ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
Sumário

O facto gerador da responsabilidade objetiva do produtor é o defeito do produto que põe em circulação e não a aptidão ou idoneidade deste para a realização do fim a que é destinada.

Texto Integral

Apelação n.º 344/21.8T8BJA.E2
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
1º Adjunto: Mário João Canelas Brás
2ª Adjunta: Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), SA, co-ré na ação declarativa de condenação que lhe foi movida, e aos co-réus (…) – Atividades Agrícolas, Lda. e (…), pela (…) – Companhia de Seguros, SA, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o qual julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré (…), Lda. a pagar à autora a quantia de cinquenta e um mil, quatrocentos e vinte e oito euros e sessenta e cinco cêntimos (€ 51.428,65), acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal desde a citação e até integral pagamento e absolveu os réus do demais peticionado.

Na ação a companhia de seguros (…) pediu a condenação dos réus a pagarem-lhe o montante global de € 51.428,65, acrescido de juros vincendos, calculados à taxa legal, e contados desde a citação e até efetivo pagamento.
Para tal desiderato, alegou, em síntese, ter direito de regresso e/ou estar sub-rogada na posição do lesado contra os réus, enquanto responsáveis civis, pelos montantes que ela pagou a coberto de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, em virtude de o sinistro em causa nos autos ser imputável aos réus (…) e (…), por desrespeito das regras de segurança no trabalho, ou, subsidiariamente, imputável à 3ª ré (…), SA, caso se entenda que o acidente se deveu à desconformidade - defeito do reboque cujo taipal foi aberto pelo sinistrado.
Foi admitida a intervenção, a título acessório, da Companhia de Seguros (…) Espana, SA, como assistente da 3ª ré.

A autora/apelada Companhia de Seguros (…), SA interpôs recurso subordinado.

I.2.
Recurso principal
1.2.1
Inconformada com a sentença, a recorrente (…), SA formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. A sentença recorrida condenou a apelante sem fundamentos factuais ou legais que sustentem tal decisão;
2. A recorrente impugna a matéria de facto, que com base na prova produzida nos autos ou na falta dela, deve ser alterada;
3. A decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada nos pontos 5, 14, 15, 16 e 18 dos factos provados e nas alíneas a), c) e d) dos factos não provados;
4. O ponto dado como provado sob o n.º 5 contém um erro sobre o funcionamento do reboque, contrariando a prova pericial e documental e até os factos dados como provados sob os pontos 4 a 7;
5. As páginas 14 e 16 do anexo do Doc. 9 junto com a P.I. de fls… demonstram que as meias portas do reboque se encontram instaladas numa estrutura em U, não sendo suportadas (cada uma) por um cavilhão, pelo que o ponto 5 deve ser alterado de forma a reflectir esta fatualidade;
6. O ponto 14 dos factos dados como provados foi dado como provado sem suporte probatório, baseando-se apenas em presunções;
7. A máxima de experiência usada pelo Tribunal a quo para dar como provado o facto 14 não assenta nem decorre de factos dado como provados, mas apenas de presunções;
8. A prova testemunhal confirma que o reboque foi basculado antes do acidente, o que compromete a tese de que os cavilhões estavam inoperacionais no momento da entrega;
9. Entre a entrega do reboque pela 3ª Ré e o acidente decorreu uma janela temporal durante a qual se desconhece com exactidão o que aconteceu;
10. Atenta a prova produzida, o tribunal não poderia partir do alegado facto de que no momento do acidente esteve em causa “a primeira tentativa de suster o taipal”;
11. O reboque em questão foi experimentado pela 1ª Ré, por intermédio dos seus funcionários e pelo 2º Réu, que o recebeu;
12. Esse teste de “experiência” com o reboque pode ter despoletado a quebra dos cavilhões, por basculamento incorreto/não total do reboque;
13. A sentença recorrida parte do pressuposto de que o taipal caiu porque os cavilhões partiram quando deveria considerar é que o taipal só caiu porque o funcionário sinistrado o abriu incorretamente;
14. Se os cavilhões não estivessem operacionais, a inspecção do 2º Réu quando recebeu e aceitou o reboque tê-lo-iam detectado;
15. A decisão do Tribunal a quo ignora que a 1ª Ré e o 2º Réu vistoriaram e aceitaram o reboque sem detetar qualquer anomalia;
16. O ponto 14 da matéria de facto dada como provada deve ser alterado no sentido de reproduzir a factualidade de que o reboque foi recebido e aceite formalmente pela 1ª e 2º Réus;
17. O ponto 15 parte de uma conclusão errada, pois o taipal caiu devido à incorreta abertura das trancas laterais pelo sinistrado e não por falha dos cavilhões;
18. A matéria constante do ponto 15 é meramente conclusiva, pelo que esse ponto deve ser eliminado;
19. O ponto 16 é uma suposição sem base factual, pois não ficou provado que os cavilhões estavam inoperacionais antes do acidente, sendo tal uma suposição/presunção;
20. O ponto 18 está incorreto, pois o reboque foi entregue com manual de instruções, conforme prova testemunhal e documental;
21. A alínea a) dos factos não provados deve ser alterada para ficar a constar da base de factos dados como provados;
22. Resulta da prova testemunhal e documental pois uma inspeção correta do equipamento teria evitado o acidente e tal factualidade tem de figurar na lista dos factos provados, por inclusão do facto não provado sob a alínea a) na lista de factos provados;
23. As alíneas c) e d) dos factos não provados devem ser alteradas para passarem a figurar como factos provados, pois ficou demonstrado que o sinistrado não tinha formação adequada e que houve falha na avaliação dos riscos;
24. O relatório da ACT (doc. 7 da P.I. de fls…) e a prova testemunhal melhor identificada nas alegações supra fazem prova plena de que os factos a), c) e d) que a sentença considerou como não provados estão demonstrados nos autos pelo que se impõe essa alteração;
25. O relatório da ACT confirma que o sinistrado não recebeu instruções sobre o funcionamento correto do reboque;
26. O acidente ocorreu devido a erro humano na abertura das trancas laterais, aliado à falta de formação do sinistrado, nunca à alegada inoperacionalidade dos cavilhões;
27. A sentença recorrida interpretou erradamente o artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, e o regime da responsabilidade objetiva do D.L. n.º 383/89, de 06 de novembro;
28. O direito de sub-rogação da Autora exige prova concreta do defeito do produto e do nexo de causalidade com o dano, o que não foi demonstrado nos autos;
29. O regime de responsabilidade do produtor não dispensa a prova do dano, que cabe à Autora demonstrar, nos termos do artigo 17.º da Lei n.º 98/2009;
30. A decisão recorrida presume a existência de um defeito no reboque sem prova cabal que o sustente, violando o ónus da prova;
31. A Autora, enquanto seguradora, assumiu o risco do dano e não pode inverter esse risco sem prova clara e objetiva de que o defeito não era previsível ou expectável;
32. Não ficou provado que o acidente decorreu exclusivamente de um defeito do produto, pelo que a Apelante não pode ser responsabilizada com base na responsabilidade objetiva;
33. Caso se admita a verificação dos pressupostos do direito da Autora, o eventual direito de regresso recairia sobre a 1ª e 2º Réus, cuja responsabilidade está demonstrada nos autos;
34. A sentença não especifica de forma clara os fundamentos de facto e de direito que justificam a presunção adotada para declarar como provado o facto 14, violando o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC;
35. A sentença baseia-se em presunções construídas sobre factos não provados, sem suporte probatório suficiente, o que a torna nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC;
36. Existe contradição entre os factos provados n.º 11 e 14, o que conduz à nulidade da sentença ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC;
37. O facto provado n.º 11 estabelece que o 2º Réu examinou o reboque sem detetar anomalias, enquanto o facto 14 declara que os cavilhões estavam inoperacionais, criando uma incoerência na fundamentação;
38. Se o 2º Réu examinou o reboque e não detetou danos, não se pode responsabilizar a 3ª Ré, mas sim quem aceitou e utilizou o equipamento;
39. A sentença contradiz-se ao afirmar que não existe prova do motivo da rutura dos cavilhões e, ao mesmo tempo, presumir que a inoperacionalidade dos cavilhões já existia no momento da entrega;
40. A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que declare a alteração da matéria de facto nos termos indicados e/ou que declare a incorreta interpretação do regime legal em causa e/ou declare verificada a(s) nulidade(s) da sentença, absolvendo a 3ª Ré da responsabilidade imputada.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a douta decisão recorrida, na parte em que decreta procedência parcial da acção, substituindo-a por outra que declare a absolvição da 3ª Ré, ora apelante, nos termos plasmados, com todas as legais consequências, assim se fazendo a necessária e costumada JUSTIÇA!».


1.2.2.
A recorrida Companhia de Seguros, (…), SA formula resposta às alegações que culminam com as seguintes conclusões:
(A) A Ora Recorrente considera, sem que lhe assista razão, terem sido incorretamente julgados como provados, os factos 5 (“O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na parte superior, segurando cada cavilhão uma meia porta, o que permite que o mesmo basculhe ou que as meias portas sejam abertas [apenas uma ou as duas simultaneamente]”); 14 (“O reboque foi entregue com os cavilhões/eixos de suporte do taipal inoperacionais”); 15 (“Por essa razão, deu-se a queda do taipal quando (…) o tentou abrir, após destrancar os fechos laterais”); 16 (“Caso os cavilhões/eixos de suporte estivessem operacionais, o taipal não teria caído”); e 18 (“O reboque foi entregue sem que a 3ª Ré fornecesse: i) manual de instruções redigido em língua portuguesa; e ii) registo de verificações e ensaios”) da douta sentença ora recorrida, pugnando pela alteração desta matéria de facto, devendo a mesma dar-se por não provada.
(B) Invoca, como ordem de razões para sustentar a sua tese, que o Tribunal a quo não terá atendido fundamentos factuais ou legais que sustentem tal decisão, invocando existir contradição entre a prova pericial – que não existe nos autos - e documental e a decisão ora em crise, bem como um ilícito recurso, por parte do Tribunal a quo a presunções sem especificação de forma clara dos fundamentos de facto e de direito que a justificam.
Contudo,
(C) A ora Recorrente nada mais faz senão desconsiderar a fundamentação constante na sentença da qual recorre, não porque ela não exista ou seja deficitária – pelo contrário – mas tão só e apenas porque lhe é desfavorável.
(D) Com efeito, o Tribunal a quo, considerou que o facto dado como provado no ponto 5 resultou «(…) transversalmente de toda a prova, não só dos depoimentos prestados pelas testemunhas com conhecimento sobre a matéria em causa [(…) – sinistrado; (…) – inspetor da A.C.T. responsável pelo relatório junto aos autos; (…) – averiguador de sinistros da Autora responsável pelo relatório G.E.P. juntos aos autos; (…) – técnico agrícola; (…) – empresário no comércio de máquinas agrícolas; (…) – chefe de oficina na Autora], como igualmente das declarações de parte do legal representante da 3.ª Ré [ora Recorrente], (…), não podendo surgir quaisquer dúvidas sobre tal funcionamento do modelo do reboque em causa».
(E) Quanto ao ponto 14, 15 e 16 da matéria de facto dada como provada, socorreu-se o Tribunal a quo da clareza do depoimento das testemunhas já aludidas (quanto ao ponto 5), ao depoimento de (…), testemunha que retirou o reboque do camião da 3ª Ré, bem como das declarações de parte do 2º Réu e da 3ª Ré (ora Recorrente), tendo este último admitido que os fechos laterais não têm função de suporte do taipal e podem ser removidos com total segurança sem que este caia desde que os cavilhões estejam operacionais; bem como das fotografias e relatórios juntos aos autos (cfr. páginas 18, 19, 23 e 24 da sentença ora recorrida). O Tribunal a quo também deixou claro não atribuir grande credibilidade à narração da testemunha (…), maquinista da 3.ª Ré que trouxe o reboque para a herdade da 1ª Ré, «(…) uma vez que não só vai ao arrepio das demais provas, acabadas de referir, como das próprias regras de experiência».
(F) A prova supra mencionada, permitiu ao Tribunal a quo, através de base factual bastante, firmar uma presunção judicial que lhe permitiu concluir que a causa do acidente foi a inoperabilidade dos cavilhões: «(…)tudo o supra exposto, repetindo, em síntese, ser o reboque novo, acabado de ser entregue e na primeira abertura do taipal, dá-se a sua imediata queda com a quebra dos cavilhões».
(G) Por último, quanto ao 18 da matéria de facto dada como provada, fundou-se o Tribunal a quo quer no depoimento do inspector da A.C.T., (…), quer no facto de não ter sido junto aos autos a uma cópia do manual de instruções em língua portuguesa e da folha de verificações do veículo.
(H) A Ora Recorrente também defende terem sido incorretamente julgados como não provados os factos sob as alíneas a) (“Que o acidente teria sido evitado com uma inspeção/ verificação ao reboque completa e minuciosa aquando da sua receção pela 1ª Ré”); c) (“Que o sinistrado não sabia, por não ter formação e por não ter recebido as instruções que ao caso competia, como proceder à abertura do reboque, pelo que, terá sido feita uma má avaliação dos riscos e condições de trabalho no local”) e d) (“Que houve uma incompleta identificação e avaliação dos riscos pela 1ª Ré e 2º Réu na receção do reboque”), invocando que o relatório da ACT (doc. 7 da P.I. de fls…) e o depoimento do seu autor, o inspector (...) fazem prova plena (?) de que os factos a), c) e d) que a sentença considerou como não provados estão demonstrados nos autos.
Não lhe assiste, novamente, razão.
(I) Quanto aos factos não provados sob as alíneas a), c) e d) Tribunal a quo entendeu que não foi carreada para os autos prova suficiente, “com um nível claro e preponderante, exigido em processo civil” (sublinhado nosso), para sustentar a convicção quanto à sua verificação, desenvolvendo de forma exaustiva, os fundamentos sobre os quais assenta as suas conclusões, colocando mesmo em causa quanto a esta matéria, por contraditório e incongruente, o relatório da ACT que o ora Recorrente defende “fazer prova plena”.
(J) A ora Recorrente invoca também erro de julgamento porquanto, no seu entender, o Tribunal a quo terá interpretado incorretamente o artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, e o regime da responsabilidade objetiva do Decreto-Lei n.º 383/89, de 06 de novembro, dado que o direito de sub-rogação da Autora exige prova concreta do defeito do produto e do nexo de causalidade com o dano, o que não foi demonstrado nos autos, não tendo a Autora apresentado qualquer prova do dano.
(K) Também aqui não assiste razão à ora Recorrente. Não é possível afirmar a inexistência de um dano quando resulta dos factos dados como provados – e a Recorrente não os questiona – o dano provocado na esfera jurídica do sinistrado, que sofreu uma fratura exposta do metatarso de M1, M2, M3, M4 e M5 do pé esquerdo, tendo sindo submetido a cirurgia ao pé esquerdo, a redução cruenta/osteossíntese de M1 com parafuso e redução incruenta/osteossíntese de M2, M3 e M4, com cavilha. E, como consequência do dano na integridade física do sinistrado, os danos patrimoniais em que a Autora incorreu a título de despesas médicas, despesas referentes a próteses e aparelhos e despesas de transporte.
(L) Por outro lado, resulta também provado que: (i) o acidente se deveu a um defeito no reboque entregue pela 3ª Ré, (ii) não existiu qualquer violação de regras de segurança por parte da 1ª Ré, na pessoa do 2º Réu e (iii) ao sinistrado foi ministrada formação profissional, pela 1ª Ré.
(M) Pelo que é manifesto que o defeito de fabrico do reboque é exclusivamente imputável à 3ª Ré, o que comprometeu o funcionamento dos cavilhões e culminou no trágico desfecho, e ainda que 1ª Ré tivesse violado normas de segurança, higiene e saúde no trabalho – o que não ocorreu – nunca essa violação causaria o dano em questão uma vez que existe uma causa prévia que sempre daria azo ao acidente: o defeito de fabrico dos cavilhões, o qual nunca teria sido detetado por uma vistoria da 1ª Ré, conforme amplamente demonstrado e provado.
(N) Por último, a ora Recorrente defende que a sentença recorrida é nula por violar o constante das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Contudo, a nulidade por falta de fundamentação apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostre deficiente, errada, incompleta ou não convincente, e na sentença recorrida estão devidamente expostas as razões de facto e de direito que sustentam a decisão adotada pelo Tribunal. A sentença expõe de forma coerente todo o percurso lógico que conduziu à formulação do juízo probatório, de acordo com as regras da experiência comum, pelo que também não procede a nulidade invocada pela Recorrente.
(O) A ora Recorrente considera existir incompatibilidade entre o facto n.º 11 (“Em sequência, o 2º Réu examinou o exterior do reboque, não detetando qualquer anomalia”) e o facto n.º 14 “O reboque foi entregue com os cavilhões/eixos de suporte do taipal inoperacionais.” dos factos dados como provados e a sua fundamentação. Sucede que o facto do defeito em questão não ser detetável por meio de inspeção ocular – mesmo tratando-se de uma inspeção cautelosa e diligente, como de facto se verificou, dado o tamanho do material e a sua colocação em altura – não invalida que ele efetivamente exista, como, de resto, se verificou existir, pelo que não incorre o julgador em qualquer ilogicidade, pois uma premissa não invalida a outra.
(P) Donde se conclui que não merece qualquer censura a douta sentença ora recorrida, devendo a mesma manter-se na íntegra.
NESTES TERMOS,
Deve ser negado provimento ao recurso ao qual se responde, confirmando-se a sentença ora recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»

I.3.
Recurso Subordinado
1.3.1.
A (…) – Companhia de Seguros, SA interpôs recurso subordinado, requerendo que a sentença recorrida seja substituída por outra que condene, solidariamente, a co-ré (…), SA e a co-ré (…) – Atividades Agrícolas, Lda. no pagamento do montante global que a (…) suportou em consequência do acidente de trabalho em causa nos autos. As suas alegações culminam com as seguintes conclusões:
«1. Não se conformando com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, vem a Recorrente, por via do presente recurso, contestar tal decisão.
2. É do entendimento da Recorrente que o Tribunal a quo procedeu a uma inadequada apreciação e valoração da prova produzida no âmbito dos presentes autos, o que, por sua vez, traduziu uma errónea aplicação do direito in casu.
3. Do depoimento prestado pela testemunha (…), Inspector do Trabalho da ACT, resultou provado que o Sinistrado não recebeu, por parte da Recorrida, a formação profissional específica e adequada ao manuseamento de alfaias agrícolas (00:08:31.6 a 00:08:59.8, 00:10:56.9 a 00:12:22.4 em sede de sessão de audiência de julgamento realizada em 04.07.2024).
4. Sendo certo que, tal factualidade sempre deveria constar da matéria de facto dada como provada na Sentença sub judice, independentemente da queda do taipal não ter decorrido de um erro cometido pelo Sinistrado.
5. Na verdade, o facto da Recorrida não ter administrado a formação profissional adequada ao manuseamento de tal equipamento, reflecte, desde logo, que aquela se absteve de proceder a uma avaliação dos riscos e condições de trabalho.
6. Ainda do depoimento prestado pela testemunha (…) resultou como provado, sem margem para qualquer dúvida, que a Recorrida não procedeu à devida inspecção do reboque em apreço, com vista a garantir que este se encontrava em condições de ser utilizado, em segurança, pelo Sinistrado ou por qualquer outro trabalhador (00:18:16:9, 00:20:24:5 a 00:21:04:9, 00:23:08:7, 00:24:04:9 a 00:24:55:2 em sede de sessão de audiência de julgamento realizada em 04.07.2024).
7. O que, na verdade, sempre teria evitado a ocorrência do presente sinistro.
8. Efectivamente, o Réu (…) examinou o exterior do reboque, mas não efectuou uma vistoria completa ao sobredito equipamento, nomeadamente ao seu interior, razão pela qual, não logrou detectar o defeito existente nos cavilhões superiores que suportavam o taipal (00:02:12:0 a 00:03:40:0 em sede de sessão de audiência de julgamento realizada em 04.07.2024).
9. Tendo em consideração que a Recorrida tinha acabado de adquirir aquele tipo de reboque pela primeira vez, aquela sempre deveria ter procedido a uma avaliação dos riscos e condições de trabalho e, consequentemente, ter preparado a recepção e inspecção do sobredito equipamento, por forma a garantir a sua conformidade com as normas de fabrico e comercialização.
10. Tal conclusão é, inclusivamente, corroborada pelo Relatório da ACT junto aos presentes autos.
11. Assim, resultou como provado, mediante a prova testemunhal e documental produzida em sede nos presentes autos, que a Recorrida violou as regras de segurança e saúde no trabalho a que se encontrava adstrita, contribuindo, desta forma, para a ocorrência do acidente de trabalho sub judice.
12. Ora, independentemente dos cavilhões superiores não se encontrarem operacionais, o sobredito sinistro não teria ocorrido, se a Recorrida tivesse administrado ao Sinistrado a formação profissional específica ao manuseamento, em segurança, daquele equipamento e, bem assim, tivesse procedido à sua adequada.
13. Não obstante, o Tribunal a quo acabou por absolver a Recorrida do pedido formulado pela Recorrente, imputando, exclusivamente, a culpa efectiva pelo sinistro à Ré “(…), S.A.”.
14. Motivo pelo qual se impugna a decisão relativa à matéria de facto e, bem assim, se requer a reapreciação da prova gravada pelo Tribunal ad quem, de acordo com o artigo 640.º do CPC.
15. Neste sentido impõe-se a alteração da matéria dada como provada e não provada, nos seguintes termos:
a) O facto n.º 11 dado como provado deverá passar a assumir a seguinte redacção “[e]m sequência, o 2.º Réu apenas examinou o exterior do reboque, não tendo conseguido detectar o defeito existente nos cavilhões superiores que suportavam o taipal”;
b) O facto al. a) dado como não provado deverá ser dado como provado;
c) O facto al. c) dado como não provado deverá ser dado como provado, com a seguinte alteração “o Sinistrado não recebeu a formação profissional específica ao manuseamento de alfaias agrícolas, o que reflecte uma má avaliação dos riscos e condições de trabalho no local por parte da 1ª Ré”;
d) O facto al. d) dado como não provado deverá ser dado como provado, com a seguinte alteração “que houve uma incompleta identificação e avaliação dos riscos pela 1ª Ré na recepção do reboque, o que contribuiu para a ocorrência do acidente de trabalho em apreço”.
16. Por conseguinte, o Tribunal a quo sempre deveria ter condenado, igualmente, a Recorrida, no pagamento das quantias que a Recorrente suportou em face da regularização do presente acidente de trabalho, nos termos preceituado nos artigos 18.º/1 e 79.º/3, da LAT e, bem assim, em harmonia com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 17.04.2024.
17. Nestes termos, deverá a sentença sub judice ser revogada, e, consequentemente, ser substituída por outra, que condene a Ré “(…)S.A.” e a Recorrida no pedido formulado.
Nestes termos, e nos que V. Exas. muito doutamente suprirão,
Deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida, e, consequentemente:
a) O facto n.º 11 dado como provado deve passar a assumir a seguinte redacção “em sequência, o 2º Réu apenas examinou o exterior do reboque, não tendo conseguido detectar o defeito existente nos cavilhões superiores que suportavam o taipal”;
b) O facto alínea a) dado como não provado deve ser dado como provado;
c) O facto alínea c) dado como não provado deve ser dado como provado, com a seguinte alteração: “o sinistrado não recebeu a formação profissional específica ao manuseamento de alfaias agrícolas, o que reflecte uma má avaliação dos riscos e condições de trabalho no local por parte da 1ª Ré”;
d) O facto alínea d) dado como não provado deverá ser dado como provado, com a seguinte alteração “que houve uma incompleta identificação e avaliação dos riscos pela 1ª Ré na recepção do reboque, o que contribuiu para a ocorrência do acidente de trabalho em apreço”.
Consequentemente,
Deve a Sentença recorrida ser substituída por outra que condene, solidariamente, a Ré “(…), S.A.” e a Recorrida “(…) – Actividades Agrícolas, Lda.” no pagamento do global montante que a Recorrente efectivamente suportou em consequência do acidente de trabalho em causa nos presentes autos.»

1.3.2.
A co-ré (…) – Atividades Agrícolas, Lda. apresentou resposta ao recurso, a qual culmina com as seguintes conclusões:
«A) A douta sentença recorrida julgou, com inteira correção, que não existe responsabilidade da ora Recorrida (1ª Ré e entidade patronal) na eclosão do acidente de trabalho em apreço nos autos absolvendo-a de qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos danos decorrentes daquele acidente de trabalho ocorrido, atribuindo justamente a responsabilidade ao produtor/fabricante do equipamento, aqui 3ª Ré.
Com efeito,
B) O acidente resultou de um defeito oculto de fabrico no reboque, concretamente a rutura de uma soldadura estrutural (nas cabeças dos cavilhões que suportam o taipal traseiro do reboque), não visível nem suscetível de deteção no âmbito das normais práticas de inspeção e manutenção.
C) Tal vício insere-se na esfera de responsabilidade do produtor do equipamento (3ª Ré), nos termos da responsabilidade objetiva por facto de produto defeituoso, prevista no Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de novembro, conforme corretamente reconhecido pela sentença.
D) A atuação da entidade patronal foi diligente, tendo observado os deveres de manutenção, vigilância e inspeção exigíveis, não podendo ser-lhe imposto um dever absoluto ou ilimitado de deteção de defeitos de fabrico ocultos, em especial em equipamento novo ou recente.
E) Como refere Pedro Furtado Martins, “a obrigação de segurança do empregador não é uma obrigação de resultado, mas de meios, cujo conteúdo varia em função das circunstâncias concretas, incluindo o estado da técnica e os riscos razoavelmente previsíveis” (in Responsabilidade Civil do Empregador por Acidentes de Trabalho, Almedina, 2010).
F) A doutrina e jurisprudência têm afirmado os limites da obrigação de vigilância do empregador, não exigindo deste a deteção de defeitos técnicos não visíveis e de origem fabril. Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 2009, no processo 1785/07.6TTLSB.L1.S1 (consultável em www.dgsi.pt), onde se afirma que “não pode exigir-se ao empregador a deteção de vícios de fabrico ocultos, cuja identificação careceria de conhecimentos técnicos especializados ou inspecções aprofundadas que não são exigíveis no uso normal do equipamento”.
G) Tal entendimento coaduna-se com a chamada teoria do risco na origem, que atribui a responsabilidade pelos acidentes derivados de defeitos de conceção ou fabrico ao produtor do bem, enquanto entidade que introduz o risco no circuito económico.
H) Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de março de 2015, no processo 379/10.5TTFIG.C1 (consultável em www.dgsi.pt), reforça que “quando o acidente resulta de falha técnica de equipamento cuja deteção escapava ao controlo razoável do empregador, não se verifica culpa nem omissão imputável à entidade patronal”.
I) O juízo de censura formulado pela Autora/Recorrente assenta, pois, numa errada aplicação dos critérios legais de imputação de responsabilidade, pretendendo fazer recair sobre a entidade patronal uma obrigação desproporcionada e contrária aos princípios da justiça e razoabilidade.
J) Assim, a sentença recorrida deve ser mantida nos seus exatos termos, por se encontrar em plena consonância com a prova produzida e com o quadro legal e jurisprudencial aplicável.
K) Termos em que deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a absolvição da 1ª Ré (ora Recorrida), com todas as legais consequências. (consultável em www.dgsi.pt), onde se afirma que “não pode exigir-se ao empregador a deteção de vícios de fabrico ocultos, cuja identificação careceria de conhecimentos técnicos especializados ou inspecções aprofundadas que não são exigíveis no uso normal do equipamento”.
NESTES TERMOS,
Nestes termos, e por tudo o quanto vem de se expor, deve o recurso subordinado interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

4.
Ambos os recursos foram recebidos pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
As questões que cumpre decidir consistem em avaliar se:
1 – A sentença padece das nulidades que lhe são imputadas.
2 – Ocorreu erro de julgamento de facto.
3 – Ocorreu erro de julgamento de direito.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:

1. Em 02 de maio de 2018, entre a 1ª Ré, como primeira outorgante, e (…), como segundo outorgante, foi celebrado o contrato de trabalho sem termo, junto à petição inicial como documento n.º 5, aqui dado por integralmente reproduzido, no qual consta, entre o mais, o seguinte:
«Cláusula Primeira
Objeto
1 – O trabalhador é admitido ao serviço da empregadora para, sob as ordens e direção desta, desempenhar a atividade correspondente à categoria profissional de encarregado de rega.
2 – A empregadora pode, quando o seu interesse assim o exija, encarregar temporariamente o trabalhador de funções não compreendidas na atividade contratada, desde que tal não implique modificação substancial da posição deste».
«Cláusula Segunda
Retribuição
1 – Ao trabalhador será paga a remuneração mensal base de € 1.223,66 – mil duzentos e vinte e três euros e sessenta e seis cêntimos, a que acrescerá o subsídio de alimentação fixo, no valor de € 104,94 – cento e quatro euros e noventa e quatro cêntimos.
2 – A retribuição e as restantes prestações pecuniárias serão liquidadas mensalmente, até ao último dia do mês a que correspondam.»
«Cláusula Terceira
Local de trabalho
1 – O trabalhador exercerá as suas funções nas herdades que a empregadora solicitar.
2 – O trabalhador fica obrigado às deslocações eventualmente impostas pelas suas funções.»
«Cláusula Quinta
Início
1 – O presente contrato tem início em 02 de maio de 2018.».

2. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), celebrado entre a Autora e a 1ª Ré, transferiu esta para a Autora a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que envolvessem o trabalhador (…), cujas condições gerais, especiais e particulares encontram-se juntas à petição inicial como docs. n.º 1 e 2, aqui dados por integralmente reproduzidos.

3. A 1ª Ré adquiriu à 3ª Ré, fabricante e vendedora, o reboque da marca (…), Modelo Banheira Monocasco (…).

4. Tal modelo de reboque permite a abertura do taipal por dois tipos: a de todo o taipal, de forma basculante, o que apenas ocorre quando o reboque se encontra engrenado a trator e por ação deste; e, a das meias portas, abrindo por ação humana, uma para cada lado.

5. O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na sua parte superior, segurando cada cavilhão uma meia porta, o que permite que o mesmo basculhe ou que as meias portas sejam abertas [apenas uma ou as duas simultaneamente].

6. O reboque é dotado de dois fechos laterais [trancas ou patilhas] que têm de ser abertos, para permitir a abertura do taipal por basculamento.

7. Para além das trancas ou fechos, o reboque é equipado com quatro trincos que prendem a parte inferior do taipal, que se abrem automaticamente, quando o taipal é aberto por basculamento e se mantêm fechados quando o taipal é aberto manualmente pelas meias portas.

8. Para a abertura das meias portas não é necessário nem remover os dois fechos laterais nem os deixar acionados.

9. No dia 01 de outubro de 2018, (…) encontrava-se a exercer as suas funções laborais.

10. O reboque supra aludido, em estado novo, acabara de ser entregue pela 3ª Ré à 1ª Ré, nesse dia, transportando, no seu interior, quatro rodas suplentes.

11. Em sequência, o 2º Réu examinou o exterior do reboque, não detetando qualquer anomalia.

12. Em sequência, o 2º Réu, encarregado agrícola e superior hierárquico de (…), deu-lhe ordem para que este removesse as quatro rodas suplentes do interior do referido reboque, a fim de o começar a utilizar na instalação do sistema de rega na herdade em causa.

13. (…) procedeu à abertura da tranca do lado direito do taipal e, quando foi abrir a outra tranca, do lado esquerdo, o referido taipal caiu, atingindo o pé esquerdo do sinistrado, do que resultou o seu esmagamento.

14. O reboque foi entregue com os cavilhões/eixos de suporte do taipal inoperacionais.

15. Por essa razão, deu-se a queda do taipal quando (…) o tentou abrir, após destrancar os fechos laterais.

16. Caso os cavilhões/eixos de suporte estivessem operacionais, o taipal não teria caído.

17. Em data anterior à do acidente, (…) havia realizado as seguintes formações profissionais: i) segurança no trabalho: equipamentos de proteção coletiva e individual [3 horas]; ii) organização da segurança: evacuação de edifícios [4 horas]; iii) prevenção de incêndios [4 horas]; iv) gestão e prevenção de conflitos [7 horas]; v) prevenção de riscos no sector agrário [7 horas]; vi) sensibilização sobre segurança e saúde no trabalho [3 horas]; vii) primeiros socorros – suporte básico [7 horas]; viii) conduzir e operar com trator em segurança [50 horas].
18. O reboque foi entregue sem que a 3ª Ré fornecesse: i) manual de instruções redigido em língua portuguesa; e ii) registo de verificações e ensaios.

19. A 1ª Ré tem prevista a avaliação de riscos nos termos constantes do relatório e matriz juntos como anexo do doc. n.º 7 da petição inicial, aqui dados como integralmente reproduzidos.

20. (…) foi transportado de imediato para o hospital de Beja.

21. Do acidente resultou fratura exposta do metatarso de M1, M2, M3, M4 e M5 do pé esquerdo.

22. Para tratamento das referidas lesões, (…) foi submetido a cirurgia ao pé esquerdo, a redução cruenta/osteossíntese de M1 com parafuso e redução incruenta/osteossíntese de M2, M3, M4 com cavilha.

23. Foi realizada cirurgia plástica para enxerto de pele.

24. (…) teve alta clínica no dia 15/07/2019, tendo ficado com as seguintes sequelas: cicatriz dolorosa no dorso do pé esquerdo, com limitação da mobilidade e amplitude articular do metatarso, com inversão de 20% e eversão de 20%, bem como flexão plantar dolorosa nos extremos da mobilidade.

25. Do exposto, (…) ficou a padecer de uma incapacidade temporária absoluta no período compreendido entre o dia 02/10/2018 a 03/06/2019.

26. Padeceu, ainda, de uma incapacidade temporária parcial de 45% entre os dias 04/06/2019 a 24/06/2019.

27. E de uma incapacidade temporária parcial de 15% durante o período compreendido entre o dia 25/06/2019 e o dia 15/07/2019.

28. Por fim, foi-lhe, ainda, diagnosticada uma incapacidade permanente parcial de 15%.

29. Correu termos um processo especial emergente de acidente de trabalho sob o n.º 1096/19.7T8BJA, do Juízo do Trabalho de Beja do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, pelo acidente supra descrito, tendo (…), e a Autora, como entidade seguradora responsável, chegado a acordo, homologado por sentença transitada em julgado, juntos à petição inicial como docs. n.º 3 e 4, aqui dado por integralmente reproduzido, nos termos do qual a Autora foi condenada a pagar ao sinistrado uma pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível no valor de € 1.919,99, e despesas de transporte ao Gabinete Médico Legal de Beja, no valor de € 30,00.

30. A Autora pagou a (…) a quantia total de € 9.033,58, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho nos períodos compreendidos entre o dia 02/10/2018 a 15/07/2019.

31. A Autora pagou a quantia total de € 9.820,15, para pagamento de honorários, consultas, cirurgias e despesas médicas em geral, para tratamento das lesões sofridas por (…) em consequência do acidente sub judice.
32. A Autora pagou a quantia total de € 70,00, a título de despesas referentes a próteses e aparelhos.

33. A Autora pagou a quantia de € 30,00, a título de despesas de transporte do sinistrado.

34. A Autora pagou a quantia de € 132,60, a título de encargos provenientes da ação de acidente de trabalho.

35. A Autora pagou ao sinistrado a quantia de € 31.023,20, a título de remição de pensões.

36. A Autora pagou a quantia de € 1.451,72, a título de juros moratórios na sequência da sentença condenatória proferida na ação de acidente de trabalho. »

II.3.2.
O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:

«a) Que o acidente teria sido evitado com uma inspeção / verificação ao reboque completa e minuciosa aquando da sua receção pela 1ª Ré.

b) Que acidente se deveu a uma incorreta abertura do taipal pelo sinistrado.

c) Que o sinistrado não sabia, por não ter formação e por não ter recebido as instruções que ao caso competia, como proceder à abertura do reboque, pelo que, terá sido feita uma má avaliação dos riscos e condições de trabalho no local.

d) Que houve uma incompleta identificação e avaliação dos riscos pela 1ª Ré e 2º Réu na receção do reboque.»

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
II.4.1.
Nulidade da sentença
Neste segmento do seu recurso a apelante (…), SA argui as nulidades de sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, sustentando o seguinte: i. a sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão no que diz respeito à presunção de que se socorre para declarar como provado o facto n.º 14; ii. a sentença dá como provados os factos n.ºs 11 e 14 incompatíveis entre si e com a fundamentação apresentada pela sentença quanto aos mesmos.
Vejamos, desde já se adiantando que não assiste razão à apelante.
A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil - falta de especificação dos fundamentos de factos e de direito que justificam a decisão – é uma decorrência do dever de fundamentação das decisões judiciais com consagração constitucional (artigo 205.º/1, da Constituição da República) e que encontra reflexo no artigo 154.º do Código de Processo Civil, cujo n.º 1 estatui que «As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentados».
A fundamentação da decisão judicial é, portanto, um elemento essencial da mesma, permitindo que as partes fiquem elucidadas a respeito dos motivos da decisão e que aquela que ficou vencida possa impugnar, perante o tribunal superior, o(s) fundamento(s) da decisão que lhe foi desfavorável; a fundamentação permite, ainda, ao tribunal superior conhecer as razões determinantes da decisão para as poder apreciar no julgamento do recurso. Porém, «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 do art. 668.º»[1].
É jurisprudência pacífica que a nulidade em causa pressupõe que se omita completamente o cumprimento do dever de fundamentação previsto no artigo 154.º do CPC não se verificando perante uma fundamentação meramente deficiente. Uma eventual deficiência na fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto constitui uma irregularidade que pode ser suprida nos termos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, segundo a qual a Relação deve, mesmo oficiosamente, e quando nisso haja utilidade processual, determinar que não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. Desta forma, perante a deficiente fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, estando em causa um facto essencial para o julgamento da causa, deverá a Relação determinar a baixa do processo ao tribunal de 1.ª instância, a fim de ser suprido o vício, o qual não configura a causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do CPC.
No caso sub judice, analisando a sentença sob recurso, verifica-se que o tribunal a quo fundamentou de forma exaustiva o julgamento que formou quanto ao ponto de facto provado n.º 14; efetivamente, depois de declarar que aquilo que suporta o taipal (em si mesmo, fechado ou aberto) são os cavilhões superiores, que têm por função prender o taipal ao reboque, socorrendo-se, nomeadamente, das declarações de parte do legal representante da 3ª Ré, o julgador a quo veio a concluir que no caso o acidente ocorreu porque aqueles cavilhões estavam inoperacionais, como o demonstra o seguinte excerto da sentença: «Dos relatórios juntos aos autos [da A.C.T. produzido no âmbito da investigação do acidente de trabalho, e da G.E.P., produzido por conta da Autora] é indicada a inoperacionalidade dos cavilhões de suporte do taipal. E vem totalmente corroborada pelo teor das fotografias juntas aos autos [pelo que expressam – o cavilhão incompleto/sem cabeça – e pelo que não expressam – qualquer outro sinal de defeito do reboque]. Na verdade, foi a única explicação apresentada ao julgador em sede de prova. Frise-se que, nisto, até o próprio legal representante da 3ª ré concorda: a causa imediata do acidente foi o decepamento da parte exterior do cavilhão [a cabeça], por via do tal efeito gilhotina]. A prova é, pois, neste aspecto, unívoca: a causa imediata do acidente prendeu-se com a quebra do cavilhão.
(…)
Que – os cavilhões – estavam inoperacionais resulta da dinâmica do acidente, com a consequente rutura do sistema dos cavilhões, sem que se conheça qualquer factor externo que possa ter conduzido à queda do taipal. E, claro, além de relevar, pela negativa, a ausência de comprovação de qualquer contra-tese, como as supra aludidas, igualmente importa, sobremaneira, pela positiva, a consideração das circunstâncias de tempo e modo em que surgiu a queda do taipal. Ora, (i) o reboque era novo, (iii) tinha acabado de ser entregue, (iii) na primeira abertura do taipal, dá-se a sua imediata queda. (…)».
Resulta assim do exposto que não se verifica a nulidade de falta de fundamentação imputada pela apelante à sentença. De facto, o que a argumentação da apelante revela é a sua discordância com o julgamento do tribunal recorrido a propósito do ponto de facto acima mencionado, mas um eventual erro de julgamento não se confunde com a nulidade de sentença, a qual se prende com vícios de procedimento.

*
Para sustentar a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, apelante (…) invoca uma suposta contradição entre os factos julgados provados n.ºs 11 e 14 e entre eles e a fundamentação dos mesmos.

A nulidade prevista naquele normativo legal traduz-se numa contradição entre os fundamentos e a decisão, isto é, ocorre quando os fundamentos, seguindo um raciocínio lógico, devam conduzir a resultado decisório diverso. Conforme explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa[2], a nulidade em causa ocorre «quando existe incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente». Ainda a propósito deste vício de sentença escreveu-se no Ac. RL de 04.10.2011, proc. n.º 107/2001.L1-7, consultável em www.gsi.pt., o seguinte: «(…) a oposição entre os fundamentos e a decisão só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito da causa. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência, estar-se-á perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da ação».
Eventuais vícios da decisão sobre a matéria de facto não configuram, sem mais, a invocada causa de nulidade, desde logo porque, conforme explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[3], «a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do artigo 640.º e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cfr. os n.ºs 2 e 3 do artigo 662)».

Dito isto, concluímos que a alegação da recorrente não integra a previsão do artigo alínea c), do artigo 615.º/1, do CPC, ou seja, não se traduz numa contradição entre os fundamentos da sentença e o seu segmento decisório, antes e eventualmente, na invocação de um erro de julgamento de facto, a apreciar em sede de impugnação da decisão de facto.

*
Não padecendo a sentença recorrida das nulidades que lhe são imputadas, improcede totalmente este segmento da apelação.

II.4.2.
Impugnação do julgamento de facto
Prescreve o artigo 662.º, n.º 1, do CPC que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Na impugnação da decisão de facto visa-se obter uma reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância de forma a apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, quer por terem sido considerados assentes quando deveriam julgar-se não provados, quer por terem sido considerados não provados quando deveriam ter sido julgados assentes, de forma a alterar o sentido da decisão de mérito. Frisa-se que na sua avaliação o tribunal de segunda instância deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, dentro dos seus poderes de livre apreciação da prova dos meios probatórios (artigo 607.º/5, do CPC), deve introduzir na decisão de facto concretamente impugnada as modificações que se imponham. Ora essa “imposição” não se deve confundir com uma “substituição da convicção do julgador de cuja decisão se recorre pela convicção daqueles que esperam a decisão”; ao invés, essa modificação só se imporá se na decisão sob recurso ocorreu uma violação de qualquer dos passos para a formação da convicção do julgador, nomeadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção - assim, acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004 [Diário da República n.º 129/2004, Série II de 2004-06-02].
Dito isto, e voltando ao caso sub judice, quer a apelante (…), SA, quer a apelada (…) – Companhia de Seguros, SA impugnaram o julgamento de facto empreendido pelo tribunal de primeira instância.
A apelante (…), SA impugna o julgamento na parte relativa aos pontos de facto provados n.ºs 5O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na sua parte superior, segurando cada cavilhão uma meia porta, o que permite que o mesmo basculhe ou que as meias portas sejam abertas [apenas uma ou as duas simultaneamente] - 14O reboque foi entregue com os cavilhões/eixos de suporte do taipal inoperacionais -, 15. Por essa razão, deu-se a queda do taipal quando (…) o tentou abrir, após destrancar os fechos laterais -, 16 - Caso os cavilhões/eixos de suporte estivessem operacionais, o taipal não teria caído -, 18O reboque foi entregue sem que a 3ª Ré fornecesse: i) manual de instruções redigido em língua portuguesa; e ii) registo de verificações e ensaios.
A apelada (…), no seu recurso subordinado, impugna o julgamento do ponto de facto provado n.º 11 - Em sequência, o 2.º Réu examinou o exterior do reboque, não detetando qualquer anomalia
E ambas impugnam o julgamento dos factos não provados enunciados sob as a)O acidente teria sido evitado com uma inspeção/verificação ao reboque completa e minuciosa aquando da sua receção pela 1.ª Ré -, c)O sinistrado não sabia, por não ter formação e por não ter recebido as instruções que ao caso competia, como proceder à abertura do reboque, pelo que, terá sido feita uma má avaliação dos riscos e condições de trabalho no local – e d) - Houve uma incompleta identificação e avaliação dos riscos pela 1ª Ré e 2º Réu na receção do reboque.
Apreciando.
Facto provado n.º 5 – O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na sua parte superior, segurando cada cavilhão uma meia porta, o que permite que o mesmo basculhe ou que as meias portas sejam abertas [apenas uma ou as duas simultaneamente].
Na perspetiva da apelante o enunciado em questão «contém um erro sobre o funcionamento do reboque e contraria a prova pericial e documental, bem como os factos julgados provados sob os n.ºs 4 a 7, e que o doc. n.º 9 junto com petição inicial demonstra que as meias portas do reboque se encontram instaladas numa estrutura em U, não sendo suportadas por um cavilhão. Conclui, dizendo que o enunciado em questão deverá passar a ter a seguinte redação:
«O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na sua parte superior, o que permite que o mesmo basculhe; as meias portas estão apostas, por meio de dobradiças, numa estrutura em U integrante do taipal».
Vejamos.
A prova documental junta aos autos nomeadamente a reportagem fotográfica que consta do documento n.º 9 da petição inicial bem como os depoimentos das testemunhas (…), sinistrado, e (…), o qual fez averiguações, para a autora, relativas ao sinistro em causa nos autos e subscreveu o relatório da GEP anexo à petição inicial como documento n.º 9) revelam que as meias portas fazem parte de uma estrutura, chamada “taipal”, que está guarnecida por uma estrutura de aço que, por sua vez, tem cavilhões no topo superior que são fixos ao reboque. Donde, integrando as duas meias portas o dito taipal, o qual é seguro ao reboque, no topo superior, pelos referidos cavilhões, essa duas meias portas são, também elas, seguras pelos cavilhões (por integrarem aquela estrutura). O que foi corroborado também pelo réu (…) que disse em julgamento que «o que susta as portas quando elas se abrem são as cavilhas do topo, as de baixo só se movem quando a abertura do reboque é feita de forma basculante».
Donde não merecer censura o julgamento do tribunal recorrido contido no primeiro segmento do enunciado.
Defende ainda a apelante que «em momento algum é alegado, demonstrado ou provado, que para que as meias portas abram seja necessária qualquer ação dos cavilhões» e que elas abrem por ação do veio central existente na estrutura do taipal. Ora, de facto resultou da prova oral produzida nos autos que os cavilhões não contendem com a abertura das meias portas, no sentido de que para a abertura daquelas não é necessária qualquer ação sobre os cavilhões. Mas estes são necessários para que as portas abram em segurança, na medida em que são eles que fixam o taipal ao reboque e as postas estão integradas nesse taipal.
Donde a redação do enunciado em questão deverá passar a ser a seguinte: O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na sua parte superior, segurando cada cavilhão uma meia porta, o que permite que o mesmo basculhe ou que as meias portas sejam abertas [apenas uma ou as duas simultaneamente] sem que o taipal se desprenda do reboque.
*
Factos provados n.ºs 14O reboque foi entregue com os cavilhões/eixos de suporte do taipal inoperacionais -, 15. Por essa razão, deu-se a queda do taipal quando (…) o tentou abrir, após destrancar os fechos laterais -, e 16 - Caso os cavilhões/eixos de suporte estivessem operacionais, o taipal não teria caído.

Estes três enunciados de facto prendem-se com a causa do sinistro, pelo que serão analisados em conjunto. No que a eles respeita a apelante (…), SA sustenta que o ponto de facto provado n.º 14 não tem suporte probatório, fundando-se apenas em presunções, aduzindo que a prova testemunhal confirma que o reboque foi basculhado antes do acidente, «o que compromete a tese de que os cavilhões estavam inoperacionais no momento da entrega»; aduz que a decisão do tribunal a quo ignora que a 1ª ré e o 2º réu vistoriaram e aceitaram o reboque, sem detetarem qualquer anomalia e que se os cavilhões estivessem inoperacionais tal teria sido detetado na referida vistoria. Conclui a apelante, quanto a este ponto de facto, que o mesmo deverá passar a ter a seguinte redação: «O acidente ocorre após o reboque ter sido recebido e formalmente aceite pelos 1ºs e 2ºs réus». Quanto ao ponto de facto provado n.º 15 afirma a apelante que ele parte de uma conclusão errada, pois o taipal caiu devido à incorreta abertura das trancas laterais pelo sinistrado e não por falha dos cavilhões e que o mesmo deve ser eliminado e relativamente ao ponto de facto provado n.º 16 afirma que se trata de «uma suposição sem base factual» pois que não se provou que os cavilhões estavam inoperacionais», devendo, por isso, ser também eliminado do elenco dos factos provados.

Vejamos.

A dinâmica do acidente mostra-se descrita no ponto de facto provado n.º 13, o qual não foi impugnado: «(…) procedeu à abertura da tranca do lado direito do taipal e, quando foi abrir a outra tranca, do lado esquerdo, o referido taipal caiu, atingindo o pé esquerdo do sinistrado, do que resultou o seu esmagamento

Resulta, nomeadamente, da reportagem fotográfica anexa ao relatório da GEP (documento n.º 9 anexo à PI) que o taipal consiste na estrutura que fica na traseira do reboque constituída por duas meias portas que estão guarnecidas por uma estrutura em aço fixa ao reboque, no topo superior, por dois cavilhões, um em cada lado. Do ponto de facto provado n.º 5 decorre que o taipal – logo também as duas meias portas nele integradas – é seguro pelos dois cavilhões colocados, cada um deles, no topo do reboque. Donde, se o taipal caiu – como de facto sucedeu e não é controvertido – então os cavilhões não seguraram o taipal ao reboque. E a razão pela qual não cumpriram essa função é revelada por diversos meios probatórios produzidos nos autos, senão vejamos:

i. consta do relatório da GEP que, em declarações ao sr. perito-averiguador, (…) – que se encontrava no local do sinistro quando este ocorreu, disse o seguinte: «(…) Este reboque, do que nos apercebemos, tinha em falta umas cavilhas na parte superior que seguram a porta que estavam defeituosas motivo pela qual a porta caiu pois não estava segura. Reclamámos a empresa que veio fazer as modificações no reboque de forma a não acontecerem situações futuras, o que foi feito 1 ou 2 dias depois do acidente»; esta testemunha, em sede de julgamento, voltou a referir que os cavilhões não estavam fixos, que viu um deles caído dentro do reboque, e que nenhum deles tinha anilha. E a testemunha (…), sinistrado, referiu em julgamento que os cavilhões são o apoio principal do taipal, aquilo que o agarra ao reboque e «o que se viu foi que um dos cavilhões estava caído no solo do reboque e o outro estava quase a cair, ficou pendurado».

ii. a reportagem fotográfica anexa ao relatório da GEP contém as fotografias que foram fornecidas pela GNR e fotografias que foram tiradas ao reboque pelo sr. perito averiguador da GEP (testemunha …) quando este se deslocou ao local do acidente, o que sucedeu já em momento posterior ao da ocorrência do sinistro. Frisa-se que a testemunha (…) referiu que a sua deslocação ocorreu já depois de o fabricante ter intervindo no reboque, pois, caso contrário, não lhe teria sido possível repetir, como repetiu, o procedimento seguido pelo sinistrado na abertura das portas laterais sem que o taipal tivesse caído. E, adiantou esta testemunha que o taipal não caiu quando ele abriu as portas laterais. Numa das fotografias facultadas pela GNR ao sr. perito averiguador mostra-se assinalada a falta de um cavilhão no topo superior do reboque e numa outra também facultada pela GNR está fotografado o referido cavilhão com a legenda de que lhe falta uma anilha de freio, ou seja, uma anilha de segurança. Pese embora as fotografias facultadas pela GNR não se mostrem datadas, temos razões para supor que as mesmas foram tiradas logo após a ocorrência do acidente, pois que não só a testemunha (…) referiu em julgamento que as fotografias que lhe foram facultadas pelo GNR foram tiradas no dia do sinistro, como resulta das regras de experiência que as mesmas são tiradas quando a GNR se desloca ao local para tomar conta da ocorrência, portanto, em momento próximo ao eclodir do sinistro; acresce que a presença de um dos cavilhões no solo do reboque imediatamente após a ocorrência do acidente foi confirmada pelas testemunhas (…) e (…), como supra referimos. Por conseguinte, quando a GNR se deslocou ao local do sinistro, um dos cavilhões que suporta o taipal ao reboque no topo superior estava caído no solo do reboque e não tinha uma anilha de segurança, a qual permitiria evitar que o cavilhão se deslocasse para fora do orifício onde foi inserido, caiando no chão. Numa das fotografias tiradas pelo sr. perito averiguador ao reboque – dias depois do acidente – mostra-se inserida a seguinte legenda: «Cavilhas já reparadas pelo fabricante com novo método segurança, no caso um freio» (sublinhado nosso); e no relatório da GEP aquele perito averiguador escreveu o seguinte: «apurámos não houve negligencia do sinistrado na abertura da porta, pois aquando da análise fizemos o procedimento que nos referiu fazer e no caso a estrutura da porta não cedeu, pois as cavilhas que a seguram já se encontravam a fazer a sua função de forma segura». E este perito averiguador, em sede de julgamento, voltou a referir que tendo repetido o procedimento que o sinistrado lhe disse ter realizado aquando da ocorrência do sinistro, a estrutura da porta não cedeu porque o reboque já tinha sido intervencionado pelo fabricante.; ou seja, o fabricante já tinha introduzido nos ditos cavilhões um freio que impedia aqueles de se deslocarem para fora do orifício onde são inseridos de forma a segurar o taipal ao reboque.

iii. do relatório da A.C.T. constam os seguintes trechos: «O reboque não tinha os cavilhões/eixos de suporte superior do taipal na sua posição correta. O do lado direito traseiro havia caído, encontrando-se no solo do reboque, e o do lado esquerdo permaneceu na sua abertura (furo), embora deslocado da posição de suporte do taipal», «Uma avaria compatível com este tipo de acidente e que foi confirmada posteriormente, é a rutura/deslocação dos cavilhões/eixos de suporte do taipal»; e, em sede de julgamento, a testemunha (…), Inspetor do Trabalho e que subscreveu o relatório da A.C.T., quando questionado sobre a causa do sinistro, afirmou que o caixilho que fixa as portas ao reboque soltou-se por inteiro porque «um dos cavilhões não estava lá e o outro estava deslocado», acrescentando que «teria sido um problema de encaixe dos cavilhões e que ou os cavilhões foram mal montados na fábrica ou se desencaixaram no transporte», afirmando, ainda, que «se os cavilhões estivessem no sítio, o acidente não teria ocorrido».

Todos os meios probatórios acima referidos sustentam, portanto, a inoperacionalidade dos cavilhões que o julgador a quo julgou provada no ponto de facto n.º 14 e que foi alegada pela autora na respetiva petição inicial a par da seguinte factualidade: «Prosseguindo, o sinistrado procedeu à abertura da tranca do lado direito traseiro do taipal e, quando foi abrir a outra tranca ou fecho, do lado esquerdo traseiro, o referido taipal, por não ter nenhum mecanismo de segurança acoplado que o sustivesse, caiu, atingindo o pé esquerdo do sinistrado» (artigo 16.º da PI), «Para infortúnio de todos os envolvidos, o referido reboque padecia de uma série de anomalias que só foram detectadas após o acidente» (artigo 44º), «Sendo que, a avaria ou anomalia que esteve na origem do acidente e que foi posteriormente confirmada, prende-se com a ruptura dos cavilhões eixos de suporte superior do taipal» (artigo 45.º da PI).

Numa tentativa de atribuir o sinistro a uma causa diferente que não a “inoperacionalidade” dos cavilhões, diz a apelante que o funcionário da 3ª ré que procedeu à entrega e ao descarregamento do reboque em questão confirmou que ao ser descarregado o reboque, o mesmo foi acoplado a um trator da 1ª ré e que existiu um momento em que o reboque foi basculado, defendendo que o reboque foi experimentado pela 1ª ré através dos seus funcionários e pelo 2º réu e que esse teste de experiência com o reboque pode ter despoletado a quebra dos cavilhões, «por basculamento incorreto/não total do reboque». A tal respeito diz-se na sentença recorrida o seguinte: «(…) Foi inquirida a testemunha que retirou o reboque do camião da 3ª ré (…) e este disse não ter ocorrido qualquer basculamento. Igualmente, nem o 2º réu nem o sinistrado (…) o referiram. Ademais, o basculamento só é possível quando o reboque se encontra atrelado a um trator, o que apenas sucedeu quando (...) o retirou do camião da 3ª ré, pelo que não se vislumbra em que espaço temporal teria ocorrido esse basculamento (teria de ser presenciado por …). Apenas o maquinista da 3ª ré que trouxe o reboque para a herdade da 1ª ré (…) disse ter visto o final de um basculamento. Enfim, não se atribui grande credibilidade a tal narração, uma vez que não só vai ao arrepio das demais provas acabadas de referir, como das próprias regras de experiência. É que fica por explicar a razão pela qual teriam os funcionários da 1ª ré feito um basculamento e incompleto para, no exato momento a seguir, se pretender abrir manualmente o taipal para retirar do mesmo os pneus».

A fundamentação do julgador a quo para afastar a explicação apresentada pela testemunha (…) não nos merece censura, depois de ouvidos os depoimentos das testemunhas … (afirmou convincentemente que foi ele que descarregou o reboque, que o desengatou do trator e que o deixou estacionado no sítio onde ocorreu o acidente) e (…) afirmou que o reboque tinha acabado de chegar quando o seu superior lhe pediu para ir retirar do interior do mesmo os pneus sobressalente que lá se encontravam, o que revela que o sinistro ocorreu pouco tempo depois do reboque ter sido desengatado do trator, não se vislumbrando a oportunidade nem a razão para fazer um basculamento quando o reboque continha, tão só, quatro pneus. Aliás nas declarações que prestou ao perito averiguador da GEP (…) declarou o seguinte: «Tinha distribuído as tarefas ao (…), que no caso tinha que retirar umas rodas suplentes que se encontravam no interior do reboque tendo para tal que abrir a porta retirar as rodas para depois as guardar porque os reboques eram novos e haviam chegado a Herdade nesse dia». Acresce que das fotografias tiradas pela GNR no dia do acidente não se vislumbra que o reboque estivesse acoplado a qualquer trator e o basculamento exigiria que o estivesse.
De todo o exposto, se conclui pela improcedência da impugnação do julgamento de facto quanto aos pontos de facto provados n.ºs 14, 15 e 16.


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Facto provado n.º 18O reboque foi entregue sem que a 3.ª ré fornecesse: i) manual de instruções redigido em língua portuguesa; e ii) registo de verificação e ensaios.

Defende a apelante que deve ser julgado provado que «A 3ª ré entregou à 1ª ré o reboque com o respetivo manual de instruções». Para tal desiderato sustenta que tal resultou do depoimento da testemunha (…) e que na própria sentença recorrida se refere que (…), inspetor da A.C.T teve acesso a uma versão do manual em espanhol. Ora a apelante não põe em causa que não foi entregue um manual de instruções em língua portuguesa nem o registo de verificação e ensaios e foi essa factualidade que foi alegada no artigo 63.º da petição inicial. Por conseguinte, improcede a impugnação quanto a este ponto de facto. De qualquer modo, sempre se dirá que de trata de facto inócuo para a decisão da causa, na medida em que não se provou que a ausência do manual de instruções tenha sido a causa ou tenha contribuído para a eclosão do sinistro.


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Facto provado n.º 11 - Em sequência, o 2º Réu examinou o exterior do reboque, não detetando qualquer anomalia.

Defende a apelada … (e recorrente do recurso subordinado) que o enunciado em questão deverá passar a ter a seguinte redação: «Em sequência, o 2º réu apenas examinou o exterior do reboque, não tendo conseguido detetar o defeito existente nos cavilhões superiores que suportavam o taipal». Para tal desiderato invoca os depoimentos das testemunhas (…), inspetor da A.C.T, e do réu (…), superior hierárquico do sinistrado, logo funcionário da 1ª ré.

O enunciado em causa reporta-se à verificação do reboque que efetivamente ocorreu no dia do sinistro e não há verificação do reboque que deveria ou poderia ter sido feita. Donde, o depoimento da testemunha (…), inspetor geral do trabalho, que não estava no local quando o acidente ocorreu, ser irrelevante para o enunciado em apreço. Foi a testemunha (…) quem efetuou a verificação do reboque. Assim o assumiu em sede de julgamento, tendo dito que fez uma vistoria geral ao reboque pelo exterior e não se apercebeu de qualquer defeito nos cavilhões; e foi isso que ficou consignado no enunciado em questão, pelo que a sua redação não merece censura. Frisa-se, no entanto, que a apelante/ré nunca alegou na sua petição inicial que a verificação deveria ter sido feita também pelo interior do reboque ou que uma mera verificação exterior não permitia perceber o defeito dos cavilhões.

Por conseguinte, improcede este segmento da impugnação de facto.


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Factos não provados constantes da alínea a) - O acidente teria sido evitado com uma inspeção/verificação ao reboque completa e minuciosa aquando da sua receção pela 1ª Ré -, c)O sinistrado não sabia, por não ter formação e por não ter recebido as instruções que ao caso competia, como proceder à abertura do reboque, pelo que, terá sido feita uma má avaliação dos riscos e condições de trabalho no local – e d) - Houve uma incompleta identificação e avaliação dos riscos pela 1ª Ré e 2º Réu na receção do reboque.
Defende a apelante que os enunciados de facto constantes da alínea a), c) e d) devem transitar tal qual para o elenco dos factos provados.

Liminarmente se dirá que o enunciado de facto constante da alínea d) contém um juízo de natureza conclusiva que não decorre quer da factualidade contida na respetiva redação quer de qualquer ponto de facto julgado provado. Ora, julgamos ser entendimento pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores que as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Embora não conste do Código de Processo Civil vigente uma norma como a do artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil de 1961, que considerava não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito», decorre do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC que na sentença são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual e resulta do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC que o tribunal da relação deve considerar não escritos os enunciados da matéria de facto que contenham juízos conclusivos e genéricos e matéria de direito. É também jurisprudência pacífica dos tribunais superiores que os enunciados de facto (provados e não provados) não devem conter afirmações de natureza conclusiva que integrem o thema decidendum. Entende-se, como tal, o conjunto de questões de natureza jurídica que constituem o objeto do processo. E que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta, àquelas questões, tal ponto do enunciado deve ser eliminado – neste sentido, entre outros, Ac. RP de 09.03.2020, processo n.º 3789/15.9T8VFR.P1, consultável em www.dgsi.pt. Ora o enunciado em questão integra o thema decidendum na medida em que a autora defendeu na sua petição inicial (e continua a defender no seu recurso subordinado) que a ré (…) – Atividades Agrícolas, Lda. deve ser condenada também no pedido porque o sinistro ficou «a dever-se à inobservância das mais elementares regras de segurança por parte da primeira ré bem como do seu encarregado, responsável pelo sector agrícola, o aqui 2º Réu». Por conseguinte, improcede a impugnação quanto ao enunciado constante da alínea d).

Quanto ao enunciado constante da alínea a), também ele contem um juízo de natureza conclusiva, que não tem suporte factual na respetiva redação e que, além mais, contém questão que integra o thema decidendum, pelo que não pode transitar para o elenco dos factos provados como pretende a apelante, improcedendo a impugnação no que a ele respeita.

Quanto ao ponto de facto não provado constante da alínea c) resultou da prova oral produzida em julgamento, concretamente dos depoimentos das testemunhas (…) e (…) que o sinistrado sabia como proceder à abertura das meias portas do reboque pois já o fizera antes. (…) afirmou e depois do sinistro continuaram a abrir a porta do reboque da mesma forma, que é a forma segura de abrir as portas: destrancar as cavilhas laterais, que são trancas de segurança, e depois abrem as portas. E acrescentou que «o acidente poderia ter acontecido consigo porque teve a ver com os cavilhões». Também a testemunha (…) afirmou que ele próprio abriu as meias portas da mesma forma que o sinistrado lhe dissera que as abrira no dia do sinistro e que não houve problema, o taipal não caiu. Isso mesmo foi consignado no relatório da GEP de onde se extrai o seguinte trecho: «apurámos não houve negligencia do sinistrado na abertura da porta, pois aquando da análise fizemos o procedimento que nos referiu fazer e no caso a estrutura da porta não cedeu, pois as cavilhas que a seguram já se encontravam a fazer a sua função de forma segura».

Diz-se na sentença sob recurso o seguinte: «(…) não se prova igualmente que o acidente se deveu à falta de formação e informação adequada ao sinistrado no manuseamento do equipamento fornecido pela 3ª ré. O sinistrado não podia remover os fechos laterais e proceder à abertura das meias portas em segurança? Podia. Disse o próprio que sempre o fez e continuou a fazer após o acidente. Aliás, como já supra dito, nem o manual de instruções o prevê. Novamente: o risco que se concretizou no acidente [o defeito no reboque por inoperacionalidade dos cavilhões superiores] não substituía, em si, a formação sobre o manuseamento de reboques, designadamente a formação em “segurança de equipamentos e alfaias agrícolas» pois são formações distintas, como explicou (…), inspetor da A.C.T. , e pese embora a ação de formação de condução de trator efetivamente realizada pelo sinistrado não haja implicado o manuseamento de taipais idênticos ao do reboque em causa nos autos [com meias portas], como disse o próprio, tudo isso é algo inócuo.» Concorda-se integralmente com esta fundamentação.

Improcede, pois, a impugnação quanto ao enunciando em apreço.

DECISÃO

Em face do exposto, procede parcialmente a impugnação do julgamento de facto e, em conformidade, determina-se que a redação do ponto de facto provado n.º 5 passe a ser a seguinte: «O taipal deverá estar preso ao reboque por dois cavilhões/eixos, que estão colocados na sua parte superior, segurando cada cavilhão uma meia porta, o que permite que o mesmo basculhe ou que as meias portas sejam abertas [apenas uma ou as duas simultaneamente] sem que o taipal se desprenda do reboque».

II.4.3.
Do Direito
A sentença sob recurso condenou a 3ª Ré (…), SA no pagamento à autora da quantia de € 51.428,65 [cinquenta e um mil quatrocentos e vinte e oito euros e sessenta e cinco cêntimos], acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal civil desde a citação até integral pagamento, e absolveu os demais réus daquele pedido, por ter considerado que a responsabilidade pela ocorrência do acidente em causa nos autos deve ser imputada exclusivamente àquela ré, por ter fabricado e posto em circulação um reboque não operacional e de cuja inoperacionalidade resultou a queda do taipal que esmagou o pé esquerdo do sinistrado.
Não é controvertido que, à data do sinistro em causa nos autos: i. a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que envolvessem o sinistrado (…), à data funcionário da ré (…) – Atividades Agrícolas, Lda., se encontrava transferido para a autora por contrato de seguro; ii. o sinistro consistiu num acidente de trabalho; e iii. a autora satisfez a pretensão indemnizatória ao lesado.
Aquilo que é contestado pela apelante (…), SA é a imputação da responsabilidade pela ocorrência do sinistro a ele própria, defendendo no recurso que interpôs que o acidente ocorreu devido «a erro humano na abertura das trancas laterais aliado à falta de formação do sinistrado, e nunca à alegada inoperacionalidade dos cavilhões» e que a sentença recorrida «interpretou erradamente o artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09 e o regime da responsabilidade objetiva do D/L n.º 383/89, de 06.11, na medida em que «o regime da responsabilidade civil do produtor não dispensa a prova do dano que cabe à Autora demonstrar e a decisão recorrida apenas presume a existência de um defeito sem prova cabal que o sustente, violando ónus da prova» e que «não ficou provado que o acidente decorreu exclusivamente de um defeito do produto pelo que a apelante não podia ser condenada com base na responsabilidade objetiva». Já a Companhia de Seguros (…) defende, no seu recurso subordinado, que da alteração da matéria de facto que preconiza resulta que a 1ª ré é co-responsável pelo eclodir do sinistro porque sendo a entidade empregadora do sinistrado não procedeu a uma avaliação dos riscos e condições de trabalho no local, pelo que deve ser condenada juntamente com a 3ª ré.
Na sentença do tribunal recorrido, na parte que ora releva, escreveu-se o seguinte: «(…) indo diretamente à questão central: provou-se que o acidente se deveu a desconformidade do reboque entregue pela 3ª ré, e não a violação das regras de segurança por parte da 1ª ré, entidade patronal do sinistrado, desrespeitadas, in loco, pelo 2º réu, seu representante, ou à falta de formação do sinistrado. Destarte, inexiste possibilidade de imputação à esfera jurídica dos 1º e 2º Réus dos prejuízos sofridos pela Autor. O risco materializado no acidente [o defeito havido no reboque que não tinha os cavilhões de suporte superior do taipal operacionais] em nada se prendeu com alguma falta de formação do sinistrado [que só tinha as formações provadas no ponto 17, ou seja, nenhuma específica sobre manuseamento de reboques, designadamente a formação em segurança de equipamentos e alfaias agrícolas] nem com alguma quebra de segurança da 1ª Ré ou incorreta ordem provinda do 2º réu. Noutra perspetiva: da factualidade provada, nada traz implicada a imputação da causa do acidente a qualquer comportamento, ainda que omissivo, por parte dos 1º e 2º réus.
Relativamente à 3ª Ré, na precisa medida inversa, existe óbvia responsabilidade objetiva, nos termos do artigo 1.º do D/L n.º 383/89, de 06 de novembro [o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeito dos produtos que põe em circulação] ao ter fabricado e posto em circulação um reboque não operacional e de cuja inoperacionalidade resultou a queda do taipal. Defeituoso, pois, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do citado diploma [um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação].»
Esta fundamentação do tribunal recorrido não nos merece qualquer censura na medida em que ela tem suporte na factualidade julgada provada. Ainda assim sempre diremos o seguinte.
O artigo 1.º do D/L 383/89, de 06.11[4] dispõe que o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos por defeitos dos produtos que põe em circulação.
Não é controvertido que neste preceito legal está consagrado o princípio da responsabilidade objetiva do produtor: ou seja, a culpa não constitui pressuposto da responsabilidade por produtos defeituosos, nem enquanto culpa provada nem como culpa presumida; desde que se prove o dano, o defeito e o nexo de causalidade entre o dano e o defeito, a vítima de produtos defeituosos tem direito a ser indemnizada em certos termos, em nada adiantando ao fabricante a prova de que agiu sem culpa ou de que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse atuação culposa da sua parte. Donde, a vítima de produtos defeituosos tem de alegar e provar o dano, o defeito e o nexo de causalidade entre um e outro, mas não já a culpa, nem sequer a ilicitude da conduta do produtor, pois estes não são elementos constitutivos ou pressupostos da responsabilidade objetiva[5].
O facto gerador da responsabilidade objetiva do produtor é o defeito do produto que põe em circulação e não a aptidão ou idoneidade deste para a realização do fim a que é destinada[6].
Nos termos do disposto no artigo 4.º do diploma legal que vimos citando, um produto é defeituoso quando «não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação».
A “segurança” constitui a pedra de toque para o conceito de “defeito” à luz do referido artigo 4.º. Ou seja, a noção de defeito é a falta de segurança do produto. A falta de segurança «com que se possa legitimamente contar», ou, dito de outra forma, a «segurança esperada e tida por normal nas conceções do tráfico do respetivo setor de consumo»[7].
No artigo 3.º do D/L n.º 69/2005, de 17.03[8] define-se como “produto seguro” «qualquer bem que, em condições de utilização normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em erviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado nível de proteção da saúde e segurança dos consumidores, tendo em conta, nomeadamente: i) As características do produto, designadamente a sua composição; ii) A apresentação, a embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem, de utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais advertências ou outra indicação de informação relativa ao produto; iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua utilização conjunta; iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições de maior risco ao utilizar o produto, especialmente crianças e os idosos». Também aqui, o cerne da noção de defeito é a falta de segurança que é legitimamente esperada do produto.
Por fim, a responsabilidade civil do produtor diz respeito aos danos causados pelos defeitos dos produtos circulantes no mercado, ou, dito de outra forma, para que o produtor seja responsabilizado pelos danos causados pelo produto defeituosos é necessário que o mesmo o tenha posto em circulação [cfr. artigos 1.º, 5.º, alíneas b) e c), do D/L 383/89].
Um produto é posto em circulação no momento em que o produtor, consciente e voluntariamente, o lança no tráfico para comercialização, o entrega voluntariamente a terceiro com o correlativo poder de disposição, de direção e de controlo. E isto será assim, também quando o negócio implicar o envio da coisa para lugar diferente do cumprimento, a expedição para o adquirente basta para se poder falar de produto posto em circulação, porque é sinal que o produtor entende que o produto reúne as condições de segurança para uso e porque a partir desse momento deixa de ter, por via d e regra, o domínio de facto sobre o produto.
No caso em apreço a apelante (…), SA põe em causa no seu recurso a existência de defeito do reboque e que tenha sido esse defeito que originou o sinistro em causa nos autos. O que é completamente contraditado pela factualidade julgada provada, da qual emana que o reboque foi entregue com os cavilhões/eixos que estão colocados na sua parte superior, e que têm por função fixar o taipal ao reboque, inoperacionais na medida em que não estavam em condições de segurar o taipal ao reboque e, por essa razão, deu-se a queda do taipal quando (…) o tentou abrir, após destrancar os fechos laterais, caindo sobre o pé esquerdo daquele, esmagando-o. Resulta da factualidade julgada provada que foi a referida deficiência do reboque e apenas ela que propiciou o acidente e a produção dos danos sofridos pelo sinistrado e que a autora teve de indemnizar, enquanto seguradora. A autora logrou provar, como lhe competia, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, que a fabricante do reboque colocou em circulação um produto que não apresentava as condições de segurança legitimamente esperadas, porque os cavilhões – dispositivos que seguram, no topo, a estrutura traseira do reboque, ou taipal, ao reboque – não estavam aptos a desempenhar aquela função de fixação [porque lhes faltava uma anilha de segurança que impedisse de eles se deslocarem] e que, em consequência dessa “inoperacionalidade” dos cavilhões, o taipal caiu, esmagando o pé do sinistrado, não se tendo provado qualquer outras circunstâncias que tenham concorrido para a eclosão do sinistro e suscetíveis de quebrar o nexo de causalidade entre o defeito do reboque e o dano que a queda do mesmo ocasionou.
Quanto à pretensão da recorrente (…), o julgamento de facto não permite imputar qualquer responsabilidade pela ocorrência do acidente aos 1º e 2º Réus, pois não se provou que estes tenham contribuído para a verificação do sinistro com alguma conduta negligente, remetendo-se para a fundamentação do julgador a quo a qual acima de transcreveu.
Em face do exposto, improcede a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.
As custas na presente instância relativamente ao recurso principal são da responsabilidade da apelante, sendo que a este título apenas é devido o pagamento de custas de parte pois mostra-se paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual, e as custas relativas ao recurso subordinado são da responsabilidade da Companhia de Seguros (…), sendo que a esse título apenas são dividas custas de parte porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual.

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Notifique.
DN.
Évora, 16 de outubro de 2025
Cristina Dá Mesquita
Mário João Canelas Brás
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite




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[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, 3.ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 140.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, Almedina, pág. 794.
[3] Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 734.
[4] Este diploma legal transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 85/374/CEE em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.
[5] João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Coleção Teses, Reimpressão, 1999, pág. 496.
[6] João Calvão da Silva, ob. cit., pág. 634.
[7] João Calvão da Silva, ob. cit., pág. 636.
[8] Que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de dezembro, relativa à segurança dos produtos.