais grave, que era o facto de terem sido acusados pelo Ministério Público num processo crime pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada.
Ora, tratando-se de facto de natureza distinta do objeto da ação, que em nada contende com ele, e amplamente divulgado em ..., onde o arguido tem escritório, ao com contrário do por este referido, não se vislumbra, ao menos em termos indiciários - até também devido à facilidade com que é possível obter noticias dos jornais através das novas tecnologias - a necessidade que teria de obter cópias da referida notícia através dos serviços do município. Aliás, relativamente estas cópias, ao menos aparentemente, não se vê qualquer motivo ou interesse para que os estes serviços as tivessem em seu poder.
Nos artigos 100º e 101º da contestação, está em causa a comparação da situação de quem edifica muros sem licença municipal e, apesar disso, considera-se vítima e, por isso, formula um pedido de indemnização contra o município, e a culpa do assaltante de um banco, que não é do assaltante, mas sim da policia que não deu conta do assalto e não prendeu o assaltante, pelo que haveria ainda que indemnizar o assaltante.
Em ambos os casos está em causa um discurso argumentativo usado pelo arguido, enquanto advogado, visando a defesa da posição do cliente na ação, baseado em factos e situações que não dizem direta ou indiretamente respeito ao objeto da ação, sendo um tipo de discurso usado, com alguma frequência, na elaboração de peças processuais que dão entrada nos tribunais. Ou seja, um discurso técnico, é certo de valor jurídico discutível, mas que é próprio, e se encontra mesmo enraizado na prática judiciária de, pelo menos, um setor da advocacia no nosso país.
Nesta medida, indicia-se que os referidos dizeres da contestação aqui em discussão não têm por base a transmissão de factos e instruções por parte do cliente ao advogado que redigiu e subscreveu a peça processual, não se vislumbrando mesmo que relativamente a eles tenha existido qualquer interferência do mandante, ou melhor dizendo do seu legal representante.
Por isso, o texto da contestação, na parte aqui em discussão, resulta da autonomia técnica de que goza o advogado, sendo, pois, exclusivamente da sua responsabilidade. Efetivamente, o arguido, enquanto advogado que elaborou e subscreveu a peça processual em causa, no caso de vir a ser atribuída relevância penal aos factos, é o autor imediato do crime de difamação, e não também o mandante ou o seu legal representante.
Para haver coautoria tem de existir um acordo, que pode ser expresso ou tácito, uma distribuição de tarefas para levar a cabo o crime; que o coautor tome parte na execução “de modo direto”, com isso se querendo aludir a uma intervenção essencial em termos de causalidade adequada ou tenha o domínio funcional do facto sempre que, tendo em conta certo estádio de execução, a intervenção do coautor for indispensável à execução do crime, sob pena de sem ela o plano de conjunto falhar.
No caso, para além do alegado pelo arguido na parte em que refere, quanto ao excerto da noticia na comunicação social, que obteve dos serviços da Câmara Municipal ... os dois documentos que juntou com a contestação (cópia dos jornais onde foi publicada a notícia), nada mais existe. Nesta medida, não se vislumbra que o Exmo. Senhor Presidente da Câmara tenha instrumentalizado o arguido a escrever os dois referidos excertos da contestação; que o instigou a tal, ou seja que o determinou a praticar o alegado crime de difamação, cfr. artigo 26º do CP parte final, uma vez que determinar outra pessoa à prática de um crime significa criar nela a decisão de o cometer.
De facto, no caso em apreço, nada há nos autos que indicie que o Exmo. Senhor Presidente da Câmara deu indicações ao arguido, advogado que patrocinou o município no mencionado processo judicial, para fazer referência à referida noticia do jornal, nem para optar pela argumentação vertida na contestação.
Aliás, a comprovarem-se as referidas “indicações” ou “instruções” isso poderia significar o reconhecimento de um estatuto de capacidade diminuída ao arguido, enquanto advogado que patrocinou o município naquele processo, o que, de forma alguma, se indicia que tenha sucedido.
A sobredita contestação, na parte que aqui está em discussão, repete-se, é fruto exclusivo do trabalho intelectual, de natureza técnica do arguido, enquanto advogado que a redigiu e assinou.
Por isso, importa enfatizar, sendo certo que o assistente, na queixa que apresentou nos presentes autos e na consequente acusação, não se referiu a nenhum facto ou circunstância que permitisse concluir pela responsabilidade exclusiva do arguido, a verdade é que não tinha necessidade de o fazer.
Nesta conformidade, a queixa foi bem apresentada apenas contra o arguido, na qualidade de advogado que redigiu e subscreveu a sobredita peça processual, pelo que não tinha que ter sido apresentada queixa também contra o legal representante do município mandante, carecendo de sentido a invocação de ter sido violado o princípio da indivisibilidade da queixa e da acusação particular a que se refere os artigos 115º, nº 3 e 117º do Código Penal.
Em decorrência do exposto, o recurso tem necessariamente de lograr procedência.
III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, face à improcedência da questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto, em julgar procedente o recurso interposto pelo assistente e, consequentemente, revogar a decisão instrutória recorrida, a qual deverá ser substituída por outra em que, não se verificando qualquer outra questão prévia, se aprecie do mérito do Requerimento de Abertura de Instrução formulado pelo arguido, considerando-se como não verificada no caso a violação do princípio da indivisibilidade da queixa e da acusação particular dos artigos 115º, nº 3 e 117º do Código Penal.
Sem custas (artigo 515º, n.º 1, al. b), a contrario, do Código de Processo Penal). Texto integralmente elaborado pelo seu relator e revisto pelos seus signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Notifique.
[1] Nas transcrições das peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da correção de erros ou lapsos manifestos, bem assim da formatação do texto, da responsabilidade do relator. [2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995; as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP; as irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP; e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P.. [3] In Direito Processual Penal Português, Vol. 1, Universidade Católica Editora, 2017, pág. 258. [4] In Código Penal Português, Almedina, 8ª edição, pág. 490. [5] In Noções de Direito Penal, 5ª ed., 2016, Rei dos Livros, pág. 383. [6] BMJ151-68-69 [7] In Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 122 e seguintes. [8] Assim, vide, designadamente, os artigos 97º, nº 2 e 100º, nº 1 al, b) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 09 de setembro.