O membro sobrevivo de uma união de facto não adquire o direito real de habitação sobre a casa de morada da família, previsto no n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11.05, se o membro falecido não era proprietário, mas mero titular de uma meação no património comum que mantinha com o seu ex-cônjuge, do qual aquele imóvel faz parte.
(Sumário do Relator)
Na contestação, a ré deduziu o seguinte pedido reconvencional: «Decretar procedente por provado o presente pedido reconvencional, referente o registo do legado legal do direito de habitação, Ap. (…), de 2020/08/12 da duração do mesmo de 5 cinco) anos para 10 (dez) anos e 5 (cinco) meses, prazo da união de facto.»
Na sequência da realização da audiência final, foi proferida sentença mediante a qual a acção foi julgada procedente, tendo-se declarado a nulidade do registo e condenado a ré a restituir a fracção à autora, nos termos peticionados. O pedido reconvencional foi julgado improcedente.
A ré interpôs recurso da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – Conforme sentença ora recorrida, a ré viveu em união de facto com (…) durante 10 anos e 5 meses (artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11.05).
2 – Uma das protecções é precisamente a da casa de morada de família (artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 7/2001) em caso de morte de um dos membros da união de facto.
3 – Foi, precisamente, o que se verificou. A morte de (…), em nome de quem estava a casa de morada de família até à sua morte.
4 – O artigo 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11.05, com a redacção introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30.08.
5 – Em conformidade com os n.ºs 1, 2, 3, 4 do citado artigo 5.º, a ré tem direito a permanecer na casa de morada de família, pelo menos, durante 10 anos e 5 meses.
6 – O divórcio do falecido (…) ocorreu em 1994, portanto há mais de 30 anos, e só agora se verificou a partilha por divórcio, a qual foi feita de forma a tentar afastar o falecido (…) de proprietário da casa de morada de família.
7 – Na verdade, decorridas quase 3 décadas após o divórcio é que a autora resolveu fazer as partilhas, com o seu filho, de forma habilidosa.
8 – Salvo o devido respeito, não é possível concluir que «não se criou na esfera jurídica da ré um direito real de habitação e uso do recheio sobre o imóvel que foi casa de morada de família dos membros da união de facto dissolvida pela morte de (…)», como refere a sentença.
9 – Estão, pois, preenchidos todos os requisitos legais de que depende a atribuição da casa de morada de família à ré, ora recorrente, em conformidade com o preceituado, nomeadamente, no artigo 5.º, n.ºs 1, 2, 6, da Lei n.º 7/2001, com as alterações da Lei n.º 23/2010.
10 – Quanto à declaração de nulidade do registo, também, salvo o devido respeito, a douta sentença não poderá concluir pela violação do trato sucessivo: nulidade do registo.
11 – Pela Ap. (…), de 12.08.2020, encontra-se registada, a favor de (…), sobre a fracção autónoma proferida nos autos, direito de habitação, indicando como causa: legado legal, por morte de membro da união de facto proprietário da casa de morada de família.
12 – Conforme a testemunha, a sra. Conservadora do Registo Predial de Mafra, referiu, «fiz o registo porque satisfazia todos os requisitos legais».
13 – A ré registou o direito de habitação, após a morte do companheiro, (…), em conformidade com a Lei n.º 7/2021 e a Lei n.º 23/2010.
14 – Tratou-se assim, de um registo «legado legal» feito em conformidade com a lei.
15 – Tendo a ora recorrente vivido 10 anos e 5 meses em união de facto com o falecido e comproprietário da casa de morada de família, o que implicou ter integrado na sua esfera jurídica um direito real de habitação do imóvel, de uso do recheio e de preferência na venda da casa, ao abrigo do que dispõe o artigo 3.º, alínea a), 5.º, n.º 1 e 9.º da Lei n.º 7/2001, de 15/05, decorrendo assim a constituição de um legado ope legis, a favor da ora recorrente, no momento do falecimento de unido de facto, sendo nesta medida sucessora do de cujus (artigo 2030.º, n.º 1, do Código Civil).
16 – A lei de união de facto, no seu artigo 3.º, alínea a), confere ao unido de facto a protecção da casa de morada de família e no seu artigo 5.º, n.º 1, em caso de morte do membro da união, proprietário da casa de morada de família e respetivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa como titular de um direito real de habitação periódica e de um direito de uso do recheio.
17 – A ora recorrente registou o seu direito real de habitação e recheio, em momento anterior ao registo da propriedade plena pela ora recorrida.
18 – Assim, a propriedade plena só foi constituída após o falecimento do unido de facto, pelo que o direito real de habitação da ora recorrente nasceu no momento do falecimento.
Face ao teor destas conclusões, as questões a resolver são as seguintes:
- Se se verificam os pressupostos da aquisição, pela recorrente, de um direito real de habitação sobre a fracção cuja restituição a recorrida pretende, estabelecidos no artigo 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11.05;
- Implicações da resposta que se dê à questão anterior em matéria de registo predial.
Os factos julgados provados na sentença recorrida são os seguintes:
1 – Encontra-se registada a aquisição de (…), casado com (…), no regime de comunhão de adquiridos, pela Ap. (…), de 02.07.1985, da fracção autónoma designada pela letra M do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua (…), Cartaxo, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na matriz urbana da união de freguesas do (…) sob o artigo (…).
2 – O casamento de (…) e (…) foi dissolvido por divórcio por sentença proferida a 04.05.1994, transitada em julgado a 23.05.1994.
3 – (…) faleceu a 07.06.2020, sem testamento ou outra disposição de vontade, deixando como único herdeiro o filho que teve em comum com (…), (…).
4 – À data do seu falecimento, (…) vivia há 10 anos e 5 meses com (…), em união de cama, leito e habitação.
5 – Residindo de forma permanente na fracção autónoma referida em 1.
6 – Pela Ap. (…), de 12.08.2020, encontra-se registada, sobre a fracção autónoma referida em 1, o direito de habitação a favor de (…), indicando como causa: Legado Legal: Por morte de membro de união de facto, proprietário da casa de morada de família.
7 – A 30.07.2022, (…) e o seu filho (…) outorgaram acordo de partilha da fracção autónoma referida em 1, adjudicando-a na totalidade a (…).
8 – Pela Ap. (…), de 08.08.2022, encontra-se registada a aquisição a favor de (…) sobre a fracção autónoma referida em 1.
9 – (…) é nacional da Ucrânia, não tem qualquer outra habitação em Portugal.
10 – A fracção autónoma referida em 1 pode ser colocada no mercado de arrendamento com uma renda mensal de € 574,00.
a) Viveu em união de facto com o ex-cônjuge da recorrida durante 10 anos e 5 meses, até à morte deste;
b) A fracção encontrava-se em nome do ex-cônjuge da recorrida;
c) É ucraniana, não tem outra habitação, aufere uma pensão de reforma «de € 253,30 e € 391,50» e encontra-se numa situação de insolvência, pelo que o prazo do seu direito de permanecer na fracção deveria ser prorrogado;
d) A recorrida e o seu ex-cônjuge divorciaram-se há mais de 30 anos e a partilha, só agora efectuada, foi feita de forma a tentar afastar o segundo de proprietário da casa de morada da família.
Analisemos a questão.
O artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 7/2001, de 11.05, consagra o direito das pessoas que vivem em união de facto à protecção da casa de morada de família, «nos termos da presente lei».
O artigo 5.º da mesma lei concretiza os termos em que essa protecção é concedida. O n.º 1 estabelece que, em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio. O n.º 2 dispõe que, no caso de a união de facto ter começado mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no n.º 1 são conferidos por tempo igual ao da duração da união.
Tal como a recorrente salienta, está provado que ela viveu em união de facto com o ex-cônjuge da recorrida durante 10 anos e 5 meses, até à morte deste. Todavia, isso não basta para concluir que, com a morte do ex-cônjuge da recorrida, a recorrente adquiriu um direito real de habitação sobre a fracção. Para tanto, é ainda necessária a demonstração de que o ex-cônjuge da recorrida era o proprietário da fracção. Ora, aquilo que ficou demonstrado foi bem diferente: à data da sua morte, o ex-cônjuge da recorrida era titular, não do direito de propriedade sobre a fracção, mas apenas de uma meação no património comum do ex-casal, do qual a fracção fez parte até ao momento da partilha.
Falta, pois, este pressuposto legal de aquisição do direito real de habitação sobre a fracção. Acerca desta matéria, o tribunal a quo expendeu desenvolvida argumentação, que a recorrente, nas suas lacónicas alegações, nem sequer procurou refutar, como resulta da síntese que acima fizemos da fundamentação do recurso, o que dispensa maior esforço argumentativo da nossa parte. Sinteticamente, não há confusão possível entre o direito de propriedade sobre a fracção e um mero direito a uma meação no património comum do ex-casal.
Os factos, invocados nas alegações de recurso, que referimos em c), carecem de relevância para a decisão da causa, pois não constam entre os pressupostos de que o n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 7/2001 faz depender a aquisição, pelo membro sobrevivente de uma união de facto, do direito real de habitação sobre a fracção.
Também é inócuo aquilo que acima sintetizámos em d). O facto de a partilha ter sido efectuada cerca de 28 anos após o divórcio em nada prejudica a sua eficácia, nem releva à luz do disposto no n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 7/2001. A afirmação de que a partilha foi feita de forma a tentar afastar o ex-cônjuge da recorrida de proprietário da casa de morada da família carece de sentido, pois foi a sua morte que produziu esse «afastamento», como decorre dos artigos 68.º, n.º 1, 2024.º e 2025.º, n.º 2, do CC.
2. O tribunal a quo considerou que, uma vez que o falecido companheiro da recorrente e ex-cônjuge da recorrida não era proprietário ou, sequer, comproprietário da fracção, o registo do direito real de habitação sobre esta a favor da recorrente é nulo, por violação do princípio do trato sucessivo, nos termos dos artigos 16.º, alínea e) e 34.º do Código do Registo Predial.
A isto, a recorrente contrapõe, em síntese, que:
- Aquele registo é legal porquanto o facto de ter «vivido 10 anos e 5 meses em união de facto com o falecido e comproprietário da casa de morada de família (…) implicou ter integrado na sua esfera jurídica um direito real de habitação do imóvel, de uso do recheio e de preferência na venda da casa, ao abrigo do que dispõem os artigos 3.º, alínea a), 5.º, n.º 1 e 9.º da Lei n.º 7/2001, de 15/05, decorrendo assim a constituição de um legado ope legis, a favor da ora Recorrente, no momento do falecimento de unido de facto, sendo nesta medida sucessora do de cujus (artigo 2030.º, n.º 1, do Código Civil)»;
- A recorrente registou o seu direito antes do registo da propriedade plena pela recorrida;
- Ou seja, «a propriedade plena só foi constituída após o falecimento do unido de facto, pelo que, o direito real de habitação da ora recorrente nasceu no momento do falecimento».
A argumentação da recorrente não procede.
À data da morte do falecido companheiro da recorrente, o registo que vigorava era o descrito no ponto 1 do enunciado dos factos provados. Dele resultava que a fracção constituía um bem comum da recorrida e do ex-companheiro da recorrente, que foram casados entre si no regime da comunhão de adquiridos. Como referimos em 1, resulta deste registo que o ex-companheiro da recorrente, à semelhança da recorrida, era titular, não do direito de propriedade sobre a fracção, mas apenas de uma meação no património comum do ex-casal, do qual a fracção fazia parte.
Como acertadamente se conclui na sentença recorrida, não estando previamente inscrito um facto aquisitivo do direito de propriedade sobre a fracção a favor do ex-companheiro da recorrente, «não poderia ser registado o direito da Ré a título definitivo, porquanto não lhe poderia ser transmitido ou a fração onerada pelo falecido (…)». Tendo isso acontecido, foi violado o princípio do trato sucessivo, o que determina a nulidade do registo – artigos 16.º, alínea e) e 34.º do Código do Registo Predial.
Independentemente da questão da violação deste princípio, é fora de dúvida que, não tendo a recorrente adquirido, no plano substantivo, o direito real de habitação que se arroga, como concluímos em 1, sempre o registo a seu favor teria de ser cancelado.
3. Concluindo, a sentença recorrida deverá ser confirmada, improcedendo o recurso.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Cristina Dá Mesquita (1ª adjunta)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2ª adjunta)