É ofensiva dos bons costumes a deliberação do conselho de administração que, sem justificação conhecida e sem consultar ou, sequer, informar os accionistas, determinou que fossem postos à venda dois empreendimentos turísticos, pertencentes a uma sociedade anónima, que são essenciais para a prossecução do objecto desta.
(Sumário do Relator)
A providência requerida consiste em que seja ordenado, à requerida, na pessoa dos seus administradores que ainda estiverem em funções e de quaisquer mandatários ou procuradores, que provisoriamente se abstenham de fazer qualquer oferta, proposta ou negócio tendente à alienação dos empreendimentos turísticos «(…) Apartment Hotel» e «(…) Resort e Spa», até que, como resultado da acção a intentar pela requerente, a requerida seja condenada a abster-se de realizar esse negócio sem prévia deliberação da assembleia geral.
Na sequência da realização da audiência de produção de prova, foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:
«Atento o supra exposto e ao abrigo das mencionadas disposições legais julga-se procedente o presente procedimento requerido por (…) Limited (in liquidation) contra (…) Portugal, S.A., pelo que se determina:
1. Que a Requerida, na pessoa dos seus administradores que ainda estiverem em funções e de quaisquer mandatários ou procuradores, se abstenha de fazer qualquer oferta, proposta ou negócio tendente à alienação dos empreendimentos turísticos (…) Apartment Hotel e (…) Resort e Spa, sem prévia deliberação da assembleia geral; e,
2. Nos termos do disposto no artigo 369.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a inversão do contencioso, dispensando a Requerente do ónus de propositura da ação principal. (…)»
Citada, a requerida interpôs recurso de apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
A. A recorrente não se conforma com a decisão que decretou a providência cautelar requerida pela recorrida, sem audição prévia e com inversão de contencioso, impedindo-a de promover a venda dos imóveis sem prévia deliberação da assembleia geral, porquanto esta é uma competência exclusiva do órgão de administração.
B. Esta decisão viola o disposto nos artigos 391.º, n.º 5, 373.º, n.º 3, 405.º e 406.º, e), do CSC.
C. As sociedades anónimas integram órgãos sociais com competência própria, estando a gestão atribuída ao conselho de administração.
D. A assembleia geral não pode diminuir ou afastar a competência da administração nem deliberar actos de gestão fora das hipóteses previstas na lei.
E. O conselho de administração tem competência exclusiva para adquirir, alienar e onerar bens imóveis, competência essa que lhe é imperativamente atribuída por lei.
F. O artigo 373.º, n.º 3, do CSC é uma norma imperativa e, como tal, aos accionistas estão vedados poderes deliberativos, em matéria de gestão social, salvo os casos directamente permitidos por lei ou em caso de pedido do órgão de administração.
G. Nos termos do artigo 391.º, n.º 5, a circunstância de ter terminado o mandato do conselho de administração não implica uma restrição ao exercício das suas funções.
H. A sua actuação não está restringida nem os administradores se tornam precários ou os seus poderes necessariamente reduzidos.
I. Verifica-se, assim, a inexistência de fumus boni iuris, porquanto o conselho de administração mantém-se em funções, sem restrição de poderes, sendo a venda de imóveis (cujo produto servirá para fazer face ao pagamento de credores) uma atribuição exclusiva deste órgão.
J. Pelo exposto, deverá ser revogada a decisão sub judice, que decretou a providência requerida pela recorrida e, por conseguinte, revogada a decisão de inversão do contencioso, assim se fazendo justiça.
O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1 – A requerente é uma sociedade comercial constituída e existente ao abrigo das leis de Guernsey, conforme certidão de registo de 8 de Outubro de 2024 e respectiva tradução certificada (doc. n.º 1).
2 – Por sentença proferida em 31 de Julho de 2020, o tribunal competente da Ilha de Guernsey (Royal Court of the Island of Guernsey) determinou a dissolução forçada e entrada em processo de liquidação (compulsory winding up) da requerente, o que é equivalente a um processo de insolvência (cfr. doc. n.º 1, bem como sentença e respectiva tradução certificada junta como doc. n.º 2).
3 – No processo de liquidação da requerente foram nomeados seus liquidatários (…) e (…), conforme decisões de 31 de Julho de 2020 e 13 de Julho de 2021, respectivamente (cfr. doc. n.º 2 e doc. n.º 3).
4 – As referidas decisões que decretaram a dissolução forçada da requerente e a nomeação dos seus liquidatários foram reconhecidas e publicadas em Portugal, nos termos dos artigos 288.º e 290.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cfr. cópia do respetivo anúncio, que constitui o doc. n.º 4).
5 – Nos termos da sentença proferida pelo tribunal de Guernsey em 31 de Julho de 2020, o mesmo determinou expressamente que aos liquidatários compete, designadamente, preservar os activos da requerente, bem como iniciar as acções que sejam necessárias para proteger, recuperar ou obter os bens pertencentes à requerente ou que lhe sejam devidos (cfr. anexo 1, n.ºs 5, 6 e 12 da sentença de 31 de Julho de 2020, doc. n.º 2).
6 – Estes poderes dos liquidatários vieram a ser ulteriormente especificados pelo tribunal de Guernsey em sucessivos despachos («Directions Orders») proferidos entre 2020 e 2022.
7 – Por despacho de 7 de Junho de 2022 o tribunal de Guernsey declarou que os liquidatários «continuarão a ter e a poder exercer todos os direitos associados às (...) participações sociais (ou equivalente) em quaisquer outras subsidiárias ou investimentos legalmente detidos pela Sociedade».
8 – Bem como poderão «continuar a tomar todas e quaisquer medidas que […] considerem razoáveis para preservar e liquidar os activos da sociedade, incluindo as participações sociais e as participações sociais (ou equivalentes) em quaisquer outras subsidiárias ou investimentos legalmente detidos pela sociedade» [cfr. ponto 1, alíneas (a) e (b), do despacho de Junho de 2022, doc. n.º 5].
9 – Estes poderes decorrem também das leis de Guernsey, designadamente dos artigos 413.º, n.ºs 1 e 4, e 414.º, n.º 1, da Lei das Sociedades de Guernsey [«Companies (Guernsey) Law, 2008»].
10 – E são exclusivos, pois que, com a nomeação dos liquidatários, cessaram os poderes dos administradores da (…) Limited (in liquidation), excepto se os liquidatários ou o tribunal autorizassem a manutenção dos poderes desses administradores.
11 – Segundo as leis de Guernsey e as decisões sucessivamente proferidas pelo tribunal de Guernsey, desde 31 de Julho de 2020 apenas aos liquidatários compete a representação da (…) Limited (in liquidation), ora requerente, para todos os efeitos, designadamente para o exercício dos direitos associados às participações sociais que detenha em quaisquer sociedades e em juízo.
12 – A requerida é uma sociedade anónima com o capital social de € 6.000.000,00 (seis milhões de euros), dividido em 1.200.000 (um milhão e duzentas mil) acções escriturais de valor nominal de € 5,00 (cinco euros) cada uma (cfr. certidão do registo comercial da requerida e respectivos estatutos, docs. n.º 6 e 7).
13 – Os últimos membros designados para o conselho de administração da requerida foram …, presidente, …, … e … (docs. n.ºs 6 e 7).
14 – Estes membros foram designados por um período de três anos que terminou em 31 de Dezembro de 2019 (cfr. doc. n.º 6).
15 – Nos termos dos estatutos da requerida, os membros do conselho de administração são designados por períodos de três anos (doc. n.º 7).
16 – Desde a última eleição inscrita no registo comercial, não voltaram a ser designados membros do conselho de administração nem outros titulares de órgãos, em particular para os triénios 2020/2022 e 2023/2025.
17 – A requerente é titular de 888.000 (oitocentas e oitenta e oito mil) acções na requerida, que correspondem a cerca de 74% do capital social desta, conforme evidenciado na cópia certificada do livro de registo de acções (doc. n.º 8), bem como na mais recente lista de accionistas da requerida, de Dezembro de 2018, arquivada na conservatória do registo comercial (doc. n.º 9).
18 – Resulta da folha 15 da cópia certificada do referido livro de registo que a requerente detém na requerida, anteriormente denominada (…) – Sociedade de Desenvolvimento Turístico, S.A., 888.000 (oitocentas e oitenta e oito mil) acções desde 2008 (cfr. doc. n.º 8).
19 – Também são accionistas da requerida as sociedades (…) Portugal II, Unipessoal Lda. («… II») e a (…) Portugal III, Unipessoal Lda. («… III»), que detêm, cada uma, uma acção representativa de 0,00008% do capital social da requerida (cfr. folhas 8 e 9 da cópia certificada do livro de registo de acções, doc. n.º 8).
20 – A requerente é a sócia única da (…) II e da (…) III (cfr. certidões de registo comercial que constituem os docs. n.ºs 11 e 12).
21 – Entre os bens que fazem parte do património da requerida, estão dois empreendimentos turísticos sitos na freguesia de Almancil, em Loulé, no Algarve:
a) O «(…) Apartment Hotel», sito em (…) – (…), inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…) da freguesia de Almancil (doravante, o «…») (cfr. cópia informativa de certidão de registo predial com descrição genérica do prédio, junta como doc. n.º 13); e,
b) O «(…) Resort e Spa», sito em (…), prédio misto inscrito na respetiva matriz sob os artigos (…) e (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), da freguesia de Almancil (doravante, o «…») (cfr. certidão de registo predial, caderneta predial urbana e caderneta predial rústica juntas como docs. n.º 14 a 16).
22 – O «(…)» é um empreendimento turístico do tipo «hotel apartamento», composto por um edifício de quatro pisos destinado a fins turísticos, que inclui apartamentos, restaurante, lavandarias, recepção, piscinas, balneários, parque infantil e apoios, com um total de 75 (setenta e cinco) fracções autónomas afectas à exploração turística, e uma área de 14.800 m2 (cfr. doc. n.º 13, pág. 1).
23 – Situado no município de Loulé, o «(…)» é considerado um empreendimento turístico de luxo, encontrando-se numa região de elevado prestígio, cercado por um conjunto de resorts de golf internacionalmente reconhecidos pela sua excelência (cfr. capturas de ecrã juntos como doc. n.º 17, acessíveis em https://www.....com/.../algarve e https://www.....com/region/europe+portugal/clubs).
24 – Está anunciado publicamente como um hotel de cinco estrelas (cfr. captura de ecrã do site internet do «(…)», acessível em https://www....-hotel.com/, junta como doc. n.º 18), actualmente em processo de renovação completa (cfr. doc. n.º 18).
25 – Das 75 (setenta e cinco) fracções autónomas que compõem o «(…)», a requerida é proprietária de 72 (setenta e duas) delas, correspondentes às frações A, AA, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH, AI, AJ, AK, AL, AM, AN, AO, AP, AQ, AR, AS, AT, AU, AV, AW, AX, AY, AZ, B, BB, BC, BD, BE, BF, BG, BH, BI, BJ, BK, BL, BM, BN, BO, BP, BQ, BR, BS, BT, BU, BV, BW, C, D, E, F, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V, W, X, Y, Z (cfr. doc. n.º 13 e cópias informativas das certidões de registo predial juntas como doc. n.º 19).
26 – O «(…)» é um empreendimento turístico ainda em construção e com uma área de 501.422 m² (cfr. doc. n.º 14).
27 – A requerida é a única proprietária do prédio onde se situa este empreendimento (cfr. ap. …, de …, constante da pág. 4 do doc. n.º 14).
28 – O valor patrimonial tributável da parte urbana que compõe o prédio foi fixado, com referência ao ano de 2022, em € 2.415.385,15 (dois milhões e quatrocentos e quinze mil, trezentos e oitenta e cinco euros e quinze cêntimos) (cfr. doc. n.º 15).
29 – O valor patrimonial tributável da parte rústica foi fixado, com referência ao ano de 1989, em € 7.049,00 (sete mil e quarenta e nove euros) (cfr. caderneta predial rústica junta como doc. n.º 16).
30 – O «(…)» e o «(…)» têm enorme importância para a requerida, não apenas pela sua dimensão física e elevado valor patrimonial, mas, fundamentalmente, pelo seu elevado valor de mercado e pela sua função essencial na actividade da requerida.
31 – Estes dois empreendimentos são activos estruturantes da sua actividade de exploração de empreendimentos turísticos, que é a actividade principal da requerida.
32 – Os códigos da Classificação Portuguesa de Actividades Económicas (CAE) da requerente, em particular o CAE principal – (…) – «Gestão de instalações desportivas» e o CAE secundário – «(…)», mencionados na certidão do registo comercial da requerida (cfr. doc. n.º 6), agrupam as suas actividades de exploração de empreendimentos turísticos.
33 – Segundo os mais recentes documentos de prestação de contas depositados pela requerida na conservatória do registo comercial em 2022, que respeitam ao exercício de 2020, os maiores encargos da requerida referem-se a gastos com fornecimentos e pessoal, característicos da actividade de exploração hoteleira (cfr. doc. n.º 20, junto).
34 – E quase todas as receitas foram obtidas com a prestação de serviços prestados no âmbito dos CAE … («Gestão de instalações desportivas») e … («…») (cfr. página 31 do doc. n.º 20).
35 – Recentemente a requerente tomou conhecimento de que a requerida está a encetar negociações para vender os referidos empreendimentos por inteiro.
36 – Nas brochuras informativas a que a requerente teve acesso, da «(…) Investment», que se identifica como uma «plataforma de investimentos que presta consultoria em investimentos e desenvolvimento imobiliário em cidades-chave da Europa», os empreendimentos turísticos encontram-se anunciados para venda (cfr. brochuras juntas ao requerimento inicial como docs. n.ºs 21, 22 e 23).
37 – Sendo o «(…)» anunciado por 45 milhões de euros e o «(…)» por 63 milhões de euros (cfr. docs. n.º 22 e 23, respectivamente).
38 – A venda dos referidos empreendimentos turísticos causará graves prejuízos para os interesses da requerida e dos seus accionistas, em particular da requerente, enquanto accionista maioritária e sócia única das accionistas (…) II e (…) III, porquanto os empreendimentos turísticos são bens valiosos e veículos da actividade de exploração de empreendimentos turísticos da requerida, pelo que a sua alienação representará, na prática, o esvaziamento da sua actividade, por abdicar a requerida da exploração desses empreendimentos.
39 – Levando, se não à cessação, a uma transformação relevante da actividade da requerida.
40 – As pessoas que ainda figuram no registo comercial como sendo administradores da requerida, principalmente o presidente do conselho de administração (…), têm tentado realizar vários actos com o fito de dissipar bens do património da requerente, o que faz suspeitar que aquele anúncio descobre mais uma dessas tentativas.
41 – A requerente tomou conhecimento, por consulta do registo comercial, que em 7 de Outubro de 2024, foram submetidos, na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, dois pedidos de registo de cessão das quotas detidas pela requerente nas sociedades (…) II e (…) III, das quais é a sócia única (docs. 24 e 25).
42 – Tais pedidos foram subscritos e apresentados por (…), arrogando-se, para este efeito, poderes de representação.
43 – Os referidos pedidos de registo foram instruídos com dois contratos de cessão de quotas, juntos como docs. n.ºs 26 e 27.
44 – Estes contratos datam de 25 de Setembro de 2024 e neles figura (…), tanto em nome do cedente, como do cessionário (docs. n.ºs 26 e 27).
45 – Compulsados os referidos contratos de cessão de quotas, verifica-se que o referido (…), na ali alegada qualidade de «Chairman of the Board of Directors» da requerente, declarou vender, pelo preço de um euro cada, as quotas detidas pela requerente nas sociedades (…) II e (…) III.
46 – E também na qualidade de «Chairman of the Board of Directors» de uma sociedade unipessoal com a firma (…) – Unipessoal, Lda., declarou comprá-las.
47 – Conforme resulta das publicações de actos societários do portal do Ministério da Justiça, a (…) – Unipessoal, Lda. é uma sociedade unipessoal por quotas construída em 22 de Dezembro de 2023, com sede em Portugal, no mesmo lugar da sede das sociedades (…) II e (…) III.
48 – O seu único sócio é uma sociedade denominada (…) Hotels e Resorts (…) (…) 2, S.A.R.L., com sede no (…).
49 – E tem como gerente, precisamente, o sobredito … (doc. n.º 28).
50 – Os referidos pedidos de registo foram instruídos também com supostas deliberações unânimes por escrito tomadas em nome da requerente (cfr. página 8, dos docs. n.ºs 26 e 27).
51 – Nos termos dessas deliberações, (…) arroga-se poderes para deliberar em nome da requerente (…) Limited autorizando as sociedades (…) II e (…) III a proceder às mencionadas cessões de quotas, nos termos e para os efeitos dos artigos 2328.º, n.º 2 e 230.º do Código das Sociedades Comerciais.
52 – Tais pedidos de registo de cessão de quotas foram rejeitados pelo conservador do registo, como resulta das certidões comerciais das sociedades (…) II e (…) III, juntas como docs. 11 e 12.
53 – (…) também intentou diversas acções judiciais alegando representar a requerente (…) Limited.
54 – Requereu no dia 6 de Setembro de 2024 providências cautelares de suspensão de deliberações sociais contra as sociedades (…) II e (…) III, a que respeitam os processos n.ºs 807/24.3T8OLH e 809/24.0T8OLH, que se encontram actualmente pendentes no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão.
55 – E em 27 de Setembro de 2024 propôs as correspondentes acções principais de anulação de deliberações sociais, com os n.ºs 887/24.1T8OLH e 888/24.0T8OLH, igualmente pendentes no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão, conforme petições iniciais que constituem os docs. n.ºs 32 e 33.
56 – Para o efeito, (…) fez uso de uma procuração forense que outorgou alegadamente em nome da requerente ao Dr. (…), ilustre advogado com escritório em … (cfr. doc. n.º 34).
57 – Isto sem o conhecimento e contra a vontade dos liquidatários da requerente.
58 – Tendo os liquidatários intervindo naqueles processos para declarar a falta de poderes do mandatário e pedirem a extinção da instância, o Ilustre Advogado Dr. (…) juntou uma segunda procuração, outorgada mais uma vez por (…) em 11 de Outubro de 2024, mas desta vez como «administrador» de (…) Hotels e Resorts (…), Inc., mencionando esta como sócia única da aqui requerente (cfr. doc. n.º 35).
59 – Por decisões judiciais foi determinada a extinção dos referidos processos judiciais.
60 – De acordo com as sentenças proferidas nestes processos (docs. n.º 36, 37 e 38), precisamente em razão da falta de poderes do mandatário, foi decidido considerar sem efeito os actos praticados pelo Sr. Dr. (…) por falta de prova de que representasse, efectivamente, a ora requerente.
61 – Ainda por consulta do registo comercial das sociedades (…) II e (…) III, das quais é sócia única, a requerente apercebeu-se de que no dia 25 de Outubro de 2024 teriam sido apresentados na conservatória do registo comercial pedidos de registo de destituição e nomeação de gerentes daquelas sociedades (cfr. docs. n.ºs 11 e 12).
62 – O objectivo seria registar a destituição de dois gerentes das sociedades (…) II e (…) III, (…) e (…), e a nomeação dois novos gerentes, (…) e (…).
63 – Tais registos, fundamentados em supostas «deliberações por escrito do sócio único» (cfr. docs. n.ºs 39 e 40) causaram estranheza à requerente, visto que a mesma, representada pelos seus liquidatários, não deliberou tal alteração da gerência.
64 – Embora o texto das supostas deliberações unânimes por escrito tenha omitido a identidade de quem as assinou, tudo indica que as mesmas foram assinadas pelo (…).
65 – Os instrumentos referidos em 63.º contêm aposta uma assinatura exactamente igual à que consta das suprarreferidas procurações e documentos subscritos por … (cfr., a título de exemplo, docs. n.º 34 e 35).
66 – Em 22 de Novembro de 2024, os liquidatários da requerente reagiram com a proposição de duas acções com o fim da declaração da inexistência daquelas supostas deliberações.
67 – Essas acções correspondem respectivamente ao processo n.º 1071/24.0T8OLH, no qual é ré a sociedade (…) III, e ao n.º 1072/24.0T8OLH, no qual é ré a sociedade (…) II, ambos a correr no Juízo do Comércio de Olhão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro (cfr. docs. n.os 41 e 42, que se juntam).
68 – O documento que aparenta ser uma «deliberação por escrito do sócio único» não é da autoria dos liquidatários da autora, foi feito sem o seu conhecimento e contra a sua vontade.
69 – Razão pela qual, no processo n.º 1071/24.0T8OLH, se julgou a acção «totalmente procedente e, em consequência:
a) [Declarou-se] a inexistência da “Deliberação por Escrito do Sócio Único” da Ré (…) Portugal III, Unipessoal, Lda., datada de 22 de outubro de 2024; e,
b) [Condenou-se] a Ré nas custas da acção» (cfr. sentença datada de 26 de Fevereiro de 2025, junta como doc. n.º 33, e respectiva rectificação, de 7 de Março de 2025, junta como doc. n.º 44).
70 – Esta decisão já transitou em julgado.
71 – No processo n.º 1072/24.0T8OLH, à data da apresentação do requerimento inicial, ainda não havia sido proferida a sentença, mas a ré (…) II, representada pelos seus gerentes, confessou a acção (cfr. doc. n.º 45).
72 – A falta de poderes de (…) para representar, quer a requerente, quer as sociedades (…) II e (…) III, foi também reconhecida por sentença de 30 de Dezembro de 2024, proferida no âmbito do procedimento cautelar n.º 1131/24.7T8OLH, do Juízo de Comércio de Olhão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juiz 2, requerido pela (…), S.A., credora de várias sociedades do «Grupo (…)», em que figurou como requerido o mesmo sr. (…) e outro.
73 – Nesta sentença foram determinadas, inter alia, as seguintes providências: 1. Declarar que, desde 29 de Agosto de 2024, o 1.º Requerido […] não é gerente nem tem poderes de gestão ou de representação da (…) II [e da] (…) III […] […] 3. Ordenar que o 1.º requerido se abstenha de: a) Praticar, por si ou através de mandatário, quaisquer actos em nome e/ou representação das sociedades holdings do Grupo (…) (a … Limited, a … II, a … III [….] (cfr. doc. n.º 47).
74 – A requerente, na qualidade de accionista e representada pelos seus liquidatários, já por várias vezes solicitou informações à requerida no exercício do seu direito à informação (nos termos dos artigos 288.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais), por cartas enviadas em 17 de Junho de 2021, 18 de Março de 2022, 25 de Abril de 2024 e 31 de Março de 2025, incluindo informações relativas ao livro de registo de acções da sociedade (cfr. docs. n.ºs 48, 49, 50 e 51).
75 – A requerente solicitou, além do mais, as actas e folhas de presença das reuniões da assembleia geral, a mais recente lista de accionistas da requerida, contas referentes ao último exercício, a lista dos administradores da requerida, os relatórios de gestão e os pareceres do revisor oficial de contas – cfr., por exemplo, pág. 1, do doc. n.º 48.
76 – A requerente não obteve resposta a qualquer desses pedidos.
77 – Acresce que a prestação de contas anuais mais recente da requerida refere-se ao exercício de 2020, tal como consta da certidão permanente da requerida.
78 – A requerente não dispõe de informações completas e actualizadas sobre a situação económico-financeira da requerida.
1 – Atenta a relevância dos empreendimentos «(…)» e «(…)» para a prossecução do objecto da requerida, a sua venda não integra uma normal gestão, devendo, por isso, ser submetida à deliberação dos accionistas daquela;
2 – A requerida não informou os seus accionistas de que pretende vender os empreendimentos «(…)» e «(…)», nem os consultou acerca dessa matéria; atento o referido em 1, os deveres de lealdade dos administradores para com os sócios, consagrados no artigo 64.º, n.º 1, alínea b), do CSC (diploma ao qual pertencem as normas legais adiante referenciadas sem menção da sua origem), impõem tais prestação de informação e consulta;
3 – A concretização do projecto de venda dos empreendimentos «(…)» e «(…)» sem a prévia aprovação dos accionistas, reunidos em assembleia geral, poderá consubstanciar um abuso do direito, que acarreta a invalidade dos negócios celebrados, nos termos do artigo 334.º do CC;
4 – Os actuais administradores da recorrida foram nomeados em assembleia geral realizada em 17.02.2017, para o triénio de 2017 a 2019, apenas se mantendo em funções porque, de então para cá, não foram nomeados novos administradores; nestas circunstâncias, apenas podem praticar os actos estritamente necessários para evitar a paralisação da recorrida, carecendo de poderes para procederem à projectada venda dos empreendimentos «(…)» e «(…)» sem deliberação da assembleia geral nesse sentido.
A recorrente contrapõe, em síntese, o seguinte:
1 – A alienação de bens imóveis é uma competência de gestão, que os artigos 373.º, n.ºs 2 e 3, 405.º, n.º 1 e 406.º, alínea e), reservam, imperativamente, ao conselho de administração; os accionistas apenas podem deliberar sobre matérias de gestão da sociedade a pedido do órgão de administração;
2 – A circunstância de ter terminado o mandato do conselho de administração não implica qualquer restrição dos poderes deste órgão.
Sendo estes os termos da controvérsia, podemos identificar, como questões a resolver, as seguintes:
1 – Qual é o órgão competente para determinar a venda de bens imóveis pertencentes a uma sociedade anónima;
2 – Que critérios devem nortear a actuação do órgão referido em 1 no exercício das suas competências;
3 – Se a ultrapassagem do prazo de duração do mandato conferido aos membros do conselho de administração implica alguma restrição aos poderes destes.
1. Em face do disposto na alínea e) do artigo 406.º, é fora de dúvida que, como a recorrente afirma, compete ao conselho de administração da sociedade anónima deliberar sobre a alienação de bens imóveis a esta pertencentes. É igualmente pacífico, face ao disposto no n.º 1 do artigo 405.º, que esse órgão deve subordinar-se às deliberações dos accionistas apenas nos casos em que a lei ou o contrato de sociedade o determinarem.
Todavia, ao contrário do que a recorrente pretende, isto não arruma a questão. Permanece em discussão a existência de critérios, decorrentes de outras normas legais, com os quais o conselho de administração da sociedade anónima deve conformar a sua actuação, nomeadamente o exercício da sua competência para deliberar sobre a alienação de bens imóveis. É neste plano que se situa a fundamentação com base na qual o tribunal a quo decretou a providência cautelar solicitada pela recorrida. E é nele que prosseguirá a nossa análise.
2. Para além do disposto no n.º 1 do artigo 405.º e na alínea e) do artigo 406.º, importa ter em consideração outras normas do CSC, igualmente relevantes para a apreciação da situação dos autos.
O artigo 64.º, n.º 1, alínea b), estabelece que os administradores estão vinculados a deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
Estamos perante um critério que deve nortear toda a actividade dos administradores de uma sociedade, nomeadamente a tomada de decisões sobre a alienação de bens imóveis. Tratando-se de uma sociedade anónima, não é por a al. e) do artigo 406.º atribuir, ao conselho de administração, a competência para deliberar sobre a alienação de bens imóveis, que este órgão passa a poder fazê-lo sem obediência a critérios materiais. Pelo contrário, no exercício das suas competências legais e estatutárias, o conselho de administração deve, sempre, prosseguir o interesse da sociedade, nos termos estabelecidos no artigo 64.º, n.º 1, alínea b). Se o não fizer, estará a violar os seus deveres de lealdade, sendo a sua actuação ilícita.
Entendimento diverso seria absurdo. Se, como a recorrente sugere, o disposto na al. e) do artigo 406.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 405.º, permitisse, ao conselho de administração, alienar bens imóveis sem qualquer limitação ou critério, teriam de ser consideradas lícitas, por exemplo, vendas por preços manifestamente abaixo do valor de mercado ou noutras circunstâncias em que a sociedade saísse patentemente lesada. A norma atributiva da competência para deliberar a alienação de bens imóveis não dispensa o conselho de administração de a exercer em harmonia com os critérios materiais estabelecidos noutras normas, nomeadamente no artigo 64.º, n.º 1, alínea b), nem impede a formulação de um juízo de ilicitude sobre deliberações manifestamente prejudiciais à sociedade e aos seus accionistas.
Atentemos no que se passou no caso dos autos à luz do exposto.
A recorrente é proprietária de dois empreendimentos turísticos, denominados «(…)» e «(…)», com elevado valor de mercado e essenciais para a prossecução do seu objecto.
Por deliberação da sua administração, sem consultar ou, sequer, informar a recorrida, sua accionista maioritária (detém cerca de 74% do capital social), a recorrente encetou negociações com vista a vender os referidos empreendimentos por inteiro.
A concretização dessa venda causará graves prejuízos à recorrente, porquanto representará, na prática, o esvaziamento da sua actividade económica, levando, se não à cessação desta, pelo menos a uma sua transformação relevante.
Perante isto, concluímos que, ao deliberar pôr à venda os empreendimentos turísticos «(…)» e «(…)», o conselho de administração da recorrente actuou em flagrante desconformidade com o critério que o artigo 64.º, n.º 1, alínea b), lhe impõe, violando grosseiramente os seus deveres de lealdade para com aquela. Em vez de prosseguir o interesse social, como é seu dever, o conselho de administração parece ter-se empenhado em subtrair bens do património da recorrente, esvaziando-o e, dessa forma, inviabilizando a continuidade da prossecução do objecto desta. Tudo isso à revelia dos accionistas, nomeadamente da recorrida, accionista maioritária, que não foi consultada ou, sequer, informada.
Mais, a deliberação tomada pela administração da recorrente é claramente ofensiva dos bons costumes.
Para densificar esta cláusula geral, socorremo-nos da lição de Pedro Pais Vasconcelos:
«Como limite ao exercício lícito de direitos subjectivos, os bons costumes implicam uma referência para critérios éticos supra legais, para as coordenadas éticas regentes na sociedade e na Ordem Social, uma referência que é extra-sistemática através da qual o Direito procura encontrar, fora dos seus quadros reguladores formais, critérios de decisão e de valor que o transcendem e que, nessa medida, o dominam.
Mas essa referência é feita também para uma eticidade imanente, para a natureza das coisas, enquanto entia moralia, para a realidade social, para os usos e costumes sedimentados na prática. Trata-se de uma normatividade imanente na sociedade, de um dever-ser imanente no ser, que não se encontra muitas vezes nas palavras da lei, mas que é respeitado no exercício do direito pelas pessoas de bem. Os direitos subjectivos com maior enraizamento institucional e profundidade histórica, que ganharam já um sedimento de tradições no conteúdo e no exercício, envolvem em si critérios de agir esperado e esperável. Cada direito subjectivo corresponde a uma posição ou a um papel socialmente típico que tem imanente uma certa normatividade, um certo critério de agir que não pode deixar de ser relevante para o Direito. É preciso, contudo, sindicar, de entre os critérios de dever-ser imanentes nas coisas, quais os que são aceitáveis e quais os que o não são, quais os que são Bem e quais os que são Mal e quais os que não são Bem nem Mal (adiáfora); é preciso julgar.»[1]
A cláusula geral dos bons costumes contém, assim, uma «remissão a normas extrajurídicas, dadas noutro lugar»; mais precisamente, «remetem para a moral social que é em cada caso reconhecida»[2].
Para a concretização do sentido desta cláusula geral no domínio do Direito das Sociedades Comerciais, é útil a lição de António Menezes Cordeiro: «os bons costumes exprimem a Moral social, nas áreas referidas da actuação sexual e familiar e da deontologia profissional, proibindo os actos que a contrariem (…)»[3].
Precisou o mesmo autor, em obra posterior, ao analisar a noção de abuso de direito contida no artigo 334.º do CC, que «Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social. Também aqui é de presumir uma certa coerência sistemática: os bons costumes prefigurados no artigo 334.º equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1: regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos»[4].
É-nos particularmente útil a referência aos «códigos deontológicos». A este propósito, explicitou-se, em obra subsequente às referidas nas notas 3 e 4, que os bons costumes abrangem, além do mais, as «regras deontológicas próprias de cada sector profissional ou do próprio comércio em geral»[5].
Deve, assim, ser considerada contrária aos bons costumes a deliberação do conselho de administração de uma sociedade comercial que não se conforme com aquilo que, socialmente, são consideradas as práticas deontologicamente correctas de quem ocupe aquele cargo social. Em especial, sê-lo-á qualquer actuação que seja ostensivamente contrária aos interesses da sociedade, causando-lhe prejuízos, sejam estes imediatos ou a prazo.
Não carece de grande esforço argumentativo a conclusão de que a deliberação do conselho de administração da recorrente que se encontra sob apreciação se enquadra plenamente no quadro que traçámos. Contraria frontalmente as regras deontológicas sobre a gestão de bens alheios e, em particular, a administração de sociedades comerciais, pôr à venda, sem justificação conhecida e sem consultar ou, sequer, informar os accionistas, dois empreendimentos turísticos essenciais para a prossecução do objecto social, sem os quais, consequentemente, a recorrente ficaria paralisada. Trata-se, pois, de uma deliberação ofensiva dos bons costumes, nula nos termos do artigo 411.º, n.º 1, alínea c).
3. Resulta da exposição anterior que a questão de saber se a ultrapassagem do prazo de duração do mandato conferido aos membros do conselho de administração implica alguma restrição aos poderes destes é irrelevante para a decisão da causa. Qualquer que seja a solução que se dê a esta questão, sempre a actuação do conselho de administração da recorrente que se encontra sob apreciação será ilícita, por violação dos deveres de lealdade para com esta última e por ofensa dos bons costumes, pelo que existe fundamento legal para o decretamento da providência solicitada pela recorrida, nos termos em que o tribunal a quo o fez. Deverá, assim, a sentença recorrida ser confirmada, julgando-se o recurso improcedente.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Maria Domingas Simões (1ª adjunta)
Mário João Canelas Brás (2º adjunto)
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[1] Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª edição, págs. 243-244.
[2] Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª edição, pág. 347.
[3] Da Boa Fé no Direito Civil, volume II, Livraria Almedina, 1984, pág. 1223.
[4] Tratado de Direito Civil, vol. V, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 273.
[5] António Menezes Cordeiro (coordenação), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª edição actualizada, pág. 296. Atente-se na casuística descrita na pág. 297 a este propósito.