1. Independentemente de outros danos que eventualmente se provem, o lesado tem direito a ser indemnizado pelo simples facto de ter sido temporariamente privado do seu poder de disposição e de utilização sobre um concreto bem, a menos que se demonstre que aquele não tem qualquer interesse nas utilidades normais do bem ou que, por circunstâncias estranhas ao âmbito do domínio, o lesado não tenha qualquer possibilidade de utilização do bem.
2. No que respeita ao quantum da indemnização devida pelo dano de privação de uso, quando haja sido feita a prova de danos concretos gerados pela privação de uso (v. g. o pagamento de um aluguer de uma viatura de substituição), a indemnização daqueles danos calcula-se segundo a teoria da diferença, nos termos do disposto no artigo 566.º/2, do Código Civil); caso não se tenham provado danos concretos, há que recorrer ao critério da equidade, previsto no artigo 566.º/3, do Código Civil (quer se haja presumido a ocorrência de danos concretos a partir da prova do uso regular do bem quer se admita a reparação da mera privação do uso do bem, independentemente da prova do uso regular do bem ou da prova de danos concretos).
(Sumário da Relatora)
2. Na sequência do contacto referido em 1, (…) foi a casa da A. para averiguar o tipo de veículo em que esta estaria interessada e disse-lhe que tinha um veículo BMW 320 para venda.
3. A Autora informou (…) de que não dispunha de dinheiro para pagar o valor remanescente do preço e de que necessitava de recorrer ao crédito.
4. Na sequência do referido em 3, (…) disse à Autora que trataria do pedido de crédito, para o que fotografou os documentos da Autora.
5. Após o referido em 2, (…) enviou à A. fotos da viatura automóvel da marca BMW, modelo 320D, com a matrícula (…), tendo a A. manifestado interesse em adquirir aquele veículo.
6. A Autora. acordou com (…) entregar-lhe, a título de retoma e para abatimento no preço acordado para compra do automóvel referido em 5, uma viatura automóvel da marca Renault, modelo Clio, da sua propriedade.
7. No dia 19-07-2019, (…) encontrou-se com a Autora e levou a viatura identificada em 5 para esta ver presencialmente.
8. Na ocasião referida em 7, (…) apresentou à Autora um documento com o teor do doc. 2 da petição inicial, denominado «Contrato de crédito (…) proposta/contrato n.º (…)», que esta assinou, no qual se podia ler, além do mais, o seguinte:
«Identificação do(s) Cliente(s):
1.º Titular: Nome: (…)
(…)
Tipo de crédito, bem financiado e fornecedor:
Tipo de crédito: com reserva de propriedade e outros; usados
Tipo de bem: automóveis de passageiros usados
Marca e modelo: BMW Série-3 Diesel 320 d | Matrícula: (…) | Ano: 1999
Preço a pronto/PVP: € 5.350,00 |Montante solicitado: € 5.350,00 (…)
Designação do Fornecedor: (…), Business, Unipessoal, Lda. | NIF: (…)
(…)
Identificação do Intermediário de Crédito:
Designação do Intermediário: (…), Lda. | NIF (…)
(…)
Características e custo do crédito e condições de reembolso:
Montante total de Crédito: € 6.115,88 | Extenso: Seis Mil e Cento e Quinze Euros e Oitenta e Oito Cêntimos
Regime de Taxa de Juros – Taxa Fixa X (…) | TAN: 9,431% | TAEG: 12,4%
Juros Remuneratórios: € 2.362,24 | Imp. Selo (verba 17.2 da TGS) € 146,70 (…)
Prémio Seg. Proteção ao Crédito Facultativo € 619,80 | Comissão Processamento Prestação: € 3,50 (por cada prestação)
Custo Total do Crédito: € 3.422,12 | Montante Total Imputado Consumidor € 8.772,12 | Tipo de Prestações: Postecipadas e Constantes
(…)
Montante da Prestação: € 100,93 | N.º Prestações: 84 |Periodicidade: Mensal (…) |Duração: 84 (meses)
Entidade a creditar: Fornecedor
(…)
Condições Gerais
Entre o Banco (…) e o(s) Cliente(s) identificados nas Condições Particulares é celebrado o presente contrato que se rege pelo disposto nas Condições Particulares e nas Condições Gerais seguintes:
. Definições
1.1. Para efeitos do presente entende-se por:
Banco: Banco …, S.A. (…)
Cliente: pessoa identificada como tal nas CP, que é consumidor tal como definido no DL 133/2009, de 2/06 e subscreve o contrato. Indistintamente, Primeiro Titular ou Segundo Titular, nas CP.
(…)
Fornecedor: o vendedor do bem ou prestador dos serviços indicado nas CP adquirido pelo Cliente
(…)
Intermediário de Crédito: pessoa, singular ou coletiva, identificada como tal nas CP, que no exercício da sua atividade comercial ou profissional apresenta ou propõe o Contrato ao Cliente e presta assistência relativa a outros atos preparatórios.
Montante Total do Crédito: montante máximo disponibilizado para utilização pelo Cliente ao abrigo do Contrato.
Montante Total Imputado ao Consumidor (MTIC): a soma do Montante Total do Crédito e do Custo Total do Crédito para o Cliente.
Suporte Duradouro: papel ou qualquer outro instrumento que permita ao destinatário armazenar informações que lhe sejam pessoalmente dirigidas, de modo que, no futuro, possa ter acesso fácil às mesmas, durante um período de tempo adequado aos fins a que se destinam e que permita a reprodução inalterada das informações armazenadas.
Taxa Anual Nominal (TAN): taxa de juro, expressa numa percentagem, a qual pode ser fixa ou variável (consoante o regime definido nas CP), aplicada numa base anual ao montante de crédito utilizado.
Taxa Anual de Encargos Efetiva Global (TAEG): custo total do crédito para o Cliente, expresso em percentagem anual do montante total do crédito, calculada, na data da elaboração do contrato, de acordo com o DL n.º 133/2009, de 02/06. O prémio de seguro facultativo, quando contratado, e emolumentos do registo de automóveis, que seriam suportados pelo Cliente na aquisição do veículo independentemente da celebração do contrato de crédito, se aplicáveis, não são considerados.
(…)
2. Objeto
Através do Contrato, o Banco concede ao Cliente, que aceita, o empréstimo pelo Montante Total de Crédito especificado nas CP, destinado a financiar a aquisição de bem, para uso ou consumo do Cliente, de modo a satisfazer as suas necessidades pessoais ou familiares.
3. Utilização de fundos
3.1. O crédito concedido ao Cliente ao abrigo do Contrato é objeto de uma única utilização e, de acordo com o estabelecido nas CP, é entregue, diretamente ao Cliente, ou, em nome e por conta do Cliente, diretamente ao Fornecedor, na data de aprovação do crédito.
3.2. A entrega ao Cliente, deduzido de eventuais encargos da responsabilidade do Cliente, ou a entrega ao Fornecedor, para pagamento (da totalidade ou parte) do preço do bem ou serviço indicado nas CP, deduzido de eventuais encargos da responsabilidade do Cliente, configura a utilização do crédito pelo Cliente.
4. Confissão de dívida
O Cliente confessa-se, desde já, devedor da quantia mutuada, obrigando-se a reembolsá-la ao Banco acrescida dos respetivos juros remuneratórios, encargos, comissões e despesas, bem como dos juros moratórios e indemnizações a que eventualmente haja lugar, nos termos do Contrato.
(…)
6. Juros
6.1. O regime da taxa de juros aplicável é o estipulado nas CP e, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o capital em divida vence juros à taxa estipulada nas CP.
6.2. No regime de taxa fixa, a TAN aplicável é a indicada nas CP e manter-se-á inalterada, sem prejuízo do disposto acerca das alterações supervenientes. No regime de taxa fixa, podem ser acordadas TAN diferenciadas para períodos parciais, caso em que ambas são indicadas nas CP, com o correspondente período parcial para o qual cada uma delas é definida.
(…)
10. Garantias, titulação e pacto de preenchimento
10.1. Para garantia de todas as responsabilidades do Cliente emergente do Contrato, suas eventuais alterações, prorrogações ou reestruturações, compreendendo capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões e demais encargos, o Cliente presta as garantias indicadas nas CP.
(…)
10.5. Caso a reserva de propriedade esteja prevista nas CP, o Cliente declara, expressamente, que a quantia mutuada através do Contrato se destina ao cumprimento da obrigação de pagar o preço do bem identificado nas CP ao Fornecedor e que o Banco fica sub-rogado nos direitos do Fornecedor, transmitindo-se para o Banco todas as garantias e acessórios do crédito do Fornecedor, designadamente, a reserva de propriedade estipulada sobre o bem alienado até ao integral cumprimento do Contrato coligado, adquirindo o Banco, todos os poderes que competiam ao Fornecedor.
(…)
15. Contratos Coligados
15.1. A coligação de contratos implica que a invalidade ou a ineficácia do Contrato (de crédito) se repercuta no Contrato Coligado, e por sua vez, a invalidade ou a revogação deste se repercuta, na mesma medida, no Contrato (de crédito).
15.2. Em caso de incumprimento ou de desconformidade no cumprimento do Contrato Coligado, o Cliente que, após interpelação tempestiva, nos termos do DL 67/2003, de 08/04, ao Fornecedor, não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao cumprimento do Contrato Coligado (de compra e venda), pode interpelar o Banco, através de Suporte Duradouro, para exercer qualquer uma das seguintes pretensões:
a) A exceção de não cumprimento do Contrato de crédito;
b) A redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço,
c) A resolução do Contrato de crédito.
15.3. O Cliente não fica obrigado a pagar ao Banco o montante correspondente àquele que foi recebido pelo Fornecedor caso se verifique uma redução do montante de crédito em montante igual à redução do preço nos termos da alínea b) do número anterior, ou caso o Contrato de crédito seja resolvido nos termos da alínea c) do número anterior.
(…)
22. Perfeição do contrato
22.1. O Contrato considera-se perfeito na data de recepção pelo Banco de um exemplar devidamente assinado por todos os demais intervenientes, enquanto contraentes que assinam por último, e a concessão do crédito fica sujeita à verificação dos documentos de instrução e aprovação por parte dos órgãos competentes do Banco.
22.2. Para o efeito previsto na parte final do número anterior, o Banco verifica as informações e documentação disponibilizada pelo Cliente e analisa a solvabilidade do Cliente e se for caso do Garante, desenvolvendo as diligências que considere adequadas para tais fins, incluindo designadamente a consulta à Central de Responsabilidade de Crédito assegurada pelo Banco de Portugal, à (…) e lista pública de execuções.
22.3. A não recepção do exemplar do Contrato pelo Banco, nos termos do número um da presente cláusula, após o decurso de 30 dias sobre a data da sua elaboração importa a caducidade da proposta.
(…)
DECLARAÇÕES DO(S) CLIENTE(S)
Consinto(imos) expressamente que o crédito disponibilizado seja entregue, por minha (nossa) conta, diretamente à entidade a creditar identificada nas Condições Particulares, configurando essa entrega a minha (nossa) própria utilização do crédito.
(…)
Declaro(amos) aceitar todas as condições gerais e particulares do Contrato e declaro(amos) que me(nos) foi entregue individualmente exemplar(es) do Contrato, na data de assinatura.
Antes de o assinar, foi-me(nos) individualmente prestada assistência, designadamente, os esclarecimentos necessários à compreensão do contrato, seus efeitos e consequências do seu eventual incumprimento, bem como me(nos) foi entregue individualmente a FIN ‘Ficha de Informação Normalizada Europeia em Matéria de Crédito a Consumidores’.
(…)».
9. Aquando da assinatura do documento referido em 8, a Autora compreendeu, pelo menos, que o documento em causa se destinava a contrair um empréstimo e que ficaria a pagar uma prestação de cerca de € 100,00 mensais durante 7 anos.
10. O valor de € 5.350,00 referido em 8 como correspondendo ao «capital solicitado», foi financiado à Autora pela (…) e entregue de imediato pela (…) à Ré (…).
11. Em 29-07-2019 a Ré (…) emitiu a seguinte declaração, que foi entregue à Autora por (…):
«DECLARAÇÃO DE CIRCULAÇÃO
(…) – (…), Business, Unipessoal, Lda. – Comércio de Automóveis, com sede na Estrada Nacional n.º (…), (…), 2350-472 Torres Novas, declara que, para fins convenientes e em especial para fazer fé perante as autoridades de trânsito, vendeu um veículo – Marca BMW, Modelo 320D, cilindrada 2000, matrícula (…) do ano de 1999 mês Março (…) n.º de quadro (…); combustível Diesel; cor Preta (…) ao Exm.º Sr.º/Sr.ª (…), residente em Rua (…), n.º 32, (…) 2000-337 Caldas Rainha.
Mais informo que o processo de averbamento se encontra na Conservatória do Registo Automóvel para regularização (Nota autorizada pela Direcção das contribuições por despacho de Exm.º Secretário de Estado do Orçamento).
(…)
29 de julho de 2019
Esta declaração destina-se a substituir a documentação da viatura acima referida até prazo que não deverá exceder os 60 dias a contar da data de compra.»
12. No dia 09-08-2019 foi inscrita a constituição, pela Autora, de uma reserva de propriedade sobre o automóvel BMW identificado em 5 a favor de «Banco (…), S.A..
13. Em 18-09-2019 o Banco (…) enviou à Autora cópia do documento referido em 8.
14. No início de fevereiro de 2020, foi realizado um diagnóstico ao veículo referido em 5, foi reparada a fechadura da sua porta dianteira esquerda e efetuada mudança de óleo dos travões.
15. A Autora pagou a quantia de € 271,41 pelos serviços referidos em 14.
16. Em data não apurada, mas anterior a dia 19-05-2020, quando a Autora se deslocava a uma Clínica sita nas Caldas da Rainha, o veículo referido em 5 parou de repente, devido a um problema na bomba injetora.
17. Na senda do referido em 16, a bomba injetora do veículo referido em 5 teve de ser substituída.
18. A reparação referida em 17 teve um custo de € 1.236,51.
19. Foi a Autora que pagou o valor referido em 18.
20. A reparação da avaria referida em 16 demorou, pelo menos, 2 dias, durante os quais a Autora ficou privada do uso do veículo.
21. No início do mês de julho de 2021, foram diagnosticados problemas na cabeça da junta do veículo referido em 5.
22. Em 19-07-2021, a Autora, através de advogada por si mandatada, enviou à Ré (…) uma carta registada com aviso de receção, dirigida a esta Ré, para a morada «Estrada Nacional n.º (…), (…), 2350-472 Torres Novas», com o assunto «Garantia Automóvel BMW 320D (matrícula …)» e o seguinte teor:
«Exmos. Senhores
Encontro-me Mandatada pela D. (…), para interceder junto de V. Exas. relativamente à venda do veículo automóvel da Marca BMW 320D, com a matricula (…), efectuada por Vós no dia 29 de Julho de 2019, conforme cópia da Declaração de Circulação em anexo.
Tal veículo, como sabem, desde logo apresentou desconformidades relativamente ao estado do mesmo apresentado no momento da venda, senão vejamos:
1. Aquando da revisão efectuada na BMW de Caldas da Rainha, em Fevereiro de 2020, foi a minha Cliente informada que o sistema eletrónico do mesmo estava desactivado, o que se traduzia, entre outras coisas, no facto dos airbags não funcionarem em caso de acidente!
2. Mais tarde, em Maio desse mesmo ano, e quando a minha Cliente se preparava para ir trabalhar, o carro parou de repente, tendo sido diagnosticado um problema na bomba injectora, a qual teve de ser substituída, conforme factura (…), cuja cópia segue em anexo.
À data, a minha Cliente entrou em contacto convosco a expor a situação, cumprindo assim o estipulado no n.º 2 do artigo 5.°-A do Decreto-Lei n.º 84/2020, de 21 de Maio, e o sr. (…) disse prontamente para mandar arranjar o carro.
Entre a avaria do BMW e a sua reparação efectiva decorreram 10 (dez) dias, os quais o minha Cliente ficou privada do uso do mesmo, tendo necessitado de terceiros para se deslocar para o local de trabalho.
Contudo, quando foi novamente contactado para proceder ao pagamento da factura respectiva, no montante de € 1.236,51 (mil e duzentos e trinta e seis euros e cinquenta e um cêntimos) V. Exas. declinaram qualquer responsabilidade apesar da mesma se encontrar prevista no artigo 3.º do mesmo Diploma Legal.
Agora, e desde o início do presente mês de Julho, a minha Cliente está mais uma vez sem o carro, estando o mesmo numa Oficina a aguardar ordem de arranjo porquanto tem problemas na Cabeça da Junta...
E mais uma vez está a D. (…) dependente da disponibilidade de terceiros para ir trabalhar!
Ora, tendo em consideração que não foi acordada qualquer redução ao prazo de garantia estipulado por Lei, o bem em causa goza de uma garantia de 2 (dois) anos (artigo 5.º do supra referido Decreto-Lei), prazo esse que foi suspenso devido à grave situação pandémica que vivemos, conforme determinado em legislação especial.
Assim sendo, e nos termos do artigo 4.º do referido Diploma Legal, serve o presente para requerer a V. Exas. que procedam ao pagamento do valor da factura em anexo, no prazo de 8 (oito) dias a contar da recepção da presente interpelação, para o IBAN (…) cuja conta bancária a D. (…) é titular.
No mesmo prazo, ficarei a aguardar contacto da V/ Parte de forma a se proceder ao arranjo do veículo em causa o mais rapidamente possível tendo em conta os prejuízos que tal situação está a acarretar à minha Cliente.
Aproveito ainda para solicitar que me seja enviada a respectiva factura da compra do carro.
Mais informo que, caso no período indicado não procedam como solicitado, ver-me-ei obrigada a recorrer aos meios judiciais que entender melhor salvaguardem os direitos da minha Constituinte, o que irá necessariamente acarretar mais custos, os quais vos irão ser imputados a final.»
24. A reparação dos problemas referidos em 21 foi orçada, pela oficina (…), em € 2.091,25.
25. Após a realização do diagnóstico referido em 21, o veículo aí mencionado esteve na Oficina (…) a aguardar ordem de arranjo porque a Autora não tinha meios financeiros para pagar de uma só vez o custo da reparação, sem cujo pagamento o veículo não lhe podia ser entregue.
26. Em 18-08-2021, a Autora, através de advogada por si mandatada, enviou novamente à Ré (…) uma carta registada com aviso de receção, dirigida a esta Ré, para a morada «Estrada Nacional n.º (…), (…), 2350-472 Torres Novas», com o assunto «Garantia Automóvel BMW 320D (matrícula …)» e o seguinte teor:
«Exmo sr. (…),
Conforme já é do seu conhecimento através de conversa telefónica realizada no passado dia 09 de Agosto, encontro-me Mandatada pela D. (…), para interceder junto de V. Exas. relativamente à venda do veiculo automóvel da Marca BMW 320D, com a matricula (…), efectuada por Vós no dia 29 de Julho de 2019.
No seguimento de tal conversa, informei V. Exa., através de email (doc. 1), que tinha procedido à interpelação da (…) no sentido de proceder ao pagamento do arranjo da carrinha BMW, por carta registada com aviso de recepção (doc. 2), tendo a mesma sido devolvida por não ter sido reclamada (doc. 3).
Ora, e como certamente saberá, a não recepção da correspondência não iliba o Stand da responsabilidade assumida aquando da venda do veículo em causa, até porque mais tarde foi a mesma enviada para o email indicado por Vós.
Nesse sentido venho, mais uma vez, solicitar a V. Exas. que procedam ao pagamento da quantia discriminada na factura n.º (…), a qual ascende ao montante de € 1.236,51 (mil e duzentos e trinta e seis euros e cinquenta e um cêntimos), pagamento esse que deverá ser efectuado, impreterivelmente, até ao dia 25 de Agosto próximo.
A partir de tal data, irá ser intentada a respectiva acção judicial, e requerida as devidas indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais, nomeadamente um valor por cada dia em que a minha cliente está privada de usufruir do seu veículo.
Mais relembro, que a minha Cliente está sem qualquer meio transporte, desde o início do passado mês de Julho, porquanto o mesmo se encontra numa Oficina a aguardar ordem de arranjo da V/ parte, conforme orçamento em anexo (doc. 4).
Pelo que, no prazo acima referido, ficarei a aguardar contacto da V/ Parte de forma a se proceder ao arranjo do veículo em causa o mais rapidamente possível, ficando V. Exas. responsáveis pelos prejuízos que tal situação está a acarretar à minha Cliente.
Aproveito novamente para solicitar que me seja enviada a respectiva factura da compra do carro.»
27. A carta referida em 26 foi devolvida pelos CTT com a menção de «carta recusada na morada indicada».
28. O veículo referido em 5 foi entregue à Autora em 11-03-2022, depois de a Autora ter pago a totalidade do custo da reparação, no valor referido em 24.
29. Entre a data referida em 21 e a data referida em 28, a Autora esteve privada de utilizar o veículo identificado em 5.
30. No dia 29-08-2019 foi inscrita a transmissão do direito de propriedade sobre o veículo Fiat, com a matrícula (…), a favor da Ré (…).
31. Em data não apurada, mas anterior a 13-09-2019, (…) foi a casa da Autora para mostrar à mesma e ao seu companheiro, (…), a carrinha Fiat, modelo Doble, referida em 30, que ambos haviam manifestado ter interesse em adquirir.
32. O companheiro da Autora e a Autora informaram (…) de que não dispunham de dinheiro para pagar o valor total do preço do veículo referido em 30 e de que necessitavam de contratar novo crédito, em nome da Autora.
33. A Autora acordou com (…) entregar-lhe, a título de retoma e para abatimento no preço acordado para compra do automóvel referido em 30, uma viatura da marca Volkswagen, modelo Passat, da sua propriedade.
34. (…) transmitiu a informação referida em 32 à Ré (…) que solicitou um novo crédito para a Autora junto de uma instituição de crédito.
35. Como o pedido de concessão crédito referido em 34 foi recusado, o legal representante da Ré (…) solicitou aos representantes da Ré (…), Unipessoal, Lda. que intermediassem o pedido de crédito da Autora.
36. A Ré (…), Unipessoal, Lda. aceitou intermediar a concessão de crédito à Autora, tendo recebido a documentação da Autora diretamente da Ré (…).
37. Nenhum colaborador ou representante da Ré (…), Unipessoal, Lda. contactou diretamente a Autora ou (…) no processo de intermediação na concessão de crédito à Autora.
38. Em 13-09-2019, (…) encontrou-se com a Autora e com o seu companheiro, na casa de ambos, e entregou-lhes a carrinha referida em 30.
39. Na ocasião referida em 38, (…) apresentou à Autora um documento com o teor do doc. 11 da petição inicial, denominado «(…) – Contrato crédito automóvel, condições particulares (…) proposta (…)», no qual se podia ler, além do mais, o seguinte:
«Intervenientes
1.º Titular: Nome: (…)
Intermediário de Crédito:
Nome: (…), Automóveis, Sociedade Unipessoal, Lda.
NIPC/NIF (…)
(…)
Fornecedor do Bem/Serviço:
Nome: (…), Automóveis, Sociedade Unipessoal, Lda. | NIPC/NIF (…)
(…)
Dados do bem/serviço:
Descrição do bem/serviço: ligeiro mercadorias
Marca: FIAT | Modelo: Doblo Cargo Diesel
Matrícula: (…) (…) | PVP: € 9.000,00
Tipo de crédito:
(…)
Crédito Automóvel com reserva de propriedade e outros: usados X
(…)
Condições financeiras
Montante total de Crédito: € 9.862,38 |Montante Solicitado para o Pagamento do Bem/Serviço: € 9.000,00
Montante para Encargos Financiados: € 682,38
TAEG: 12,4%
TAN: 9,012% |Fixa: X (…)
Montante Total Imputado Consumidor € 14.747,40 | Custo Total do Crédito: € 5.747,40.
Comissão de Abertura (inclui Imposto do Selo): € 250,00 | Financiado: Sim X (…)
Imposto do Selo Utilização do Crédito (ISUC): € 232,38 | Financiado: Sim X (…)
Serviço de transferência de Propriedade (inclui IVA): € 200,00 | Financiado: Sim X (…)
(…)
Comissão de Processamento da Prestação: (inclui imposto do Selo) € 3,50
Duração do Contrato (n.º de prestações): 108 | Tipo de Prestações: (…) X Postecipadas
Periodicidade: Mensal | Dia de vencimento das prestações: 5
Montante de cada prestação (inclui comissão de processamento da prestação): € 136,55
Entidade a creditar: Fornecedor
(…)
Garantias
Reserva de Propriedade sobre o Bem: X Sim
(…)
AUTORIZAÇÃO DE PAGAMENTO AO FORNECEDOR
Nos termos das Condições Gerais do Contrato de Crédito Automóvel n.º (…) de que esta Autorização é parte integrante, o (s) Titular (es) deste Contrato solicitam à IC, que, por conta daquele (s), o montante total do crédito, deduzido do montante do crédito para pagamento dos encargos financiados (se aplicável), relativo ao veículo melhor identificado nas Condições Particulares do Contrato acima referido, num total de € 9.000,00, seja pago ao Fornecedor do mesmo (abaixo identificado), em cheque ou por transferência bancária, a efetuar para o IBAN indicado pelo Fornecedor.
Fornecedor do bem:
Nome (…), Automóveis, Sociedade Unipessoal, Lda.
NIPC/NIF (…)
(…)».
40. Aquando da assinatura do documento referido em 39, a Autora compreendeu, pelo menos, que o documento em causa se destinava a contrair um empréstimo e que ficaria a pagar uma prestação de cerca de € 150,00 mensais durante 9 anos.
41. Em 08-04-2020, a (…) enviou à Autora cópia do documento referido em 39.
42. O valor referido em 39 foi financiado à Autora pela (…) e entregue pela (…) à Ré (…), Automóveis, Sociedade Unipessoal, Lda. que, por sua vez, transferiu parte desse valor para a Ré (…).
43. Em 20-09-2019, a Ré (…) emitiu a seguinte declaração, que foi entregue à Autora:
«DECLARAÇÃO DE CIRCULAÇÃO
(…), Business, Unipessoal, Lda. – Comércio de Automóveis, com sede na Estrada Nacional n.º (…), (…), 2350-472 Torres Novas, declara que, para fins convenientes e em especial para fazer fé perante as autoridades de trânsito, vendeu um veículo – Marca Fiat, Modelo Doblo, cilindrada 1248, matrícula (…) do ano de 2012 mês 7, tipo: mercadorias; n.º de quadro (…); combustível gasóleo; cor branco, peso bruto 2020, ao Exm.º Sr.º/Sr.ª (…), residente em Rua (…), n.º 32 (…) 2000-337 Caldas Rainha.
Mais informo que o processo de averbamento se encontra na Conservatória do Registo Automóvel para regularização. (Nota autorizada pela Direcção das contribuições por despacho de Exm.º Secretário de Estado do Orçamento).
(…)
20 de setembro de 2019
Esta declaração destina-se a substituir a documentação da viatura acima referida até prazo que não deverá exceder os 60 dias a contar da data de compra.»
44. No dia 27-09-2019, foi inscrita a constituição, pela Autora, de uma reserva de propriedade sobre a carrinha Fiat identificada em 30 a favor da (…).
45. Entre novembro de 2019 e 11-12-2019, a carrinha identificada em 30 teve uma avaria nos injetores.
46. A compra do material necessário à reparação do problema referido em 45 teve o custo de € 301,35, que foi pago pela Autora.
47. O arranjo dos injetores não foi suficiente para resolver o problema referido em 45, e foi necessário substituir a bomba injetora da carrinha Fiat.
48. O companheiro da Autora, (…), expôs o referido em 45 e 47 a (…), que lhe disse para procurar uma oficina e tratar da reparação.
49. Seguindo indicações do companheiro da Autora, a oficina que realizou a reparação referida em 47 emitiu a respetiva fatura, no montante de € 1.064,04, em nome da Ré (…).
50. A Ré (…) declinou a responsabilidade pelo pagamento da fatura mencionada em 49.
51. (…) pagou a quantia de € 500,00 à oficina mencionada em 49 por conta da fatura aí referida.
52. Na senda da avaria referida em 45, a Autora ficou privada do uso da carrinha identificada em 30 pelo menos entre 11-12-2019 e 16-01-2020.
53. Em data não apurada, mas anterior a 23-07-2021, a cabeça do motor da carrinha identificada em 30 avariou, fazendo com que o veículo deixasse de funcionar.
54. Em 23-07-2021, o arranjo do problema referido em 53 foi orçado pela oficina (…) em € 2.574,13.
55. Em 27-08-2021, a Autora, através de advogada por si mandatada, enviou à Ré (…) uma carta registada com aviso de receção, dirigida a esta Ré, para a morada «Estrada Nacional n.º (…), (…), 2350-472 Torres Novas», com o assunto «Garantia Automóvel Fiat Doblo (matrícula …)» e o seguinte teor:
«Exmos. Senhores,
Encontro-me Mandatada pela D. (…), para interceder junto de V. Exas. relativamente à venda do veículo automóvel da Marca Fiat Doblo, com a matricula (…), efetuada por Vós no dia 20 de Setembro de 2019, conforme cópia da Declaração de Circulação em anexo (doc. 1).
Tal veículo, como sabem, desde logo apresentou desconformidades relativamente ao estado do mesmo apresentado no momento da venda, senão vejamos:
1. Logo em Dezembro de 2019, a carrinha deixou de funcionar, tendo a oficina (…) diagnosticado problemas na bomba injetora;
2. Nesse seguimento, e por forma a resolver a situação com a maior brevidade possível, a minha Cliente entrou em contacto convosco, cumprindo assim o estipulado no n.º 2 do artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 84/2020, de 21 de maio;
3. Razão pela qual foi enviada a V. Exas. a respetiva fatura para pagamento, com o n.º (…), no montante de € 1.064,04 (mil e sessenta e quatro euros e quatro cêntimos), conforme cópia em anexo (doc. 2).
4. No entanto, V. Exas. declinaram qualquer responsabilidade e a D. (…) teve de assumir o pagamento integral da mesma!.
5. Entre a avaria do Fiat e a sua reparação efetiva decorreram 20 (vinte) dias, os quais o minha Cliente ficou privada do uso do mesmo, tendo necessitado de terceiros para se deslocar para o local de trabalho.
6. Já este ano, em julho de 2021, a minha Cliente teve de chamar o reboque porque, mais uma vez, a carrinha não funcionava! (doc. 3).
7. E desta vez foi a cabeça do motor, conforme orçamento que ora se junta (doc. 4), o qual ascende a € 2.574,13 (dois mil e quinhentos e setenta e quatro euros e treze cêntimos).
8. Pelo que, desde o início do mês de julho, que a minha Cliente está mais uma vez sem o carro, estando o mesmo na Oficina a aguardar ordem de arranjo porquanto tem problemas na Cabeça do Motor...
9. E mais uma vez está a D. (…) dependente da disponibilidade de terceiros para ir trabalhar!
10. Ora, tendo em consideração que não foi acordada qualquer redução ao prazo de garantia estipulado por Lei, o bem em causa goza de uma garantia de 2 (dois) anos (artigo 5.º do supra referido Decreto-Lei), prazo esse que foi suspenso devido à grave situação pandémica que vivemos, conforme determinado em legislação especial.
11. Assim sendo, e nos termos do artigo 4.º do referido Diploma Legal, serve o presente para requerer a V. Exas. que procedam ao pagamento do valor da fatura em anexo, no prazo de 8 (oito) dias a contar da receção da presente interpelação, para o IBAN (…) cuja conta bancária a D. (…) é titular.
12. No mesmo prazo, ficarei a aguardar contacto da V/ Parte de forma a se proceder ao arranjo do veículo em causa o mais rapidamente possível tendo em conta os prejuízos que tal situação está a acarretar à minha Cliente.
13. Aproveito ainda para solicitar que me seja enviada a respetiva fatura da compra do carro.
14. Mais informo que, caso no período indicado não procedam como solicitado, ver-me-ei obrigada a recorrer aos meios judiciais que entender melhor salvaguardem os direitos da minha Constituinte, o que irá necessariamente acarretar mais custos, os quais Vos irão ser imputados a final.
(…)»
56. A carta referida em 55 foi devolvida pelos CTT com a menção de «objeto não reclamado».
57. Em 06-09-2021, a Autora, através de advogada por si mandatada, enviou à Ré (…), Lda. uma carta registada com aviso de receção, dirigida a esta Ré, para a morada «Rua (…), n.º 6-B, 2605-652 Belas», com o assunto «Garantia Automóvel Fiat Doblo (matrícula …)» e o seguinte teor:
«Exmos. Senhores
Encontro-me Mandatada pela D. (…), para interceder junto de V. Exas. relativamente à venda do veículo automóvel da Marca Fiat Doblo, com a matricula (…), efetuada pelo Stand (…), Business, Unipessoal, Lda. no dia 20 de Setembro de 2019, conforme cópia da Declaração de Circulação em anexo (doc. 1).
Por outro lado, no contrato de crédito automóvel celebrado com a Financeira (...), ao qual foi atribuído o n.º (…), é V. Exa. que aparece como fornecedor do bem e, consequentemente, a quem foi transferido o valor de € 9.000,00 (nove mil euros) para pagamento do veículo em causa (doc. 2).
Ora, e por forma a acautelar devidamente os interesses da M/ Cliente, serve o presente para o informar que tal veículo apresentou, desde logo, desconformidades relativamente ao estado do mesmo, senão vejamos:
1. Logo em Dezembro de 2019, a carrinha deixou de funcionar, tendo a oficina (…) diagnosticado problemas na bomba injetora.
2. Nesse seguimento, e por forma a resolver a situação com a maior brevidade possível, a minha Cliente entrou em contacto com o Stand (…) – (…), Business, Unipessoal, Lda., cumprindo assim o estipulado no n.º 2 do artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 84/2020, de 21 de Maio.
3. Razão pela qual lhes foi enviada a respetiva fatura para pagamento, com o n.º (…), ïî montante de ˆ 1.064,04 (mil e sessenta e quatro euros e quatro cêntimos).
4. No entanto, os mesmos declinaram qualquer responsabilidade e a D. (…) teve de assumir o pagamento integral da mesma!.
5. Entre a avaria do Fiat e a sua reparação efetiva decorreram 20 (vinte) dias, os quais o minha Cliente ficou privada do uso do mesmo, tendo necessitado de terceiros para se deslocar para o local de trabalho.
6. Já este ano, em Julho de 2021, a minha Cliente teve de chamar o reboque porque, mais uma vez, a carrinha não funcionava!.
E desta vez foi a cabeça do motor, o qual ascende a € 2.574,13 (dois mil e quinhentos e setenta e quatro euros e treze cêntimos).
8. Pelo que, desde o inicio do mês de Julho, que a minha Cliente está mais uma vez sem o carro, estando o mesmo na Oficina a aguardar ordem de arranjo porquanto tem problemas na Cabeça do Motor...
9. E mais uma vez está a D. (…) dependente da disponibilidade de terceiros para ir trabalhar!
10. Ora, tendo em consideração que não foi acordada qualquer redução ao prazo de garantia estipulado por Lei, o bem em causa goza de uma garantia de 2 (dois) anos (artigo 5.º do supra referido Decreto-Lei), prazo esse que foi suspenso devido à grave situação pandémica que vivemos, conforme determinado em legislação especial.
11. Assim sendo, e nos termos do artigo 4.º do referido Diploma Legal, serve o presente para requerer a V. Exas. que procedam ao pagamento do valor da factura em anexo, no prazo de 8 (oito) dias a contar da recepção da presente interpelação, para o IBAN (…) cuja conta bancária a D. (…) é titular.
12. No mesmo prazo, ficarei a aguardar contacto da V/ Parte de forma a se proceder ao arranjo do veiculo em causa o mais rapidamente possível tendo em conta os prejuízos que tal situação está a acarretar à minha Cliente.
13. Aproveito ainda para solicitar que me seja enviada a respetiva fatura da compra do carro.
14. Mais informo que, caso no período indicado não procedam como solicitado, ver-me-ei obrigada a recorrer aos meios judiciais que entender melhor salvaguardem os direitos da minha Constituinte, o que irá necessariamente acarretar mais custos, os quais Vos irão ser imputados a final.
(…)»
58. A carta referida em 57 foi devolvida pelos CTT com a menção de «objeto não reclamado».
59. Em data não apurada, mas próxima de 23-06-2022, a Autora colocou a viatura referida em 30 na oficina (…), uma vez que a oficina (…) ainda não procedera à reparação da mesma, apesar de a Autora ter dado ordem para o fazer.
60. Em 23-06-2022, a reparação do problema referido em 53 foi orçamentada pela oficina (…) em € 3.937,12.
61. A Autora não deu ordem de arranjo da avaria referida em 53 por aguardar, primeiro, uma resposta da 1ª Ré e, depois, o desfecho destes autos.
62. A carrinha referida em 30 permanece na oficina (…) desde, pelo menos, a data referida em 60.
63. Em 10-04-2024, a Autora pagou a quantia de € 1.968,00 à sociedade (…), Lda., para aquisição de um motor para a carrinha identificada em 30.
64. Pelo menos entre 23-07-2021 e o dia 14-10-2022 (data da entrada da presente ação), a Autora esteve privada de utilizar a carrinha identificada em 30.
65. A carrinha referida em 30 é um veículo ligeiro de mercadorias.
66. O veículo BMW identificado em 5 era utilizado pela Autora nas suas deslocações quotidianas para o trabalho.
67. Nas ocasiões referidas em 2, 7, 31 e 38, (…) apresentou-se perante a Autora como vendedor do stand «(…)», explorado pela Ré (…).
II.3.2.
O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:
«a) A Autora acordou com (…) adquirir o veículo automóvel referido em 5, pelo valor de € 5.000,00.
b) O valor atribuído pela Autora e por (…) ao automóvel Renault Clio referido em 6 dos factos provados e a abater ao preço do veículo BMW identificado em 5, foi de € 750,00.
c) Na ocasião referida em 5 dos factos provados, (…) asseverou à Autora que o veículo aí identificado estava em excelente estado.
d) A Ré (…) intermediou a contratação de financiamento pela Autora junto da (…).
e) (…) solicitou à A. que assinasse várias folhas do documento referido em 8, que lhe foram apresentadas, sem nunca a ter informado ou esclarecido sobre o conteúdo das mesmas.
f) Aquando da assinatura do documento referido em 8, a Autora estava convicta de que o mesmo se destinava solicitar um crédito de € 5.000,00.
g) (…) nunca disse à Autora qual o montante concreto que estava a solicitar a título de empréstimo.
h) A A. apenas verificou que, no documento referido em 8, solicitara o empréstimo de capital no montante de € 5.350,00, aquando da receção da comunicação da (…) referida em 13.
i) Na senda do mencionado em 13, a Autora contactou de imediato (…) e disse-lhe que o valor inscrito no documento referido em 8 não era o valor que combinara pedir emprestado.
j) À interpelação da Autora referida em i), (…) respondeu referindo que a diferença aí assinalada dizia respeito aos juros do empréstimo.
k) Na ocasião referida em 14, a Autora foi informada de que o sistema eletrónico do veículo estava desativado, o que se traduzia, pelo menos, no não funcionamento dos airbags em caso de acidente.
l) Entre a avaria referida em 16 e a reparação efetiva e entrega do veículo BMW à A., decorreram 18 dias (de 19-05-2020 a 05-06-2020), durante os quais a Autora ficou privada do uso do mesmo.
m) O companheiro da Autora, (…), expôs a situação referida em 16 a (…), que lhe disse prontamente para mandar arranjar o carro.
n) Na data referida em 31 dos factos provados, a Autora acordou com (…) adquirir o veículo automóvel referido em 30, pelo valor de € 7.800,00.
o) O valor atribuído pela Autora e por (…) ao automóvel Volkswagen Passat referido em 33 dos factos provados, e a abater ao preço do veículo Fiat Double, identificado em 30, foi de € 500,00.
p) Na ocasião referida em 39, a Autora assinou as várias folhas que lhe foram apresentadas por (…), sem nunca ter sido informada ou esclarecida sobre o conteúdo das mesmas.
q) Aquando da assinatura do documento referido em 39 dos factos provados, a Autora estava convicta de que o mesmo se destinava solicitar um crédito de € 7.300,00.
r) (…) nunca disse à Autora qual o montante concreto que estava a solicitar a título de empréstimo.
s) A Autora apenas verificou que, no documento referido em 39, solicitara o empréstimo de capital no montante de € 9.000,00 aquando da receção da comunicação da (…) referida em 41.
t) Na senda do mencionado em 41, a Autora contactou de imediato (…), questionando-o quanto ao valor aposto no Contrato de Crédito.
u) À interpelação da Autora referida em t), (…) respondeu reiterando que a diferença aí assinalada dizia respeito aos juros do empréstimo e acusando-a de não saber fazer contas.
v) A Autora habita em (…) e trabalha em Rio Maior e tem uma filha em idade escolar.
w) O veículo BMW era utilizado pela Autora e respetivo agregado familiar aos fins de semana e nos períodos de férias.
x) Em virtude da paralisação de ambas as viaturas nos períodos referidos em 29 e 64 dos factos provados que coincidiram (entre 23-07-2021 e 11-03-2022), a Autora viu-se obrigada a solicitar boleia a amigos para ir trabalhar e levar a filha ao respetivo estabelecimento de ensino.
y) A privação dos veículos e a recusa das Rés em darem ordem de reparação das viaturas, provocou desespero e stress na Autora.
z) A Autora não comunicou à 1ª Ré as situações referidas em 14, 16, 21, 45 e 53 dos factos provados antes da citação da 1ª Ré para a presente ação.»
III.
Apreciação do objeto do recurso
III.1.
Impugnação da decisão de facto
Prescreve o artigo 662.º, n.º 1, do CPC que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Na impugnação da decisão de facto visa-se obter uma reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância de forma a apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, quer por terem sido considerados assentes quando deveriam julgar-se não provados, quer por terem sido considerados não provados quando deveriam ter sido julgados assentes, de forma a alterar o sentido da decisão de mérito. Na sua avaliação sobre o julgamento de facto empreendido pelo tribunal recorrido o tribunal de segunda instância deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, dentro dos seus poderes de livre apreciação da prova dos meios probatórios (artigo 607.º/5, do CPC), deve introduzir na decisão de facto concretamente impugnada as modificações que se imponham. Contudo, as modificações «que se imponham» não devem traduzir-se numa “substituição da convicção do julgador de cuja decisão se recorre pela convicção daqueles que recorrem”; com efeito, essa modificação só se imporá se na decisão sob recurso tiver ocorrido uma violação de qualquer dos passos para a formação da convicção do julgador, nomeadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção – neste sentido, acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 [Diário da República n.º 129/2004, Série II de 2004-06-02].
No caso sub judice a apelante impugnou o julgamento relativo ao ponto de facto provado n.º 67 – Nas ocasiões referidas em 2, 7, 31 e 38, (…) apresentou-se perante a Autora como vendedor do stand «(…)», explorado pela Ré (…) – e ao ponto de facto não provado que consta da alínea Z – A Autora não comunicou à 1ª Ré as situações referidas em 14, 16, 21, 45 e 53 dos factos provados antes da citação da 1ª Ré para a presente ação.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
Relativamente ao facto provado n.º 67 a apelante defende que o mesmo deve ser alterado de forma a que dele passe a constar a seguinte redação: «Nas ocasiões referidas em 2, 7, 31 e 38, (…) apresentou-se perante a Autora como proprietário das viaturas e vendedor das mesmas».
Para fundamentar este seu entendimento, a recorrente diz que o julgador a quo valorizou “indevidamente” o depoimento de (…), o qual não merece credibilidade porquanto esta testemunha tinha assumido nos autos a posição de co-réu e, por isso, era parte inicialmente interessada no litígio; simultaneamente, a apelante invoca o depoimento da testemunha (…), companheiro da autora, que depôs no sentido inverso ao depoimento prestado por (…) e que tem conhecimento dos factos por ter acompanhado a realização dos negócios relativos à aquisição das duas viaturas que estão em causa nos autos.
O tribunal recorrido motivou da seguinte forma o julgamento no que a este ponto de facto respeita: «No que concerne ao facto provado n.º 67 (nevrálgico para a apreciação de uma parte do pedido), a convicção do Tribunal assentou nas premissas probatórias extraíveis das declarações de parte da Autora e do depoimento da testemunha (…), que apontaram diretamente para a realidade que se verteu neste ponto.
Com efeito, a Autora, nas suas declarações de parte e logo aos costumes, referiu conhecer a Ré (…) por (…) lhe ter dito que era vendedor desse stand, e confirmou que quando este foi a sua casa pela primeira vez lhe disse logo que vendia carros para a (…). Coerentemente, … (que foi parte primitiva nos autos e revelou um conhecimento direto sobre esta matéria) descreveu que, quando algum cliente o contactava para comprar um veículo automóvel, transmitia as intenções do comprador «ao …» (referindo-se claramente ao legal representante da 1ª Ré, …), para depois poder mostrar a tal cliente um carro que a Ré (…) tivesse para venda e que satisfizesse as necessidades do comprador, e, caso o mesmo correspondesse ao desejado, intermediava na concretização do negócio. Este depoente foi muito assertivo quando sublinhou que os carros que mostrava aos clientes (e, em particular, os que mostrou à Autora, e que esta acabou por comprar) vinham do stand da Ré (…), sendo mantidos, no ínterim, num estacionamento existente na residência dos pais do seu legal representante, de onde os levou a casa da Autora, devolvendo-os depois à (…). Mais esclareceu (…) que recebia da Ré (…) uma comissão (que o próprio calculava sobre o preço que a 1ª Ré lhe dizia querer para si) por cada venda de veículos desta Ré ao cliente final, afirmando inclusive que tal relação comercial se mantinha e, à data em que depunha, tinha dois carros da 1ª Ré para encontrar comprador, nas mesmas condições. Esta testemunha recusou segura e terminantemente ter sido proprietário de qualquer dos carros que vendeu à Autora, reforçando que não tinha sequer estrutura financeira para tal. Precisou outrossim que, no caso concreto, a Autora e o companheiro o procuraram porque precisavam de um carro, na senda do que lhes levou um carro da (…), tendo-lhes dito que vendia carros através de um stand, e constando o nome da 1ª Ré da documentação que lhes foi apresentada.
Também a testemunha … (proprietário da oficina onde os veículos foram colocados a arranjar pela Autora) referiu que, aquando da avaria da carrinha Fiat, falou por telefone com (…) que se apresentou perante si como vendedor do stand (…).
Tanto seria bastante para concluir que, independentemente da natureza da efetiva relação comercial entre (…) e a Ré (…), aquele se apresentou à Autora como vendedor do stand desta Ré.
Todavia, das declarações de parte do legal representante da Ré (…) resultaram elementos adicionais que conduzem à conclusão de que, efetivamente, havia uma relação comercial entre (…) e esta Ré que passava por o primeiro intervir em negócios da segunda. De facto, conquanto (…) tenha tentado apresentar (…) como pessoa desassociada de si, da descrição que fez da respetiva relação comercial resultou a corroboração do que foi dito por (…). Assim, (…) afirmou que fazia negócios de automóveis com aquela testemunha, sendo que, na maioria desses negócios, era (…) que encontrava clientes para os carros que a (…) tinha para venda e, noutros casos particulares, era a Ré (…) que encontrava carros com as características que os clientes de (…) procuravam, entregando-lhe depois os veículos para que os vendesse aos mesmos, pelo menos pelo preço que a Ré lhe indicava, ganhando (…) o que pusesse a mais no preço final de cada automóvel. O legal representante da Ré (…) descreveu que, quando os clientes recorriam ao crédito, era a 1ª Ré que recebia o preço que estabelecera com (…) diretamente da Instituição de crédito, limitando-se depois a entregar-lhe a diferença entre o preço que lhe indicara e o que (…) indicara aos clientes quando concluiu o negócio. É certo que o legal representante da 1ª Ré referiu que, em alguns casos, (…) lhe comprava os veículos que depois revendia por sua conta, mas adiantou que, nessas situações, (…) pagava o respetivo preço à 1ª Ré imediata e diretamente.
Ora, resultou evidente das suas declarações que este não foi o caso dos autos em que, segundo (…): a Autora pediu a (…) veículos com determinadas características; como a Ré não tivesse viaturas que correspondessem às mesmas no stand, pediu a pessoas conhecidas que também vendem automóveis que lhe emprestassem um BMW 320D e uma Fiat Doble para mostrar à Autora e ao seu companheiro e o seu legal representante disse a (…) qual era o valor pelo qual pretendia vender os mesmos (que já incluía a sua margem de lucro sobre o preço pelo qual os veículos estavam à venda pelos seus conhecidos). De seguida, (…) vendeu-os aos Clientes pelo preço indicado acrescido da sua própria margem.
Acresce que (…) referiu que a 1ª Ré foi intermediária de crédito no negócio do BMW e que, por isso, recebeu o preço diretamente da financeira, e quanto ao negócio da carrinha Fiat, afirmou que, por dificuldade em conseguir a aprovação deste crédito à Autora, pediu que a Ré (…), Lda. intermediasse o novo mútuo, com a circulação de dinheiro acima já reproduzida. Por outro lado, e apesar de (…) ter dito que a carrinha Fiat não passou para nome da (…), o registo automóvel deste veículo evidencia que, em 29-08-2019 – ou seja, antes de 13-09-2019 (data em que a Autora assinou o contrato de crédito referido em 39 dos factos provados e junto como doc. 11 da petição inicial) – já o veículo em causa estava registado em nome da R. (…). Aliás, o facto de o automóvel estar registado em nome da 1ª Ré, mas de o fornecedor identificado no contrato de crédito ser a 3ª Ré, é compatível com a afirmação do legal representante da Ré (…) de que teve que passar uma fatura à 3ª Ré pela venda do veículo, pois só assim a realidade contratual e contabilística das duas empresas se compatibilizaria. Ademais, (…) também disse que, embora os automóveis em causa nestes autos não tenham estado no stand da (…) até serem levados à Autora, estiveram em casa dos seus pais, onde (afirmou), por vezes deixa carros destinados a venda pela sua empresa.
Do cotejo de todas estas premissas probatórias extraíveis das declarações de parte do legal representante da Ré (…) resulta o reforço da verosimilhança da descrição que (…) fez da sua relação comercial com a 1ª Ré (de comissionista) e a infirmação da tese plasmada na contestação, segundo a qual teria havido uma venda prévia dos dois automóveis em causa nestes autos pela 1ª Ré a (…), tendo sido este que, posteriormente, por sua conta e risco, os vendeu à Autora.
Esta conclusão não é sequer abalada pela afirmação (também do legal representante da Ré …) de que, depois de (…) ter levado o BMW e a carrinha Fiat para mostrar à Autora, lhe disse que iria ficar com os carros em Abrantes, num stand que (…) disse achar que ele tinha lá. Com efeito, não só (…) negou perentoriamente ter qualquer stand ou estrutura para manter automóveis destinados a venda, como, ainda que o narrado por (…) correspondesse à realidade, tal situação é suscetível de ser interpretada como um pedido de autorização ao proprietário/comitente para que o vendedor/comissário mantenha a coisa sob sua guarda até à venda.
Acresce que o circuito do dinheiro oriundo dos créditos objeto dos autos que a 1ª Ré descreveu nos artigos 13º, 29º e 30º da contestação evidencia um cenário pouco crível à luz das regras de experiência comum.
De facto, segundo a alegação da 1ª Ré:
1. teria havido uma primeira venda verbal de ambos os veículos pela 1ª Ré a (…).
2. apesar de (…) não lhe ter pago o preço acordado por tal venda, a 1ª Ré ter-lhe-ia entregado as viaturas, sem qualquer contrapartida ou garantia.
3. a 1ª Ré teria aguardado que a cliente de … (que, por sua vez, … já sinalizara antes de comprar os veículos à 1ª Ré), fizesse negócio com ele e visse aprovado um crédito que a 1ª Ré teria intermediado (diretamente, num caso, e através da 3ª Ré, noutro).
4. tendo os créditos sido aprovados (o que, como resulta das regras de experiência de vida, era um resultado incerto), em vez de ser (…) a pagar à 1ª Ré o preço devido pela compra dos veículos, foi a 1ª Ré que pagou a (…) a diferença entre o preço acordado entre ambos e o crédito aprovado.
Ora, a prova documental junta aos autos infirma várias premissas deste raciocínio. Desde logo, contrariamente ao que consta da contestação da 1ª Ré e ao que o seu legal representante afirmou em juízo, resulta do contrato de crédito junto como doc. 2 da petição inicial que a 1ª Ré não intermediou este crédito. A intermediária de crédito neste mútuo foi a sociedade «(…), Lda.» e a 1ª Ré aparece aí como vendedora/fornecedora do bem. Em segundo lugar, e por referência ao negócio da carrinha Fiat, resulta provado (cfr. facto provado n.º 30) que antes de ser assinado o contrato de crédito, já a 1ª Ré era a proprietária registada deste bem. Em terceiro lugar, também resulta do doc. 11 da petição inicial que a 3ª Ré é aí identificada não só como intermediária de crédito, mas também como vendedora/fornecedora do bem, sendo certo que (como se viu já acima) o legal representante da 1ª Ré assumiu que teve de faturar este veículo à 3ª Ré (dando, pelo menos para efeitos contabilísticos e fiscais, a aparência de que existiu uma venda de um automóvel da sua propriedade a esta congénere). Daqui se extrai que, contrariamente ao que a 1ª Ré pretendeu fazer crer ao Tribunal, a razão pela qual tanto a 1ª Ré como a 3ª Ré receberam das respetivas instituições de crédito, diretamente, o capital mutuado para aquisição dos veículos, não foi por terem intermediado a contratação dos créditos, mas antes por terem assumido, nos respetivos contratos financeiros, a posição de fornecedoras/vendedoras desses bens. Em quarto lugar, e como se extrai dos pontos 10 e 42 matéria de facto provada, foi à 1ª Ré e à 3ª Ré que foram pagos os preços dos veículos objeto dos autos, com a entrega do capital mutuado a estas Rés pelas respetivas Instituições Financeiras que concederam crédito à A., em nome e por conta desta (como resulta, aliás, da cláusula 3ª do contrato de crédito datado de 19-07-2019, que se mostra transcrita no ponto 8 da matéria de facto provada). Em quinto lugar, o legal representante da 1ª Ré emitiu duas declarações em nome desta Ré onde reconheceu ter sido esta a vendedora de ambas as viaturas (cfr. factos provados n.ºs 11 e 43), sendo pouco verosímil que tivesse produzido tais declarações, destinadas a serem apresentadas às autoridades aquando da circulação dos veículos, caso as mesmas fossem falsas, e por mera «cortesia», como alegado na contestação.
Em conclusão: toda esta documentação revela uma realidade objetiva que é muito mais compatível com um cenário factual em que tenha sido a 1ª Ré a comprar a terceiros e a vender à Autora os veículos objeto dos autos por intermédio de … (que, por sua vez, após a aprovação do crédito, recebeu da 1ª Ré apenas uma comissão pelo papel que teve nessa venda), do que com o cenário alegado pela 1ª Ré.
Deste modo, é absolutamente verosímil não só que a real relação comercial entre (…) e a 1ª Ré tivesse os contornos que aquele descreveu, mas também (e sobretudo) que (…) se tenha apresentado perante a Autora como vendedor do stand da 1ª Ré. Não se olvida que, a este propósito, que o companheiro da Autora, (…), afirmou que, quando se encontrou com (…), ele disse que tinha um stand, mas não disse onde, nem se trabalhava para esse stand ou por conta própria e que só soube que as viaturas em causa tinham vindo da (…) quando pediu os contratos à (…) e à (…). Todavia, no cotejo de toda a prova ora analisada, esta premissa probatória não é suficiente para abalar a convicção representada no ponto 67 dos factos provados».
Como decorre do trecho supra transcrito a fundamentação do tribunal a quo quanto ao ponto de facto em apreço funda-se em diversos meios probatórios (prova testemunhal, declarações de parte da autora e do legal representante da apelante, bem como prova documental) e não apenas no depoimento da testemunha (…), tendo o julgador a quo analisado de forma exaustiva aqueles meios probatórios, os quais articulou entre si de forma lógica e coerente. Acresce que, ouvida a prova oral e analisada a prova documental produzidas nos autos, não nos merece censura o julgamento empreendido pelo tribunal a quo quanto a este concreto ponto de facto. Por fim dir-se-á que aquilo que a apelante pretende é fazer prevalecer a sua avaliação sobre o facto provado em apreço formada a partir do depoimento de uma concreta testemunha (…), o que, por si só, não basta para que se proceda a uma alteração do julgamento de facto.
Por conseguinte, improcede este segmento da impugnação do julgamento de facto.
Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente a impugnação do julgamento de facto.
III.2.
Do mérito da decisão
No presente recurso está em causa uma sentença proferida pelo tribunal de primeira instância no segmento em que aquele condenou a apelante, enquanto vendedora, a pagar à autora/recorrida uma indemnização por danos patrimoniais e uma indemnização pela privação do uso dos veículos objeto dos autos por estes não apresentarem as qualidades habituais e esperadas em bens do mesmo tipo.
A primeira questão jurídica sobre a qual a sentença recorrida se debruçou consistiu na qualificação da relação jurídica que se estabeleceu entre a Autora e cada uma das rés, nomeadamente, a ora apelante, e se, por força de tal relação jurídica, incidia sobre alguma delas, ou sobre ambas, o dever de assegurar à Autora que os veículos automóveis que esta adquiriu se encontravam em boas condições de funcionamento.
Nessa sequência, o tribunal a quo julgou que a factualidade apurada nos autos evidencia que: i. todos os contactos referentes à negociação da compra dos dois veículos em causa nos autos pela autora ocorreram com (…); ii este se identificou perante a Autora como vendedor do stand da ora recorrente; iii. aquele era pessoa responsável por uma parte do comércio da ora recorrente, de forma pública e estável; e iv. (…) atuou, nos dois negócios, por conta da 1ª Ré. Consequentemente, o tribunal recorrido conclui que «por aplicação dos artigos 250.º e 251.º, n.º 1, do Código Comercial, ou, subsidiariamente, do artigo 252.º, § único, do mesmo diploma, o feixe de direitos e obrigações decorrentes da convergência de proposta de José Nunes Delgado e da sua aceitação pela da Autora se repercutiu na esfera jurídica da 1ª Ré e, como tal, os contratos de compra e venda dos veículos foram celebrados entre a Autora e a 1ª Ré» (negritos e itálicos nossos). Mais se entendeu na sentença recorrida que estando provado que os veículos automóveis entregues à Autora não apresentavam as qualidades habituais e esperadas em bens do mesmo tipo, gerou-se na esfera jurídica da autora-consumidora, em alternativa, os direitos de a) reposição da conformidade do veículo, através da reparação ou da substituição do bem, b) redução proporcional do preço, c) a resolução do contrato, e d) o direito a ser indemnizada nos termos gerais; e, correlativamente, na esfera jurídica a 1ª Ré (vendedora) o dever de satisfazer o direito escolhido pela autora.
No seu recurso de apelação, a 1ª Ré defende que a alteração da decisão de facto por si preconizada quanto ao ponto de facto provado n.º 67 «altera o necessário enquadramento jurídico feito na sentença recorrida» (sic), pois que «provando-se que (…) surgiu como dono e vendedor das viaturas em causa nos autos junto da autora terá de afastar-se a responsabilidade da recorrente, ou seja, não será de lhe aplicar o regime de compra e venda de coisas defeituosas». Como se vê a apelante faz depender a alteração do enquadramento jurídico empreendido na sentença de uma alteração do julgamento de facto quanto ao enunciado de facto provado n.º 67. Ora, o insucesso da impugnação do julgamento quanto àquele ponto de facto provado aliado ao facto de a recorrente não ter invocado no seu recurso qualquer erro na determinação e na interpretação das normas que o julgador a quo aplicou ao caso concreto implica a improcedência deste segmento do recurso, o que significa que deverá manter-se a conclusão plasmada na sentença no sentido de que foi a primeira ré quem celebrou com a autora os contratos de compra e venda relativos aos dois veículos em causa nos autos, pelo que deve ser ela quem responderá, perante a autora, pela desconformidade dos dois bens.
A apelante não impugna no seu recurso que os dois veículos automóveis não apresentavam as qualidades habituais e esperadas em bens do mesmo tipo. Mas defende que ainda que se julgue poder aplicar-se-lhe o regime de compra e venda de coisas defeituosas «não se pode aceitar a sentença recorrida quanto à tese de caducidade dos direitos da autora» e que, dando-se como provado o enunciado referido em z), haverá que concluir pela caducidade de eventuais hipotéticos direitos da autora.
Sucede que a improcedência da impugnação do julgamento de facto relativo ao enunciado em questão [facto não aprovado constante da alínea Z)] aliado à circunstância de a recorrente não ter invocado qualquer erro na aplicação e interpretação das normas que o julgador a quo convocou para apreciar a questão jurídica da caducidade dos direitos da autora – enquanto compradora/consumidora de bens que não apresentam as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar - implica a improcedência deste segmento do recurso, não merecendo, por isso, censura a sentença do tribunal de primeira instância da qual se extrai a respeito da questão da invocada caducidade dos direitos da autora plasmados no regime jurídico da compra e venda de bens não conformes o seguinte trecho: «(…) impendia sobre a 1ª Ré, vendedora, o ónus probatório de que a denúncia não fora feita quer no prazo de dois meses a contar do conhecimento dos defeitos, quer dentro dos dois anos a contar da entrega da coisa. Uma vez que nada se provou a este propósito (cfr. alínea Z dos factos não provados), não poderá o tribunal deixar de decidir no sentido da improcedência da exceção de caducidade, sendo irrelevante que a Autora não tenha logrado provar a denúncia que também alegou (cfr. alínea m) da matéria de facto não provada), pois não era sobre si que recaia o ónus da prova do facto contrário. E tal consideração vale (como é bom de ver) para todas as anomalias que a Autora demonstrou terem-se verificado nos veículos adquiridos à 1ª Ré, sem que fosse sequer necessário indagar da prova dos factos contrários aos que integram a exceção de caducidade.»
Por fim, a apelante impugna a sentença no segmento em que foi condenada a indemnizar a autora no montante de € 7.210,00 pelo dano de privação de uso dos dois veículos automóveis em causa nos autos.
Alega a apelante a propósito desta condenação que a «privação do uso de um veículo não basta só por si para fundar uma obrigação de indemnizar, incumbindo ao lesado a efetiva prova da existência de prejuízos de ordem patrimonial e não patrimonial decorrentes da utilização do bem» e que da matéria de facto considerada provada não resultou que a autora tivesse sofrido incómodos ou prejuízos na sequência da privação do uso dos veículos; aduz a recorrente que não pode concordar com o montante concretamente arbitrado por considerar «excessivo o período de paralisação das viaturas que o tribunal a quo teve em consideração (721 dias)», que se lhe afigura «manifestamente desproporcional condenar a recorrente a esse título até à data da propositura da ação quando apenas com a prolação da sentença tomou conhecimento de que seria responsável pela regularização dos danos em apreço na ação», que deveria ter sido condenada a pagar uma indemnização pela privação do uso pelo «tempo equivalente àquele que fosse estritamente necessário à reparação dos veículos, facto não apurado» e que ela em nada contribuiu para o prolongamento da privação do uso dos veículos no tempo, tendo sido opção da recorrida protelar no tempo a reparação da viatura Fiat Doble e não reparar a BMW, contribuindo a autora, dessa forma, para o agravamento dos danos de paralisação, «havendo que situar o seu comportamento no âmbito do artigo 570.º, n.º 1, do CC». Conclui, dizendo que «(…) no caso dos autos a ser arbitrado algum valor diariamente, a título de privação do uso, nunca tal montante deveria ser superior a € 5,00 diários, sob pena de manifesta violação dos artigos 562.º, 563.º e 566.º, n.º 3, do CC», que «(…) o valor de uma eventual condenação a título de indemnização pela privação de uso de veículo sempre deverá ser apurado com a consideração de que, a título de reparação dos veículos, a ora recorrente foi condenada a pagar o montante total de € 8.401,68, pelo que o valor a fixar a título de indemnização pela privação do uso, não deverá ultrapassar ¼ do valor da reparação, sob pena de termos uma decisão totalmente desequilibrada e desproporcional (…)» e que «caso se mantenha a condenação da ora Recorrente no valor de € 10,00 diários, a título de privação do uso, (…) tal valor deverá ser contabilizado a partir da data da notificação da sentença e pelo período estritamente necessário à reparação do veículo Fiat, sob pena de violação do disposto nos artigos 483.º, 562.º, 563.º, 566.º, n.º 3 e 570.º, n.º 1, todos do Código Civil».
Vejamos.
A apelante começa por defender a necessidade de prova de danos concretos derivados da privação de uso dos bens (no caso de duas viaturas automóveis) pelo que não se tendo provado aqueles, entende que não deve ser condenada no pagamento da indemnização por privação de uso. E também se insurge relativamente ao quantum indemnizatório arbitrado pela primeira instância.
No que respeita à ressarcibilidade do dano de privação de uso como dano patrimonial ela é hoje comummente aceite. Porém, e como dá nota a sentença recorrida, há quem defenda que aquela ressarcibilidade exige a alegação e prova, pelo lesado, do dano concreto resultante da privação do uso e quem, pelo contrário, defenda que a privação do uso do bem constitui, só por si, uma desvantagem suscetível de avaliação pecuniária, consubstanciando um dano patrimonial, independentemente, portanto, do apuramento de um efetivo aumento de despesas ou de redução de proveitos como consequência dessa privação. Dentro da primeira posição, surgiu uma posição intermédia que embora parta da exclusão da reparação do dano em abstrato, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção, isto é, ao lesado pede-se apenas que alegue e prove que utiliza habitualmente o bem na sua vida diária, presumindo-se que da respetiva privação resultam danos efetivos.
Na sentença recorrida sufragou-se a posição que admite que a privação do uso é um dano indemnizável e que não se exige a prova de danos concretos e efetivos; mas, reputando como essencial a alegação e a prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à utilização do bem.
Quanto a nós perfilhamos o entendimento de que o dano da “privação do uso” – que resulta da impossibilidade temporária de usar um bem – é um dano patrimonial autónomo suscetível de avaliação. Com efeito, o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição; donde, verificando-se a indisponibilidade material sobre o bem, apenas perante um específico quadro factual – por exemplo, se o lesado não tem qualquer interesse nas utilidades normais do bem – se poderá afirmar que a privação do seu uso não foi causa adequada de danos que merecem ser ressarcidos. Sobre esta particular questão permitimo-nos trazer à colação o seguinte texto de Abrantes Geraldes[1]: «a realidade social que subjaz às normas vigentes e que sempre deverá estar presente quando se trata de proceder à sua aplicação revela que, em regra, o proprietário (em geral, qualquer proprietário) de um veículo fará do mesmo uma utilização normal, mais ou menos frequente, mais ou menos produtiva, raramente sendo indiferente a situação emergente da privação. Na falta de outros elementos, é essa normalidade que deve recorrer-se quando se trata de dirimir litígios, em vez de partir do pressuposto, que nem a experiência nem as circunstâncias de facto permitam confirmar, que o veículo representa tão só um elemento do património sem qualquer função regular, extraindo daí, através de uma generalização abusiva, a conclusão da ausência de qualquer prejuízo ressarcível. É que, por um lado, a simples detenção de um tal bem, tendo um determinado valor intrínseco, determina encargos que se mantêm independentemente da utilização que lhe é dada ou do facto de ficar paralisado por razões não imputáveis ao titular. Por outro lado, perspetivado como instrumento de trabalho ou como simples meio de consumo, o veículo automóvel tem um determinado período de “vida útil”, cujo decurso se repercute na redução do respetivo valor comercial ou corrente, independentemente do uso que lhe é dado, sendo possível encontrar para um determinado período de tempo a quota-parte da desvalorização. (…) Assim se constata que a privação do uso, desacompanhada da sua substituição por outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflete o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” dos poderes inerentes ao proprietário. Nestas circunstâncias, não custa compreender que a simples privação do uso seja causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização. E mesmo que se considere que a situação não atinge a gravidade suscetível de merecer a sua inclusão na categoria de danos morais, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC, é incontornável a perceção de que entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, ou seja, mediante a atribuição de uma quantia adequada». Também do acórdão do STJ de 10.12.2024 supra citado, se extrai o seguinte trecho: «Ao direito subjetivo absoluto (como é o caso do direito de propriedade) é intrínseco um dado conteúdo patrimonial, que se traduz numa nota de utilidade, pelo que sempre que tal utilidade não possa ser realizada, fruto da intervenção de um estranho à esfera de domínio traçado pelo direito (…), tem de se considerar que ocorre um dano, que corresponde à utilidade ordinária e normal do bem e que é a consequência (dano consequencial) que a lesão tem na esfera da pessoa lesada). Só assim não sucederá se, em concreto, se demonstrar que a pessoa lesada não tem qualquer interesse nas faculdades/utilidades ordinárias e normais do bem ou se por circunstâncias estranhas ao âmbito do domínio o lesado não tiver qualquer possibilidade de utilização do bem, hipóteses em que será de concluir não ter existido tal dano consequencial e em que, se fosse outro o entendimento, se poderia falar de um enriquecimento injustificado do lesado (ao conceder-lhe uma indemnização em dinheiro por uma vantagem que não iria utilizar). Mas em todas as demais hipóteses – ou seja, nada disto se demonstrando – estaremos, (…) perante uma privação do uso que configura um dano indemnizável.» (negritos nossos). E, ainda, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2024[2] onde, a propósito, se escreveu o seguinte: «(…) ao direito subjetivo absoluto (como é o caso do direito de propriedade da A.) é intrínseco um dado conteúdo patrimonial que se traduz numa nota de utilidade, pelo que sempre que tal utilidade não possa ser realizada, fruto da intervenção de um estranho à esfera de domínio traçado pelo direito (…) tem de se considerar que ocorre um dano, que corresponde à utilidade ordinária normal do bem e que é a consequência (dano consequencial) que a lesão tem na esfera da pessoa lesada».
Em síntese, temos para nós que, independentemente de outros danos que eventualmente se provem, o lesado tem direito a ser indemnizado pelo simples facto de ter sido temporariamente privado do seu poder de disposição e de utilização sobre um concreto bem, a menos que se demonstre que o lesado não tem qualquer interesse nas utilidades normais do bem ou que, por circunstâncias estranhas ao âmbito do domínio o lesado não tenha qualquer possibilidade de utilização do bem[3]. Assim sendo, e no que respeita ao quantum da indemnização devida pelo dano de privação de uso, quando haja sido feita a prova de danos concretos gerados pela privação de uso (v. g. o pagamento de um aluguer de uma viatura de substituição), a indemnização daqueles danos calcula-se segundo a teoria da diferença, nos termos do disposto no artigo 566.º/2. do Código Civil); caso não se tenham provado danos concretos, há que recorrer ao critério da equidade, previsto no artigo 566.º/3 do Código Civil (quer se haja presumido a ocorrência de danos concretos a partir da prova do uso regular do bem quer se admita a reparação da mera privação do uso do bem, independentemente da prova do uso regular do bem ou da prova de danos concretos).
No caso em apreço, o tribunal de primeira instância decidiu que não tendo a autora alegado concretas despesas incorridas em virtude da comprovada privação de uso dos dois referidos veículos, impunha-se recorrer à equidade para determinar o quantitativo do dano em causa e o valor indemnizatório foi encontrado multiplicando o número de dias de privação de uso dos veículos – um total de 721 dias – por um valor diário de € 10,00.
A apelante discorda do valor arbitrado, argumentando que: i. a indemnização não deve ser fixada numa quantia diária; ii. a apelante só deveria ter sido condenada a pagar tal indemnização (por privação de uso) pelo período de tempo que fosse estritamente necessário à reparação dos veículos, facto não apurado e apenas a partir do momento em que tomou conhecimento de que era responsável pela reparação dos veículos, o que só aconteceu com a prolação da sentença; iii. foi a recorrida que deu azo ao prolongamento no tempo da privação do uso, quer porque nunca contactou a apelante para fazer a reparação, quer porque decidiu não reparar as viaturas; iv. o valor fixado é desproporcional considerando que a título de reparação foi já condenada numa indemnização de € 8.401,68, pelo que o valor da indemnização em causa não deve ultrapassar ¼ daquele valor.
Que dizer?
Não vem posto em causa no recurso que na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo, como sucede in casu, haverá que determinar o quantum indemnizatório com recurso à equidade, dentro dos limites do que estiver provado (artigo 566.º/3, do Código Civil). Na formulação de um juízo equitativo o tribunal deverá socorrer-se de parâmetros que a jurisprudência observa para casos semelhantes ou próximos, considerando as exigências impostas pelos princípios da igualdade e de proporcionalidade[4], bem como haverá ainda que considerar a cláusula geral da boa-fé.
Como supra assinalámos, na fixação da indemnização em causa o julgador a quo ponderou o número total de dias que a autora esteve privada da utilização dos dois veículos automóveis, num total de 721 dias, e multiplicou aquele número de dias por um valor diário de € 10,00.
A apelante discorda quer do período de tempo considerado (721 dias) quer do valor diário fixado pelo tribunal de primeira instância.
Quanto ao primeiro argumenta o seguinte:
a) apenas tomou conhecimento das avarias com a propositura da ação e apenas com a prolação da sentença tomou ela conhecimento de que seria responsável pela regularização dos danos em apreço na presente ação, pelo que não deve ser considerado o período anterior à propositura da ação;
b) o período a considerar deverá corresponder àquele que fosse estritamente necessário à reparação dos veículos, facto que não se apurou; e
c) foi a recorrida que deu azo ao prolongamento no tempo da privação do uso, na medida em que o veículo da marca BMW terá estado imobilizado pelo menos 235 dias, ou seja, entre 19.07.2021 e 11.03.2022, período durante o qual a apelante nunca foi contactada para reparar a mesma, que foi a recorrida quem, por sua conta e risco, decidiu não reparar as duas viaturas, contribuindo, assim, culposamente para o agravamento de todo e qualquer dano decorrente da imobilização dos mesmos; quanto à viatura da marca Fiat, alega ainda que o protelamento da instauração da ação indemnizatória (mais de um ano depois de conhecer a avaria da viatura) importou o agravamento dos custos por privação do uso para além de um tempo razoável.
No caso em apreço, o tribunal recorrido considerou que a autora ficou privada de usar o veículo BMW dois (2) dias, em maio de 2020 e, pelo menos 235 dias, entre 19.07.2021 e 11.03.3033), num total de 237 dias. Quanto ao veículo da marca Fiat, o tribunal de primeira instância considerou que a autora ficou privada do seu uso entre 11.12.2019 e 16.01.2020 e entre 23.07.2021 e 14.10.2022, num total de 484 dias.
A apelante não põe em causa que durante aqueles períodos de tempo (237 dias no caso do BMW e 484 dias no caso do Fiat) a autora esteve privada da utilização/uso das suas viaturas, respetivamente. Mas sustenta que não pode ser responsabilizada pelos danos de privação de uso durante todo aquele período, desde logo porque as reparações efetuadas poderiam, na sua perspetiva, ter sido efetuadas em menos tempo. Porém, a ré não alegou e não provou que a reparação das viaturas em causa podia ter sido efetuada em menos tempo, pelo que este seu argumento para encurtar o período de imobilização pelo qual é responsável não pode proceder. Tão pouco procede o argumento do seu desconhecimento, até à data da propositura da ação, das avarias das viaturas, pois que resulta da factualidade provada que a autora/apelada instou a primeira a proceder às reparações, por cartas registadas com aviso de receção, as quais a apelante ou não reclamou dos CTT ou recusou recebê-las (factos provados n.ºs 22, 23, 26, 27, 55 e 56). Ora, todas as cartas foram enviadas para a sede social da ré/apelante, pelo que as declarações nela contidas produziram os seus efeitos, atento o disposto no artigo 224.º do Código Civil, sendo imputável à apelante um eventual desconhecimento das avarias antes da propositura da presente ação.
O dever de indemnizar abrange os danos sofridos pelo lesado desde a data em que os mesmos se produziram ( a menos que se demonstre a falta de diligência do lesado ou a sua má-fé que hajam contribuído para o agravamento desses danos, justificando-se, nesse caso, o recurso ao disposto no artigo 570.º, n.º 1, do CC[5]) pelo que também não procede o argumento de que a apelante só soube da sua responsabilidade com a prolação da sentença.
A questão da “contribuição” da autora para o agravamento dos danos decorrentes da privação do uso, ou seja, a convocação do disposto no artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil é uma questão nova ou seja uma questão que não foi suscitada perante o tribunal de primeira instância que dela, portanto, não conheceu. Donde está arredada do conhecimento deste tribunal. Não obstante sempre se dirá o seguinte: ambas as viaturas em causa nos autos tiveram, respetivamente, duas avarias diagnosticadas. No que respeita à viatura da marca BMW, esta teve um problema na bomba injetora, que foi reparado a expensas da autora (factos provados n.ºs 16 a 20), tendo-se considerado na sentença recorrida que aquela avaria determinou um período de privação de uso de 2 dias, em maio de 2020; posteriormente, a mesma viatura teve problemas na cabeça da junta (facto provado n.º 21), tendo-se considerado na sentença recorrida que esta segunda avaria determinou um período de pelo menos 235 dias de privação de uso da mesma, compreendido entre 19-07-2021 e 11-03-2022, data em que a viatura foi entregue à autora, já reparada, reparação que foi feita, também, a expensas da autora (facto provado n.º 28). Diz a apelante que nunca foi contactada pela autora para efetuar a reparação desta segunda avaria e, por essa razão, a autora contribuiu para um agravamento dos danos. Sem razão, atento o teor dos factos provados n.ºs 22 e 23, 26 e 27, dos quais resulta que a autora/apelada instou a primeira a proceder à reparação desta concreta avaria por cartas registadas com aviso de receção, as quais a apelante não reclamou dos CTT (no caso da primeira) e se recusou a receber (no caso da segunda) e como se escreveu na sentença recorrida:«(…) no que concerne à segunda avaria no veículo BMW, (…) os factos provados revelam que em 19-07-2021 e, depois, em 18-08-2021, a Autora enviou, através de advogada por si mandatada, cartas registadas com aviso de receção para a morada que corresponde à sede social da Ré (…), comunicando ambas as avarias por escrito a esta Ré, e fazendo menção a contactos prévios da A. para comunicação das mesmas (cfr. factos provados n.ºs 22 e 26). Mais resulta que ambas as cartas foram devolvidas pelos CTT, a primeira com menção de «objeto não reclamado» e a segunda com referência a «carta recusada na morada indicada» (cfr. factos provados n.ºs 23 e 27). (…) Ora, tendo ambas as cartas sido remetidas para a sede da Ré (…), não tendo a Ré reclamado a primeira e tendo recusado expressamente receber a segunda (cfr. facto provado n.º 27) é de concluir que as declarações nela contidas produziram os seus efeitos (…)». Ou seja, as cartas não deixaram de produzir os seus efeitos, designadamente o de reclamar da ré/apelante a reparação da avaria. A autora procedeu a ambas as reparações, a suas expensas, e só não procedeu mais cedo à reparação da segunda avaria porque não tinha meios financeiros para pagar de uma só vez o custo da reparação, orçada em € 2.091,25, e sem cujo pagamento o veículo não lhe podia ser entregue (factos provados n.ºs 24 e 25), sendo que não era exigível à lesada que dispusesse de liquidez para efetuar a reparação à sua custa, ficando à espera de ser ressarcida pelo responsável. Resulta, assim, do exposto que a autora/recorrida não contribuiu para o agravamento dos danos relacionados com a privação de uso da viatura da marca BMW. Quanto à viatura da marca Fiat, a primeira avaria esteve relacionada com os injetores e com a bomba injetora (factos provados n.ºs 45 e 47), tendo o tribunal recorrido considerado que a mesma determinou um período de privação de uso entre 11-12-2019 e 16-01-2020. Para além de estar provado que a autora procedeu à reparação, não se provou factualidade que indicie qualquer contributo da autora para uma reparação menos expedita daquela avaria. A segunda avaria relaciona-se com a cabeça do motor que fez com que o veículo deixasse de funcionar (facto provado n.º 53), tendo o tribunal considerado que esta segunda avaria determinou um período de privação de uso compreendido entre 23-07-2021 e 14-10-2022. Está provado que a autora ainda não deu ordem de reparação desta segunda avaria à oficina porque se encontra a aguardar o desfecho da presente ação (facto provado n.º 61). Alega a apelante que o protelamento da instauração da ação indemnizatória (mais de um ano depois de conhecer a avaria da viatura) importou o agravamento dos custos por privação do uso para além de um tempo razoável. Ora, entre as datas supra mencionadas a autora instou a apelante, em 27.08.2021 e depois em 06.09.2021, para que procedesse à reparação daquela avaria (factos provados n.ºs 55 e 57), chegou a dar ordem de reparação à oficina que lhe fez o primeiro orçamento e, em data próxima de 23.06.2022, colocou a viatura numa outra oficina que lhe fez um segundo orçamento (factos provados n.ºs 59 e 60), não tendo dado ordem de reparação a esta (segunda) oficina porque ficou a aguardar o desfecho dos presentes autos (facto provado n.º 61). Ora, até à propositura da ação, em 14.10.2022, a autora não esteve inerte, como o demonstram os factos acima expostos, não se verificando um protelamento da situação “muito para além do razoável”, pelo que entendemos não ser de convocar a intervenção do regime jurídico previsto no artigo 570.º/1, do Código Civil.
Resulta assim de todo o exposto não haver justificação para não considerar no cálculo do valor indemnizatório o total dos 721 dias de impossibilidade de utilização das viaturas que foi contabilizado pelo julgador a quo.
A apelante defende que a fixação de um valor diário de € 10,00 por recurso à equidade (que foi o fixado na sentença recorrida) é desadequado e desproporcional, sustentando que tal valor não segue os padrões comuns da jurisprudência nacional e que deverá ser ponderada a circunstância de que foi condenada a pagar € 8.401,68 a título de reparação dos veículos; conclui dizendo que aquele valor diário deve ser fixado em € 5,00 e que o valor a arbitrar não deverá ultrapassar ¼ do valor da reparação das viaturas.
No caso em apreço não se provaram danos emergentes ou lucros cessantes decorrentes da impossibilidade temporária da utilização dos dois veículos em causa nos autos, pelo que não há que atender à regra geral do artigo 562.º/2, do CC. Ou seja, não temos valores para calcular a diferença patrimonial entre a situação que existiria se não ocorresse a privação de uso dos bens e aquela que existe por causa dela. Não pode, portanto, deixar-se de recorrer a critérios de equidade. O que pressupõe a ponderação de todos os casos que mereçam tratamento análogo, de molde a se obter uma interpretação e aplicação uniforme, em conformidade com o disposto no artigo 8.º/3, do Código Civil.
In casu provou-se que os veículos em causa têm a natureza de veículos ligeiros de passageiros e que a autora destinava o BMW para se deslocar diariamente para o seu trabalho; desconhece-se o concreto uso que a autora destinava ao veículo Fiat. Tão pouco se apurou o custo de aluguer de veículos com características semelhantes aos dos autos mas, todo o modo, sempre se dirá que o recurso ao valor locativo do bem só será adequado se o uso regular provado relativo ao mesmo consistir justamente na locação, o que não sucede no caso concreto. Vejamos algumas decisões dos tribunais superiores:
- no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2014[6] entendeu-se que o valor diário da indemnização não deveria exceder os € 25,00, tratando-se de um caso em que o veículo a reparar era um veículo ligeiro de passageiros, com o valor venal de € 2.799,00;
- no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.09.2024[7] fixou-se um valor diário de € 20,00, num caso em que a viatura era um veículo ligeiro de passageiros que era usada pelo lesado para ir trabalhar diariamente, para ir ao supermercado e para ir a consultas médicas;
- no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.11.2024[8] fixou-se o valor diário de € 10,00 num caso em que o lesado utilizava a viatura para os seus fazeres diários;
- no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.09.2024[9] fixou-se o valor diário de € 20,00.
- no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.07.2018[10], num caso em que o veículo automóvel do lesado era um veículo ligeiro de passageiras, da marca Mercedes, considerado um veículo topo de gama da marca, adquirido pelo lesado para seu uso nas deslocações diárias, foi fixado um valor diário de € 10,00;
- no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-09-2010[11] julgou-se adequado o valor diário de € 10,00.
Os arestos acima referidos revelam que o valor fixado de € 10,00 diários não se mostra desadequado em face de casos com similitudes no que respeita à natureza das viaturas e utilidades que os lesados delas extraíam.
Por fim, julgamos não ser de acolher o argumento da desproporcionalidade entre o valor da reparação em que a apelante foi condenada e o valor da indemnização pela privação de uso, pois que ali trata-se de ressarcir a autora dos valores por ela despendidos com a reparação das suas viaturas e aqui trata-se de a compensar por ter ficado temporariamente privada de utilizar as suas viaturas automóveis.
Como supra assinalámos, o dever de indemnização em causa, obtido pela multiplicação do número de dias de impossibilidade de uso das duas viaturas automóveis pelo valor diário de € 10,00, abrange os danos sofridos pela lesada desde a data em que os mesmos se produziram, não fazendo sentido que tal valor seja contabilizado a partir da data da notificação da sentença como sustenta a apelante ou que se limite ao período estritamente necessário à reparação do veículo Fiat.
Por todo o exposto, o recurso improcede totalmente, mantendo-se a sentença recorrida nos segmentos impugnados.
Sumário: (…)
III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
As custas da presente instância recursiva são da responsabilidade da recorrente, sendo que no caso nenhum pagamento é devido porque a apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de encargos ou de custas de parte porque a recorrida não apresentou resposta ao recurso,
Notifique.
Évora, 16 de outubro de 2025
Cristina Dá Mesquita
Ana Margarida Pinheiro Leite
Maria Domingas Simões
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[1] Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2001, Almedina, págs. 38 e ss.
[2] Processo n.º 1821/21.6T8VNG.P1.S1, relator António Barateiro Martins, consultável em www.dgsi.pt
[3] Assim, entre outros, Ac. STJ de 10.12.2024, proc. n.º 1821/21.6T8VNG.P1.S1, Cons. António Barateiro Martins, e Ac. da RL de 07.05.2015, proc. n.º 1222/07.9YXLSB-C.L1-6, Desembargador António Martins, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
[4] Assim, por exemplo, Ac. STJ de 02.07.2024, proc. n.º 768/21.0T8VIS.C2.S1, Ac. STJ de 02.07.2024, proc. n.º 5021/21.7T8BRG.G1.S1, Ac. RE de 05.06.2025, processo n.º 2501/23T8FAR.E1, e Ac. RE de 12.09.2024, processo n.º 2375/21.9T8ENT.E1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[5] O qual dispõe, sob a epígrafe Culpa do lesado, que «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
[6] Processo n.º 70/14.4YRLSB-6, consultável em www.dgsi.pt
[7] Processo n.º 2375/21.9T8ENT.E1, consultável em www.dgsi.pt
[8] Citado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05.06.2025, processo n.º 2501/23.3T8FAR.E1, consultável em www.dgsi.pt
[9] Citado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05.06.2025, processo n.º 2501/23.3T8FAR.E1, consultável em www.dgsi.pt
[10] Processo n.º 3664/15.7T8VFX.L1-6, consultável em www.dgsi.pt
[11] Processo n.º 905/08.0TBPFR, consultável em www.dgsi.pt.