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PERDA ALARGADA DE BENS
ARRESTO
PATRIMÓNIO RELEVANTE
CONTAS BANCÁRIAS DE TERCEIRO
Sumário
I – A Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro veio estabelecer um conjunto de medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, prevendo logo no seu artigo 1.º, «um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do estado», relativamente aos crimes ali previstos; II - De acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º 1 daquele diploma, «em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito»; III - A presunção prevista pelo legislador pode ser ilidida se o arguido provar a origem lícita daqueles bens como resulta do disposto no artigo 9.º, n.º 1 do mesmo diploma legal; IV - O facto de o arguido não ser cotitular nem estar contratualmente autorizado a movimentar as contas bancárias arrestadas, não significa que não possa usufruir e beneficiar do respetivo saldo para as movimentar; V - Vivendo o arguido com a embargante com quem foi casado, é da experiência comum concluir que possa usufruir e beneficiar de rendimentos, mesmo que sejam auferidos pela sua mulher, nomeadamente os que eventualmente sejam por ela depositados nas contas bancárias que o arguido não pode contratualmente movimentar; VI – Na contabilização do património relevante para efeitos do arresto decretado no âmbito do regime de perda ampliada de bens, nos termos do art.º 7.º, n.º 2, da lei 5/2002, de 11 de janeiro, o critério não é meramente civilista, pelo que como se entendeu na primeira instância, pode-se incluir nesse conceito “o valor de determinados bens ou ativos de que formalmente são titulares terceiros, sempre que o arguido exerça sobre eles uma influência de controlo”.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
A) Relatório:
1) No âmbito do processo de Embargos de Terceiro que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz ..., foi proferida sentença em 03 de Janeiro de 2025, no processo n.º 183/15.5IDBRG-N, cuja parte decisória se reproduz: Pelo exposto decide-se julgar improcedentes os presentes embargos e, em consequência determinar a manutenção do arresto que incide sobre: - o imóvel sito em ..., sob a matriz ...14 de ...; - o imóvel sito na ..., sob a matriz ...74 de ...; - o saldo das contas bancárias tituladas no Banco 1..., do arresto dos saldos das contas bancárias de que é titular naquela instituição financeira, designadamente, com o n.º ...42, no montante de € 8.267,00 e com o n.º ...26, no montante de € 56.500,00; - o veículo automóvel da marca ..., com a matrícula GX-..-..
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2) Inconformada com esta decisão, da mesma interpôs AA o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: 1. Com o devido respeito, entende a Recorrente que mal andou o Tribunal a quo no que respeita à decisão proferida no âmbito dos presentes autos, ao decidiu julgar improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pela ora Recorrente, e, em consequência determinar a manutenção do arresto que incide sobre: o imóvel sito em ..., sob a matriz ...14 de ...; o imóvel sito na ..., sob a matriz ...74 de ...; o saldo das contas bancárias tituladas no Banco 1..., do arresto dos saldos das contas bancárias de que é titular naquela instituição financeira, designadamente, com o n.º ...42, no montante de € 8.267,00 e com o n.º ...26, no montante de € 56.500,00, versando o recurso sobre esta decisão. 2. Neste contexto, entende a Recorrente que o tribunal a quo não procedeu à análise crítica dos meios de prova produzidos no julgamento, nos termos do art.º 607.º do CPC, designadamente, na apreciação do depoimento das testemunhas BB e CC, assim como ao depoimento da Embargante, bem como dos documentos juntos aos autos pela Recorrente, conjugando-os ainda, com a factualidade dada como provada e a informação prestada pelo GRA- Gabinete de Recuperação de Ativos, assim como fez uma incorreta apreciação jurídica da questão em apreço. 3. Entende, nomeadamente, a Recorrente que o tribunal a quo deveria ter dado outra resposta à matéria de facto constante de alguns pontos da matéria de facto dada como não provada, a saber, al. b), c), d), f), g), h), i), j), K), l), q), da matéria de facto dada como não provada, os quais deverão passar a integrar a matéria dada como provada.
I. Da impugnação da matéria de facto 4. O tribunal a quo julgou incorretamente os factos al. b), c), d), f), g) e h) da matéria de facto dada como não provada, designadamente: “b) A embargante paga as prestações do empréstimo através da entrega de valores em numerário ao seu ex-marido, uma vez que o empréstimo estava associado a uma conta titulada pelo arguido domiciliada nessa instituição bancária – condição necessária para a realização do empréstimo. c) O pagamento de valores em numerário era feito por uma questão de facilidade, uma vez que a embargante recebia, maioritariamente, pagamentos em numerário. d) A embargante e o ex-marido acordaram que a embargante apenas teria de entregar ao arguido o valor de € 200,00 da prestação de mútuo bancário (deduzindo-se ao valor mensal do empréstimo, de cerca de € 500,00, o valor da pensão de alimentos). f) O arguido e a embargante, posteriormente ao divórcio, separaram totalmente os respetivos patrimónios. g) Para além do que consta no ponto 15.º, a embargante sempre tenha recebido rendimentos do seu trabalho no período que mediou o casamento e posteriormente, e investimentos, e foi com esse rendimento que pagou as prestações mensais daquele contrato de mútuo. h) É, presentemente, com o rendimento que obtém com o seu trabalho que a embargante se mantém a liquidar aquelas obrigações. 5. Considerando os factos indicados na conclusão anterior, o Tribunal a quo, não obstante o alegado pela Recorrente em sede própria, a prova testemunhal produzida no julgamento, depoimento da Embargante. e bem assim, os documentos juntos aos autos, da qual resultou que é a Recorrente quem paga as prestações bancárias do empréstimo contraído para a realização de obras sobre o imóvel sito em ..., concelho ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...14 – descrito no facto n.º 6 da matéria dada como provada -, através da entrega de valores em numerário ao Arguido, e bem assim, que é a própria que se encontra a liquidar, quer as prestações, quer as despesas, com rendimentos do seu trabalho e provenientes de investimentos em imóveis (com as rendas que recebe do arrendamento), julgou essa matéria como não provada. 6. Com efeito, o imóvel sito em ..., sob a matriz ...14 de ..., foi doado à Embargante pela sua mãe, tendo o mesmo passado a constituir a casa de morada daquela família, conforme demonstra a escritura de doação junta sob o doc. n.º 3 com os embargos e o depoimento da Embargante. 7. A este respeito, a Recorrente, AA, nas declarações que prestou, esclareceu que o imóvel sito em ..., ..., foi doado pelos pais e sujeito a obras de recuperação, sendo que ali viveu com o Arguido até à data do divórcio, em ../../2014, e apenas com os filhos, desde essa data e até cerca de dois anos antes da inquirição da Embargante (ou seja, Novembro de 2022), esclarecendo que durante o tempo da separação o Arguido não vivia naquele imóvel (depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:02:51 a 00:05:09). 8. A Embargante e o seu ex-marido, conforme se expende do depoimento e, de resto, resulta da escritura de partilha junta sob o doc. n.º 2, realizaram obras no aludido imóvel e para tanto tiveram de realizar um empréstimo bancário contraído junto da instituição financeira de crédito, Banco 2..., associada à conta titulada pelo Arguido. 9. A Recorrente esclareceu que para realizarem as obras de recuperação do imóvel sito em ..., ela e o Arguido contraíram um crédito de cerca de € 150.000,00 na Banco 2... e usou ainda dinheiro que lhe tinha sido dado pela mãe, que lhe oferecia entre € 100,00 a 500,00, cerca de quatro vezes ao ano para compensá-la pelo apoio que esta lhes prestava (depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:05:10 a 00:07:52): 10. Ainda no seu depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:07:56 a 00:09:48, a Recorrente explicou que na sequência do divórcio, o imóvel de ... lhe foi adjudicado ficando a seu cargo as prestações do mútuo bancário e bem assim, que por imposição do Banco, a conta bancária que continuou a associada ao mútuo foi a do Arguido, pelo que combinou com o mesmo entregar-lhe o valor da prestação bancária de pouco mais de € 500,00, deduzido da pensão de alimentos dos filhos que incumbia o Arguido (no valor total de € 300,00), o que totalizava cerca de € 200,00-€ 300,00 por mês. 11. Também do depoimento da Recorrente, prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:09:49 a 00:10:44, resultou que o pagamento desses valores ao Arguido era feito em numerário, uma vez que a Embargante recebia, maioritariamente, pagamentos nessa modalidade. 12. Ainda a este respeito, e conforme resulta do acordo de partilha do património conjugal junto sob o doc. n.º 2 com os embargos e do depoimento da Recorrente, prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:11:09 a 00:11:35, o único bem que havia a partilhar na decorrência do divórcio era o imóvel sito em ..., pelo que, com a atribuição do mesmo à Recorrente, o Arguido e Recorrente separaram definitiva e totalmente os patrimónios, pelo que a Embargante é dona e legítima possuidora do imóvel em referência, pertencendo-lhe, ainda presumidamente o mesmo em virtude do registo da propriedade do imóvel a seu favor. 13. De resto, não é despiciendo dizer que do facto n.º 14 da matéria dada como provada o imóvel se encontra na titularidade da Recorrente há mais de cinco ano desde que foi realizada a constituição do ex-marido da Embargante como Arguido nestes autos, pelo que, não há um único facto provado de onde resulte que o Arguido tenha o domínio do imóvel e nem sequer tal foi alegado pelo Gabinete de Recuperação de Ativos. 14. Como resulta do facto n.º 15 dado como provado depoimento da Recorrente, a Recorrente sempre auferiu rendimentos provenientes do seu trabalho e investimento, o que, conjugado com o depoimento da Recorrente prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:11:36 a 00:16:45, em que esta esclarece que, após o divórcio, trabalhando cinco dias por semana, auferia rendimentos diários que oscilavam entre cerca de € 200,00 e € 500,00 e que recebia valores das rendas provenientes dos imóveis que comprou após o divórcio (um em ..., na ..., e outro era em ..., tendo um uma renda no valor de € 250,00 e outro de € 650,00), facilmente se compreende que foi a Recorrente que, após o divórcio, pagou as prestações mensais do mútuo do imóvel sito em .... 15. Neste âmbito, também do apenso do GRA resulta o histórico de propriedade de imóveis pela Recorrente, que corrobora as declarações por aquela prestadas e bem assim, o evidenciam os documentos n.º 6 e 7, que correspondem a informações sobre propriedade sobre imóveis e recibos de renda extraídos do website da Autoridade Tributária. 16. A Recorrente manteve, desde a data da sua compra, a sua habitação permanente no indicado imóvel em condições que demonstram a intenção de o habitar, conforme evidenciam os factos n.º 11 e 12 da matéria dada como provada, e é ali que fazia e faz a sua vida normal, recebendo os amigos e família, correspondência e pagando os encargos do respetivo imóvel, conforme demonstram os documentos n.º 4 e 5 juntos com os embargos, designadamente, referentes à fatura de eletricidade e serviços de fornecimento de telecomunicações, televisão e internet e do depoimento da Recorrente, prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:31:32 a 00:32:18, na qual confirma que, após o divórcio, passou a assumir todas as despesas com o imóvel. 17. Deste modo, o referido imóvel não se encontra no domínio patrimonial do ex-marido da Recorrente, nem este detém o domínio, ou o benefício do imóvel, assim como não detém nem a propriedade, nem a posse, nem sobre ele detém qualquer domínio material. 18. Resulta, por isso, de forma evidente do aludido depoimento da Recorrente (prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:02:51 a 00:05:09, de 00:05:10 a 00:07:52 e de 00:07:56 a 00:09:48 e de 00:31:32 a 00:32:18) e da conjugação dos documentos n.º 1, 2, 3, 4 e 5 juntos com os embargos, que esses meios de prova não colheram uma correta valoração pelo Tribunal a quo, levando a uma incorreta inclusão dos factos n.ºs constantes da al. b), c), d), f), g) e h), na matéria dada como não provada, pelo que, do teor dos mesmos e bem assim, da informação do GRA referente à titularidade das contas bancárias, assim como conjugação da matéria dada como provada e não sindicada constante dos arts. 11,12, 14 e 15, sempre se teria de concluir que é a Recorrente quem, desde o divórcio, em 2014, através dos rendimentos que aufere com a atividade profissional e com o valor dos investimentos em imóveis (rendas) por si adquiridos após o divórcio, se encontra a pagar as despesas e as prestações do empréstimo bancário relativo ao imóvel sito em ..., através da entrega de valores em numerário ao seu ex-marido (uma vez que esta recebe maioritariamente em numerário), o qual é titular da conta associada ao mútuo bancário; que ao valor das prestações, por acordo da Recorrente e Arguido é deduzido o valor da pensão de alimentos dos filhos menores (no valor total de € 300,00). 19. Em face do exposto supra e quanto aos factos dados como não provados sob o ponto b), c) , d), f), g) e h) com todo o respeito que é devido, entende a Recorrente que com base nos meios de prova supra mencionados, se deveriam considerar tais factos como provados, e, consequentemente, deveriam proceder os embargos deduzidos pela Recorrente, levantando-se o arresto sobre o imóvel sito em ..., sob a matriz ...14 de .... 20. Por seu tuno, o tribunal a quo julgou incorretamente os factos al. i) e j) da matéria de facto dada como não provada, designadamente: “i) Assim como com o apoio financeiro do seu irmão (que se encontra a trabalhar no ... e aufere rendimentos elevados e pretende, um dia mais tarde, fixar residência em Portugal), foi investindo, ao longo dos anos, em alguns imóveis, que arrendava e/ou vendia por um preço superior ao de compra. j) O imóvel descrito em 16.º foi adquirido com os valores investidos pelo irmão da embargante, com o produto das rendas de outros imóveis, com as suas poupanças e bem assim, com os rendimentos provenientes do seu trabalho.” 21. A respeito dos factos indicados na conclusão anterior, o Tribunal a quo, não obstante o alegado pela Recorrente em sede própria, as declarações por si prestadas, os depoimentos das testemunhas, CC, irmão da Recorrente e BB, colega de trabalho da Recorrente, dos quais resultou cabalmente a correspondência entre a prova produzida e a matéria alegada, decidiu incorretamente inserir aquelas factos na matéria dada como não provada, procedendo a uma incorreta valoração da prova, designadamente, não integrando na matéria dada como provada que a Recorrente foi investindo, ao longo dos anos, em alguns imóveis, que arrendava e/ou vendia por um preço superior ao de compra com a ajuda do irmão e que, o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de ... (descrito no ponto 16 da matéria dada como provada), foi adquirido com os valores investidos pelo irmão da embargante, com o produto das rendas de outros imóveis, com as suas poupanças e bem assim, com os rendimentos provenientes do seu trabalho. 22. Com efeito, a Recorrente, AA, no depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:17:36 a 00:22:42, esclareceu que o irmão [CC], que se encontra a residir e trabalhar na ..., quando a mãe ainda era viva, a costumava compensar com algum dinheiro em face do apoio que estava prestava aos pais de ambos e despesas que tinha com os mesmos, dando-lhe valores que se compreendiam entre os € 500,00 e € 1.000,00, dependendo da quantidade de vezes que se deslocava a Portugal. Mais esclareceu que adquiriu, em 2018, o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de ..., pelo valor de € 90.000,00, tendo sido este irmão que lhe emprestou € 50.000,00 para a auxiliar nesse negócio [tendo a Recorrente devolvido já € 25.000,00] e o remanescente foi pago com o produto das rendas de outros imóveis, com as suas poupanças e bem assim, com os rendimentos provenientes do seu trabalho, pretendendo, agora vendê-lo o que não pode fazer em virtude do arresto que incide sobre o mesmo. 23. Com efeito, também do apenso do GRA resulta que o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de ..., foi adquirido pela Recorrente, mediante a celebração de um negócio de compra e venda celebrado em ../../2018, pelo valor de € 90.000,00, facto esse que foi dado como provado na douta sentença recorrida sob o art.º 17.º. 24. Já o irmão da Recorrente, CC, que depôs de forma isenta e desinteressada, no seu depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:08:43, confirmou as declarações da Recorrente, esclarecendo que uma vez emprestou à Recorrente € 50.000,00 pois esta tinha um bom negócio em vista e que a Recorrente já lhe devolveu quase metade desse valor (no trecho de 00:03:03 a 00:04:0a), e confirmou que entregava alguns valores em dinheiro à Recorrente para a compensar pelas despesas que esta tinha com o apoio prestados aos pais de ambos (trecho de 00:04:16 a 00:04:56): 25. Por seu turno, também com total imparcialidade e isenção, a testemunha BB, no depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:10:25, confirmou que teve conhecimento, a partir da Recorrente e uma vez que tinham agente imobiliários que comentaram com as duas a existência desse potencial negócio, que esta havia comprado o imóvel sito na ..., ..., após o divórcio, com o auxílio do irmão (no trecho de 00:04:17 a 00:05:14 e de 00:06:15 a 00:06:36). 26. Com efeito, da prova coligida, resulta indubitável que a Embargante, com as suas poupanças e com os rendimentos provenientes do seu trabalho e das rendas que recebia, assim como com o apoio financeiro do seu irmão, foi investindo, ao longo dos anos, em alguns imóveis, que arrendava e/ou vendia por um preço superior ao de compra, dispondo de rendimentos para isso (como resulta evidenciado do facto 15 da matéria dada como provada) e conforme também evidencia o documento n.º 6 junto com os Embargos e que se refere a um imóvel que havia sido adquirido pela Recorrente após o divórcio e foi por aquela vendido antes da compra do imóvel sito na ..., informação essa que se pode observar do apenso do GRA – Gabinete de Recuperação de Ativos. 27. Em particular, do depoimento da Recorrente e das testemunhas CC e BB, resulta incontestavelmente, que tal sucedeu com o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de ..., onde a Embargante é igualmente dona e legítima possuidora do mesmo, conforme de resto também foi dado como provado sob o ponto 16.º da matéria dada como provada. 28. As testemunhas foram cabais a esclarecer que a compra do imóvel pelo valor de € 90.000,00, foi realizada apenas com verbas da Recorrente (provenientes de rendas de outros imóveis, rendimentos do trabalho e poupanças) e um empréstimo de € 50.000,00 do irmão da mesma. 29. De resto, por força daquela escritura de compra e venda, o direito de propriedade do imóvel sito na ... pertence, com exclusão de qualquer outrem, à Recorrente, sendo esta que, conforme evidenciam os documentos n.º 7 e 8 juntos com os embargos de terceiro, que se referem ao Imposto Municipal sobre Imóveis e despesa com eletricidade, suporta todas as despesas associadas ao aludido imóvel, sendo, portanto, a mesma que tem o domínio exclusivo sobre o mesmo. 30. Resulta, por isso, de forma evidente do aludido depoimento da Recorrente (prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:17:36 a 00:22:42), da testemunha CC (prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:08:43, no trecho de 00:03:03 a 00:04:01 e de 00:04:16 a 00:04:56) e da testemunha BB (prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:10:25, no trecho de 00:04:17 a 00:05:14 e de 00:06:15 a 00:06:36) e da conjugação dos documentos n.º 6, 7 e 8 juntos com os embargos, que esses meios de prova não colheram uma correta valoração pelo Tribunal a quo, levando a uma incorreta inclusão dos factos n.ºs i) a j) na matéria dada como não provada, pelo que, do teor dos mesmos e bem assim, da como da conjugação da matéria dada como provada e não sindicada constante dos arts. 15, 16, e 17, sempre se teria de concluir que a Recorrente foi investindo, ao longo dos anos, em alguns imóveis, que arrendava e/ou vendia por um preço superior ao de compra com a ajuda do irmão e que, o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de ... (descrito no ponto 16 da matéria dada como provada), foi adquirido pela Recorrente com os valores emprestados pelo irmão, com o produto das rendas de outros imóveis, com as poupanças da Recorrente e bem assim, com os rendimentos provenientes do seu trabalho. 31. Do exposto resulta que o aludido imóvel não se encontra no domínio patrimonial do Arguido, nem este detém, nem o benefício do imóvel, nem o domínio e, de resto, consultado o apenso do GRA, verificamos que não existem, sequer, entradas na conta bancária da Recorrente provenientes de dinheiro provenientes do Arguido que permitissem adquirir o imóvel, pelo que se tem de concluir que é a Recorrente quem detém a titularidade formal e material do imóvel descrito nos autos. 32. Em face do exposto e quanto aos factos dados como não provados sob os pontos constantes da al. i) e j) todo o respeito que é devido, entende a Recorrente que com base nos meios de prova supra mencionados, se deveriam considerar tais factos como provados, e, consequentemente, deveriam proceder os embargos deduzidos pela Recorrente, levantando-se o arresto sobre o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de .... 33. O tribunal a quo julgou incorretamente os seguintes factos da matéria dada como não provada sob a al.k) “É a embargante que paga todas as despesas associadas ao aludido imóvel”, tendo ocorrido uma incorreta valoração dos documentos juntos com os embargos”, uma vez que os documentos n.º 7 e 8 juntos com os embargos de terceiro da Recorrente, que se referem ao Imposto Municipal sobre Imóveis e despesa com eletricidade referentes ao imóvel descrito no facto 16 (da matéria dada como provado, sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de ..., propriedade da Recorrente, evidenciam, até porque consta a Recorrente como destinatária dos mesmos, que é esta quem suporta todas as despesas associadas ao aludido imóvel, sendo, portanto, a mesma que tem o domínio exclusivo sobre o mesmo, pelo que a correta valoração e apreciação destes documentos deverá levar à inclusão do facto constante da al.k) na matéria dada como provada e determinar o levantamento do arresto do imóvel sito na .... 34. Por sua vez, mal andou, também o tribunal a quo ao incluir na matéria dada como não provada os factos constantes da al. l) “l) A embargante é proprietária da totalidade dos saldos por ela e em seu nome depositados.” e “q) Os montantes depositados nas contas bancárias eram destinados a si e não ao Sr. DD, nos montantes ali precisamente expressos, tendo tais montantes correspondência direta e cabal com o valor por si recebido.”, porquanto as declarações prestadas pela Recorrente, a informação do GRA – Gabinete de Recuperação de Ativos, relativa à titularidade da conta bancária, e a falta de qualquer alegação que apontasse no sentido de que o Arguido tivesse qualquer domínio sobre as contas bancárias da Arguida, facilmente evidenciam que o tribunal a quo apreciou incorretamente esses factos, procedendo a uma incorreta valoração da prova. 35. Em concreto, relembremos que foi determinado o arresto nos presentes bancários de duas contas bancárias exclusivamente tituladas pela Recorrente, conforme resulta da informação coligida pelo GRA – Gabinete de Recuperação de Ativos, a saber, no Banco 1..., designadamente, com o n.º ...42, no montante de € 8.267,00 e com o n.º ...26, no montante de € 56.500,00, nos quais a Embargante é titular exclusiva. 36. A Recorrente, AA, no seu depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:23:03 a 00:25:01, esclareceu que é titular exclusiva da conta bancária do Banco 1..., que abriu quando ainda era solteira e que o Arguido não tem qualquer poder ou forma de movimentar essa conta bancária, e que o movimento bancário aí verificado é o proveniente das poupanças que fez, dos seus rendimentos e que sempre foi usada como conta pessoal da mesma, mesmo na constância do casamento com o Arguido, 37. Do exposto resulta que as contas bancárias tituladas pela Recorrente no Banco 1... e arrestadas nos autos, são exclusivamente tituladas pela Embargante, são por aquela exclusivamente utilizadas e a Recorrente tem o seu domínio e benefício exclusivo, e, em consequência, a Recorrente é proprietária da totalidade dos saldos por ela e em seu nome depositados, tendo, com exclusão do seu ex-marido, o direito de propriedade sobre o numerário a este título depositado. 38. Uma vez que o Arguido não é titular da conta, não se compreende como, não tendo sido alegado nada pelo GRA ou pelo Ministério Público no sentido de que o Arguido tem qualquer domínio sobre as contas, pôde o tribunal a quo simplesmente assumir que esse domínio existia e colocar a cargo da Recorrente a prova diabólica de demonstrar que esse domínio não existia. 39. A isto acresce que, o tribunal considerou como provado que a Recorrente (e não o ex-marido desta) naquelas contas bancárias efetuou depósitos e nela recebeu montantes (facto 19 da matéria dada como provada), e bem assim, a existência de rendimentos da Recorrente provenientes do trabalho e de rendas (no facto 15 da matéria provada), sendo que a própria Recorrente, no depoimento prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:11:36 a 00:16:45, esclareceu que após o divórcio, trabalhando cinco dias por semana, auferia rendimentos diários que oscilavam entre cerca de € 200,00 e € 500,00 e que lhe permitiam, assim como valores das rendas provenientes dos imóveis que comprou após o divórcio (um em ..., na ..., e o outro em ..., tendo um uma renda no valor de € 250,00 e outro de € 650,00). 40. Deste modo, dúvidas inexistem que a Recorrente auferia valores que permitem estabelecer uma correlação de proveniência com os montantes depositados nas suas contas bancárias, não existindo nos autos que aponte no sentido de o Arguido ter um domínio sobre os mesmos, pelo que, a falta de alegação e prova em sentido diverso, o depoimento da Recorrente (prestado em 08/11/2024, com a duração total de 00:34:28, no trecho de 00:11:36 a 00:16:45 e de 00:23:03 a 00:25:01), as declarações de IRS por esta efetuadas, a informação sobre a titularidade exclusiva das contas elaborada pelo GRA e a conjugação da factualidade constante dos arts. 15 e 19 da matéria dada como provada, impõem a alteração da resposta dada pelo tribunal a quo aos factos constantes do ponto l) e q), passando os mesmos a integrar a matéria dada como provada, e, consequentemente, deveriam proceder os embargos deduzidos pela Recorrente, levantando-se o arresto sobre as mencionadas contas bancárias tituladas pela Recorrente no Banco 1..., designadamente, com o n.º ...42, no montante de € 8.267,00 e com o n.º ...26, no montante de € 56.500,00.
II. Da impugnação da matéria de direito
a) Do arresto de bens de terceiro: i. Da inexistência de domínio ou benefício do bem pelo Arguido 41. O artigo 7.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2002, define o conjunto de bens tidos como património do Arguido, englobando neste, os bens dos quais ele tem o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente e, ainda, os bens transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante uma contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido. 42. A prova produzida no âmbito dos presentes autos e que, salvo melhor entendimento, não mereceu pelo Tribunal a quo uma correta valoração, evidencia que a Recorrente foi, desde a data da compra dos imóveis de que é proprietária (objeto dos presentes embargos), a única e exclusiva titular material daqueles bens, assim como dos depósitos das contas bancárias de que é titular, não havendo qualquer “domínio” ou “real benefício” do Arguido DD sobre os aludidos bens e depósitos, pelo que não se encontra preenchido o pressuposto legal para o decretamento do arresto sobre aqueles bens.
i. Do conceito de terceiro de boa-fé 43. Sem prescindir, impõe-se, ainda, e contrariamente à posição perfilhada na douta sentença aqui sindicada, esclarecer que a Recorrente, que é apenas ex-mulher do Arguido, é, face aos contornos processuais do arresto decretado nestes autos e relativamente à posição processual do Arguido, juridicamente um terceiro e um terceiro de boa fé, pelo que, desconsiderar- se essa sua qualidade de “terceira” na douta sentença recorrida, mais não é do que subverter e contornar os limites legais que a lei quis estabelecer e proteger com a proteção dos terceiros de boa-fé, evitando que se vejam irrazoavelmente afetados no seu património, isto porque, contrariamente à presunção que opera quanto ao património do Arguido na Lei n.º 5/2002, não será admissível estender a presunção de património ilícito a terceiros. 44. Tem sido entendimento dominante na doutrina e jurisprudência nacionais que, para que seja possível o arresto de bens de terceiros no âmbito do arresto decretado ao abrigo da Lei n.º 5/2002, é condição necessária que aquele terceiro se encontre de má fé, tendo-nos de socorrer à definição avançada pelo Código Civil, no seu artigo 291.º, n.º 3, que determina como terceiro de boa-fé aquele que “no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”. 45. Forçoso se torna, assim, concluir que apenas sobre os terceiros de má fé poderá recair o arresto sobre aqueles bens, e, no caso vertente, a Recorrente, além ser proprietária formal e material dos imóveis e beneficiar em exclusivo e em toda a sua plenitude dos direitos adjacentes ao seu direito de propriedade, adquiriu os imóveis em data muito anterior àquela em que foi proferida a acusação contra o Arguido, o imóvel sito na Laje em 2014, na sequência do divórcio (vindo o mesmo já proveniente de uma doação da mãe) e o imóvel sito na ..., em 2018, com a ajuda do irmão e numa altura em que se encontrava separada do ex-marido (relembre-se que a Recorrente e o ex-marido estão divorciados e estiveram separados de facto entre 2014 e 2022). 46. É assim, por demais evidente, que o Tribunal a quo não procedeu a uma adequada subsunção jurídica do caso em apreço, quer no que subjaz à inexistência de qualquer relação de domínio ou benefício do Arguido em relação ao imóvel, quer no que tange à sua qualificação da Recorrente como “terceiro de boa-fé”, em violação dos artigos 7.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 5/2002 e 291.º, n.º 3 do Código Civil. 47. Indo mais longe, ainda que assim não se concedesse, e cuja apreciação apenas se pretende a título supletivo, não poderá, nunca e em caso algum ser concedido à Recorrente, enquanto ex-mulher, uma proteção pelo direito inferior àquela que é concedida ao cônjuge, isto porque, se no regime de bens comuns se prevê que o cônjuge não arguido, tem direito a requer a meação dos bens comuns, nos termos do art.º 740.º do CPC, não se compreende como, em caso de divórcio e existindo total de separação do património, se pode considerar que a totalidade do património registado a favor da ex-cônjuge não arguida pertence ao Arguido, estando vedada essa possibilidade de ser apreciada a meação, o que contraria o disposto no art.º 62.º da CRP. 48. Em face do exposto, no limite e a título subsidiário, para o caso de não proceder o levantamento total do arresto que incide sobre os imóveis registados a favor da Recorrente, sempre teria o tribunal de, analogicamente, considerar a Recorrente titular do correspondente direito à meação dos imóveis. b) Da proveniência lícita dos rendimentos depositados na conta bancária titulada exclusivamente pela Recorrente no Banco 1..., com o n.º ...42 e n.º ...26 49. Por outro lado, sempre teria aquele Tribunal a quo de considerar como excluído do património incongruente o valor correspondente aos depósitos que mensalmente eram efetuados naquela conta aberta no Banco 1..., provenientes dos rendimentos de trabalho auferidos pela Recorrente (e constantes das declarações), aos valores recebidos pelas rendas dos imóveis, aos valores provenientes da venda de imóveis (evidenciados no relatório do GRA) e aos valores das poupanças que tinha, provenientes de valores que lhe foram oferecidos pelos pais e pelo irmão. 50. A Recorrente, conforme resulta do apenso do GRA, é titular exclusiva daquelas contas bancárias, tem o seu exclusivo domínio e não foi junto aos autos documento algum do qual resulte que o Arguido tem poderes de movimentação da conta, antes decorrendo do depoimento da Recorrente que o Arguido não tem qualquer acesso àquela conta, pelo que o tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do disposto no artigo 7.º, da Lei 5/2002, devendo ter ordenado o imediato levantamento do arresto dos depósitos bancários das contas tituladas exclusivamente pela Recorrente. 51. Mas ainda que assim não se entenda, convém partirmos do seguinte raciocínio: o Arguido não é cotitular das contas bancária do Banco 1... sobre as quais incidiu o arresto, mas se fosse, teria de funcionar a presunção legal de contitularidade do dinheiro depositado nas referidas contas bancárias que se extrai do disposto nos arts. 516.º do CC e do nº 5 do artigo 780.º CPC – nesse sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (proc. n.º 111469/12.0TDLSB-F.L1-9, de 15.04.2021) em que é Relator Almeida Cabral, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.06.2013 (proc. n.º 226/11.1TVLSB.L1.S1), em que é Relator Alves Velho; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.01.2018 (proc. N.º 14407/13.0TDPRT-D.P3, em que é Relator Luís Coimbra. 52. Ao abrigo da supra referida presunção não se poderia, de todo, arrestar a totalidade dos capitais depositados/integrados nas contas bancárias tituladas pela Recorrente no Banco 1..., na medida em que metade dos capitais depositados naquelas contas bancárias se presumiriam ser da titularidade da Recorrente. 53. Com efeito, tratando-se, como se trata, de uma presunção legal, incumbiria ao Ministério Público, como sujeito processual que nos autos principais impulsionou o arresto desses bens e direitos, a demonstração de que tal presunção foi afastada mediante a alegação e demonstração de factos contrários, ou seja, ao Ministério Público cabia-lhe o ónus da prova de que a presumida meação da Recorrente pertencia ao Arguido, designadamente, que aquele tinha sobre a totalidade dos saldos bancários o benefício e/ou o seu domínio, ou que aquele saldo bancário resultava de proventos ou vantagens decorrentes da prática dos crimes de que o Arguido vinha acusado, o que, sublinhe-se, não foi sequer alegado! 54. Assim, se é entendimento de que caso de contitularidade de contas ao abrigo do disposto no art.º 516.º do Código Civil, se aplica a presunção de que o montante ali depositado se divide em parte iguais por cada co-titular, entendimento mais gravoso, isto é, considerar todo o património como pertencente ao Arguido, ainda que o mesmo não seja sequer titular da conta, implicaria uma atroz violação do direito constitucional à propriedade, previsto no artigo 62.º da CRP, sobretudo quando não resultou demonstrado que o Arguido tinha sobre a totalidade dos saldos bancários o benefício e/ou o seu domínio, não tendo, pois, o Ministério Público logrado prová-lo como se lhe impunha. 55. Para o caso de não se entender – o que não se concede, nem concebe, mas se coloca por hipótese académica - que, ao abrigo do disposto no art.º 7 da Lei 5/2002, não deveriam, simplesmente, ter sido arrestados os saldos das contas bancárias tituladas pela Recorrente, por não verificação dos pressupostos de que o mesmo depende, sempre se teria de considerar que mal andou o tribunal a quo na interpretação dos artigos 516.º e 780.º do CPC, porquanto não deveria ter determinado o arresto da totalidade dos saldos dessas mesmas, antes devia, em termos de apreciação analógica, considerado que a Recorrente era titular de, pelo menos, 50 % dessas contas bancárias, sob pena de se colocar o titular exclusivo de uma conta bancária numa posição mais desvantajosa do que o co-titular de uma conta bancária, violando-se o princípio constitucional da propriedade, previsto no art.º 62.º da CRP, e traduzindo-se, na verdade, o arresto de bens num verdadeiro confisco sobre uma pessoa que não é arguida num processo. 56. Ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida violou o disposto nos art. 7.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 5/2002; art.º 291.º, n.º 3 e 516.º do Código Civil, art.º 740.º e 780.º do Código de Processo Civil e art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que se impõe a sua revogação.
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3) Notificado do requerimento de interposição de recurso o Ministério Púbico respondeu alegando, em síntese, que o mesmo deve ser julgado totalmente improcedente, concluindo que: 1) Alega a embargante, agora recorrente, em síntese, discordar da apreciação crítica da prova e da aplicação do direito. 2) Na primeira questão impugna a matéria de facto. 3) E, na segunda, defende que a alegada exclusividade da titularidade do direito de propriedade deveria determinar o levantamento do arresto. 4) Pretende a recorrente alterar a matéria de facto basicamente com o depoimento da embargante, ex-mulher de um dos arguidos (DD), contra todos os indícios que levaram à dedução da acusação e contra a inexistência de prova cabal de tudo quanto alegou, bem como contra as regras da experiência comum e livre convicção, fundamentada, do Tribunal a quo. 5) O valor da vantagem da atividade criminosa obtida pelos arguidos, entre os quais se inclui DD, companheiro da embargante, com a prática dos crimes, traduz a vantagem económica direta ou indiretamente resultante desse facto, para si e para terceiros. Essa vantagem foi integrada no seu património e no património das sociedades beneficiárias, gastando-o em seu proveito, em proveito das sociedades ou misturando-o com património lícito. A embargante vive em economia comum com o arguido DD, tendo sido casada com ele até 2014, e enquanto casal, beneficia da atividade criminosa deste, já que as vantagens da prática dos crimes que lhe são imputados foram obtidas na constância da coabitação e, inclusivamente, do matrimónio. 6) A matéria de facto apurada reflecte a prova efectivamente produzida. 7) Uma coisa é a convicção objectiva do julgador e, outra muito diferente, que se compreende, mas não se acolhe, é a vontade subjectiva da parte, no sentido de alcançar a sua própria verdade. 8) O arresto previsto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é uma medida de índole jurídico-penal, que visa garantir o (eventual) futuro confisco (forçado, portanto) de um dado património que, porque incongruente com os rendimentos lícitos, se «presume», na aceção da citada Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e na falta de prova bastante em contrário se considera definitivamente constituir «vantagem de atividade criminosa» - artigo 7.º, n.º 1, do diploma legal em questão. 9) Entendendo-se como património do arguido, para efeitos da presente lei, entre outros, o conjunto dos bens que “estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente. 10) O arresto é possível não apenas em relação aos bens de que o arguido seja proprietário, mas também sobre os quais tenha o domínio e benefício, independentemente de uns e outros, terem ou não sido adquiridos há mais de cinco anos contados da data da constituição como arguido.
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4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Senhora Procuradora – Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.
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5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada foi alegado.
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6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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B) Fundamentação:
1. Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que a recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pela recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal)[1].
Acresce que da conjugação das normas constantes dos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artigo 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
No caso dos autos face às conclusões da motivação apresentadas pelo arguido, as questões a decidir são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento;
- Impugnação da matéria de direito: saber se estão reunidos os pressupostos que levaram ao arresto das contas bancárias, dos imóveis e do veículo automóvel nos termos determinados no processo de que esses embargos constituem um apenso.
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2. A Sentença recorrida:
Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor da sentença impugnada (matéria de facto provada e motivação da decisão de facto):
1. No âmbito do presente processo foi determinado o arresto dos saldos das contas bancárias de que é única titular no Banco 3..., designadamente, com o n.º ...42, no montante de € 8.267,00 e com o n.º ...26, no montante de € 56.500,00. 2. Foi determinado o arresto dos seguintes bens imóveis:
Morada
Descrição predial
Valor Patrimonial
..., ...
...
€ 80.903,92
..., ...
...
€ 77.617,80
3. A embargante não foi constituída arguida neste processo 4. A embargante e o arguido DD, casaram-se em ../../2001, divorciaram-se, por mútuo consentimento, em ../../2014 e vivem juntos partilhando cama, mesa e habitação; 5. Do aludido casamento sobrevieram dois filhos. 6. O imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...45 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...14, foi doado à embargante pelos seus pais, tendo o mesmo passado a constituir a casa de morada daquela família. 7. A embargante e o seu ex-marido realizaram obras no aludido imóvel, com um empréstimo bancário contraído junto da instituição financeira de crédito, Banco 2..., a favor de quem foi constituída uma hipoteca voluntária, que ainda hoje se mantém. 8. Nos acordos celebrados no divórcio, definiu-se que o imóvel seria adjudicado à embargante e esta assumiria o pagamento do passivo ainda em falta. 9. Estipulou-se no âmbito dos acordos que acompanharam o divórcio que o ex-marido da embargante teria que pagar mensalmente uma pensão de alimentos por cada filho menor, no valor de € 150,00. 10. No decurso do matrimónio, o ex-marido da embargante contribuiu para o pagamento das despesas desse imóvel. 11. A embargante manteve, desde a data da sua compra, a sua habitação permanente no indicado imóvel. 12. Neste imóvel fazia e faz a sua vida normal, ali recebendo os amigos e família, correspondência e pagando os encargos do respetivo imóvel. 13. O seu ex-marido reside nesse imóvel. 14. O imóvel encontra-se na titularidade e domínio da embargante há mais de cinco anos desde que foi realizada a constituição do ex-marido da embargante como arguido nos presentes autos. 15. A embargante tem rendimentos provenientes do seu trabalho e das rendas que recebe. 16. Encontra-se registado, em nome da embargante, na Conservatória do Registo Predial, o imóvel sito na ..., inscrito na matriz sob o n.º ...74 de .... 17. Este prédio foi adquirido mediante um contrato titulado por escritura pública em 09.2018, pelo valor de € 90.000,00. 18. A embargante emitiu, a favor do arguido, um cheque no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), datado de 05-04-2023. 19. A embargante efetuou, naquelas contas, depósitos, e nas mesmas recebeu montantes.
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B) Não resultou provada qualquer outra factualidade relevante para a decisão da causa, nomeadamente, que: a) A mãe da embargante doou uma quantia de cerca de € 5.000,00 em dinheiro, que serviu para fazer obras. b) A embargante paga as prestações do empréstimo através da entrega de valores em numerário ao seu ex-marido, uma vez que o empréstimo estava associado a uma conta titulada pelo arguido domiciliada nessa instituição bancária – condição necessária para a realização do empréstimo. c) O pagamento de valores em numerário era feito por uma questão de facilidade, uma vez que a embargante recebia, maioritariamente, pagamentos em numerário. d) A embargante e o ex-marido acordaram que a embargante apenas teria de entregar ao arguido o valor de € 200,00 da prestação de mútuo bancário (deduzindo-se ao valor mensal do empréstimo, de cerca de € 500,00, o valor da pensão de alimentos). e) É a embargante que se encontra a pagar a totalidade do respetivo preço convencionado com recurso ao crédito bancário. f) O arguido e a embargante, posteriormente ao divórcio, separaram totalmente os respetivos patrimónios. g) Para além do que consta no ponto 15.º, a embargante sempre tenha recebido rendimentos do seu trabalho no período que mediou o casamento e posteriormente, e investimentos, e foi com esse rendimento que pagou as prestações mensais daquele contrato de mútuo. h) É, presentemente, com o rendimento que obtém com o seu trabalho que a embargante se mantém a liquidar aquelas obrigações. i) Assim como com o apoio financeiro do seu irmão (que se encontra a trabalhar no ... e aufere rendimentos elevados e pretende, um dia mais tarde, fixar residência em Portugal), foi investindo, ao longo dos anos, em alguns imóveis, que arrendava e/ou vendia por um preço superior ao de compra. j) O imóvel descrito em 16.º foi adquirido com os valores investidos pelo irmão da embargante, com o produto das rendas de outros imóveis, com as suas poupanças e bem assim, com os rendimentos provenientes do seu trabalho. k) É a embargante que paga todas as despesas associadas ao aludido imóvel. l) A embargante é proprietária da totalidade dos saldos por ela e em seu nome depositados. m) O automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula GX-..-.., foi adquirido pela embargante ao arguido, pelo preço de € 5.000,00 (cinco mil euros), veículo esse que apenas foi registado em abril do ano corrente, porquanto foi intervencionado a nível de reparações pelo arguido DD. n) O aludido veículo foi adquirido pela embargante ao arguido, por dois motivos: o primeiro, e mais premente, porque esta precisava de um veículo para efetuar as suas deslocações para o trabalho e demais necessidades da sua vida quotidiana, por outro lado, a mesma beneficiou de uma redução do preço de mercado do mesmo, porquanto este visa a sua utilização regular, no próximo ano, pelo filho mais velho desta. o) O cheque referido em 18.º foi emitido em ../../2023. p) O aludido veículo foi adquirido com os rendimentos da embargante e não com os rendimentos do arguido. q) Os montantes depositados nas contas bancárias eram destinados a si e não ao Sr. DD, nos montantes ali precisamente expressos, tendo tais montantes correspondência direta e cabal com o valor por si recebido.
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C) Motivação
A factualidade assente resulta da análise conjugada dos documentos constantes do apenso, conjugados com as declarações de parte e depoimentos testemunhais, de acordo com as regras da experiência e da normalidade. AA é osteopata, esclarecendo que casou com o arguido DD em 03-06-2001, divorciando-se em ../../2014. Habita no imóvel identificado nos autos desde 2004/2005, esse imóvel foi-lhe doado pelos pais, logo após o casamento, e fizeram obras para o que contraíram um empréstimo de cerca de € 150 000,00. O respetivo IMI era pago pelo casal. Reconciliaram-se quase há dois anos e o arguido voltou a viver com ela nesse imóvel. Instada, não se recorda de qualquer doação de € 5 000,00. A mãe dava-lhe valores de € 100,00 a € 500,00, quatro vezes ao ano. Quando se divorciaram, o arguido ficou obrigado a pagar € 300,00 de pensão de alimentos aos filhos. A prestação ao banco era de € 500,00 e, na altura a conta bancária era titulada pelo arguido, por isso o empréstimo manteve-se a ser pago nessa conta. Exerce a sua atividade por conta própria, recebendo maioritariamente em numerário, pelo pagamento dos serviços que presta. Aufere € 200,00 a € 500,00, por dia, de terça a sábado, não declarando fiscalmente os rendimentos. Após o divórcio comprou dois apartamentos, arrendados, em ... (...) e ..., em 2015 e 2016, recebendo rendas de € 250,00 e € 650,00. O seu irmão vive na ..., vinha a Portugal uma ou duas vezes por ano, e dava-lhe € 500,00/€ 600,00, em numerário. Esse irmão emprestou-lhe € 50 000,00 para comprar um outro apartamento, em 2018, na ..., ..., tendo já devolvido € 25 000,00. Instada, disse ser única titular da conta do banco Banco 1..., era uma conta de solteira. Nessa conta coloca poupanças. Instada quanto ao veículo ..., disse ser um jipe, que comprou em abril ou maio de 2023, usado, ao arguido DD. Pagou € 5 000,00, com cheque, à sociedade EMP01.... Habitualmente conduz um veículo de marca ... 2008. BB é amiga da embargante, trabalhando com ela desde 2014. Depois do divórcio nunca mais viu o arguido DD em casa da embargante. CC é irmão da embargante relatando que, mesmo após o divórcio, o arguido DD sempre manteve boa relação com a embargante. A embargante pediu-lhe € 50 000,00 emprestados porque tinha um bom negócio em vista, já devolveu € 25 000,00. Compensava a irmã com dinheiro, porque era ela quem cuidava da mãe, quando vinha a Portugal, o que sucedia três a quatro vezes por ano. Dava quantias entre os € 200,00 e os € 1 000,00. O depoimento de BB foi sobretudo baseado nas informações que lhe eram transmitidas pela embargante, inclusivamente não logrou descrever o veículo que aquela conduz habitualmente. O depoimento de CC, atento o interesse no desfecho do processo devido à relação familiar que mantém com a embargante, apenas foi considerado na medida em que foi suportado por outros elementos de prova. De igual modo, as declarações da embargante, apenas tiveram relevo para apurar os factos provados quando apoiadas em outros elementos de prova. A matéria dos artigos 1.º a 3.º e 14.º decorre da análise da tramitação processual do apenso C, conjugada com o teor de folhas 8, 61 a 63, 66 a 68, 138, 139, 145 e 146. A matéria dos artigos 4.º e 5.º decorre do ter de folhas 9 a 13, 64 e 65. A matéria dos artigos 6.º, 11.º a 13.º tem por base a análise de folhas 14, 16 a 21, 42 a 45 e 66 a 68. É unânime entre as partes que o imóvel descrito constitui a casa de morada de família da embargante, companheiro e filhos e que o arguido ex-marido da embargante, contribuiu para as despesas do agregado. É igualmente unânime que a embargante vive em união de facto com o arguido, não se tendo apurado o concreto período em que terão residido afastados, nem tal foi alegado. A matéria do artigo 7.º decorre do teor de folhas 11, 12, 15 e 66 a 68, conjugada com as declarações de parte da embargante, nesta parte corroboradas pelos documentos. A matéria dos artigos 8.º e 9.º decorre do teor de folhas 9 a 15. A matéria do artigo 15.º decorre da análise de folhas 29 a 41, 71 a 134, conjugados com as declarações de BB e da embargante, tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade. A matéria dos artigos 16.º e 17.º decorre da análise dos documentos de folhas 61 a 63, constando idêntica informação do relatório do Gabinete de Recuperação de Ativos (apenso B). A matéria do artigo 18.º resulta do teor de folhas 46. A matéria do artigo 19.º resulta da análise dos movimentos registados nas contas bancárias tituladas pela embargante, analisados pelo Gabinete de Recuperação de Ativos (apenso B). A matéria da alínea a) teve apenas como suporte as declarações da embargante. Quanto à matéria da alínea b), a conjugação dos movimentos das contas bancárias tituladas pela embargante e pelo seu ex-marido (apenso B) não permitem extrair a conclusão alegada. Efetivamente, as declarações da embargante, desapoiadas de corroboração por outro meio de prova, são insuficientes para concluir pela verificação dos factos descritos em b) a d). Do mesmo modo, as declarações da embargante não foram suficientes para concluir pela verificação da matéria das alíneas e) e l), de resto não foi alegada qualquer correspondência entre movimentos bancários a débito e crédito, desconhecendo-se a origem do dinheiro que serve para liquidar as prestações ao banco. No que se reporta ao relacionamento entre a embargante e o ex-marido durante o período da sua separação de facto, BB disse que nunca mais o viu em casa da embargante, já CC disse que mantiveram contacto e que o arguido se deslocava a casa da embargante. Aliás, a própria embargante relatou que, caso trabalhasse até mais tarde o arguido ficava em sua casa com os filhos. Por outro lado, foi igualmente a embargante quem relatou haver «compensação» de créditos entre ambos, pelo que a alegada autonomização de patrimónios não resultou suficientemente esclarecida. Quanto à matéria da alínea g), não obstante existam rendimentos provenientes do trabalho da embargante, não se apurou que estes tenham sido auferidos durante todo o período de duração do seu casamento e posteriormente, inexistindo documentação comprovativa de tal facto. Desconhece-se a origem do dinheiro que serviu para liquidar as prestações ao banco, nem foi alegada a correspondência dos concretos valores recebidos, a que título e, posteriormente aplicados na liquidação das prestações bancárias. A matéria das alíneas h) a k) não tem qualquer suporte documental, sendo certo que a embargante reside em economia comum com o arguido DD, pai dos seus filhos. O alegado negócio referente ao veículo ... tem como suporte o cheque de € 5 000,00, desconhecendo-se se efetivamente ocorreu transação comercial. Por outro lado, a embargante nada referiu quanto à alegada utilização do veículo pelo filho do casal, aliás nem sequer seria o veículo para as suas deslocações do dia a dia, contrariamente ao alegado. Assim, a mera conjugação das declarações da embargante com o cheque junto ao requerimento inicial não se afigurou suficiente para se concluir pela efetiva compra do veículo. Atenta a natural parcialidade dos depoimentos testemunhais, apenas os factos suportados por outros meios de prova foram considerados.
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3. Apreciação do recurso
Primeira questão: impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
A recorrente entende que o Tribunal a quo devia ter dado outra resposta à matéria de facto.
Vejamos.
Cumpre antes de mais salientar que quando o Tribunal ad quem procede à reapreciação da prova, com a amplitude consentida pelo n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, reapreciando as provas e sindicando a convicção do juiz de julgamento em primeira instância, tem sempre a limitação decorrente da ausência de imediação e de oralidade, não tendo o Tribunal superior, “os mesmos poderes que tinha a primeira instância” e só podendo alterar o aí decidido “se as provas indicadas pela recorrente impuserem decisão diversa da proferida”, como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/10/2007 (de que foi relator o Desembargador Carlos Almeida, acórdão consultado em www.dgsi.pt). Acresce que como tem sido entendido pacificamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo que são expressamente indicados pela recorrente, com referência expressa aos meios de prova que impõem uma decisão diferente, quantos aos pontos de facto concretamente indicados.
Acresce que quando a recorrente impugna a matéria de facto, invocando o erro de julgamento, tem que dar cumprimento a um “tríplice ónus”, em obediência ao disposto no artigo 412.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/09/2012 (processo n.º 45/09.8GBACB.C1, também consultado em www.dgsi.pt): a) Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência; b) Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado artigo 412.º); c) Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Na verdade, impõe o artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, deve a recorrente especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. As especificações previstas as alíneas b) e c) do n.º 3 do mesmo artigo devem fazer-se «por referência ao consignado na acta», devendo a recorrente, «indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação» e que no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida pelo Tribunal recorrido – artigo 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal. Todas estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas pela recorrente, sendo que o incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412.º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla.
No caso dos autos, a recorrente indica que os factos descritos na matéria de facto dada como não provada nas alíneas b), c), d), f), g), h), i), j), K), l), q), os quais, segundo a sua avaliação da produção de prova, deveriam passar a integrar a matéria dada como provada. No entanto, adiantamos desde já, das passagens da gravação da prova que indica, não resulta que se imponha qualquer outra decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente indica, antes de mais, passagens do depoimento, interessado, da própria embargante, do irmão e de uma amiga, passagens que, alegadamente, impõem uma decisão diferente da definição da matéria de facto, mas não tem razão até porque, como bem se concluiu na decisão recorrida, não pode deixar de se considerar a “natural parcialidade dos depoimentos testemunhais”.
Segundo o que alega a recorrente, o seu depoimento conjugado com os documentos n.º 1, 2, 3, 4 e 5 juntos com os embargos, foram meios de prova que “não colheram uma correta valoração pelo Tribunal a quo”. Invoca ainda a recorrente passagens dos depoimentos das testemunhas, CC, irmão da Recorrente (que na sua análise prestou um depoimento de “forma isenta e desinteressada” e BB, colega de trabalho da Recorrente, “dos quais resultou cabalmente a correspondência entre a prova produzida e a matéria alegada”.
Ora, o Tribunal recorrido explicou na decisão recorrida, que “as declarações da embargante, desapoiadas de corroboração por outro meio de prova, são insuficientes para concluir pela verificação dos factos descritos em b) a d)”. Do mesmo modo, “as declarações da embargante não foram suficientes para concluir pela verificação da matéria das alíneas e) e l), de resto não foi alegada qualquer correspondência entre movimentos bancários a débito e crédito, desconhecendo-se a origem do dinheiro que serve para liquidar as prestações ao banco”.
Ao contrário da recorrente, o Tribunal recorrido desvalorizou o depoimento da testemunha BB que disse que nunca mais viu o arguido em casa da recorrente, quando esta última admitiu que o arguido frequentava a sua casa no período em que não viveram juntos, o que foi também confirmado pela testemunha CC que disse ao Tribunal que “mantiveram contacto e que o arguido se deslocava a casa da embargante”.
O Tribunal recorrido entendeu também, acertadamente, ter dúvidas quanto ao pagamento das prestações ao banco com rendimentos provenientes do seu trabalho, até porque nem sequer foi alegada a “correspondência dos concretos valores recebidos, a que título e, posteriormente aplicados na liquidação das prestações bancárias”.
De referir que não seria difícil provar a origem dos valores recebidos, nomeadamente com a junção de recibos, documentos de quitação, declarações de impostos. Evidentemente que a prova dos factos será tanto mais difícil quanto mais se evitar documentar recebimentos de rendimentos laborais, rendas, ajudas económicas de terceiros, pagamentos e outros: aliás, de acordo com o que vem escrito na motivação do recurso, até o alegado pagamento das prestações do empréstimo ao arguido, seria recebido “maioritariamente” em numerário o que naturalmente não facilita a sua prova em juízo.
O mesmo se diga do que diz respeito à alegada transação comercial do veículo ... que também não seria difícil de comprovar, nomeadamente apresentando nos autos a respetiva declaração de venda: como bem se escreve na decisão recorrida, “a mera conjugação das declarações da embargante com o cheque junto ao requerimento inicial não se afigurou suficiente para se concluir pela efetiva compra do veículo”.
Assim, entendemos que das transcrições efectuadas pela recorrente e constantes da motivação do recurso, não resulta qualquer razão para discordar da valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido, sendo certo que as mesmas não impõem uma decisão diversa quanto à definição da matéria de facto. Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 18 Março 2013, proferido no processo 626/11.7PCBRG.G1, em que foi relator o saudoso Dr. Cruz Bucho, referenciando um outro Acórdão desta Relação de Guimarães relatado pelo Dr. Fernando Monterroso (Acórdão de 20-3-2006, processo n.º 245/06), “(…) a lei refere as provas que «impõem» e não as que “permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção».
No caso dos autos, o que a recorrente faz, como vimos, é a sua própria análise da produção de prova, o que é legítimo, criticando a decisão do Tribunal recorrido sobre a matéria de facto, entendendo que se tivesse sido feito a sua própria análise, teria sido decidido de forma diversa. A recorrente não concordou a valoração da prova levada a cabo de forma imparcial pelo Tribunal recorrido, mas a verdade é que não pode impor a sua própria apreciação da prova, necessariamente parcial, assente no essencial na “natural parcialidade dos depoimentos testemunhais”, sob pena de inversão da posição dos personagens do processo, substituindo a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.
Pela nossa parte, não vemos qualquer fundamento para censurar a decisão da primeira instância que se encontra bem fundamentada, tendo chegado a uma “das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção” - cf. o Acórdão de 18/03/2013 deste Tribunal da Relação de Guimarães (processo 626/11.7PCBRG.G1, consultado em www.dgsi.pt),
De tudo resulta que as alegações de recurso consubstanciam, apenas, numa discordância da convicção formada pela recorrente relativamente à do Tribunal, mas nenhum elemento de prova impõe a adoção de decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal a quo que julgou de acordo com a sua livre convicção.
Nestes termos, e com base no disposto nos artigos 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, consideramos que nenhuma censura há a efetuar à decisão sobre a matéria de facto que pelo exposto se mantém inalterada.
Segunda questão: da impugnação da matéria de direito.
Alega a recorrente, em síntese, que o Tribunal a quo não procedeu a uma adequada subsunção jurídica do caso em apreço, “quer no que subjaz à inexistência de qualquer relação de domínio ou benefício do Arguido em relação ao imóvel, quer no que tange à sua qualificação da Recorrente como “terceiro de boa-fé”, em violação dos artigos 7.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 5/2002 e 291.º, n.º 3 do Código Civil”.
Na decisão recorrida foi entendido o seguinte (transcrição parcial na parte aqui relevante): “Fixados os factos, importa aplicar aos mesmos o direito. Como resulta do art.º 342.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, se qualquer ato, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. A embargante é um terceiro, para os efeitos do art.º 342.º do Cód. Proc. Civil, já que não é parte no arresto preventivo. O arresto em causa foi decretado nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10.º, por referência aos artigos 7.º e 1.º, al, j), todos da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro. É uma medida que visa garantir o, eventual, futuro confisco de um dado património que, porque incongruente com os rendimentos lícitos, se «presume», na aceção da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e na falta de prova bastante em contrário se considera definitivamente constituir «vantagem de atividade criminosa» - artigo 7.º, n.º 1, do diploma legal em questão. O art.º 10.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 5/2002, de 11-01, permite o arresto de bens do arguido, no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa, entendendo-se como património do arguido, para efeitos da presente lei, entre outros, o conjunto dos bens que “estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente (alínea a), n.º 2, do art.º .7º). É o artigo 10.º, n.º 1 que remete expressamente para o artigo 7.º n.º 1, onde se delimita a amplitude que pode assumir a declaração de perda por referência ao património do arguido. «A remissão feita para o n.º 1 do artigo 7.º abrange necessariamente o conceito de património tal como delimitado no n.º 2 deste artigo, pelo que todos os bens que o integrem são considerados como sendo «bens do arguido», sobre os quais pode incidir o arresto. O arresto é possível não apenas em relação aos bens de que o arguido seja proprietário, mas também sobre os quais tenha o domínio e benefício, independentemente de, uns e outros, terem ou não sido adquiridos há mais de cinco anos contados da data da constituição como arguido. O confisco do valor incongruente é garantido através do arresto dos bens de que o arguido tem o seu domínio e beneficia, ainda que não seja exclusivo, por estar incluído no património comum indiviso dos ex-cônjuges, independentemente de algum dos seus titulares ser ou não o agente da atividade criminosa e, assim, de poder ou não ser considerado autor dos correspetivos ilícitos típicos.» “in” Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-042022, consultado no endereço eletrónico da dgsi. A embargante alega total domínio sobre as contas bancárias que identifica, razão pela qual pede o levantamento do arresto decretado. Não se trata de saber se a embargante é arguida ou se o saldo bancário provém da prática de qualquer crime ou mesmo quem obteve as vantagens patrimoniais ilícitas, bem podendo o arresto, destinado unicamente a garantir o valor do património incongruente, incidir sobre bens adquiridos licitamente. É inócuo saber se o saldo bancário arrestado possui qualquer nexo causal com os factos imputados ao arguido. Os bens arrestados apenas se destinam a garantir o pagamento do valor da vantagem do crime, que vier a ser apurado. Não se trata aqui de saber se o bem deve ser incluído no cálculo do valor do património incongruente, mas apenas saber se, nos termos da citada lei, o mesmo deve ser tido como um bem do arguido e, portanto, suscetível de ser arrestado para garantir o pagamento do valor incongruente. As contas bancárias identificadas nos autos são tituladas pela embargante, contudo desconhece-se a origem do todos os seus movimentos. O valor da vantagem da atividade criminosa obtida pelos arguidos, entre os quais se inclui DD, companheiro da embargante, com a prática dos crimes, traduz a vantagem económica direta ou indiretamente resultante desse facto, para si e para terceiros. Essa vantagem foi integrada no seu património e no património das sociedades beneficiárias, gastando-o em seu proveito, em proveito das sociedades ou misturando-o com património lícito. A embargante vive em economia comum com o arguido DD, tendo sido casada com ele até 2014, e enquanto casal, beneficia da atividade criminosa deste, já que as vantagens da prática dos crimes que lhe são imputados foram obtidas na constância da coabitação e, inclusivamente, do matrimónio. As dívidas provenientes de crimes são da responsabilidade do cônjuge a que respeita (artigo 1692.º, alínea b), do Código Civil), pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e só, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns (artigo 1696.º, n.º1, do Código Civil), todavia, neste caso não está em causa uma qualquer responsabilidade por dívidas, mas apenas o meio destinando a garantir o pagamento do valor da vantagem do crime e não se trata apenas de uma responsabilidade criminal, mas da perda de vantagens com o crime praticado e, por isso, respondem os bens do arguido, próprios ou comuns, e podem até responder bens pertencentes a terceiros. O arresto preventivo constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu «ius imperium», anunciando não só ao arguido, mas também à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ato ilícito. Acresce dizer que não é a perda do bem arrestado que é decretada, mas sim a perda da vantagem, O facto de o arguido não ser cotitular ou autorizado a movimentar as contas identificada, não significa que não usufrua e beneficie do respetivo saldo. O contrato de depósito bancário de disponibilidades monetárias é aquele "pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um Banco, o qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restitui-la, mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas". – conforme noção adiantada por Paula Ponces Camanho, “Do Contrato de Depósito Bancário”, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 93. Nestas condições, a instituição bancária adquire a propriedade dos fundos depositados, podendo deles dispor livremente, mas o depositante conserva a disponibilidade deles, uma vez que pode exigir a restituição ou dispor dos fundos em favor de terceiros. No caso dos autos, a embargante é titular das contas, as regras do direito civil não têm aqui aplicação, já que o arresto foi realizado no âmbito do regime de perda ampliada de bens, nos termos do art.º 7.°, n.º 2, da Lei n.° 5/2002, de 11 de janeiro. Na contabilização do património relevante para efeitos da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o critério não é meramente civilista, daí que se inclua nesse conceito o valor de determinados bens ou ativos de que formalmente são titulares terceiros, sempre que o arguido exerça sobre eles uma influência de controlo. Ora, atendendo a que o arguido reside em economia comum com a embargante, conclui-se que beneficia dos saldos bancários que suportam essa economia comum. A noção de património consagrada no art.º 7.º abrange mais do que aquilo que está meramente na titularidade do arguido, compreendendo também tudo o que estiver efetivamente ao seu dispor ou conjuntamente ao seu dispor e de terceiros, especialmente de terceiros com quem coabite ou viva em economia comum, ainda que esteja na titularidade desses (ou em contitularidade com esses) terceiros. No caso, não foi feita prova, pela embargante quanto aos valores depositados nas contas bancárias identificadas, como sendo exclusivamente seus, sendo insuficientes as suas declarações nesse sentido. Sempre se conclui que o arguido DD, seu companheiro, tem domínio e beneficia do saldo bancário – conforme regime de perda ampliada de bens do art.º 7.°, 2, a), da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro. O mesmo raciocínio se aplica aos demais bens arrestados, imóveis e móvel, cumprindo ressaltar a situação do imóvel sito em ..., uma vez que, não obstante se tenha apurado ter havido uma doação da casa e terreno à embargante, apurou-se igualmente que o ex-casal realizou obras de melhoramento, para o que contraíram um empréstimo. Neste aspeto, a embargante não logrou esclarecer qual o valor da benfeitoria, pelo que fica por apurar a origem dos rendimentos utilizados para a sua concretização. Assim, não tendo resultado provado que os bens arrestados estão excluídos do património de que o arguido beneficia, ou excluídos do seu domínio, improcederão os embargos.
Vejamos.
O arresto aqui em causa foi decretado ao abrigo da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, diploma que veio estabelecer um conjunto de medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, prevendo logo no seu artigo 1.º, «um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do estado», relativamente aos crimes ali previstos. De acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º 1 daquele diploma, «em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito», entendendo-se por «património do arguido» nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o conjunto dos bens: «a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente; b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino». Como se escreve no acórdão da Relação do Porto de 17/09/2014 (processo n.º 1653/12.2JAPRT, consultado em www.dgsi.pt), «a noção ampla de património ali prevista abrange tudo o que estiver ao dispor do condenado ou conjuntamente ao seu dispor e de terceiros em especial com quem coabite ou viva em economia comum ainda que na titularidade destas, e abrange as vantagens que auferiu no período em que vigora a presunção independentemente do destino que tenham tido».
A presunção prevista pelo legislador pode ser ilidida se o arguido provar a origem lícita daqueles bens como resulta do disposto no artigo 9.º, n.º 1 do mesmo diploma legal. Como escreve Augusto Silva Dias (in “criminalidade organizada e combate ao lucro ilícito” - Congresso de Investigação Criminal, Almedina Coimbra, 2010), estamos perante “um regime de confisco ampliado, assente estruturalmente numa presunção e numa inversão do ónus da prova, nos termos previstos pela Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, cumpre finalidades político-criminais idênticas à da perda de bens e vantagens relacionadas com a prática do crime: reforçar na consciência coletiva o lema de que o crime não compensa e evitar que o património obtido de forma criminosa organizada seja utilizado para cometer novos crimes ou para ser “investido” na economia legal”. Como bem se salienta na decisão recorrida, “o arresto preventivo constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu «ius imperium», anunciando não só ao arguido, mas também à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ato ilícito. Acresce dizer que não é a perda do bem arrestado que é decretada, mas sim a perda da vantagem”.
No regime geral da perda de coisas e direitos relacionados com a prática de um ilícito criminal, previsto nos artigos 109.º a 111.º do Código de Processo Penal, exige-se a demonstração de que as perdas das vantagens foram obtidas, direta ou indiretamente, como resultado da prática de um facto ilícito, exigindo-se a prova no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido. Com a entrada em vigor da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, foi introduzido no ordenamento jurídico português um regime especial de perda de vantagens resultantes da prática de determinados ilícitos que já não exige a aludida demonstração, sendo que o seu objetivo foi o de fazer face às novas exigências colocadas pelo combate à criminalidade organizada e económico-financeira que como é reconhecido internacionalmente, é cada vez mais sofisticada e geradora de ganhos muito elevados. Como se escreve na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 94/VIII que esteve na origem da referida Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, na base deste novo regime está a constatação de que «(…) a eficácia dos mecanismos repressivos será insuficiente se, havendo uma condenação criminal por um destes crimes (…), o condenado puder, ainda assim, conservar, no todo ou em parte, os proventos acumulados no decurso de uma carreira criminosa”.
Alega a recorrente que “desde a data da compra dos imóveis de que é proprietária (objeto dos presentes embargos), é a única e exclusiva titular material daqueles bens, assim como dos depósitos das contas bancárias de que é titular, não havendo qualquer “domínio” ou “real benefício” do Arguido DD sobre os aludidos bens e depósitos, pelo que não se encontra preenchido o pressuposto legal para o decretamento do arresto sobre aqueles bens”. Mais alega que “é apenas ex-mulher do Arguido, e é, face aos contornos processuais do arresto decretado nestes autos e relativamente à posição processual do Arguido, juridicamente um terceiro e um terceiro de boa fé, pelo que, desconsiderar- se essa sua qualidade de “terceira” na douta sentença recorrida, mais não é do que subverter e contornar os limites legais que a lei quis estabelecer e proteger com a proteção dos terceiros de boa-fé, evitando que se vejam irrazoavelmente afetados no seu património, isto porque, contrariamente à presunção que opera quanto ao património do Arguido na Lei n.º 5/2002, não será admissível estender a presunção de património ilícito a terceiros”. Concluiu a recorrente que apenas sobre os terceiros de má fé poderá recair o arresto sobre aqueles bens, e, no caso vertente, a Recorrente, além ser proprietária formal e material dos imóveis e beneficiar em exclusivo e em toda a sua plenitude dos direitos adjacentes ao seu direito de propriedade, adquiriu os imóveis em data muito anterior àquela em que foi proferida a acusação contra o Arguido”.
Ora, há que dizer antes de mais que quanto a esta segunda questão objecto do recurso, a argumentação da recorrente ficou prejudicada tendo em conta a decisão da matéria de facto que, face ao insucesso da sua impugnação, se manteve inalterada.
Além do mais não ficou provado que a embargante pague as prestações do empréstimo bancário para a aquisição de um dos imóveis “através da entrega de valores em numerário ao seu ex-marido”, nem que tenha o seu património “totalmente” separado do arguido ou que cumpra as suas obrigações com o rendimento que obtém com o seu trabalho. Também não ficou provado que a recorrente tenha adquirido o imóvel descrito em 16.º com o apoio financeiro do seu irmão e que o automóvel da marca ..., tenha sido adquirido “com os rendimentos da embargante e não com os rendimentos do arguido”.
Por outro lado, em relação aos saldos bancários, como bem se escreve na decisão recorrida, além de “não ter sido feita prova, pela embargante quanto aos valores depositados nas contas bancárias identificadas, como sendo exclusivamente seus, sendo insuficientes as suas declarações nesse sentido”, não se trata de saber se “a embargante é arguida ou se o saldo bancário provém da prática de qualquer crime ou mesmo quem obteve as vantagens patrimoniais ilícitas, bem podendo o arresto, destinado unicamente a garantir o valor do património incongruente, incidir sobre bens adquiridos licitamente”, sendo “inócuo saber se o saldo bancário arrestado possui qualquer nexo causal com os factos imputados ao arguido. Os bens arrestados apenas se destinam a garantir o pagamento do valor da vantagem do crime, que vier a ser apurado”. Acresce que como também se salienta na decisão recorrida, “as contas bancárias identificadas nos autos são tituladas pela embargante, contudo desconhece-se a origem do todos os seus movimentos”. Como se escreve na decisão recorrida, “o facto de o arguido não ser cotitular ou autorizado a movimentar as contas identificada, não significa que não usufrua e beneficie do respetivo saldo para movimentar a conta”, e a verdade é que, como é sabido, existe sempre a possibilidade do arguido utilizar um cartão bancário de débito em nome da recorrente, ou utilizar um código fornecido por ela, para poder efetuar todos e quaisquer movimentos na conta, incluindo através do “homebanking”. Acresce que de qualquer maneira, vivendo o arguido com a embargante com quem foi casado, é da experiência comum que usufrua e beneficie dos rendimentos mesmo que fossem auferidos pela sua mulher, nomeadamente os que eventualmente fossem por ela depositados nas contas bancárias em causa.
Alega a recorrente que “é titular exclusiva daquelas contas bancárias”, tendo “o seu exclusivo domínio e não foi junto aos autos documento algum do qual resulte que o Arguido tem poderes de movimentação da conta”. Invoca a “presunção legal de contitularidade do dinheiro depositado nas referidas contas bancárias que se extrai do disposto nos arts. 516.º do CC e do nº 5 do artigo 780.º Código de Processo Civil”, concluindo que “como se trata, de uma presunção legal, incumbiria ao Ministério Público, como sujeito processual que nos autos principais impulsionou o arresto desses bens e direitos, a demonstração de que tal presunção foi afastada mediante a alegação e demonstração de factos contrários, ou seja, ao Ministério Público cabia-lhe o ónus da prova de que a presumida meação da Recorrente pertencia ao Arguido, designadamente, que aquele tinha sobre a totalidade dos saldos bancários o benefício e/ou o seu domínio, ou que aquele saldo bancário resultava de proventos ou vantagens decorrentes da prática dos crimes de que o Arguido vinha acusado, o que, sublinhe-se, não foi sequer alegado.
Ora a recorrente ignora, em absoluto, o regime legal aplicável ao caso dos autos e que acima fizemos uma referência muito sumária.
Na verdade, como se escreve na decisão recorrida, “as regras do direito civil não têm aqui aplicação, já que o arresto foi realizado no âmbito do regime de perda ampliada de bens, nos termos do art.º 7.º, n.º 2, da lei 5/2002, de 11 de janeiro” e na contabilização do património relevante para efeitos desta Lei, “o critério não é meramente civilista, daí que se inclua nesse conceito o valor de determinados bens ou ativos de que formalmente são titulares terceiros, sempre que o arguido exerça sobre eles uma influência de controlo(…) ora, atendendo a que o arguido reside em economia comum com a embargante, conclui-se que beneficia dos saldos bancários que suportam essa economia comum”. Como se acrescenta na decisão recorrida, “o valor da vantagem da atividade criminosa obtida pelos arguidos, entre os quais se inclui DD, companheiro da embargante, com a prática dos crimes, traduz a vantagem económica direta ou indiretamente resultante desse facto, para si e para terceiros. Essa vantagem foi integrada no seu património e no património das sociedades beneficiárias, gastando-o em seu proveito, em proveito das sociedades ou misturando-o com património lícito. A embargante vive em economia comum com o arguido DD, tendo sido casada com ele até 2014, e enquanto casal, beneficia da atividade criminosa deste, já que as vantagens da prática dos crimes que lhe são imputados foram obtidas na constância da coabitação e, inclusivamente, do matrimónio”.
De tudo resulta que como bem concluiu o Tribunal recorrido, não tendo resultado provado que os bens arrestados estão excluídos do património de que o arguido beneficia, ou excluídos do seu domínio, não podiam os embargos deixar de improceder.
Em suma, face ao acima exposto conclui-se que não merece censura a decisão da primeira instância, devendo, por conseguinte, ser negado provimento ao recurso.
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C) Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela embargante AA e, em consequência, decidem manter a decisão recorrida.
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Custas pela recorrente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida – artigos 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.
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Notifique.
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Guimarães, 14 de Outubro de 2025 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
*
Carlos da Cunha Coutinho (relator); Cristina Xavier da Fonseca (1.ª Adjunta); Pedro Cunha Lopes (2.º Adjunto).
[1] O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 7/95, de 19/10/1995, publicado no DR 1ª série, de 28/12/1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/7/2019, in www.dgsi.pt; de 25/06/1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03/02/1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28/04/1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II.