DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO DE DECLARAÇÕES NEGOCIAIS
CONTRATO DE SEGURO
RISCO ESPECÍFICO
Sumário

i. A interpretação das declarações negociais das partes, designadamente aquelas que integram as condições particulares, gerais e especiais do contrato de seguro exaradas na apólice, à luz dos critérios fixados no artigo 236.º do CC, é que permitirá aferir o âmbito de cobertura garantida pelo contrato de seguro, determinando-se, em consequência, se o evento verificado implica o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato;
ii. ao ser expressamente mencionado que estão excluídos danos em bens ou objetos de terceiro que lhe estejam confiados e que decorram da execução ou da inexecução do trabalho, é manifesto que danos verificados em bens que lhe tenham sido entregues para prestação de serviços atinentes à atividade de exploração da (…) e provocados durante a prestação desses serviços não constituem sinistro que implique no acionamento desta apólice;
iii. na medida em que se trata de um contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração, de cariz extracontratual, não estão cobertos os danos decorrentes da atividade de exploração da (…), realizada no âmbito de relações contratuais estabelecidas com terceiros.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: Crédito Agrícola (…) – Companhia de Seguros de (…), SA
Recorrido / Autor: Grupo (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual o A. peticionou a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 7.270,27 (sete mil e duzentos e setenta euros e vinte e sete cêntimos), a que acrescem a correção monetária e os juros vincendos à taxa legal prevista nos §3.º e §4.º do artigo 102.º do Código Comercial.
Para tanto, alegou ter celebrado com a R. um contrato de seguro através do qual a R. assumiu a obrigação que pudesse recair sobre si de indemnizar, por responsabilidade civil extracontratual, os danos decorrentes das atividades ou qualidades reguladas nas Condições Especiais ou de outras expressamente indicadas nas Condições Particulares, designadamente na atividade de prestação de serviços de subida e descida de embarcações de recreio, a sócios e a não sócios. Tendo uma embarcação sofrido danos em decorrência de manobras operadas por funcionários do A., participado que foi o sinistro à R., esta declinou a responsabilidade, invocando que os danos participados não se encontram garantidos pela apólice. Procedeu, então, o A. ao pagamento da reparação, no valor de € 6.121,12.
Contestando a ação, a R. invocou a prescrição do direito aqui exercitado e mais alegou que, tendo o evento ocorrido durante o transporte da embarcação, verifica-se a exclusão prevista na cláusula 3.ª, n.º 1, da Condição Especial 10. Bens Confiados, do contrato de seguro, e que, a serem devidos, os juros de mora serão de calcular pela taxa prevista para os juros civis, não sendo devida correção monetária.


II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, em consequência condenando a R. a pagar ao A. a quantia de € 5.621,12 (cinco mil e seiscentos e vinte e um euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados, à taxa legal anual de 4%, desde 02/11/2023 e até efetivo e integral pagamento.
Inconformada, a R. apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a ação totalmente improcedente. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I. Considerou o Tribunal a quo, ter ficado provado designadamente que:
(…)
6) A Autora celebrou com a Ré, a 31/10/2019, um contrato de seguro denominado “(...) Responsabilidade Civil Empresarial”, titulado pela apólice (…).
7) A tal contrato são aplicáveis as Condições Gerais e Especiais que se mostram juntas aos autos com a contestação como doc. 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8) Bem como as condições particulares constantes do documento junto aos autos com a petição inicial como doc. 4 e com a contestação como doc. 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
9) Dispõe a cláusula 2.ª das Condições Gerais referidas em 7) sob a epígrafe “Objecto”:
“O presente contrato tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado emergente do exercício da atividade, ou no âmbito da qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da Apólice.”
10) Dispõe a cláusula 3.ª, n.º 1, das Condições Gerais referidas em 7) sob a epígrafe “Garantias”: “O presente contrato cobre, até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual resultante das atividades ou qualidades reguladas nas Condições Especiais ou de outras expressamente indicadas nas Condições Particulares.”
11) Dispõe o n.º 2 da cláusula referida em 10):
“Consideram-se incluídos no âmbito das garantias previstas nos números anteriores os danos causados:
a) Por quaisquer materiais, equipamentos, utensílios ou decorações, interiores ou exteriores, incluindo tabuletas ou outros objetos de identificação ou publicidade, existentes nos estabelecimentos, instalações, ou outros espaços ocupados pelo Segurado para o exercício da sua atividade;
b) Por mercadorias e embalagens de qualquer espécie, existentes nos estabelecimentos, instalações, ou outros espaços ocupados pelo Segurado para o exercício da sua atividade;
c) Na qualidade de proprietário de terrenos, edifícios, instalações e equipamentos afetos à atividade objeto do presente contrato;
d) No decurso de trabalhos relacionados com a atividade objeto do presente contrato e realizados por pessoas ao serviço do Segurado ou sob a sua responsabilidade”.
12) Na “Cláusula Preliminar” das Condições Especiais referidas em 7) consta:
“Das Condições Especiais a seguir indicadas só são aplicáveis as que forem expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato, regendo-se as mesmas pelas respetivas cláusulas e, em tudo o que não se encontre aí previsto, pelas cláusulas das Condições Gerais.”
13) Dispõe a Condição Especial 10, sob a epígrafe “Bens Confiscados”:
“Cláusula 1.ª – Objecto
1 - A presente Condição Especial tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado por danos em bens de Terceiros na sua posse.
2 - A presente Condição Especial é contratada como seguro facultativo, não visando cumprir qualquer obrigação de seguro que possa estar prevista na lei para a situação mencionada no número anterior.
Cláusula 2.ª – Garantias
1 - A presente Condição especial cobre, até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual, pelos danos causados a bens que lhe estejam confiados para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, desde que tais danos tenham origem num acontecimento súbito e exterior ao bem danificado e não sejam resultantes da execução ou inexecução do trabalho.
2 - Quando se trate de objeto decomponível em partes perfeitamente distintas, considera-se cada uma das partes como um objeto diferente.
Cláusula 3.ª - Exclusões
Para além das exclusões previstas nas Condições Gerais, consideram-se ainda excluídos da garantia da presente Condição Especial os danos ou prejuízos causados por roubo ou o simples desaparecimento dos bens confiados.”
14) Das Condições Particulares referidas em 8) consta:
“Caracterização do Risco”: Actividade Segura, Outros-Serviços;
Coberturas e Capitais Seguros: Resp. Civil Exploração 25,000 EUR (limite por sinistro e anuidade) Franquia:10% Prej. Indemn. Min 125 EUR, Max 500 EUR; Coberturas Complementares: Danos em Bens Confiados 100,000 EUR (limite por sinistro e anuidade) Franquia: 10% Prej. Indemn. Min 125 EUR, Max 500 EUR.
10 - Bens Confiados”.
15) Uma das vertentes da atividade diária normal da segurada, consiste na prestação de serviços de subida e descida de embarcações de recreio, a sócios e a não sócios.
16) No dia 25.06.2020, o funcionário da A. (…), numa quotidiana operação de descida de embarcação, com recurso ao guincho existente nas instalações da A. para o efeito, suspendeu a embarcação de recreio (…) III denominada "(…) III" do atrelado em que se encontrava, com recurso às cintas de segurança destinadas ao efeito.
17) Ao efetuar a manobra de transpor a embarcação da posição sobre o atrelado para a água, uma das cintas deslizou, a embarcação, já no ar, perdeu o apoio e caiu em cima do cais.
18) A referida operação encontrava-se a ser realizada à vista do dono da embarcação, (…), e do representante do vendedor da embarcação.
19) Pela referida operação foi pago o respetivo preço por (…).
20) A "(…) III" era uma embarcação absolutamente nova e por via daquela operação de descida ia ser colocada na água pela primeira vez.
21) Em consequência direta e necessária da queda referida em 17), a "(…) III" sofreu danos na coluna, hélice, suporte do motor de estibordo, cobertura do veio principal e tampa lateral plástica.
(…)
II. Em face dos factos considerados provados, designadamente dos pontos 15 e 16 da matéria de facto provada resulta que a responsabilidade em causa é contratual, uma vez que o incidente ocorreu durante a prestação de um serviço habitual da atividade diária da A.
III. Conforme resulta da fundamentação da sentença, que se transcreve em parte:
(…) foi celebrado um contrato de prestação de serviços no âmbito do qual a A. se obrigou a prestar a (…) o serviço de descida da embarcação "(…) III" de terra para a água, mediante o pagamento do correspondente preço, que este pagou à A..
Resulta ainda da mesma factualidade que a A. prestou esse serviço através de um seu funcionário.
(…)
Assim, resultando demonstrado nos autos que no decurso da operação de descida, uma das cintas de segurança destinadas ao efeito deslizou, causando a queda da embarcação em cima do cais, temos que concluir pelo cumprimento defeituoso, por parte da A., das obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato celebrado com (…), tanto mais que não foi, sequer, alegado qualquer facto suscetível de ilidir a presunção de culpa que sobre a A. impende.
(…)
Efetivamente, a concluir-se que o evento em causa nos autos se enquadra no âmbito de cobertura do contrato de seguro entre ambas celebrado, a Ré é solidariamente responsável com a A., perante o lesado, pelo ressarcimento dos danos por este sofrido. A A. como responsável direta com base na responsabilidade civil contratual e a Ré com base no contrato de seguro de responsabilidade civil (artigo 497.º, n.º 1, do C.C.).
IV. O que excluiria desde logo a aplicação da apólice em causa que apenas respeita à responsabilidade civil extracontratual, conforme o próprio Tribunal a quo considera provado no ponto 10 da matéria de facto provada.
V. No entanto e mesmo que assim não se entendesse (sem conceder), entendendo-se que os factos em causa integram responsabilidade civil extracontratual, ainda assim, as partes aceitaram o que entendem por bem confiado:
10. Bens Confiados Cláusula 1.ª - Objecto 1 - A presente Condição Especial tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado por danos em bens de Terceiros na sua posse.
VI. O que se verifica, pois, conforme fundamenta a sentença, o bem estava confiado ao funcionário da A., sr. (…) para que o mesmo realizasse a descida da embarcação, propriedade de … (pontos 16 e 18 da matéria de facto provada).
VII. E foi durante a execução dessa operação, que a embarcação sofreu diversos danos, designadamente os descritos no ponto 21 da matéria de facto provada.
VIII. Pelo que, conforme sustentou a Ré na sua contestação, não seria possível, mesmo que se entendesse que estaríamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a aplicação da garantia facultativa “Bens Confiados” porquanto os danos resultaram, conforme se encontra provado, da execução do trabalho da A.
(…)
13) Dispõe a Condição Especial 10, sob a epígrafe “Bens Confiados”: “Cláusula 1.ª - Objecto 1 - A presente Condição Especial tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado por danos em bens de Terceiros na sua posse. 2 - A presente Condição Especial é contratada como seguro facultativo, não visando cumprir qualquer obrigação de seguro que possa estar prevista na lei para a situação mencionada no número anterior.
Cláusula 2.ª - Garantias 1 - A presente Condição especial cobre, até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual, pelos danos causados a bens que lhe estejam confiados para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, desde que tais danos tenham origem num acontecimento súbito e exterior ao bem danificado e não sejam resultantes da execução ou inexecução do trabalho.
(…)
IX. Com efeito, perante a matéria de facto provada, outra deveria ter sido a decisão, que conduziria sempre à impossibilidade de acionamento da apólice em causa, e que determinaria consequentemente a improcedência do pedido do A.
X. Sendo da responsabilidade da A. todos os prejuízos sofridos pelo dono da embarcação que já se encontra ressarcido pela mesma.»

O Recorrido apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que o dano, tendo atingido direitos absolutos do terceiro lesado e tendo sido causado no decurso de trabalhos relacionados com a respetiva atividade, tem cobertura na apólice; que as cláusulas insertas nas Condições Especiais, visando acrescentar círculos de risco não cobertos pelas Condições Gerais, não limitam nem podem impedir o funcionamento destas Condições Gerais, i.e., não podem impedir a cobertura dos riscos que destas resultam para o segurado; que a Condição Especial 10, ao dispor, sob a epígrafe “Bens Confiados”, que esta cobertura tem por Objecto a garantia da responsabilidade civil do Segurado por danos em bens de Terceiros na sua posse, para que a embarcação danificada destes autos constituísse um bem confiado à Recorrida, esta teria, de alguma forma, de atuar sobre aquela por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, o que não aconteceu.

Cumpre apreciar se não ocorreu sinistro que implique o acionamento da cobertura do risco previsto no contrato de seguro celebrado entre as partes.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1) A A. é uma associação de direito privado e de utilidade púbica declarada por despacho do sr. Primeiro-Ministro de 25/02/2000 (declaração n.º 81/2000), publicado no D.R. n.º 63/2000, II Série, de 15/03/2000 e tem como fins desenvolver atividades predominantemente desportivas, recreativas e culturais visando a formação social e cívica dos seus sócios em particular, e da população em geral.
2) A A. é concessionária, desde 1992, de uma área do domínio público hídrico, no Porto de Olhão, através de licenças sucessivas, a última, concedida pela “Docapesca, Portos e Lotas, S.A.” através do “Protocolo de Concessão para a Utilização Privativa de Área do Domínio Público Hídrico localizada em Olhão – (…)”, assinado em 23/04/2019, pelo prazo de 30 (trinta) anos, com início na data de assinatura deste, destinada à exploração de uma (…).
3) No âmbito da concessão referida em 1), a A. tem sob sua responsabilidade a exploração de lugares de amarração (parqueamento molhado) e de parqueamento em terra (parqueamento seco) para embarcações de recreio (e seus atrelados), criando as regras da sua atribuição e manutenção, e possui também equipamentos de sua propriedade com os quais presta serviços típicos das marinas/portos de recreio a quem os solicita, nomeadamente um guincho através do qual realiza a operação de subida e descida de embarcações (da água para terra e na operação inversa) e, em ambos os casos, estabelece os preços dos serviços prestados e procede ao respetivo recebimento.
4) Os serviços referidos em 3) são prestados a sócios da A. e a não sócios.
5) É desta atividade económica que a A. retira proveitos económicos que aplica às atividades não lucrativas de carácter desportivo, recreativo e culturais que prossegue.
6) A A. celebrou com a Ré, em 31/10/2019, um contrato de seguro denominado “(...) Responsabilidade Civil Empresarial”, titulado pela apólice (…).
7) A tal contrato são aplicáveis as Condições Gerais e Especiais que se mostram juntas aos autos com a contestação como doc. n.º 2.
8) Bem como as condições particulares constantes do documento junto aos autos com a petição inicial como doc. n.º 4 e com a contestação como doc. n.º 1.
9) Dispõe a cláusula 2.ª das Condições Gerais referidas em 7) sob a epígrafe “Objecto”:
“O presente contrato tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado emergente do exercício da atividade, ou no âmbito da qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da Apólice.”
10) Dispõe a cláusula 3.ª, n.º 1, das Condições Gerais referidas em 7) sob a epígrafe “Garantias”:
“O presente contrato cobre, até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual resultante das atividades ou qualidades reguladas nas Condições Especiais ou de outras expressamente indicadas nas Condições Particulares.”
11) Dispõe o n.º 2 da cláusula referida em 10):
“Consideram-se incluídos no âmbito das garantias previstas nos números anteriores os danos causados:
a) Por quaisquer materiais, equipamentos, utensílios ou decorações, interiores ou exteriores, incluindo tabuletas ou outros objetos de identificação ou publicidade, existentes nos estabelecimentos, instalações, ou outros espaços ocupados pelo Segurado para o exercício da sua atividade;
b) Por mercadorias e embalagens de qualquer espécie, existentes nos estabelecimentos, instalações, ou outros espaços ocupados pelo Segurado para o exercício da sua atividade;
c) Na qualidade de proprietário de terrenos, edifícios, instalações e equipamentos afetos à atividade objeto do presente contrato;
d) No decurso de trabalhos relacionados com a atividade objeto do presente contrato e realizados por pessoas ao serviço do Segurado ou sob a sua responsabilidade.”.
12) Na “Cláusula Preliminar” das Condições Especiais referidas em 7) consta:
“Das Condições Especiais a seguir indicadas só são aplicáveis as que forem expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato, regendo-se as mesmas pelas respetivas cláusulas e, em tudo o que não se encontre aí previsto, pelas cláusulas das Condições Gerais.”
13) Dispõe a Condição Especial 10, sob a epígrafe “Bens Confiados”:
“Cláusula 1.ª - Objecto
1 - A presente Condição Especial tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado por danos em bens de Terceiros na sua posse.
2 - A presente Condição Especial é contratada como seguro facultativo, não visando cumprir qualquer obrigação de seguro que possa estar prevista na lei para a situação mencionada no número anterior.
Cláusula 2.ª - Garantias
1 - A presente Condição especial cobre, até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual, pelos danos causados a bens que lhe estejam confiados para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, desde que tais danos tenham origem num acontecimento súbito e exterior ao bem danificado e não sejam resultantes da execução ou inexecução do trabalho.
2 - Quando se trate de objeto decomponível em partes perfeitamente distintas, considera-se cada uma das partes como um objeto diferente.
Cláusula 3.ª - Exclusões
Para além das exclusões previstas nas Condições Gerais, consideram-se ainda excluídos da garantia da presente Condição Especial os danos ou prejuízos causados por roubo ou o simples desaparecimento dos bens confiados.”
14) Das Condições Particulares referidas em 8) consta:
“Caracterização do Risco”: Actividade Segura, Outros-Serviços;
Coberturas e Capitais Seguros: Resp. Civil Exploração 25,000 EUR (limite por sinistro e anuidade) Franquia:10% Prej. Indemn. Min 125 EUR, Max 500 EUR;
Coberturas Complementares: Danos em Bens Confiados 100,000 EUR (limite por sinistro e anuidade) Franquia:10% Prej. Indemn. Min 125 EUR, Max 500 EUR
10 - Bens Confiados”.
15) Uma das vertentes da atividade diária normal da segurada, consiste na prestação de serviços de subida e descida de embarcações de recreio, a sócios e a não sócios.
16) No dia 25/06/2020, o funcionário da A. (…), numa quotidiana operação de descida de embarcação, com recurso ao guincho existente nas instalações da A. para o efeito, suspendeu a embarcação de recreio (…) III denominada "(…) III" do atrelado em que se encontrava, com recurso às cintas de segurança destinadas ao efeito.
17) Ao efetuar a manobra de transpor a embarcação da posição sobre o atrelado para a água, uma das cintas deslizou, a embarcação, já no ar, perdeu o apoio e caiu em cima do cais.
18) A referida operação encontrava-se a ser realizada à vista do dono da embarcação, (…), e do representante do vendedor da embarcação.
19) Pela referida operação foi pago o respetivo preço por (…).
20) A "(…) III" era uma embarcação absolutamente nova e por via daquela operação de descida ia ser colocada na água pela primeira vez.
21) Em consequência direta e necessária da queda referida em 17), a "(…) III" sofreu danos na coluna, hélice, suporte do motor de estibordo, cobertura do veio principal e tampa lateral plástica.
22) O sinistro foi comunicado pela A. à R. em 01/07/2020, tendo a ocorrência e os danos causados na embarcação sido verificados por perito da (…) Consulting, indicado pela R..
23) Após verificação dos danos visíveis e ocultos, foi elaborado o orçamento de reparação pela vendedora da embarcação, (…), composto pelas peças de substituição, transporte e mão de obra necessária à realização da reparação, no valor de € 5.666,04, a que acrescia IVA à taxa legal, perfazendo o total de € 6.969,23.
24) A R., em 28/07/2020, declinou responder pelos danos causados na referida embarcação com a justificação que “de acordo com as Condições Gerais que regem o Contrato de Seguro titulado pela Apólice referida, os danos causados à embarcação (…) III, participados como resultantes da realização dos trabalhos para a colocar na água, não se encontram garantidos pela apólice conforme o disposto na Cláusula 2.ª – Garantias da Condição Especial 10. Bens Confiados (..)”.
25) Em face da recusa da R., a Direção da associação A., assumiu a responsabilidade pelo evento e realizou ela própria o pagamento da reparação dos danos, tendo em 13/11/2020, pagado à (…), que efetuou a reparação daqueles, a este título, a quantia de € 6.121,12.
Atento o regime inserto no artigo 662.º/1, do CPC, tendo em consideração a prova documental junta a fls. 60 e ss, mais cumpre consignar o seguinte:
26) Da Cláusula 5.ª n.º 3 al. a) das Condições Gerais, sob a epígrafe Exclusões, consta o seguinte: Salvo convenção em contrário, ficam ainda excluídos os danos em bens ou objetos de Terceiros que estejam confiados ao Segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim.

B – A Questão do Recurso
O contrato de seguro é a convenção pela qual uma das partes – a seguradora – se obriga, mediante retribuição – o prémio – paga pela outra parte – o segurado – a assumir determinado risco e, caso este ocorra, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado.[1] Como ensina Moitinho de Almeida[2], trata-se do contrato pelo qual “uma das partes, o segurador, compensando, segundo as leis da estatística, um conjunto de riscos por ele assumidos se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou uma renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites contratualmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada.”
Está em causa um contrato de caráter aleatório e, atento o regime vigente à data da celebração do contrato, um contrato formal, como resultava do artigo 426.º do Código Comercial. A apólice é o instrumento no qual devem constar, além dos nomes dos respetivos segurador, tomador e beneficiário, outros elementos de onde se possa determinar o seu objeto, natureza e risco cobertos. É o elemento documental necessário e suficiente para existência e validade do seguro – requisito ad substantiam.
Atualmente, o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) encontra-se regulado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril. Nos termos de tal regime, a validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial (artigo 32.º, n.º 1, do RJCS), se bem que recaia sobre o segurador a obrigação de formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, datada e assinada pelo segurador, e de entregá-la ao tomador do seguro (artigo 32.º, n.ºs 2 e 3, do RJCS). Em face do que a apólice não consubstancia o contrato, embora o espelhe ou traduza.
O contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respetiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições aplicáveis da RJCS, ou na falta de previsão destas, pela aplicação dos regimes gerais previstos no Código Comercial e no Código Civil (cfr. artigo 4.º do RJCS).
Como é sabido, a interpretação das declarações negociais das partes, designadamente aquelas que integram as condições particulares, gerais e especiais do contrato de seguro exaradas na apólice, à luz dos critérios fixados no artigo 236.º do CC, é que permitirá aferir o âmbito de cobertura contratada e garantida pelo contrato de seguro, determinando-se, em consequência, se o evento verificado implica o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato.
O contrato de seguro em causa nestes autos é um contrato de seguro de responsabilidade civil.
Trata-se de modalidade de contrato de seguro que integra a categoria dos seguros de danos (cfr. Título II, Capítulo II, Secção I, do RJCS).
Nos termos do disposto no artigo 123.º do RJCS, o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.
Já o artigo 137.º do RJCS estipula que, no seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros.
A Recorrente sustenta não se verificou evento que constitua sinistro para efeitos da apólice que titula o contrato de seguro celebrado com o Recorrido, pelo que não é devido o pagamento da quantia reclamada.
Em 1.ª linha, invoca que, tendo o incidente ocorrido durante a prestação de um serviço habitual da atividade diária da A, a responsabilidade tem natureza contratual. O que, por si só, exclui a aplicação da apólice aqui versada, que tem por objeto a responsabilidade extracontratual.
Noutra linha de argumentação, a Recorrente sustenta que, ainda que assim não se entendesse, sempre estariam excluídos do âmbito da apólice os danos verificados por terem atingido embarcação de terceiro durante a realização da contratada manobra de transposição da embarcação do atrelado para a água, momento em que estava confiada ao Recorrido para prestação do mencionado serviço.
Vejamos.
O A, na qualidade de concessionário, dedica-se, designadamente, à atividade de exploração da (…) localizada no Porto de Olhão. No âmbito dessa atividade de exploração, presta serviços típicos das marinas/portos de recreio a quem os solicita, de forma remunerada.
Como se colhe das Condições Particulares da apólice, as coberturas contratadas foram as de Responsabilidade Civil Exploração e Danos em Bens Confiados (10 – Bens Confiados).
Já das Condições Gerais, alcança-se que o contrato tem por objeto a garantia da responsabilidade civil do Segurado emergente do exercício dessa atividade de exploração – cfr. Cláusula 2.ª.
Mais delas se alcança que:
- o contrato cobre as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual resultante dessa atividade de exploração, considerando-se incluídos no âmbito das garantias os danos causados no decurso de trabalhos relacionados com a atividade objeto do presente contrato e realizados por pessoas ao serviço do Segurado ou sob a sua responsabilidade – cfr. cláusula 3.ª /1 e 2, alínea d);
- salvo convenção em contrário, estão, contudo, excluídos os danos em bens ou objetos de terceiros que estejam confiados ao Segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim – cfr. cláusula 5.ª / 3, alínea a).
Do clausulado que constitui as Condições Especiais são aplicáveis as condições atinentes aos Bens Confiados, cobertura complementar expressamente mencionada nas Condições Particulares do contrato. Então, relativamente à garantia da responsabilidade civil do Segurado por danos em bens de terceiros na sua posse, estão cobertas as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil extracontratual, pelos danos causados a bens que lhe estejam confiados para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, desde que tais danos tenham origem num acontecimento súbito e exterior ao bem danificado e não sejam resultantes da execução ou inexecução do trabalho – cfr. cláusulas 1.ª e 2.ª / 1, do referido ponto 10. Bens Confiados, Condições Especiais.
Ou seja, a cobertura complementar contratada como que anula a exclusão versada na cláusula 5.ª/3, alínea a), das Condições Gerais, mas desde que os danos não sejam resultantes da execução ou inexecução do trabalho.
Da conjugação de todos estes mencionados dados insertos nas Condições Particulares, Condições Gerais e Condições Especiais resulta que o objeto do contrato de seguro se reporta à responsabilidade civil extracontratual do Recorrido ou seja, a garantir as indemnizações que sobre si venham a recair pela verificação de danos decorrentes do desenvolvimento da sua atividade de exploração da (…), desde que de cariz extracontratual. Na verdade, ao ser expressamente mencionado que estão excluídos danos em bens ou objetos de terceiro que lhe estejam confiados e que decorram da execução ou da inexecução do trabalho, é manifesto que danos verificados em bens que lhe tenham sido entregues para prestação de serviços atinentes à atividade de exploração da (…) e provocados durante a prestação desses serviços não constituem sinistro que implique no acionamento desta apólice.
O contrato trazido à presente ação consubstancia um contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração, que cobre o risco decorrente da titularidade e da exploração da atividade inerente à concessão da referida área do domínio público hídrico, no Porto de Olhão. Inclui apenas o risco que, no plano extracontratual, resulte do exercício das atividades inerentes a tal exploração.
O seguro de responsabilidade civil de exploração é de contratação obrigatória no âmbito do exercício da atividade industrial, estabelecendo o artigo 4.º do Sistema da Indústria Responsável (aprovado em anexo do DL n.º 169/2012, de 01/08), em conjugação com a Portaria n.º 307/2015, de 24/09, que deve ser contratado um seguro de responsabilidade civil extracontratual que cubra o risco decorrente da titularidade da exploração de estabelecimento industrial, incluindo o que resulte da utilização das respetivas instalações e do exercício das inerentes atividades. Garante o pagamento das indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais derivadas do exercício da atividade e da exploração do estabelecimento a que o seguro se refira.
Ora, como bem é exarado na sentença recorrida, os danos ocorridos na embarcação (…) III resultaram de manobras realizadas no âmbito da execução do serviço que o Recorrido se obrigou perante terceiro, o dono da embarcação. Verificou-se o dano na embarcação, o que traduz a violação do dever acessório de zelar pela integridade da embarcação contratualmente confiada aos cuidados do Recorrido para a manobra de transposição do atrelado para a água.
Então, o ressarcimento de tais danos contende com a responsabilidade contratual ou obrigacional, aquela que «pressupõe a existência de uma relação intersubjetiva que primariamente atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa relação específica.»[3] Não se enquadra na responsabilidade delitual ou extracontratual, para a qual releva a violação de deveres de ordem geral, a «violação de direitos absolutos, que aparecem assim desligados de qualquer relação intersubjetiva previamente existente entre lesante e lesado».[4]
Como é sabido, para efeitos da responsabilidade contratual releva quer a violação ou deficiente cumprimento da prestação principal quer de qualquer dever secundário da prestação ou ainda a violação de deveres acessórios de conduta que, por força da lei (por via de regra, através de normas dispositivas), se integram na relação creditória, em geral, e na relação contratual, em especial.[5] Importa, assim, atender quer aos deveres primários ou essenciais da prestação quer aos deveres acessórios ou secundários.
Assente que está que os danos verificados na embarcação resultaram das manobras de execução do contrato de prestação de serviços celebrado entre o Recorrido e terceiro dono da embarcação, não se verificou o sinistro que, para efeitos da presente apólice, implique na obrigação da Recorrente pagar ao Recorrido a quantia correspondente à reparação de tais danos.
Não procede o argumento de que resultam, assim, goradas as expectativas do Recorrido que fundaram a sua decisão de contratar, ao não ver garantidos os danos decorrentes da sua atividade diária de exploração da (…) de Olhão, realizada a coberto de relações contratuais estabelecidas com terceiros. Tais danos, suscetíveis de ser objeto de contrato de seguro, só lhe permitirão obter a concretização daquela expectativa se se tratar de contrato de seguro diverso daquele que está consubstanciado na apólice aqui trazida a juízo.

Procedem, assim, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre o Recorrido – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, absolvendo a Ré do pedido formulados.
Custas pelo Recorrido.
Évora, 16 de outubro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Isabel Calheiros
Ana Margarida Pinheiro Leite


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[1] Almeida Costa, RLJ 128.º, n.º 3862, pág. 20.
[2] O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 1971 V, pág. 423.
[3] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 13.ª edição, pág. 256.
[4] Menezes Leitão, ob. e loc. cit.
[5] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5.ª edição, pág. 128.