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SUB-ROGAÇÃO
FIANÇA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
i) a conduta abusiva do direito afere-se exclusivamente em face das circunstâncias concretas de cada caso, as quais decorrem dos factos provados; ii) a fiança, sendo destinada a cobrir as consequências legais e contratuais da mora ou da culpa do devedor, implica o dever de cumprimento de obrigação alheia caso o devedor respetivo (o afiançado) a não satisfaça; iii) os pagamentos realizados por sujeitos que se declararam fiadores, feitos de forma voluntária, espontânea e sem que a devedora afiançada tenha incorrido em mora ou incumprimento contratual, não confere direito de sub-rogação a coberto do instituto da fiança. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I – As Partes e o Litígio
Recorrentes / Autores: (…) e (…)
Recorridos / Réus: (…) e Banco (…), SA
Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual os AA formularam os seguintes pedidos:
- que seja declarado que, enquanto fiadores, ficaram sub-rogados nos direitos do credor mutuante, dando-se uma transferência do respetivo crédito, acompanhado da transmissão das respetivas garantias;
- que seja declarado que beneficiam da garantia real constituída por hipoteca voluntária sobre o prédio identificado no artigo 2º da p. i.;
- que seja a Ré condenada a pagar-lhes a quantia de € 77.221,26, a título de prestações relativas aos mútuos e seguros associados pagos pelos AA. e a cujo cumprimento a R. faltou, vencidas até fevereiro de 2023 e as que se vierem a vencer;
- que seja a Ré condenada a pagar-lhes, a título de juros de mora vencidos, a quantia de € 6.946,92;
- que seja a Ré condenada a pagar-lhes, a título de cláusula penal, a quantia de € 27.889,21;
- que seja a Ré condenada a pagar-lhes juros de mora, contados dia a dia e à taxa Euribor em vigor, vincendos e até integral pagamento.
Para tanto, invocaram terem sido celebrados dois contratos entre a Ré e o Banco, a 18 de julho de 2002, sendo um deles um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança que teve por objeto a fração autónoma designada pela letra A do prédio devidamente identificado, sito no (…), (…), Odemira, e o outro um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, sendo que ambas as hipotecas oneraram a referida fração.
Mais invocaram que outorgaram os referidos contratos na qualidade de fiadores, que os pagamentos devidos ao mutuante seriam realizados através da conta de depósitos a ordem de que são titulares, juntamente com a Ré; que pagaram as despesas com as escrituras e impostos de abertura de crédito; que, como a Ré não pagou a prestação devida em agosto de 2002, pagaram € 638,74 de preparos, prestações dos dois empréstimos e seguros associados; que pagaram as prestações relativas aos dois empréstimos e seguros associados a partir da referida data, no valor total de € 77.221,26, tendo ficado sub-rogados nos direitos do credor, nessa medida.
Consideram ser devidos juros de mora, dado o incumprimento da Ré no pagamento das prestações devidas ao Banco e aos AA, que beneficiam das hipotecas constituídas.
Citada a Ré, apresentou-se a contestar a ação, pugnando pela sua absolvição dos pedidos, uma vez que os AA mantiveram a posse exclusiva da fração ao longo de mais de 10 anos sem que, para tanto, tenham pagado qualquer compensação.
Alegou que o saldo proveniente do mútuo foi utilizado, no montante de € 19.964,00, pelos AA para pagamento de crédito, nunca tendo devolvido tal quantia; que a fração passou a ser ocupada pelo A. (…) e pelo filho (…), a eles se juntando, mais tarde, a A., já que a Ré reside na Áustria; que, no verão de 2002, comunicou aos AA que estes assumiriam o pagamento das prestações bancárias, como se de renda se tratasse; que estes usaram o imóvel sem pagar qualquer quantia à Ré, impedindo esta de rentabilizar a fração no mercado; que os AA pagaram as prestações porque quiseram, nunca tendo a Ré incorrido em incumprimento.
Foi proferido despacho convidando a Ré a deduzir expressa e separadamente reconvenção de modo a permitir a apreciação da sua pretensão de compensação de créditos.
Os AA impugnaram a impugnação motivada da Ré.
Os AA foram convidados a fazer intervir na ação o credor hipotecário.
Ao que estes procederam.
O Banco (…), SA foi citado na qualidade de Réu.
Apresentou-se a contestar a ação, sustentando que deve ser julgada improcedente.
Alegou, para tanto, que a conta bancária da Ré mutuária sempre se mostrou provisionada para permitir o pagamento das prestações devidas, desconhecendo a proveniência dos referidos fundos; que nunca foi registado incumprimento, não tendo a Ré incorrido em mora nem sendo devido pagamento a título de cláusula penal; os AA nunca foram interpelados para cumprirem a obrigação de fiadores; não ocorre sub-rogação nem transmissão do crédito acompanhado das garantias, já que não houve incumprimento por parte da devedora principal, nem interpelação dos fiadores para satisfação de dívida vencida da afiançada; quando muito, os AA serão titulares de direito de regresso contra a Ré.
II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação improcedente, absolvendo os RR do peticionado. Nela se considerou verificarem-se os pressupostos do direito de sub-rogação dos AA, mas que é ilegítimo, por abusivo (na modalidade de venire contra factum proprium e suppressio), o exercício do direito à sub-rogação.
Inconformados, os AA apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue procedentes os pedidos formulados, decorrentes do direito de sub-rogação.
As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«A) Os Autores, na qualidade de fiadores de dois contratos de mútuo com hipoteca, e porque cumpriram várias prestações a que a Ré estava obrigada perante o credor mutuante, peticionaram que fosse declarado que ficaram sub-rogados nos direitos do credor, dando-se uma transferência do respetivo crédito, acompanhado da transmissão das respetivas garantias; que fosse declarado que os Autores beneficiam da garantia real constituída por hipoteca voluntária sobre o prédio adquirido pela Ré; e que fosse a Ré condenada a pagar aos Autores as prestações por estes liquidadas.
B) A Ré, em sede de contestação, confessou expressamente que foram os Autores, enquanto fiadores, que pagaram as quantias correspondentes às prestações dos dois empréstimos e seguros associados.
C) E alegou nada dever já que parte das quantias mutuadas foi utilizada para saldar uma dívida dos Autores e que o imóvel estava ocupado por estes e pelo irmão, tendo-lhes comunicado que os Autores assumiriam os pagamentos das prestações bancárias como se de renda se tratasse.
D) Após a apresentação da contestação pela Ré, foi proferido despacho onde expressava que o pedido de compensação de créditos só poderá ser formulado por via reconvencional, único meio apto para tanto, convidando a Ré a apresentar nova contestação, com dedução expressa e separada da reconvenção.
E) Apesar de tal convite, a Ré optou por nada fazer. Se a Ré tivesse deduzido pedido reconvencional, se o Tribunal fosse chamado a apreciar tal pedido, julgando-o procedente ou improcedente, a pretensão dos Autores seria decidida em função da procedência ou improcedência do pedido reconvencional.
F) A defesa que a Ré trouxe para os autos foi a compensação de créditos. Em nenhum momento invocou abuso de direito. Aliás, tal tema só foi trazido para os autos pela Chamada e em sede de alegações orais, quando tal tema não lhe dizia sequer respeito.
G) A Ré quedou-se pela inércia, renunciando ao invocado direito de compensação de créditos e, a final, a renúncia ao exercício de tal direito acabou sendo “premiada” com a introdução ex novo do tema do abuso de direito, tema que nunca esteve nos seus propósitos de defesa perante a pretensão dos Autores.
H) Defende a douta decisão recorrida que, uma vez que os Autores ocupavam / utilizavam o imóvel e durante 20 anos não pediram a devolução das prestações, essa conduta é apta a gerar a confiança da Ré de que não lhe iriam ser exigidas as quantias liquidadas, até porque, refere-se, soubesse a Ré que os Autores lhe iriam pedir a devolução dessas quantias, e poderia ter reagido, pedindo a desocupação da casa para da mesma gozar e fruir, ficando a Ré cerceada na sua defesa perante o facto consumado.
I) Este argumento é, no mínimo, surpreendente. A Ré renunciou, por inércia, ao exercício do direito à compensação de créditos, com as consequências jurídicas que daí resultam, e a douta decisão recorrida defende que a Ré se mostra cerceada na sua defesa. Não, a Ré não se mostra “cerceada” na sua defesa, a Ré renunciou ao exercício do único direito que em sua defesa invocou. Quem renuncia ao exercício do direito que invoca a seu favor não pode estar “cerceado” na sua defesa.
J) Acresce que não foram tidas em consideração as concretas circunstâncias que, ou foram apuradas, ou resultam de uma interpretação sancionada pelo homem médio. Desde logo, porque a Ré, à data dos contratos, residia na Áustria e é lá que reside. Se a Ré reside na Áustria, como pode residir no (…)? Naturalmente, que só usufruía da casa quando se encontrava em Portugal e, em nenhum momento, alegou a Ré que estava impedida de usufruir da casa, que a entrada lhe estava vedada quando passava férias em Portugal.
K) A Ré não podia utilizar a casa pela simples razão de que residia na Áustria e não podia rentabilizá-la, arrendando-a, como também alega, porque para tal estava impedida “sob pena do imediato vencimento de todas as prestações”.
L) O facto de os Autores e o filho (irmão da Ré) usufruírem da casa nenhum prejuízo causou à Ré até porque ocupam e utilizam livremente a casa “autorizados” pela Ré. Como poderiam os Autores, sequer imaginar, que tal ocupação, “autorizada” pela Ré, os impediria de vir a reclamar o pagamento das prestações, pagas enquanto fiadores, por isso constituir “abuso de direito”?
M) Importa igualmente salientar a relação familiar entre os Autores e a Ré e as circunstâncias que rodearam a aquisição do imóvel e a concessão de dois créditos bancários. Assim, a Ré necessitou, para a concessão de tais créditos, que os Autores aceitassem ser seus fiadores. Sendo pais, os Autores aceitaram fazê-lo, embora cientes das responsabilidades em que incorriam (assumiram-se, nessa qualidade como principais pagadores, obrigando-se perante o banco ao cumprimento das obrigações da mutuária, com renúncia ao benefício de excussão prévia bem como ao benefício do prazo).
Naturalmente que só o fizeram, atentas as boas relações familiares, como o demonstra o facto de a Autora ter sido mandatada pela Ré para a representar na escritura de compra e venda e nas escrituras de mútuo com hipoteca e fiança e o facto de a Ré “autorizar” os Autores a utilizar livremente o imóvel e convencidos que a Ré assumiria, de modo próprio, o pagamento das prestações para liquidação das quantias mutuadas e demais encargos, como decorria dos contratos de mútuo.
N) Não é sequer admissível o argumento de que “o decurso de vinte anos sem se pedir a devolução das prestações pagas é apta a gerar a confiança da Ré” de que os Autores “não iriam pedir a devolução das quantias pagas”, pela simples razão de que este argumento é uma falácia. Há pagamentos recentes, feitos em 2020, 2021, 2022, 2023 e não é legítimo colocar tudo no mesmo saco.
O) Atentas as boas relações familiares que existiam entre os Autores e a Ré, é facilmente compreensível como terá sido extremamente doloroso para os Autores, enquanto pais, demandarem judicialmente a filha, com as consequências inevitáveis que isso provoca no relacionamento entre pais e filha. Esperaram muitos anos que a Ré assumisse os pagamentos das prestações para liquidação dos empréstimos bancários a que se obrigou.
Por força dos contratos celebrados, se as prestações não forem pagas nas datas previstas, falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas. Para que isso não sucedesse e para que o seu próprio património não viesse a ser posto em risco, pagaram tais prestações. Face à conduta da Ré, e porque esta não pagou aos pais as prestações que estes pagaram por si, outra alternativa não restou aos Autores que não o recurso à via judicial.
P) A Ré adquiriu em 2002 um imóvel na costa alentejana. Com recurso a créditos bancários cujas prestações foram pagas maioritariamente pelos Autores, sem que se dispusesse, de forma voluntária, a ressarci-los de tais pagamentos. Face aos valores de mercado, que são do conhecimento público, tal imóvel vale hoje três, quatro vezes mais.
Considerar, nestas circunstâncias, “abuso de direito” o legítimo direito que aos Autores assiste de reclamar o que pagaram e era da responsabilidade da Ré é, no mínimo, “abusivo”. Porque “abusivo” é considerar que é legítima a expectativa de um filho que “autorizou” os pais a utilizar a casa que adquiriu com empréstimo bancário de que, qualquer que tenha sido o tempo decorrido, os pais não lhe venham a cobrar aquilo que pagaram enquanto seus fiadores. Porque decorreu muito tempo, deixou de ser legítimo aos fiadores exigir algo que a lei expressamente lhes faculta, o direito à sub-rogação? E como se protege então o legítimo direito que assiste aos Autores, enquanto fiadores?
Q) A supressio traduz-se no não exercício do direito durante um lapso de tempo, suscetível de criar na contraparte a confiança que esse direito não mais será exercido.
Mas não basta o exercício tardio do direito. É necessário que se atenda ao poder dos factos e sejam ponderadas todas as circunstâncias do caso, à luz do princípio da boa fé, e ainda que se verifique a obtenção de uma vantagem excessiva para o titular do direito, acompanhada da imposição de sacrifícios relevantes e injustificados para a contraparte.
R) A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa, exigindo-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjetiva para a materialidade da situação.
S) Atendendo ao “poder dos factos”, ponderadas todas as circunstâncias do caso, à luz do princípio da boa fé, não é possível concluir pelo abuso do direito.
T) Os Autores, enquanto titulares do direito de sub-rogação, como fiadores da Ré, não obtêm, pelo exercício desse direito, nenhuma vantagem, a sua única pretensão é serem ressarcidos daquilo que pagaram e era devido pela Ré. A Ré não pode considerar-se estar de boa fé, quando se defendeu invocando uma compensação de créditos, renunciando, por inércia, ao pedido de compensação. Nenhuns sacrifícios resultam para a Ré, decorrentes da sub-rogação. Pelo contrário, a Ré, à custa do sacrifício dos Autores, passou a ter um património significativamente superior àquele que tinha aquando da compra do imóvel.
U) A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 334.º e 644.º do Código Civil.»
O Recorrido Banco apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por acertada. Caso procedam os fundamentos do recurso do AA, requer, ao abrigo do disposto no artigo 636.º do CPC, a ampliação, a título subsidiário, do âmbito do recurso, apreciando-se a questão da inexistência dos pressupostos da sub-rogação e da sua amplitude, em face da factualidade assente. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I – Deverá, face aos fundamentos supra expostos, ser mantida a douta sentença proferida, mantendo-se a decisão do tribunal a quo, que bem e doutamente considerou haver manifesto Abuso de Direito, tornando ilegítimo o exercício da sub-rogação pretendida pelos AA., nos termos do disposto no artigo 334.º do Código Civil.
II - Face ao exposto deve improceder totalmente o recurso interposto pela Autora, com as legais consequências.
III - Em caso de eventual e hipotética procedência dos fundamentos do recurso da Autora, deve ser ampliado, a título subsidiário, o âmbito do recurso e apreciada a questão da verificação da inexistência dos pressupostos da sub-rogação e da sua amplitude face à factualidade dada como assente, nomeadamente no ponto 10º da douta sentença, levantada nos autos pelo aqui Chamado ao abrigo do disposto no artigo 636.º do CPC.»
Não foi apresentada resposta à ampliação do recurso.
Cumpre conhecer das seguintes questões:
i. da falta de fundamento do abuso do direito de sub-rogação;
na afirmativa,
ii. da falta de fundamento do direito de sub-rogação dos AA.
III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. No dia 18 de julho de 2002, (…) e (…), em representação de (…) – Investimentos Imobiliários, Lda., como primeiros outorgantes, Autora, por si e em representação da Ré, e Autor, como segundos outorgantes, e (…), em representação da Chamada, como terceiro outorgante, celebraram escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, perante a notária (…), no Cartório Notarial de Aljustrel, lavrada de folhas 34 a folhas 37 do Livro de notas para escrituras diversas n.º 43-D, junta à petição como documento n.º 1, aqui dada por integralmente reproduzida.
2. Na escritura supra aludida, os primeiros outorgantes declararam, entre o mais: Que pela presente escritura e pelo preço de cinquenta e quatro mil oitocentos e sessenta e sete euros e setenta e sete cêntimos, que dela já receberam vendem à representada da segunda outorgante mulher, o seguinte prédio: Fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão, tipo T-2, do prédio urbano sito no (…), na freguesia de (…), concelho de Odemira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odemira sob o n.º (…) – (…).
3. Na escritura supra aludida, a segunda outorgante, em representação da Ré, declarou, entre o mais: Que para a sua representada, aceita a presente venda nos termos exarados, e que a fração ora adquirida se destina a habitação própria secundária. (…) Que a sua representada se confessa devedora ao “Banco (…), S.A.”, que o 3.º outorgante representa, da importância de cinquenta e quatro mil oitocentos e cinquenta euros, que do mesmo banco recebeu a título deste empréstimo e que vai ser aplicada na precedente aquisição. Que a sua representada constitui a favor daquele Banco Hipoteca sobre a fração autónoma atrás identificada e ora adquirida para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respetivos juros à taxa anual efetiva de cinco vírgula dezoito por cento, acrescidos de uma sobretaxa até quatro por cento ao ano em caso de mora, a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extra judiciais fixadas para efeitos de registo em dois mil cento e noventa e quatro euros.
4. Na escritura supra aludida, os segundos outorgantes, por si, declararam, entre o mais: Que afiançam todas as obrigações que a mutuária assuma a título do presente empréstimo e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores se obrigam perante o banco ao cumprimento das mesmas, renunciando desde já e expressamente ao benefício da excussão prévia bem como ao benefício do prazo, previsto no artigo setecentos e oitenta e dois do Código Civil, sendo-lhes, por isso imediatamente exigível o cumprimento antecipado das obrigações emergentes deste empréstimo, sempre que o Banco o possa exigir da mutuária. Que desde já, dão ainda o seu acordo, a quaisquer modificações da taxa de juro, prazo do empréstimo, ou outras alterações que venham a ser convencionadas entre a mutuária e o banco.
5. Na escritura supra aludida, o terceiro outorgante, declarou, entre o mais: Que para o Banco seu representado, aceita a confissão de dívida e hipoteca, bem como a fiança constituída, nos termos exarados.
6. No dia 18 de julho de 2002, Autora, por si e em representação da Ré, e Autor, como primeiros outorgantes, e (…), em representação da Chamada, como segundo outorgante, celebraram escritura de mútuo com hipoteca e fiança, perante a notária (…), no Cartório Notarial de Aljustrel, lavrada de folhas 38 a folhas 40 do Livro de notas para escrituras diversas n.º 43-D, junta à petição como doc. n.º 2, aqui dada por integralmente reproduzida.
7. Na escritura supra aludida, a primeira outorgante, em representação da Ré, e o segundo outorgante, declararam, entre o mais: O Banco concede à representada da primeira outorgante, um empréstimo no montante de vinte e nove mil novecentos e quarenta e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos. Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta da representada da mesma primeira outorgante (…). A representada da 1ª outorgante, aceita o empréstimo e confessa-se, desde já, devedora de todas as quantias que do Banco recebeu a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo, assim como também se confessa devedor das quantias que lhe foram debitadas por conta desta operação, de acordo com o presente contrato. Que, para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respetivos juros à taxa anual efetiva de cinco vírgula sessenta e quatro por cento, acrescidos de uma sobretaxa até quatro por cento ao ano em caso de mora, a título de cláusula penal e despesas judicias e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em mil cento e noventa e sete euros e oitenta e três cêntimos, a representada da primeira outorgante, constitui a favor daquele Banco, hipoteca sobre o seguinte prédio: Fração autónoma, designada pela letra A, correspondente ao rés-do-chão, tipo T-2, do prédio urbano sito no (…), na freguesia de (…), concelho de Odemira (…).
8. Na escritura supra aludida, os primeiros outorgantes, por si, declararam, entre o mais: Que solidariamente afiançam todas as obrigações que a mutuária assuma a título do presente empréstimo e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores se obrigam perante o Banco ao cumprimento das mesmas, renunciando desde já e expressamente ao benefício de excussão prévia, bem como ao benefício do prazo, previsto no artigo 782.º do Código Civil, sendo-lhes, por isso imediatamente exigível o cumprimento antecipado das obrigações emergentes deste empréstimo, sempre que o Banco o possa exigir da mutuária. Que desde já dão ainda o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro, prazo do empréstimo, ou outras alterações que venham a ser convencionadas entre a mutuária e o banco.
9. Na escritura supra aludida, o segundo outorgante, declarou, entre o mais: Que para o Banco seu representado, aceita a confissão de dívida e hipoteca, bem como a fiança constituída, nos termos exarados.
10. Os Autores pagaram as seguintes quantias correspondente às prestações dos dois empréstimos supra aludidos e seguros associados:
Em Agosto de 2002, pagaram a quantia de € 638,74.
Em Setembro de 2002, pagaram a quantia de € 479,62.
Em Outubro e Novembro de 2002, pagaram, em cada mês, a quantia de € 480,02.
Em Dezembro de 2002, pagaram a quantia de € 467,10.
Em Janeiro e Fevereiro de 2003, pagaram em cada mês, a quantia de € 467,12.
Em Março, Abril e Maio de 2003, pagaram, em cada mês, a quantia de € 441,97.
Em Junho de 2003, pagaram a quantia de € 429,75.
Em Julho de 2003, pagaram a quantia de € 430,39.
Em Agosto de 2003, pagaram a quantia de € 417,93.
Em Setembro de 2003, pagaram a quantia de € 510,19.
Em Outubro de 2003, pagaram a quantia de € 422,73.
Em Novembro e Dezembro de 2003, pagaram, em cada mês, a quantia de € 405,91.
Em Janeiro, Julho e Setembro de 2004, pagaram, em cada mês, a quantia de € 405,92.
Em Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2004, pagaram, em cada mês, a quantia de € 418,38.
Em Junho de 2004, pagaram a quantia de € 430,84.
Em Agosto de 2004, pagaram a quantia de € 431,28.
Em Outubro e Dezembro de 2004, pagaram, em cada mês, a quantia de € 418,60.
Em Novembro de 2004, pagaram a quantia de € 414,85.
Em Janeiro e Junho de 2005, pagaram, em cada mês, a quantia de € 418,65.
Em Fevereiro, Abril, Julho e Outubro de 2005, pagaram, em cada mês, a quantia de € 405,97.
Em Maio de 2005, pagaram a quantia de € 431,33.
Em Setembro de 2005, pagaram a quantia de € 419,22.
Em Novembro de 2005, pagaram a quantia de € 341,82.
Em Dezembro de 2005, pagaram a quantia de € 354,41.
Em Janeiro e Fevereiro de 2006, pagaram, em cada mês, a quantia de € 354,43.
Em Março, Abril e Maio de 2006, pagaram, em cada mês, a quantia de € 367,20.
Em Junho, Julho e Agosto de 2006, pagaram, em cada mês, a quantia de € 380,25.
Em Setembro de 2006, pagaram a quantia de € 388,61.
Em Outubro e Novembro de 2006, pagaram, em cada mês, a quantia de € 393,36.
Em Dezembro de 2006, pagaram a quantia de € 413,34.
Em Janeiro e Fevereiro de 2007, pagaram, em cada mês, a quantia de € 413,42.
Em Março, Abril e Maio de 2007, pagaram, em cada mês, a quantia de € 420,12.
Em Junho, Julho e Agosto de 2007, pagaram, em cada mês, a quantia de € 435,69.
Em Setembro, Outubro e Novembro de 2007, pagaram, em cada mês, a quantia de € 449,04.
Em Dezembro de 2007, pagaram a quantia de € 475,45.
Em Janeiro e Fevereiro de 2008, pagaram, em cada mês.
Em Março, Abril e Maio de 2008, pagaram, em cada mês, a quantia de € 442,62.
Em Junho de 2008, pagaram a quantia de € 455,33.
Em Julho e Agosto de 2008, pagaram, em cada mês a quantia de € 459,70.
Em Setembro e Outubro de 2008, pagaram, em cada mês, a quantia de € 465,77.
Em Novembro de 2008, pagaram a quantia de € 461,85.
Em Dezembro de 2008, pagaram a quantia de € 470,19.
Em Janeiro e Fevereiro de 2009, pagaram, em cada mês, a quantia de € 474,25.
Em Março de 2009, pagaram a quantia de € 337,21.
Em Abril e Maio de 2009, pagaram, em cada mês, a quantia de € 338,10.
Em Junho, Julho e Agosto de 2009, pagaram, em cada mês, a quantia de € 292,36.
Em Setembro de 2009, pagaram a quantia de € 274,01, correspondente às prestações dos dois empréstimos e seguros associados.
Em Outubro de 2009, pagaram a quantia de € 213,47.
Em Novembro de 2009, pagaram a quantia de € 273,4.
Em Dezembro de 2009, pagaram a quantia de € 263,81.
Em Janeiro e Fevereiro de 2010, pagaram, em cada mês, a quantia de € 263,98.
Em Março e Maio de 2010, pagaram, em cada mês, a quantia de € 262,45.
Em Abril de 2010, pagaram a quantia de € 287,20.
Em Junho e Julho de 2010, pagaram, em cada mês, a quantia de € 260,89.
Em Agosto de 2010, pagaram a quantia de € 266,89.
Em Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2010, pagaram, em cada mês, a quantia de € 268,06.
Em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2011, pagaram, em cada mês, a quantia de € 274,21.
Em Junho, Julho e Agosto de 2011, pagaram, em cada mês, a quantia de € 287,85.
Em Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2011, pagaram, em cada mês, a quantia de € 299,27.
Em Janeiro e Fevereiro de 2012, pagaram, em cada mês, a quantia de € 299,64.
Em Março, Abril, Maio, Junho e Julho de 2012, pagaram, em cada mês, a quantia de € 284,26.
Em Agosto de 2012, pagaram a quantia de € 500,24.
Em Setembro de 2012, pagaram a quantia de € 397,08.
Em Outubro de 2012, pagaram a quantia de € 365,91.
Em Novembro de 2012, pagaram a quantia de € 340,55.
Em Dezembro de 2012, pagaram a quantia de € 575,99.
Em Janeiro de 2013, pagaram a quantia de € 345,90.
Em Fevereiro de 2013, pagaram a quantia de € 244,21.
Em Março de 2013, pagaram a quantia de € 252,07.
Em Abril de 2013, pagaram a quantia de € 137,56.
Em Maio e Junho de 2013, pagaram, em cada mês, a quantia de € 135,00.
Em Julho de 2013, pagaram a quantia de € 134,06.
Em Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro de 2013, pagaram, em cada mês, a quantia de € 133,94.
Em Novembro de 2013, pagaram a quantia de € 158,41.
Em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2014, pagaram, em cada mês, a quantia de € 134,92.
Em Julho de 2014, pagaram a quantia de € 139,52.
Em Agosto de 2014, pagaram a quantia de € 138,01.
Em Setembro de 2014, pagaram a quantia de € 222,56.
Em Outubro, Novembro e Dezembro de 2014, pagaram, em cada mês, a quantia de € 272,32.
Em Janeiro de 2015, pagaram a quantia de € 269,82.
Em Fevereiro de 2015, pagaram a quantia de € 286,11.
Em Março, Abril, Maio e Junho de 2015, pagaram, em cada mês, a quantia de € 266,11.
Em Julho de 2015, pagaram a quantia de € 265,40.
Em Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2015, pagaram, em cada mês, a quantia de € 262,45.
Em Dezembro de 2015, pagaram a quantia de € 242,45.
Em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2016, pagaram, em cada mês, a quantia de € 262,10.
Em Julho de 2016, pagaram a quantia de € 258,72.
Em Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2016, pagaram, em cada mês, a quantia de € 255,99.
Em Janeiro de 2017, pagaram a quantia de € 255,77.
Em Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho e Julho de 2017, pagaram, em cada mês, a quantia de € 254,63.
Em Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2017, pagaram, em cada mês, a quantia de € 253,46.
Em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2018, pagaram, em cada mês, a quantia de € 253,83.
Em Junho de 2018, pagaram a quantia de € 304,50.
Em Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2018, pagaram, em cada mês a quantia de € 254,23.
Em Janeiro, Fevereiro e Março de 2019, pagaram, em cada mês, a quantia de € 255,64.
Em Abril, Maio e Junho de 2019, pagaram, em cada mês, a quantia de € 255,70.
Em Julho de 2019, pagaram a quantia de € 256,21.
Em Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2019, pagaram, em cada mês, a quantia de € 255,75.
Em Janeiro de 2020, pagaram a quantia de € 255,58.
Em Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2020, pagaram, em cada mês, a quantia de € 254,47.
Em Julho de 2020, pagaram a quantia de € 256,82.
Em Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro de 2020, pagaram, em cada mês, a quantia de € 258,99.
Em Novembro de 2020, pagaram a quantia de € 251,03.
Em Janeiro de 2021, pagaram a quantia de € 256,37.
Em Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2021, pagaram, em cada mês, a quantia de € 250,82.
Em Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2021, pagaram, em cada mês a quantia de € 251,62.
Em Janeiro de 2022, pagaram a quantia de € 253,08.
Em Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2022, pagaram, em cada mês a quantia de € 252,57.
Em Dezembro de 2022, os A. A. pagaram a quantia de € 296,72.
Em Fevereiro de 2023, pagaram a quantia de € 343,68.
11. Os Autores, desde o pagamento da primeira prestação bancária supra aludida, autorizados pela Ré, ocupam e utilizam livremente o imóvel supra aludido.
B – As questões do Recurso
i. Da falta de fundamento do abuso do direito de sub-rogação
O instituto do abuso do direito está consagrado no artigo 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, é ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Por via deste regime, “a lei procura obter um controlo ou uma moderação do poder, fazendo com que o exercício do direito subjetivo por parte do seu titular se efetue dentro do quadro resultante do fim para o qual foi atribuído. O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções.”[1]
Estão em causa “os direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça, (…) as hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria no caso concreto intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”[2]. “Há abuso de direito, segundo a conceção objetiva aceite no artigo 334.º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. (…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode em qualquer dos casos afirmar-se a exclusão dos fatores subjetivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.”[3]
A toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do venire contra factum proprium, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento no sentido de não pretender exercer o direito. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra[4], o princípio da proibição do venire contra factum proprium impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração da responsabilidade pela confiança.
Na jurisprudência deste Tribunal, “Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinando direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra qual é invocado.”[5]
Certo é que a conduta abusiva se afere em face das circunstâncias concretas de cada caso. Circunstâncias concretas que hão de decorrer dos factos provados. Exclusivamente dos factos provados.
Acresce que, como é sabido, não constando provado determinado facto, daí não resulta que se verifique o seu contrário.
No caso em apreço, a decisão da 1ª Instância que, oficiosamente, apreciou o abuso do direito de sub-rogação pelos AA, alicerçou-se nos seguintes vetores:
a) os AA tiveram efetiva disponibilidade da casa durante todo o tempo em que procederam ao pagamento das prestações bancárias, desde 2002;
b) os Autores pagaram voluntariamente as prestações bancárias referentes aos empréstimos garantidos pelo imóvel;
c) se a R soubesse que os Autores lhe iriam pedir tudo quanto pagaram ao longo de tal extenso período, poderia ter reagido, pedindo a desocupação da casa para da mesma gozar e fruir;
d) a R não pode voltar atrás no tempo e exigir aos Autores que desocupem a casa, desde 2002, para da mesma gozar/fruir até à presente data;
e) quem paga voluntariamente não irá protestar contra esse pagamento;
f) a R autorizou a ocupação da casa sabendo que são os Autores que se encontram a pagar as prestações dos créditos hipotecários e tendo a legítima expetativa de que não irão, no futuro, pedir a devolução;
g) se soubesse que iriam pedir tal devolução e teria tido, pelo menos, a possibilidade de reagir, conscientemente, como fosse sua vontade [aceitando tal estado de coisas, esclarecida que estava e por que razão fosse, ou, não o aceitando, reaver a casa em tempo oportuno, “lá atrás”, em 2002];
h) se os Autores queriam dispor da casa e nada pagar por tal disposição, teriam de ser claros com a Ré nesse sentido.
Ora,
- o que consta da alínea a) tem respaldo no nº 11 dos factos provados;
- o pagamento versado na alínea b) tem respaldo no nº 10 dos factos provados;
- o mais, reconduz-se a considerações, conclusões, equações que não se retiram dos factos provados.
Na verdade, dali não se colhe que, se a Ré soubesse que os Autores lhe iriam pedir tudo quanto pagaram ao longo de tal extenso período, teria pretendido reagir pedindo a desocupação da casa para da mesma gozar e fruir; que tivesse a pretensão de dela gozar/fruir desde 2002 até à presente data; que a Ré tivesse resultado convencida de que o pagamento voluntário foi feito a título de liberalidade; que a Ré autorizou a ocupação da casa tendo a legítima expetativa de que não iriam, no futuro, pedir a devolução das prestações dos créditos hipotecários; que os Autores não tenham evidenciado à Ré que pretendiam dispor da casa sem nada pagar por isso.
Tomando em consideração os factos provados, ou seja, que os AA procederam aos pagamentos mensais, de agosto de 2002 em diante, das prestações de amortização dos créditos bancários e dos seguros associados, e que ocuparam o imóvel, com autorização da Ré, desde agosto de 2002, vindo a utilizá-lo desde então, afigura-se não resultar afirmada ser a conduta dos AA abusiva do direito de sub-rogação.
Alcança, pois, merecimento o recurso interposto pelos AA.
ii. Da falta de fundamento do direito de sub-rogação dos AA
Em face do que se concluiu no item anterior, cumpre apreciar se assiste razão ao Réu Banco quando sustenta que os AA não gozam do direito de sub-rogação fundado na fiança. A isso obsta, no seu entender, a circunstância de a Ré não ter incorrido em mora ou incumprimento contratual de pagamento das prestações devidas, não ser devido o pagamento de qualquer quantia a título de cláusula penal, não existir fundamento para os AA serem sub-rogados na sua posição quanto a quantias pagas a terceira entidade (a seguradora). Quando muito, assistirá aos AA direito de regresso.
Ora vejamos.
A fiança constitui uma garantia de satisfação do direito de crédito, ficando o fiador pessoalmente obrigado perante o credor, assumindo obrigação que é acessória da que recai sobre o principal devedor (artigo 627.º, n.ºs 1 e 2, do CC). Trata-se de uma «garantia pessoal tipo: o terceiro, fiador, assegura com o seu património a satisfação do direito do credor. É o que resulta da afirmação legal de que o fiador fica pessoalmente obrigado perante o credor. Em princípio, portanto, todo o património do fiador é responsável.»[6]
A fiança é «a garantia contratual pela qual alguém – o fiador – se obriga a cumprir uma obrigação alheia, no caso de o devedor respetivo – o afiançado – a não satisfazer (artigo 627.º, n.º 1, do CC).»[7]
Nos termos do disposto no artigo 634.º do CC, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou da culpa do devedor.
Embora o fiador seja verdadeiro devedor do credor, a obrigação que assume é acessória da que recai sobre o obrigado, visto que apenas garante que a obrigação (afiançada) do devedor será satisfeita. A obrigação que ele assume é a obrigação do devedor. Após a constituição da fiança, passa a haver uma obrigação principal, que vincula o principal devedor e, por cima dela, a cobri-la, tutelando o seu cumprimento, uma obrigação acessória, a que o fiador fica adstrito.[8]
«Nas relações entre o credor e o fiador, o direito que mais avulta e melhor espelha o reforço da garantia patrimonial trazido pela fiança é o que confere ao credor o poder de exigir a realização da prestação devida, caso o devedor não tenha cumprido.
Em contrapartida, a faculdade que mais sobressai, do lado oposto, é a do benefício da excussão reconhecida ao fiador.»[9]
No âmbito das relações entre o devedor e o fiador, destaca-se o direito consagrado no artigo 644.º do CC, nos termos do qual o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.
Trata-se do direito de sub-rogação do fiador que cumpre a obrigação nos direitos do credor. O crédito transfere-se para o credor, com todas as garantias e acessórios (cfr. artigos 644.º e 582.º/1, ex vi do artigo 594.º, todos do CPC), ficando o fiador dotado do direito do credor que se transmitiu por sub-rogação legal, em consequência do cumprimento da obrigação.[10]
O instituto da sub-rogação, por sua vez, encontra-se previsto nos artigos 589.º a 594.º do CC, no capítulo relativa à transmissão de créditos e de dívidas. «Consiste na situação que se verifica quando, cumprida uma obrigação por terceiro, o crédito respetivo não se extingue, mas antes se transmite por efeito desse cumprimento para o terceiro que realiza a prestação ou forneceu os meios necessários para o cumprimento.»[11]
Os AA, arrogando-se da qualidade de fiadores, pretendem seja declarado que ficaram sub-rogados nos direitos do Banco (…), SA, tendo-se operado em seu favor a transmissão do crédito, acompanhado das respetivas garantias (a hipoteca sobre o imóvel), e que a Ré seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 77.221,26 a título de prestações de amortização dos contratos de mútuo, e seguros associados, cujo cumprimento a Ré faltou, a quantia de € 6.946,92 de juros de mora vencidos e € 27.889,21 de cláusula penal.
Porém:
Não está provado que a Ré tenha incorrido em mora ou em incumprimento contratual junto do credor mutuante. Por conseguinte, os pagamentos realizados pelos AA não permitem seja acionado o instituto da fiança, que se destina a cobrir as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.
Não tendo a Ré, devedora principal, incorrido em mora ou em incumprimento contratual culposo, os AA, ao realizarem os pagamentos mensais das prestações de amortização e seguros associados, não atuaram enquanto fiadores, a coberto do instituto da fiança.
O que implica inexistir fundamento para considerar os AA sub-rogados nos direitos que estavam na titularidade do credor mutuante, o Réu Banco, seja no que respeita ao montante do crédito satisfeito seja no que respeita à garantia patrimonial do crédito (a hipoteca). Inexistindo prestações vencidas relativamente às quais a R tenha incorrido em mora/incumprimento contratual, não se constituiu crédito vencido a ser transmitido, por sub-rogação, aos AA. De todo o modo, sempre estariam excluídos da transmissão do crédito do Banco as quantias pagas a terceira entidade, a seguradora, a título de prémios de seguro.
O que implica ainda inexistir fundamento para considerar a R devedora de juros de mora vencidos ou de quantia relativa a cláusula penal, devida em caso de mora e calculada diariamente com base na taxa Euribor que esteja em vigor, acrescida da sobretaxa de 4% ao ano.
Termos em que, não se reconhecendo aos AA a qualidade de sub-rogados, ao abrigo do instituto da fiança, nos direitos do Banco, nem se tendo constituído, na esfera patrimonial deste, direitos decorrentes da mora/incumprimento contratual por parte da Ré, não resta outra sorte à ação que não seja a improcedência.
Embora com fundamento essencialmente diverso, resulta confirmada a decisão recorrida no sentido da improcedência da ação.
As custas recaem sobre os Recorrentes AA – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Não obstante tenham alcançado vencimento no que respeita à questão do abuso do direito, certo é que, por força da ampliação do âmbito do recurso a requerimento do Recorrido Banco, resultaram vencidos na pretensão deduzida em juízo.
Sumário: (…)
IV – DECISÃO
Nestes termos, vai confirmada a decisão recorrida de improcedência dos pedidos formulados pelos Autores, deles resultando absolvidos os Réus.
Custas pelos AA.
Évora, 16 de outubro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Emília Melo e Castro
José Manuel Tomé de Carvalho
__________________________________________________
[1] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 281.
[2] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, pág. 63.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, págs. 436 a 438.
[4] RLJ ano 105.º pág. 28.
[5] Ac. do TRE de 05/11/2020 (Tomé de Carvalho).
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 4.ª edição, págs. 643 e 644.
[7] Galvão Teles, Garantia Bancária Autónoma, pág. 14.
[8] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª edição, pág. 477.
[9] Antunes Varela, ob. cit., págs. 485 e 486.
[10] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 660 e 661.
[11] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 10.ª edição, pág. 31.