TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO-PROMESSA DE ARRENDAMENTO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

- A reapreciação do julgamento de facto pela Relação destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que se evidenciem a partir dos factos dados como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa.
- Desta exigência – decorrente do artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC – resulta que para a procedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, sendo antes necessário que a imponha.
- Constitui título executivo, nos termos do disposto no artigo 14.º-A da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o contrato promessa de arrendamento – acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida – se as partes convencionaram que o contrato promessa ficaria automaticamente convolado no contrato prometido com a ocorrência de uma condição, cuja verificação está demonstrada.
- Não configura abuso de direito, na modalidade de supressio, o não exercício do direito durante um certo lapso de tempo – ademais contido no prazo de prescrição aplicável no caso concreto – se à contraparte pode ser apontada idêntica inércia na definição do litígio.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 3375/23.0T8ENT-A.E1 - Recurso de Apelação
Tribunal Recorrido – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Execução do Entroncamento - Juiz 3
Recorrente – (…) – Investimentos Imobiliários, Lda.;
Recorrida – (…).

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Sumário: (…)

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Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO
(…) instaurou contra (…) – Investimentos Imobiliários, Lda. execução para pagamento de quantia certa.
Alega, em síntese, que:
“No dia 8 de maio de 2014, foi celebrado entre o Exequente e a Executada, (…) – Investimentos Imobiliários, Lda., um Contrato-Promessa de Compra e Venda (“CPCV”), tendo por objeto as frações designadas pelas letras “ES”, “ET”, “EU” e “EV”, integrantes do Edifício Oito (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob o n.º (…), da freguesia de (…).
Na mesma data, foi celebrado um Contrato-Promessa de Arrendamento (“Contrato-Promessa”) sobre as frações acima descritas, no qual a Exequente promete dar de arrendamento à Executada e esta promete arrendar as frações em causa (…)
(…) no dia 18 de outubro de 2018, foi celebrado o contrato de compra e venda das frações “ES” e “ET” (…) – tendo por isso sido convertido o Contrato-Promessa de Arrendamento em definitivo, na mesma data.
(…) a Exequente apenas adquiriu as frações “ES” e “ET” e não, também, as frações “EU” e “EV”, tal como previsto no CPCV, porquanto as partes acordaram, no final de 2014, que o negócio contemplado no CPCV fosse reduzido para duas frações, em concreto as frações “ES” e “ET”, em troca de um aumento do preço das mesmas que foi integralmente pago.
De acordo com o disposto do Considerando H) e da Cláusula Quarta, n.º 1 do Contrato-Promessa (…), o contrato definitivo de Arrendamento celebrar-se-ia na data em que fosse realizada a escritura pública de compra e venda das frações supra identificadas.
(…) nos termos da Cláusula Quarta, n.º 1, e Cláusula Sexta, n.ºs 1, 2 e 3 do Contrato-Promessa, o contrato definitivo de Arrendamento foi celebrado pelo prazo de cinco anos, renovável por prazos de 1 ano automaticamente, se nenhuma das partes se opusesse à renovação, tendo sido estipulada uma renda mensal de € 1.301,46 (…) relativamente à fração “ES” e uma renda mensal de € 1.294,46 (…) relativamente à fração “ET”, perfazendo um total de € 2.595,92 (…).
Considerando que a Executada não liquidou quaisquer rendas devidas pelo arrendamento das frações, desde novembro de 2018, a Exequente, procedeu (…) à resolução do contrato de arrendamento, por carta registada com aviso de receção, datada de 25 de agosto de 2023 (…).
Nessa Carta, a Exequente, interpelou, também, a Executada para pagamento dos valores de renda em atraso, até ao dia 15 de setembro de 2023.
(…) a Exequente não procedeu ao pagamento de quaisquer rendas relativas ao período de novembro de 2018 (incluído), até à data de resolução do Contrato de Arrendamento, em agosto de 2023, equivalente a um período de 58 meses, e, portanto, a 58 rendas não pagas”.
Pede a cobrança coerciva da quantia de € 150.563,36, acrescida de juros de mora vincendos.

Por apenso à execução, veio a executada deduzir embargos.
Alega, em síntese, que
- A embargada incumpriu o contrato de promessa de compra e venda celebrado entre as partes, na medida em que apenas adquiriu duas frações, ao invés de quatro frações, e, como tal, o contrato de arrendamento que estava dependente desse negócio não pode produzir efeitos;
- O contrato de arrendamento das duas frações nunca começou a ser executado;
- A embargada diligenciou junto de terceiros para a realização de atos relativos ao arrendamento dos armazéns aqui em causa;
- A embargada atua em abuso de direito; e
- Inexiste título executivo porque não existe qualquer contrato de arrendamento que tenha produzido efeitos.

Recebida a oposição, foi a exequente notificada para contestar, o que fez. Impugnou os factos alegados pela embargante, reiterando a versão por si avançada no requerimento executivo.

Foi proferido despacho saneador, com enunciação do objeto do litígio e fixação dos temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida decisão que julgou improcedente a oposição à execução.

A embargante, inconformada com esta decisão, dela veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo:
“a) Deriva das declarações da testemunha (…), nos segmentos supra transcritos, deriva claramente que nunca a recorrente sequer equacionou, quanto mais acordou, em proceder a qualquer alteração/redução do objecto do contrato promessa de compra e venda, a qual, de qualquer modo, sempre estaria dependente de redução a escrito nos moldes contratualmente previstos o que, notoriamente, não aconteceu;
b) As declarações de parte do legal representante da recorrente, também nos segmentos transcritos, revelam exactamente a mesma conclusão racional, a qual não é contrariada, antes confirmada contra vontade, pelas declarações de parte da recorrida, que assinala nem sequer ter feito uma qualquer diligencia no sentido de alterar o contrato, limitando-se a dizer que não tinha disponibilidade financeira para o cumprimento integral do mesmo;
c) Sendo que inexiste a forma que o contrato, em si, afirma como essencial para que uma qualquer alteração do contrato possa ocorrer, exactamente a forma escrita e assinada pelas partes, sendo tal requisito de forma absolutamente essencial em termos materiais e probatórios;
d) Para alem de que quer o contrato promessa de compra e venda, quer o contrato promessa de arrendamento têm, de forma expressa, na celebração efectiva e integral do contrato promessa de compra e venda um pressuposto, uma condição, de exequibilidade do contrato de arrendamento, condição essa que notoriamente não se verificou, não sendo o facto de o contrato promessa de compra e venda estar parcialmente cumprido bastante para activar o contrato promessa de arrendamento, tanto mais que quer o contrato promessa de compra e venda como o contrato promessa de arrendamento previam a realização dos actos quanto às quatro fracções e não apenas a uma, duas ou três;
e) Pelo supra exposto, o ponto 4.1.11. dos factos provados, de acordo com o qual Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2018, a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio previsto no CPCV, no sentido de que a exequente adquiriria somente as frações “ES” e “ET” e não, também, as frações “EU” e “EV” tem de ser considerado, inversamente ao que ocorreu na sentença recorrida, como não provado, transitando para o elenco dos mesmos;
f) Inerentemente, e tendo em atenção exactamente os mesmos meios probatórios e o mesmo enquadramento, deve ser dado como provado o facto que a sentença recorrida considerou como não provado, de acordo com o qual Que o contrato promessa de compra e venda não foi cumprido pela exequente, sendo que, por esse motivo e em face ao especificamente contratado, nunca o contrato promessa de arrendamento começou a produzir os seus efeitos;
g) E, pela mesma razão, eliminado o facto não provado que diz não ter ficado provado que A data concreta em que a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio, pois que, não tendo havido tal acordo, também não existe data do mesmo;
h) Nunca se tendo, pois, formado ou constituído qualquer relação de locação, em termos decisivamente prejudiciais para a pretensão formulada pela recorrida nos autos de execução;
i) Em face do artigo 14.ª do NRAU, integra o necessário título executivo a existência de um contrato de arrendamento, algo que, no caso dos autos, inexiste como tal, estando-se em face de um contrato que, numa ínvia perspectiva, conjugado com outros, faz surgir uma relação de locação, o que, de todo em todo, revela a completa ausência de título executivo, em termos determinantes da rejeição da execução ou, não tendo a mesma ocorrido, de procedência de embargos – artigos 726.º, n.º 1, alínea a) e 734.º, por um lado, e 729.º, alínea a) e 731.º do Código de Processo Civil;
j) De qualquer forma e tendo em atenção a tutela conferida pelo artigo 334.º do Código Civil, verifica-se que a recorrida, que não por si, por a mesma reconhecer o não cumprimento do contrato, tendo estado seis anos sem nada reclamar mas por via de terceiros, pretende uma prestação que é desproporcional, desajustada, contraria á sua postura, contraria aos pressupostos que ela mesma criou, sendo o caso dos autos um acabado exemplo de abuso de direito;
k) A sentença recorrida, salvo melhor opinião, mostra-se ferida de erro de julgamento e viola os princípios e comandos legais assinalados nas presentes conclusões de recurso”.

A embargada não apresentou resposta.
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II - QUESTÕES A DECIDIR:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, perante as conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir as seguintes questões.
1. saber se deve ser alterada a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida;
2. saber se existe título executivo;
3. saber se existe abuso de direito por parte da exequente.
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Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos.
4.1.1. No dia 8 de maio de 2014, foi celebrado entre o exequente e a executada, (…) – Investimentos Imobiliários, Lda., um Contrato-Promessa de Compra e Venda (“CPCV”), mediante o qual a executada prometeu vender à exequente as frações designadas pelas letras “ES”, “ET”, “EU” e “EV”, integrantes do Edifício (…), do complexo designado “Centro (…)”, destinado a armazém, sito em (…), freguesia de (…), concelho de Benavente, descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob o n.º (…), da freguesia de (…), inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial n.º (…).
4.1.2. O preço total foi de € 865.427,80, tendo a exequente pago a quantia de € 519.500,00.
4.1.3. Na mesma data, foi celebrado um Contrato-Promessa de Arrendamento (“Contrato-Promessa”) sobre as frações acima descritas, no qual a exequente promete dar de arrendamento à executada e esta promete arrendar as frações em causa.
4.1.4. No dia 18 de outubro de 2018, foi celebrado o contrato de compra e venda das frações “ES” e “ET” por documento particular autenticado, considerando a exequente que, nessa data, foi convertido o Contrato-Promessa de Arrendamento em definitivo, relativamente a essas fracções.
4.1.5. De acordo com o disposto do Considerando H) e da Cláusula Quarta, n.º 1 do Contrato-Promessa, o contrato definitivo de Arrendamento celebrar-se-ia na data em que fosse realizada a escritura pública de compra e venda das frações supra identificadas.
4.1.6. Nos termos da Cláusula Quarta, n.º 1, e Cláusula Sexta, n.os 1, 2 e 3 do Contrato-Promessa, o contrato definitivo de Arrendamento foi celebrado pelo prazo de cinco anos, renovável por prazos de 1 ano automaticamente, se nenhuma das partes se opusesse à renovação, tendo sido estipulada uma renda mensal de € 1.301,46 (mil e trezentos e um euros e quarenta e seis cêntimos) relativamente à fração “ES” e uma renda mensal de € 1.294,46 (mil e duzentos e noventa e quatro euros e quarenta e seis cêntimos) relativamente à fração “ET”, perfazendo um total de € 2.595,92 (dois mil e quinhentos e noventa e cinco euros e noventa e dois cêntimos) a ser pago até ao dia 8 (oito) do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito.
4.1.7. A executada não liquidou quaisquer rendas devidas pelo arrendamento das frações, desde novembro de 2018.
4.1.8. A exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento, por carta registada com aviso de receção, datada de 25 de agosto de 2023.
4.1.9. Nessa carta, a exequente, interpelou, também, a executada para pagamento dos valores de renda em atraso, até ao dia 15 de setembro de 2023.
4.1.10. Em Junho de 2024, a exequente celebrou um contrato de arrendamento com a sociedade (…) – Unipessoal, Lda. relativamente às 2 fracções em causa.
4.1.11. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2018, a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio previsto no CPCV, no sentido de que a exequente adquiriria somente as frações “ES” e “ET” e não, também, as frações “EU” e “EV”.
4.1.12. A embargante pagou à exequente € 93.750,90, por conta de uma compensação mensal equivalente à renda por referência a cada fração adquirida que a embargante teria de pagar à exequente a partir de janeiro de 2015, caso a escritura pública total não fosse outorgada até 31 de dezembro de 2014”.

E, como não provados, os seguintes:
- Que o contrato promessa de compra e venda não foi cumprido pela exequente, sendo que, por esse motivo e em face ao especificamente contratado, nunca o contrato promessa de arrendamento começou a produzir os seus efeitos.
- Que a embargante gastou os € 93.750,90, como adiantamentos por conta das restituições que a ora oponente aceitou fazer se o contrato promessa de compra e venda fosse integralmente executado.
- Que a exequente actua em abuso de direito.
- A data concreta em que a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio.
- Que a embargante utilizou as duas frações como armazém.
- Que a exequente litiga de má fé”.

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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1. Da reapreciação da matéria de facto
Vem o presente recurso interposto, também, da decisão da matéria de facto da primeira instância, considerando a recorrente que foram incorretamente apreciados factos dados como provados e não provados.
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.

O artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, dispõe que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, ambos do C.P.C., tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1, para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso”.
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1, “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto – que a ela conduza – constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico – com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2, do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do C.C. e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v. g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados)”.
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O recurso versa, como se disse, sobre matéria de facto.
Concretamente, a recorrente pretende que:
- o ponto 4.1.11. dos factos provados – “Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2018, a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio previsto no CPCV, no sentido de que a exequente adquiriria somente as frações “ES” e “ET” e não, também, as frações “EU” e “EV” – seja considerado não provado;
- seja considerado provado “Que o contrato promessa de compra e venda não foi cumprido pela exequente, sendo que, por esse motivo e em face ao especificamente contratado, nunca o contrato promessa de arrendamento começou a produzir os seus efeitos;
- seja eliminado o seguinte facto não provado: “A data concreta em que a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio”.

A Recorrente incidiu os seus recursos da matéria de facto, concretizando os factos provados que desejam ver modificados, indicando, para cada um deles, a redação que deve, ou não, ser consagrada. Também indicou os meios de prova que, relativamente a cada um dos factos impugnados, justificam, em sua opinião, a alteração da decisão de 1ª instância.
Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
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Antes, porém, uma referência à necessidade de eliminação de juízos conclusivos insertos na matéria de facto provada e não provada.
O artigo 607º, n.º 4, do CPC, sob a epígrafe “Sentença”, dispõe que “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)”.
Do artigo 646.º, n.º 4, do CPC, na versão anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho resultava que se tinha “por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito”.
E, “Muito embora o artigo 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos” – Acórdão do STJ de 28.9.2017 (Proc. n.º 809/10.7T8LMG.C1.G1) em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2017:809.10.7TBLMG.C1.S1.42?search=0KteNcPAk6lmoOfB7gE).
No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.09.2025 (Proc. n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1) emhttps://juris.stj.pt/1914%2F23.5T8TMR.E2.S1/IlfjflT_SQA3D6pEcY_nfUNx0?search=YljU0_eYpkXjOv40sSk, onde se lê: «Como se sabe, a matéria de facto “não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”16, pelo que as questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não escritas (embora o NCPC não contenha norma correspondente à ínsita no artigo 646º, n.º 4, 1ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o atual artigo 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os factos que julga provados).
Compreende-se que assim seja, uma vez que, como refere o Acórdão do STJ de 22.02.2022 (Proc. n.º 116/16.1T8OLH.E1.S1, 6ª Secção), “a atividade probatória só poderá incidir sobre factos concretos e não sobre juízos valorativos ou conclusões de direito, sob pena de se colocar a atividade de produção de prova num sistema de ligação direta e automática com interpretação e aplicação da lei (…), como se não estivessem em causa dois planos rigorosamente distintos que não se confundem nem se sobrepõem”.
9. É certo que o atual Código de Processo Civil consagra um modelo enformado pelos princípios da prevalência do fundo sobre a forma e do aproveitamento (sempre que possível) dos atos processuais, assistindo-se, pois, a uma tendência para a superação do formalismo e rigidez que tradicionalmente dominavam as abordagens desta problemática, com base na ideia de que não há uma exata separação entre a matéria de facto e a matéria de direito (cfr. infra nº 10).
Não obstante, apesar de “afastada a rigidez na seleção estrita das questões de facto nos quesitos, não pode, o Juiz no novo modelo processual, ignorar a demarcação técnica entre questões de facto e de direito”17. Como tem sido sustentado pela jurisprudência18, são de afastar − na sentença − expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial19.
10. Embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”20), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum21, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo (constituído pelo pedido e pela causa de pedir) ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.22
Vale dizer, também na expressão de Anselmo de Castro, que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”.23».

No caso concreto, o abuso de direito e a litigância de má fé integravam o conjunto de questões a decidir.
Ora, consta do elenco dos factos dados como não provados na decisão recorrida que “a exequente actua em abuso de direito” e que “a exequente litiga de má fé”.
Estamos, pois, perante juízos de valor sobre a atuação da exequente, que devem assentar em factos que o Tribunal tenha dado como provados ou não provados, e integrar, não a fundamentação de facto, mas o enquadramento jurídico da decisão.
Neste sentido, consideram-se não escritos os 3º e 6º itens dos factos não provados;

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Centremo-nos, agora, a impugnação da matéria de facto.
No caso concreto, sem oposição da Recorrente, o Tribunal Recorrido considerou assentes os seguintes factos:
4.1.1- No dia 8 de maio de 2014, foi celebrado entre o exequente e a executada, (…) – Investimentos Imobiliários, Lda., um Contrato-Promessa de Compra e Venda (“CPCV”), mediante o qual a executada prometeu vender à exequente as frações designadas pelas letras “ES”, “ET”, “EU” e “EV”, integrantes do Edifício (…), do complexo designado “Centro (…)”, destinado a armazém, sito em (…), freguesia de (…), concelho de Benavente, descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob o n.º (…), da freguesia de (…), inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial n.º (…).
4.1.2. O preço total foi de € 865.427,80, tendo a exequente pago a quantia de € 519.500,00.
4.1.3. Na mesma data, foi celebrado um Contrato-Promessa de Arrendamento (“Contrato-Promessa”) sobre as frações acima descritas, no qual a exequente promete dar de arrendamento à executada e esta promete arrendar as frações em causa.
4.1.4. No dia 18 de outubro de 2018, foi celebrado o contrato de compra e venda das frações “ES” e “ET” por documento particular autenticado, considerando a exequente que, nessa data, foi convertido o Contrato-Promessa de Arrendamento em definitivo, relativamente a essas fracções.
4.1.5. De acordo com o disposto do Considerando H) e da Cláusula Quarta, n.º 1 do Contrato-Promessa, o contrato definitivo de Arrendamento celebrar-se-ia na data em que fosse realizada a escritura pública de compra e venda das frações supra identificadas.
4.1.6. Nos termos da Cláusula Quarta, n.º 1, e Cláusula Sexta, n.ºs 1, 2 e 3 do Contrato-Promessa, o contrato definitivo de Arrendamento foi celebrado pelo prazo de cinco anos, renovável por prazos de 1 ano automaticamente, se nenhuma das partes se opusesse à renovação, tendo sido estipulada uma renda mensal de € 1.301,46 (mil e trezentos e um euros e quarenta e seis cêntimos) relativamente à fração “ES” e uma renda mensal de € 1.294,46 (mil e duzentos e noventa e quatro euros e quarenta e seis cêntimos) relativamente à fração “ET”, perfazendo um total de € 2.595,92 (dois mil e quinhentos e noventa e cinco euros e noventa e dois cêntimos) a ser pago até ao dia 8 (oito) do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito.
4.1.7. A executada não liquidou quaisquer rendas devidas pelo arrendamento das frações, desde novembro de 2018.
4.1.8. A exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento, por carta registada com aviso de receção, datada de 25 de agosto de 2023.
4.1.9. Nessa carta, a exequente, interpelou, também, a executada para pagamento dos valores de renda em atraso, até ao dia 15 de setembro de 2023.

A Recorrente considera que não se demonstrou que embargada e embargante acordaram na redução do negócio previsto no CPCV, no sentido de que a embargada adquiriria somente as frações “ES” e “ET” e não, também, as frações “EU” e “EV” – facto 4.1.11.
Entre outras coisas diz que resulta do contrato promessa de compra e venda que “Ambas as partes reconhecem que o presente contrato se rege pelos exactos termos das cláusulas nele contidas, pelo que nenhuma das partes poderá reclamar a sua alteração por qualquer compromisso verbal, excepto se este for reduzido a escrito e assinado por ambas as partes” – cláusula nona.

Inexiste, como sabemos, qualquer estipulação escrita de onde resulte a “redução do negócio” previsto no CPCV, em ordem a incluir apenas duas frações e não as quatro inicialmente previstas.
Não obstante, existem vários indícios de que as partes acabaram por, verbalmente, alterar os termos do negócio: por um lado, porque apesar de o CPCV prever a venda conjunta das quatro frações, o contrato de compra e venda incidiu sobre apenas duas delas, o que a executada aceitou; por outro, porque no CPCV, o preço havia estabelecido, globalmente, em relação às quatro frações e, ao ter sido celebrado o contrato definitivo relativamente a apenas duas delas, houve necessariamente uma redefinição do preço para encontrar o valor considerado justo para esse negócio.
Também nesse contexto – o do cumprimento do CPCV e do Contrato Promessa de Arrendamento (cfr. o considerando I deste último), mas não em relação às quatro frações – se compreende o teor do documento 3 junto pela Recorrente na petição inicial, de onde se retira a existência de um valor descrito como “renda” (€ 1.941,69), pago entre janeiro de 2015 e dezembro de 2018, com a referência “Aluguel pago pela loja de (…)”. Valor que é equivalente ao da renda estipulada pelo arrendamento das frações ES e ET – € 2.595,92 – deduzido de 25% de retenção nos termos do ponto 3 da cláusula 6ª do Contrato Promessa de Arrendamento, não tendo havido qualquer demonstração do alegado nos artigos 11º e 12º da petição inicial.
E, por isso, parece-nos algo abusivo invocar a inexistência de estipulação escrita para a “redução do negócio” quando o que decorre dos factos provados é que as partes admitiram, verbalmente, que o contrato fosse objeto de um ajustamento em função de circunstâncias supervenientes com que se depararam.

Questão diferente é a de saber se é ou não possível dar como demonstrado que a embargada e a embargante acordaram na redução do negócio previsto no CPCV, no sentido de que a exequente adquiriria somente as frações “ES” e “ET” e não, também, as frações “EU” e “EV” (facto 4.1.11, que a recorrente pretende passar para o elenco dos factos não provados).
O Tribunal recorrido fundamenta da seguinte forma a sua convicção.
No que respeita ao facto provado no ponto 4.1.11., a prova testemunhal e declarações de parte pouco ou nada esclarecerem neste âmbito, mostrando-se confusas e pouco claras. De facto, por um lado, a exequente referiu que não sabia muito bem o que tinha assinado, por estar em português, língua que não domina. Acresce que, a testemunha que apresentou, (…), apenas sabia o que a parte lhe tinha transmitido. Por outro lado, o legal representante da embargante não soube explicar com clareza o motivo pelo qual, em 2015, quando começou a pagar à exequente as quantias apuradas, numa altura em que não sabia que a exequente ia só comprar duas e não as quatro fracções, como indicado no contrato de promessa, só tinha arrendado essas mesmas duas. Do mesmo modo, não soube precisar de que forma, em 2015, poderia pensar que a exequente só ia comprar duas das fracções, quando a mesma pagou mais do que o valor devido por essas duas fracções. A testemunha que apresentou, (…), por seu turno, também se mostrou confusa e pouco elucidativa neste âmbito. Restou a prova documental. Ora, analisando os documentos, temos que consta do contrato de promessa de arrendamento:
“G.
Os outorgantes convencionaram também que a eficácia do presente contrato-promessa de arrendamento está dependente do contrato de promessa de compra e venda referido no considerando D”.
Verifica-se que no texto não se faz referência a um cumprimento integral do contrato, aceitando-se que o mesmo pudesse ser parcial.
Do mesmo modo, entende-se que se a embargante não pretendia a redução do negócio para as duas fracções, ao invés das quatro, não teria celebrado o contrato definitivo das duas, considerando-se que esta atitude é contraditória com o alegado carácter «indivisível» do primeiro negócio celebrado, o contrato-promessa de compra e venda”.

Analisada a prova gravada – em particular os excertos que a Recorrente transcreve e a que alude na sua motivação – não cremos que devessem conduzir a conclusão diversa daquela a que chegou o Tribunal Recorrido, que encontra respaldo nas regras da experiência comum e nos critérios de normalidade e razoabilidade que norteiam a apreciação da prova.
Ora, como se lê no Ac. da Relação de Guimarães de 13.01.2011, em www.dgsi.pt, “Cumpre recordar aqui, e para além do que acima deixamos dito, outras regras e limites a observar quanto à reapreciação pelo Tribunal da Relação da matéria de facto. Consagra o artigo 655.º do C.P.C. o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Segundo este princípio, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.
“O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (...): é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
Representando, tal como os outros princípios referidos, uma conquista que se tem vindo a desenvolver desde a Revolução Francesa, a livre apreciação implantou-se historicamente em substituição dum sistema de prova legal em que os próprios depoimentos testemunhais eram valorados em função de factores meramente quantitativos. Hoje, a liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui a regra, sendo excepção os casos em que a lei lhe impõe a conclusão a tirar de certo meio de prova” (J. Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., 2008, pág. 668, em anotação ao artigo 655.º).
Sobre o recurso da matéria de facto diz-se, por outro lado, no preâmbulo do DL 39/95, de 15.02, que veio a prever e a regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência — visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso” e, ainda, “... o objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova ...”.
Verificamos, assim, que a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior há-de ser apenas justificada por manifesto e excepcional erro de julgamento, contrário à evidência das provas, não pela leitura e convicção que estas geram no julgador – que é livre, não sendo determinada por qualquer hierarquização das provas, como dissemos – mas pela clara desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão proferida sobre a matéria de facto. Ou seja, os poderes do tribunal da Relação de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto estão reconduzidos aos casos de flagrante desadequação entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão.
É esta, aliás, a posição defendida no Ac. da RC de 22.1.08 (Proc. 738/04.TBTMR, in www.dgsi.pt): “... a existência de um sistemático novo julgamento no âmbito factual, sempre circunscrito aos elementos – audíveis e documentais – disponíveis para a instância de recurso, acabaria por implicar, para os próprios recorrentes, uma inevitável diminuição de base qualitativa nas decisões assim proferidas. Com efeito, toda a indescritível panóplia de elementos visualizáveis que necessariamente rodeia a imediação da apreciação da prova na 1ª instância estaria então absolutamente ausente na instância de recurso. Permitir um segundo julgamento sem a riqueza de um tal cenário de análise seria o mesmo que deliberadamente retirar ao novo julgador um considerável número de instrumentos para uma conscienciosa formação da respectiva convicção, porventura tão ou mais determinantes do que os facultados pelo mero registo magnético, amputando-se o processo decisório da possibilidade de crítica dos elementos genéticos globalmente nele influentes, com um natural e acrescido risco de erro para o resultado final. De forma que, sem prejuízo do indispensável cotejo com todo o sustentáculo fundamentador da decisão impugnada, só limitando a intervenção do tribunal de recurso à detecção de flagrantes e excepcionais situações de inadequação ou irrazoabilidade do juízo e convicção que integram aquele sustentáculo, sindicados no confronto com o peso de certos e discriminados elementos probatórios (a que o recorrente atribui uma relevância desprezada pela instância recorrida) se consegue o desiderato de um melhor julgamento do ponto ou pontos em questão.”
O Ac. do STJ de 10.5.07 (Proc. 06B1868, relatado pelo Conselheiro J. Pires da Rosa) sintetizou, de forma particularmente expressiva, os poderes do Tribunal da Relação sobre a reapreciação da matéria de facto: “O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova) mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Claro – repete-se – que por mais sugestiva ou adequada que seja ou pareça a fundamentação do tribunal recorrido, o tribunal tem de conhecer as provas produzidas, tem de ouvir as cassetes (nos pontos indicados, ao menos) sempre, porque só a partir dessa audição – e do confronto dela com as mais provas - pode aferir dessa adequação ou razoabilidade. Mas se esta existe não há que alterar o que quer que seja, não há que substituir a razoabilidade afirmada por uma outra razoabilidade à qual necessariamente faltariam alguns elementos de suporte – já se falou nisso acima – que ajudaram a estruturar a primeira. Estaria a substituir-se uma razoabilidade por uma outra, todavia mais débil.”
Em suma: no recurso sobre a decisão da matéria de facto não deve ser sindicada a convicção do Juiz de 1ª instância, e apenas deve determinar-se a alteração da matéria de facto em caso de evidente erro de julgamento, traduzido na flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão.
É nos moldes descritos que tem de compreender-se a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior, na certeza de que não pode o tribunal ad quem substituir-se, pura e simplesmente, na convicção formada pelo Juiz no tribunal a quo”.

Neste contexto, mantém-se inalterada a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida.
*
3.2.2.
Da (in)existência de título executivo.
A Recorrente defende que nunca se formou ou constituiu qualquer relação de locação, em termos decisivamente prejudiciais para a pretensão formulada pela recorrida no processo executivo. Diz que em face do artigo 14.º do NRAU, integra o necessário título executivo a existência de um contrato de arrendamento, algo que, no caso dos autos, inexiste como tal, estando-se em face de um contrato que, numa ínvia perspetiva, conjugado com outros, faz surgir uma relação de locação, o que, de todo em todo, revela a completa ausência de título executivo.

Vejamos.
«O título executivo como já se disse, representa uma peça fundamental na ação executiva e está dotado de certas funções que definem o fim e os limites de cada ação.
De acordo com Rui Pinto, o título executivo encerra uma função de certificação o que significa que, consiste num documento que demonstra a aquisição de um direito a uma prestação.24 Esta função, caracteriza-se essencialmente pelo carácter documental do título executivo enquanto “prova” dos factos que deram origem a determinada obrigação.
(…)
Atendendo ao disposto pelo n.º 5 do artigo 10.º do CPC, é possível concluir que o título executivo, além da função de certificação, tem outras duas funções essenciais na ação executiva.
O título tem como função “decidir” o fim que a ação executiva irá ter, nomeadamente, irá determinar se a ação executiva se destina ao pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto mediante a obrigação que encerra26.
Além disso, tem também a importante função de estabelecer os limites da execução, evitando assim que o exequente exija mais do que aquilo que lhe é devido.
Em suma, o título executivo tem três funções na ação executiva, que determinam a sua importância e o tornam imprescindível para a instauração de uma ação executiva: função documentadora / certificação, função de definição do fim da ação e função estabelecedora dos limites da execução.
O título executivo, “determina o porquê, contra quem e para que o credor requer a execução”» e Helena Alexandra Marques Birra, Os Títulos Executivos – Elenco do artigo 703.º do CPC e a Forma do Processo Aplicável, págs. 20 e 21.

O artigo 703.º, n.º 1 do CPC, sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”, estabelece, no agora interessa, que:
1 - À execução apenas podem servir de base:
(…)
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.

Com a aprovação do NRAU, quis-se alargar a eficácia executiva conferida a atos promovidos pelos senhorios, precisamente para evitar o recurso a ações declarativas, sendo evidente a intenção legal de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento apenas conferir título executivo para cobrança de verdadeiras rendas – cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2012, proferido no processo nº 5644/11.2TBMAI-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
É neste contexto que surge o artigo 14.º-A da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano, que dispõe que “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que ocorram por conta do arrendatário”.

No caso concreto, a exequente invoca expressamente o artigo 14.º-A do NRAU, pelo que o título executivo deverá buscar a sua “legitimação” enquanto tal na categoria de documentos a que lei especial reconhece natureza executiva, nos termos do disposto no artigo 703.º, alínea d), do CPC.
Trata-se, pois, de um título executivo composto, integrado pelo contrato de arrendamento, e pela comunicação ao devedor do montante em dívida.

A Recorrente não põe em causa a possibilidade de utilização de um contrato de arrendamento enquanto título executivo, nas condições a que alude o artigo 14º-A do NRAU.
Defende é que, em concreto, não existe título executivo mas os termos em que a coloca a questão da inexistência de título parecem ser, eles próprios, antagónicos.
Ora diz que nunca se formou ou constituiu uma relação de locação, ora diz que estamos perante um contrato que, conjugado com outros – ainda que numa perspetiva que a Recorrente diz não considerar admissível – faz surgir uma relação de locação.
Julgamos estar perante esta última hipótese.

Do contrato promessa de arrendamento celebrado entre exequente e executada resulta, entre outras coisas, que as partes:
- convencionaram o arrendamento dos imóveis objeto do CPCV como forma de garantir um rendimento à exequente;
- condicionaram a eficácia do contrato promessa de arrendamento ao cumprimento do CPCV;
- convencionaram que o contrato promessa de arrendamento se convolaria automaticamente no contrato prometido na data da celebração da escritura de compra e venda prometida efetuar no CPCV.

A conclusão impõe-se: tendo sido celebrado o contrato definitivo em relação a duas frações, constituiu-se, nessa data, em relação a tais frações, o contrato de arrendamento, nele figurando como senhoria a exequente e, como arrendatária, a executada.
E, nesta perspetiva, parece-nos evidente a existência de título executivo, não havendo, deste ponto de vista, fundamento para extinção da execução.
*
3.2.3.
Do abuso de direito
A Recorrente sustenta, a título subsidiário, que a exequente age com abuso de direito. Diz que a exequente nunca reclamou o pagamento de qualquer renda; não diligenciou no sentido de rentabilizar, por via de locação, as frações por si adquiridas, escusando-se a receber qualquer correspondência ou interpelação por parte da recorrente com vista ao cumprimento do contrato promessa por si assinado.
O artigo 334.º do CC, sob a epígrafe “Abuso de direito”, dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Subjacente ao instituto do abuso do direito está a ideia de que, existindo um determinado direito na esfera jurídica do seu titular, o seu exercício é, contudo, abusivo, por redundar “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, de tal forma que o seu reconhecimento “resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico” (v., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra, 1987, pág. 299).
A “concepção adoptada” pelo legislador quanto ao abuso de direito é, de acordo com os mesmos Autores (ibidem, pág. 298), a “objectiva”, pelo que, para a sua verificação, não é “necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites”.
A justificação do instituto do abuso do direito assenta em razões de justiça e de equidade e prende-se com o facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
Poder-se-á, então, dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.
Há neste exercício um desvio flagrante e ostentatório entre a dimensão do direito tutelado e a compressão de um outro estado ou situação jurídica, que não estando salvaguardado pela ordem jurídica, terá obtido pela permanência na esfera jurídica de um outro sujeito, um estádio de quase direito que a consciência jurídica, numa assunção de pré-juridicidade ou juridicidade fáctica, deve tutelar, ou pelo menos, obstar que seja desfeiteado pelo direito validamente constituído.
Os autores costumam assimilar ao instituto do abuso do direito o facto de alguém adotar um comportamento que tipicamente se dirige em determinado sentido e que, extravagantemente, de forma inusitada e perversa, adquire novo rumo ao arrepio do que já estava sedimentado numa determinada relação jurídica, substantiva ou processual.
Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, Livª Almedina, págs. 249-269, sintetiza em seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, sendo que estas tipologias nos permitem, enquadrar parâmetros de atuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito.
As referidas tipologias são as seguintes: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
A exceptio doli traduz-se numa atuação dolosa do titular na formação da sua situação jurídica ou no momento da própria discussão da causa.
No venire contra factum proprium está em causa uma atuação do titular contraditória com um comportamento passado.
Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo comportamento anterior da outra.
Verifica-se uma inalegabilidade formal quando alguém alega de forma contrária à boa-fé, designadamente por lhe ter dado causa, a nulidade formal de um negócio.
A supressio e a surrectio são figuras baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança – mas de sentido inverso. No primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício. No segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria.
O tu quoque traduz-se na inadmissibilidade do titular do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica exigindo a outrem que atue em consonância com as consequências resultantes dessa violação.
Por fim, em sexto lugar, temos o desequilíbrio, ou seja, o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).
Temos presente que todas estas situações não são mais do que tipologias de comportamento em que historicamente se tem ancorado o raciocínio do abuso do direito, sendo que nem todas têm atual justificação e muitas delas se reconduzem, no fim de contas, a outras figuras, designadamente ao venire contra factum proprium, mas de qualquer forma permitem deixar mais claros os parâmetros em que se move o instituto invocado” – Ac. da Relação de Coimbra de 09.01.2017, em www.dgsi.pt.

No caso concreto, é verdade que, estando demonstrada a existência de incumprimento do pagamento das rendas a partir de novembro de 2018 – cfr. o facto provado 4.1.7 – o único escrito no qual a exequente reclama da executada o pagamento das rendas surge com data de 25.08.2023 (cfr. o doc. 5 junto com o requerimento executivo).
Decorreram, portanto, quase 5 anos até que a exequente decidisse agir face à falta de pagamento das rendas, o que não nos parece significativo, ademais em face do disposto no artigo 310.º, alínea b), do CC, que prevê um prazo de prescrição de 5 anos para as rendas e alugueres devidos pelo locatário.
Também não cremos que a inércia da exequente no sentido da invocada falta de rentabilização das frações adquiridas seja reveladora de abuso de direito. A mesma inércia pode ser apontada à executada, que pelo menos entre janeiro de 2015 e o final de 2018 pagou um montante ainda com alguma expressão “por conta de uma compensação mensal equivalente à renda por referência a cada fração adquirida”, sem que, não obstante a comunicação junta como doc. 4 com a petição inicial (interpelação para cumprimento do contrato promessa de compra e venda, com data de 16.09.2019) haja notícia de que, desde então, tenha agido por qualquer outra forma no sentido de definir ou pôr termo a uma situação que, do seu ponto de vista, se reconduzia ao incumprimento do CPCV celebrado com a exequente.
Ademais, provou-se que (só) após a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a embargante, a exequente celebrou novo contrato de arrendamento com uma outra sociedade relativamente às 2 frações em causa, o que nos parece que constitui uma atuação consentânea com critérios de normalidade, pondo em causa a afirmação de que não diligenciou no sentido de rentabilizar, por via de locação, as frações por si adquiridas.

O lapso de tempo decorrido até à propositura da ação não tem, por isso, um significado especial – não representa o não exercício do direito durante um período de tempo excessivo – não evidenciando uma postura contrária aos limites da boa fé ou ao fim social ou económico do direito em exercício.
Portanto, não vislumbramos a existência de abuso de direito.

Improcede, por isso, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal de Relação de Évora em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
*
Custas pela Recorrente.
*
Notifique.
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Évora, 16.10.2025
Miguel Jorge Vieira Teixeira
Maria Isabel Calheiros
Isabel de Matos Peixoto Imaginário