CASAMENTO NO ESTRANGEIRO
INSCRIÇÃO
REGISTO CIVIL
Sumário

- O casamento de dois cidadãos estrangeiros, celebrado no estrangeiro, para ser atendível em Portugal, deve estar inscrito no Registo Civil português;
- Configura interesse legítimo, para efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 4, do Código do Registo Civil, a necessidade de instauração de divórcio, em Portugal, para dissolução de casamento celebrado no estrangeiro.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 901/25.3T8STR.E1 - Recurso de Apelação
Tribunal Recorrido – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Família e Menores de Santarém - Juiz 2
Recorrente – (…)
Recorridos – (…)
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Sumário: (…)


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Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO
(…) instaurou contra (…) ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge.
Em síntese, no que agora interessa, alega que contraiu casamento com o R. no dia 8 de Maio de 2020, em Luanda – Angola, sem convenção antenupcial.
Junta certidão do assento de casamento lavrado na 1ª Conservatória do Registo Civil de Luanda.

Em 06.05.2025, foi liminarmente indeferida a petição inicial, com os seguintes fundamentos.
“O casamento pretendido dissolver pela presente ação, celebrado em Angola, não se encontra transcrito na ordem jurídica portuguesa, pelo que não é válido nesta mesma ordem jurídica nem pode nela ser invocado – cfr. artigo 1669.º do Código Civil.
O divórcio, como é evidente, tem como pressuposto o casamento validamente celebrado entre as partes.
Ora, na medida em que o casamento não se mostra válido à luz do ordenamento jurídico português, os autos não podem seguir seus termos, por falta de um dos pressupostos legais para tanto, questão prévia que obsta ao respetivo prosseguimento – cfr. artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”.

A autora, inconformada com esta decisão, dela veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo:
A) Entendeu a douta sentença ora sob recurso que, o casamento celebrado entre a A. e o R. em Angola, por ser um casamento celebrado no estrangeiro, só seria válido na ordem jurídica portuguesa e, portanto, suscetível de ser dissolvido, perante os tribunais portugueses, se tivesse sido previamente transcrito para Portugal – pelo que entendeu faltar um pressuposto legal para o prosseguimento dos autos, tendo indeferido liminarmente a acção;
B) Não assiste razão à sentença sob recurso, com efeito:
Dispõe-se no artigo 6.º, n.º 4, do CRC, sob a epígrafe “Atos lavrados pelas autoridades estrangeiras”:
“…4 - Se os atos respeitarem a estrangeiros, o seu ingresso no registo apenas é permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição.”;
C) Ao caso importa o disposto no citado n.º 4, uma vez que estamos perante um casamento de pessoas com nacionalidade Angolana, pelo que, o seu ingresso no registo em Portugal apenas é permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição – o que, não é o caso;
D) Por seu turno, sob a epígrafe “Assentos lavrados por transcrição”, dispõe o n.º 1, alínea e), do artigo 53.º do CRC:
“1 - São lavrados por transcrição:
… e) Os assentos de casamento admitidos a registo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º;
E) No caso em apreço, sendo a autora/recorrente e o réu estrangeiros, sem que nenhum deles tenha adquirido nacionalidade portuguesa, e tendo o respetivo casamento sido celebrado no respectivo país da nacionalidade de ambos (Angola), a transcrição do respetivo casamento em Portugal não se mostra obrigatória, atento o disposto na referida alínea e) do n.º 1 do artigo 53.º do CRC;
F) Em suma, não é o facto do casamento da autora e do ré não se encontrar transcrito em Portugal que impedirá o decretamento do divórcio;
G) Neste sentido, se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 20/23.7T8PSR.E1, disponível para consulta em jurisprudência.pt, bem como, este mesmo Tribunal da Comarca de Santarém, Juízo de Família e Menores (neste mesmo Juiz 2), onde nos autos de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge, que correram termos sob o n.º 757/24.3T8STR, foi decretado o divórcio de dois cidadãos angolanos, sem que o respectivo casamento, celebrado em Angola, tivesse sido transcrito;
H) A sentença sob recurso violou o disposto nos artigos 6.º, n.º 4 e 53.º, n.º 1, alínea d), do Código do Registo Civil, os quais apontam no sentido de não ser necessária a transcrição do casamento celebrado no estrangeiro, por não portugueses;
I) Por outro lado, não sendo o registo obrigatório, não é aplicável o artigo 1669.º do CC a que a sentença sob recurso faz referência;
J) Não se verificando a falta de qualquer pressuposto legal para o prosseguimento dos autos – resulta a inadequada aplicação, pela douta sentença recorrida, do 590.º, n.º 1, do CPC;
K) Pelo que, se impõe a revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos, com a designação da tentativa de conciliação a que alude o n.º 1 do artigo 931.º do CPC … Assim se fazendo JUSTIÇA.

Não foi apresentada resposta.

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II – QUESTÕES A DECIDIR
Perante as conclusões das alegações da Recorrente, a única questão que importa apreciar é a da necessidade de registo, em Portugal, de casamento celebrado em Angola, entre dois cidadãos angolanos, para propositura da ação de divórcio.

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Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão, importa ter em consideração os seguintes factos:
a) A. e R. casaram em Angola, em 08.05.2020;
b) O casamento encontra-se registado no assento de casamento n.º (…), de 2020, da 1ª Conservatória do Registo Civil de Luanda.

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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1.
O artigo 1669.º do CC, sob a epígrafe “Atendibilidade do casamento”, estabelece o princípio de que “O casamento cujo registo é obrigatório não pode ser invocado, seja pelos cônjuges ou seus herdeiros, seja por terceiro, enquanto não for lavrado o respetivo assento, sem prejuízo das exceções previstas neste Código”.

O artigo 1.º, n.º 1, do CRCivil diz-nos que o registo civil é obrigatório e tem por objeto, entre outros factos, o casamento (alínea e). O n.º 2 do mesmo preceito diz-nos, por outro lado, que “Os factos respeitantes a estrangeiros só estão sujeitos a registo obrigatório quando ocorram em território português”, o que não foi o caso.
Do artigo 6.º do CRCivil (“Atos lavrados pelas autoridades estrangeiras”) resulta, ainda, que:
1 - Os atos de registo lavrados no estrangeiro pelas entidades estrangeiras competentes podem ingressar no registo civil nacional, em face dos documentos que os comprovem, de acordo com a respetiva lei e mediante a prova de que não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.
2 - Os atos relativos ao estado civil lavrados no estrangeiro perante as autoridades locais que devam ser averbados aos assentos das conservatórias são previamente registados, por meio de assento, nas conservatórias do registo civil ou na Conservatória dos Registos Centrais, de acordo com as regras de competência previstas nos artigos 10.º e 11.º.
3 - Excetuam-se do disposto no número anterior os casos previstos no artigo 190.º e o registo de óbito de estrangeiro que dissolva casamento registado em Portugal.
4 - Se os atos respeitarem a estrangeiros, o seu ingresso no registo apenas é permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição”.

Autora e Réu terão nacionalidade angolana, razão por que o registo do casamento apenas terá lugar se nisso houver interesse legítimo.
Pois bem.
A Autora manifestou intenção de se divorciar do Réu e pretende fazê-lo perante os Tribunais Portugueses.
É, estamos em crer, quanto basta para afirmar-se a existência de um interesse legítimo em ver inscrito o seu casamento com o Réu no Registo Civil português. Mais do que um interesse, de resto, uma obrigação, face ao disposto no artigo 1669.º do CC, sob pena de inatendibilidade do casamento (neste sentido, o Ac. da Relação de Guimarães de 10.10.2024, em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/80-2024-930205075, que mesmo versando sobre a necessidade de registo num processo de revisão de sentença estrangeira, conclui que “No caso em apreciação, estamos perante dois cidadãos brasileiros, casados e divorciados no ..., sendo que a decisão que se pretende rever respeita ao divórcio, ainda que englobando a homologação do termo de acordo extrajudicial de divórcio, a guarda, visita e alimentos relativos ao filho menor de ambos, CC, aí apresentado pelas partes.
Ora, conforme decorre do preceituado no artigo 1.º, d) e q). do CRC, quer o casamento, quer o divórcio, são situações que dizem respeito ao estado civil das pessoas e que estão sujeitos a registo civil, pelo que os correspondentes factos só podem ser invocados depois de registados, nos termos do artigo 2.º do mesmo diploma.
Como tal, a obrigatoriedade do registo civil e a decorrente condição de eficácia dos atos a ele sujeitos são suscetíveis de integrar a ordem pública internacional do Estado Português. [4]
A propósito das decisões dos tribunais estrangeiros, referentes ao estado ou à capacidade civil dos estrangeiros, prevê o artigo 7.º, n.º 2, do CRC, que as mesmas estão nos mesmos termos sujeitas a registo, lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas.
Daí que nestes casos, tal como ocorre com as decisões dos tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil dos portugueses (artigo 7.º, n.º 1, do CRC), a transcrição constitua condição sine qua non da produção dos efeitos do casamento em Portugal (artigos 1.º, alínea d), 2.º, 6.º e 7.º do CRC), sendo necessária a sua comprovação através do correspondente assento no registo civil nacional, a fim de posteriormente poder ser averbado o divórcio em resultado da revisão da decisão estrangeira que o declarou [5].
Assim sendo, pretendendo a ora requerente invocar em Portugal o seu divórcio decretado no ..., terá de obter a revisão e confirmação da decisão que o decretou (o que vem requerido nos presentes autos), mas para que a sua eficácia concreta seja obtida, terá de inscrever tal estado no registo civil, e para tal terá de previamente obter a transcrição para o mesmo registo nacional do seu casamento, conforme também decorre do disposto nos artigos 6.º, n.ºs. 1 e 2, do CRC [6], sem a qual também não poderia ser dado cumprimento à comunicação deste Tribunal ao Registo Civil, nos termos previstos nos artigos 7.º, n.º 2 e 78.º, n.º 1, do CRC”.

À necessidade de registo não obsta, por um lado, o disposto no artigo 1.º do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola, na medida em que dele resulta, precisamente, que “Os nacionais de cada um dos Estados Contratantes têm acesso aos tribunais do outro nos mesmos termos que os nacionais deste”, encontrando-se, portanto, os cidadãos angolanos nas mesmas condições e sujeitos às mesmas exigências processuais e substantivas que os cidadãos portugueses em matéria de acesso aos Tribunais; e por outro, o disposto no artigo 81.º do mesmo Acordo, que estabelece a obrigatoriedade de permuta de certidões de assentos de registo civil e de decisões sobre estado civil, já que o que está em causa é a necessidade de registo do casamento de Autora e Réu em Portugal – que, reconhecidamente, não foi efetuado – e não as razões para a omissão de tal ato.

Improcede, por isso, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal de Relação de Évora em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Évora, 16.10.2025
Miguel Jorge Vieira Teixeira
Anabela Raimundo Fialho
Rosa Barroso