ARRESTO
EMBARGOS DE TERCEIRO
PRAZO
Sumário

1 – A incompleta identificação da jurisprudência invocada na sentença não determina a nulidade desta.
2 – O arresto constitui um acto ofensivo da posse ou de outro direito com ele incompatível para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 342.º e no n.º 2 do artigo 344.º do CPC.
3 – A venda ou a adjudicação de um bem penhorado em processo executivo constituem, não o facto que determina o início da contagem do prazo para a dedução de embargos de terceiro, mas, pelo contrário, o facto que, em qualquer caso, marca o limite temporal para essa dedução.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 4010/15.5T8STB-D.E1


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Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa instaurada por (…), (…) e (…) contra a sociedade (…) Karting – Kartódromo de (…), Lda., a sociedade (…) – Empreendimentos Imobiliários Unipessoal, Lda., deduziu embargos de terceiro contra os exequentes.

Esses embargos foram liminarmente indeferidos, com fundamento na sua intempestividade.

A embargante interpôs recurso de apelação do despacho de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A decisão recorrida, proferida em 24 de Junho de 2025 pelo tribunal a quo, indeferiu liminarmente a petição de embargos de terceiro, por entender que o direito da embargante havia caducado, considerando como termo inicial para a contagem do prazo o registo do arresto (08.08.2003).

2. Tal entendimento incorre em erro de julgamento, dado que a recorrente (…) – Empreendimentos Imobiliário Unipessoal, Lda. só foi juridicamente constituída em 2007, sendo manifestamente impossível deduzir embargos quatro anos antes da sua existência.

3. O tribunal a quo incorreu em nulidade da sentença por alegar jurisprudência sem fornecer os dados essenciais para a sua consulta, impedindo a verificação da existência e teor dos acórdãos citados.

4. Verifica-se igualmente nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que a sentença não se pronunciou sobre toda a factualidade levada a tribunal para aquilatar a justa composição do litígio.

5. A recorrente não se confunde com a devedora originária, sendo apenas sócia desta, e a decisão recorrida ignora a distinção entre as entidades envolvidas.

6. A recorrente (…) nunca foi citada para o que quer que fosse no âmbito dos autos principais, e todos os sujeitos processuais tinham conhecimento da sua exploração do estabelecimento comercial Kartódromo de (…), anuindo e consentindo com a sua presença e continuidade.

7. De acordo com a jurisprudência dominante, o arresto, enquanto medida cautelar, não consuma perda de posse ou direito, não se configurando como acto lesivo imediato para efeitos do artigo 344.º, n.º 2, do CPC.

8. O prazo de caducidade previsto no artigo 344.º, n.º 2, do Código de Processo Civil é aplicável apenas aos embargos de terceiro de função repressiva, não se aplicando aos embargos de função preventiva.

9. No caso em apreço, a posse do imóvel e a exploração do kartódromo de (…) estiveram sempre na esfera da apelante desde 2007, sem perturbação efectiva até Março de 2025.

10. A primeira efectiva agressão ao direito da recorrente ocorreu apenas em Março de 2025, com a interpelação directa pelos exequentes para entrega de chaves e cessação da exploração.

11. Pelo exposto, a data a considerar para o início do prazo para a dedução dos embargos é Março de 2025, o que torna a sua apresentação em 14 de Abril de 2025 clamorosamente tempestiva.

12. Os presentes embargos revestem um carácter misto – preventivo e repressivo – tendo sido instaurados antes da consumação da ordem judicial de entrega dos bens, por um lado e por outro de imediato foi requerida a restituição da posse após o esbulho, pelo que são tempestivos e deveriam ter sido admitidos.

13. A decisão recorrida viola os princípios basilares do ordenamento jurídico português, nomeadamente o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP), o princípio da proporcionalidade e da protecção da posse de boa-fé.

14. A interpretação formalista do artigo 344.º, n.º 2, do CPC, que ignora a alternativa do «efectivo conhecimento da lesão», viola a Constituição da República Portuguesa ao negar o princípio da tutela jurisdicional efetiva e contraria a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores.

Face ao teor destas conclusões, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade da decisão recorrida;

2 – Tempestividade dos embargos.

Os factos julgados assentes pelo tribunal a quo são os seguintes:

1. Na Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém estão inscritas, relativamente ao prédio descrito sob o n.º (…), lote de terreno designado por Lote 1, situado na Zonal Industrial (…) na freguesia de (…), composto por um edifício de dois pisos para comércio e serviços e logradouro, sendo que área coberta é de 1.771,66 m2 e área descoberta de 23.2228,34 m2:

- Pela (…), de 1992/02/05, aquisição a favor do Estado;

- Pelas Aps. (…), (…) e (…), de 1992/02/14, transferência de património a favor do Estado;

- Pela Ap. (…), de 1997/04/10, aquisição a favor do Estado;

- Pela Ap. (…), de 1997/05/14, autorização de loteamento;

- Pela Ap. (…), de 2001/04/19, compra do direito de superfície pela sociedade executada por 50 anos;

- Pela Ap. (…), de 2003/08/08 – arresto a favor dos exequentes;

- Pela Ap. (…), de 2006/02/17 – conversão do arresto em penhora a favor dos exequentes;

- Pela Ap. (…), de 2009/01.02 – constituição de hipoteca judicial a favor dos exequentes para garantia do capital de € 140.062,44 até ao montante máximo assegurado de € 152.668,06 euros.

2. Por requerimento apresentado a 23.07.2021 nos autos principais, veio (…), na qualidade de sócio-gerente da sociedade (…) – Unipessoal, Lda., pessoa colectiva n.º (…), com sede na Av. de (…) – Zona Industrial (…), Lote 1, (…), reclamar do acto de adjudicação do sr. Agente de Execução, Dr. (…), nos termos e para os efeitos do artigo 723.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil, o que o faz nos seguintes termos: ”(…)”.

3. Por decisão de 13.07.2021, proferida nos autos principais, o sr. Agente de Execução adjudicou aos exequentes o direito de superfície penhorado nos autos nos seguintes termos:

«Adjudico aos exequentes (…), contribuinte n.º (…), (…), contribuinte n.º (…), (…), contribuinte n.º (…), o Direito de Superfície do prédio urbano sito na Zona da Indústria (…) - Lote n.º 1, com área total de 25.000,00 m2, composto por edifício de dois pisos para comércio e serviços com área coberta de 1.771,66 m2 e descoberta de 23.228.34 m2, descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Santiago do Cacém sob o n.º (…), da freguesia de (…), e inscrito na matriz predial urbana n.º (…), da freguesia de (…) do Serviço de Finanças de Santiago do Cacém pelo valor de € 440.000,00 (quatrocentos e quarenta mil euros), nos termos do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil ficam dispensados do depósito do preço.»


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1 – Nulidade da decisão recorrida:

A recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula porque:

- Cita jurisprudência que não identifica devidamente, assim inviabilizando a sua consulta;

- Não se pronunciou sobre toda a factualidade relevante para a justa composição do litígio que foi alegada.

As causas de nulidade da sentença são referidas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas legais adiante referenciadas sem indicação da sua proveniência). Esta norma é aplicável, com as necessárias adaptações, aos despachos, ex vi do n.º 3 do artigo 613.º.

A incompleta identificação da jurisprudência invocada na sentença não se encontra prevista em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 615.º. A verificar-se, traduzir-se-á numa mera deficiência da fundamentação jurídica da sentença, sem outra consequência que a da diminuição da sua capacidade persuasiva.

No que concerne à alegada falta de pronúncia do tribunal a quo sobre a totalidade dos factos alegados com relevância para a justa composição do litígio, deve notar-se, desde logo, que a recorrente não especifica que factos tem em vista. Seja como for, a insuficiência da matéria de facto não constitui causa de nulidade da sentença. A alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º prevê a ausência de fundamentação de facto e não a mera insuficiência desta, a qual, a verificar-se, terá outras consequências, como decorre da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º.

2 – Tempestividade dos embargos:

O tribunal a quo considerou que os embargos são intempestivos com base em fundamentação que assim se resume:

- Sendo a penhora precedida de arresto, é a partir da data do registo deste que se conta o prazo para a dedução de embargos de terceiro;

- No caso dos autos, o arresto foi registado em 08.08.2003 e os embargos foram deduzidos em 14.04.2025;

- Não tendo a recorrida provado que só teve conhecimento do arresto em data posterior à do registo deste, é a partir desta última que se deve contar o prazo para dedução dos embargos, sendo evidente que decorreram mais de 30 dias entre 08.08.2003 e 14.04.2025.

A esta fundamentação, a recorrente contrapõe o seguinte:

- A recorrente nunca foi citada para os termos da acção executiva, apesar de todos os sujeitos processuais saberem ser ela quem explora o estabelecimento comercial denominado «Kartódromo de (…)»;

- A decisão recorrida errou ao contar o prazo de 30 dias estabelecido no n.º 2 do artigo 344.º a partir da data do registo do arresto (2003), desde logo porque a recorrente apenas foi constituída em 2007;

- O arresto, enquanto medida cautelar, não consuma qualquer perda de posse ou direito, não configurando um acto lesivo imediato para efeitos do n.º 2 do artigo 344.º;

- O prazo estabelecido no n.º 2 do artigo 344.º só começa a correr a partir da tomada de posse, da adjudicação, ou de qualquer outro acto concreto que afecte o exercício da posse;

- A recorrente é possuidora do imóvel e explora o Kartódromo de (…) desde 2007, sem qualquer perturbação efectiva até e, mesmo, após a adjudicação aos exequentes;

- Só em Março de 2025 foi a recorrente interpelada pelos exequentes (na presença do agente de execução) para cessar a exploração, procedendo à entrega das chaves e dos contratos;

- Pelo que é apenas a partir desta data (Março de 2025) que deve contar-se o prazo para a dedução dos embargos, o que os torna tempestivos, dado que o foram em 14.04.2025;

- A decisão recorrida viola o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), bem como os princípios da proporcionalidade e da protecção da posse de boa-fé.

Analisemos estes argumentos.

A recorrente não é parte na acção executiva, pelo que não tinha de ser citada para os termos desta. Refira-se, a este propósito, que, mesmo não sendo parte e não tendo sido citada, a recorrente interveio espontaneamente na acção executiva, como resulta do ponto 2 do enunciado dos factos provados e adiante analisaremos com mais pormenor.

Se a recorrente tiver, como alega, sido constituída em 2007, o tribunal a quo terá, efectivamente, errado ao contar o prazo de 30 dias estabelecido no n.º 2 do artigo 344.º a partir da data do registo do arresto, cerca de 4 anos antes. Todavia, a correcção deste hipotético erro apenas determinaria que o momento do início da contagem daquele prazo avançasse 4 anos. Ora, entre 2007 e 14.04.2025, data em que os embargos foram deduzidos, passaram, obviamente, mais de 30 dias. Não é, pois, com este argumento que a recorrente demonstra a tempestividade dos embargos.

A argumentação da recorrente que releva é aquela a cujo resumo procedemos nos pontos subsequentes.

A tese de que o arresto não configura um acto ofensivo da posse ou de outro direito com ele incompatível, para efeitos do n.º 1 do artigo 342.º e do n.º 2 do artigo 344.º, e de que o prazo estabelecido nesta última norma legal só começa a correr a partir da venda ou da adjudicação em processo executivo, ou, pior ainda, da entrega do bem ao adquirente, é insustentável.

O n.º 1 do artigo 342.º estabelece que se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. O n.º 2 do artigo 391.º estabelece que o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora em tudo o que não contrariar o seu regime específico. Portanto, pela sua natureza e pelos seus efeitos, o arresto constitui um acto ofensivo da posse ou de outro direito com ele incompatível, para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 342.º e no n.º 2 do artigo 344.º.

Mais, a simples referência do n.º 1 do artigo 342.º à penhora demonstra o infundado da tese da recorrente. De acordo com esta, nunca a penhora poderia ser considerada um acto ofensivo da posse ou outro direito com ela incompatível, uma vez que antecede a venda ou a adjudicação em processo executivo e, mais ainda, a efectiva entrega do bem ao adquirente. A referência legal à penhora como acto ofensivo da posse ou outro direito com ela incompatível demonstra que não é assim.

Por outro lado, o n.º 2 do artigo 344.º estabelece que o embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas. Decorre da simples leitura desta norma legal que a venda ou a adjudicação do bem penhorado em processo executivo constituem, não o facto que determina o início da contagem do prazo para a dedução de embargos de terceiro, mas, pelo contrário, o facto que, em qualquer caso, marca o limite temporal para essa dedução.

Feita esta clarificação do regime legal relativo ao prazo para a dedução de embargos de terceiro, atentemos no que se passou no caso dos autos.

Como anteriormente referimos, a recorrente interveio espontaneamente no processo executivo. De acordo com o ponto 2 do enunciado dos factos provados, a recorrente reclamou da adjudicação através de requerimento apresentado em 23.07.2021. A consulta daquele processo revela que, antes disso, já a recorrente juntara procuração forense e solicitara a possibilidade de a ele aceder através do Citius (19.01.2020), tendo ainda requerido a extinção da instância por deserção (04.02.2020).

Em face disto, é notório que a recorrente tomou conhecimento do arresto e da penhora do direito de superfície, o mais tardar no dia 23.07.2021. Aliás, no requerimento que nesta data apresentou, a recorrente dissertou longamente acerca da legalidade daquela penhora, tendo requerido o seu levantamento. Sendo assim, o prazo de 30 dias estabelecido no n.º 2 do artigo 344.º iniciou-se, o mais tardar, no dia 23.07.2021, tendo expirado há longo tempo.

A isto acresce que, tendo os embargos sido deduzidos após a adjudicação do direito de superfície penhorado, sempre seriam intempestivos nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 344.º.

Ao contrário do que a recorrente afirma, ainda que sem um mínimo de fundamentação, a interpretação que fazemos do n.º 1 do artigo 342.º e do n.º 2 do artigo 344.º, idêntica à do tribunal a quo, não viola o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), nem os princípios da proporcionalidade e da protecção da posse de boa-fé.

Muito pelo contrário, a interpretação proposta pela recorrente é que violaria tais princípios. Entender que apenas a venda ou a adjudicação do bem penhorado constituem um acto ofensivo da posse ou outro direito incompatível para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 342.º e no n.º 2 do artigo 344.º implicaria vedar a defesa daqueles direitos nas fases anteriores através de embargos de terceiro. O titular desses direitos ficaria privado deste meio de defesa, ainda que os mesmos fossem postos em causa através de um arresto ou de uma penhora num processo em que ele nem sequer tem legitimidade para intervir, por não ser parte. Parece-nos evidente que, isso sim, poria em causa os princípios que a recorrente invoca.

Concluindo, os embargos de terceiro deduzidos pela recorrente são manifestamente intempestivos, tendo o tribunal a quo decidido bem ao indeferir liminarmente a petição inicial com esse fundamento. Daí que o recurso deva ser julgado improcedente.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.


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Sumário: (…)

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16.10.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Cristina Dá Mesquita (1ª adjunta)

Anabela Raimundo Fialho (2ª adjunta)