PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PROVA
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Sumário

i) Não resulta da prova carreada aos autos que o Autor exercesse a atividade profissional de “resgatador” e, como tal, pudesse beneficiar da presunção prevista no artigo 1158.º, n.º 1, do Código Civil;
ii) O pedido formulado pelo Réu ao Autor – na sequência de ter conhecimento da colaboração que este prestava a associações protetoras de animais – no sentido de que o Autor ajudasse um terceiro – agente de execução – a libertar o imóvel, alvo de execução, dos cães que ali se encontravam, não consubstancia a celebração de um contrato de prestação de serviços entre Autor e Réu.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 1484/24.78FAR.E1 – Apelação

Tribunal Recorrido - Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Cível de Faro – Juiz 2

Recorrente – (…)
Recorrido – (…)

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Sumário: (…)
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Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1.
(…) intentou, no Juízo Local Cível de Faro, ação declarativa sob a forma de processo comum, contra (…), pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 22.500,00.
Para o efeito alegou, em síntese, ter acordado com o Réu retirar 15 cães que se encontravam no espaço exterior de uma vivenda, tendo, após remoção dos animais, transportado os mesmos para sua casa e cuidado dos mesmos durante os 20 dias que se seguiram, diligenciando também no sentido de procurar interessados na respetiva adoção e entregando-os para adoção. Mais alegou que em 13/11/2024 solicitou ao Réu o pagamento da quantia de € 22.500,00, devida pela prestação de tal serviço, enviando-lhe a respetiva fatura, pedido que reiterou em 05/12/2023, mediante carta registada com aviso de receção.
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O Réu contestou, alegando nunca ter solicitado qualquer serviço ao Autor, nem este lho ter prestado, inexistindo qualquer acordo de prestação de serviços entre os mesmos, já que se limitou a pôr em contacto o Autor – que à data publicitava nas redes sociais ser colaborador altruísta de diversas associações relacionadas com animais e nunca como profissional nessa área – com uma agente de execução que havia contactado o Réu a saber se o Autor podia ajudá-la na retirada dos cães de uma casa onde estavam e cuja posse estava a ser tomada pela agente de execução.

2.
Realizada a audiência prévia, foi fixado o objeto do litígio, bem como foram enunciados os temas da prova.
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Após a audiência final, foi proferida sentença no âmbito da qual a ação foi julgada totalmente improcedente e o Réu absolvido do pedido.

3.
Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, enunciando as seguintes conclusões:

Ø «Entende o Recorrente que o Tribunal a quo julgou incorrectamente a seguinte matéria de facto:
“2. O A. exercia a função de “cãobeleireiro”, atividade que consistia em cortar o pelo a cães, dar-lhes banho, entre outros serviços da mesma natureza.”

Ø Impõem decisão diversa o registo das declarações do A. quando questionado sobre a profissão que exerce e refere que é resgatador e tosquiador (do minuto 00:23 a 00:47); e quando relata designadamente a propósito da fixação do preço dos trabalhos que executa (do minuto 20: 40 a 25: 54) que resgatou 2 cavalos, tendo cobrado o valor de € 2.500,00 por cada cavalo bem como a fatura junta aos autos, no campo “ actividade exercida: Actividades de serviços para animais de companhia”.

Ø Na sequência da impugnação da matéria de facto deve o Tribunal da Relação declarar como provada a seguinte matéria de facto:

“2. O Autor exercia profissionalmente a função tosquiador e resgatador”.

Ø Termos em que, deve a matéria de facto provada consignada na decisão recorrida ser modificada em conformidade com o teor da impugnação da matéria de facto constante na presente motivação.

Ø E em consequência, impõe-se assim se julgue procedente a presente acção de acordo com os artigos 1154.º, 1158.º, n.º 1 e 3, do Código Civil.»


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O Autor não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido e foram colhidos os vistos.

4. Questões a decidir
Considerando as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (de ora em diante CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a decidir:
i) Da impugnação da matéria de facto;
ii) Se o Réu deve pagar ao Autor a quantia peticionada.

II. FUNDAMENTOS

1. Fundamentos de facto

1.1 Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1. O Réu exerce a profissão de advogado e representou o Autor nessa qualidade em diversas acções judiciais.
2. O Autor exercia a função de “cãobeleireiro”, atividade que consistia em cortar o pelo a cães, dar-lhes banho, entre outros serviços da mesma natureza.
3. O Autor, em regime de voluntariado, socorria ou colaborava com associações para salvar cães e outros animais que se encontrassem em perigo ou situações de abandono/degradantes.
4. A Agente de Execução Dra. (…) exerceu essa sua atividade nos autos de execução com o n.º 4644/15.8T8LLE, que correram termos no Juízo de Execuções de Loulé, Juiz 2.
5. A referida Agente de Execução, (…) contactou o Réu no sentido de saber se ele a poderia ajudar na retirada de uns cães de um imóvel do qual tinha que tomar posse.
6. O Réu, sabendo que o A., nas redes sociais, afirmava ser colaborador da (…) e amigo dos animais, contactou-o, no sentido de saber se ele poderia ajudar a dita Agente de Execução a solucionar a questão dos cães.
7. Em 10.11.2018, o Autor deslocou-se à moradia sita no Sítio dos (…), em (…), e retirou 15 cães que se encontravam no espaço exterior da casa e transportou-os para a sua casa sita em (…), Faro.
8. No espaço exterior da vivenda encontravam-se os referidos canídeos, 10 dos quais em jaulas fechadas apenas no trinco e os restantes à solta no espaço exterior da vivenda.
9. A casa não estava habitada e o portão de acesso ao espaço exterior da mesma não estava fechado.
10. Nos 15 a 20 dias que se lhe seguiram, o Autor cuidou dos cães, em sua casa, alimentou-os, deu-lhes banho, cuidou da sua saúde e diligenciou no sentido de procurar interessados na sua adopção.
11. O Autor procurou interessados na adopção dos canídeos através das redes sociais e contactou pessoas que conhecia e que podiam estar interessadas.
12. No período de cerca de 15 a 20 dias após ter retirado os animais do imóvel, o Autor entregou os canídeos aos interessados que os quiseram adoptar.
13. Em data não concretamente apurada, no início do mês de novembro de 2023, o Autor deslocou-se ao local de trabalho do Réu e solicitou-lhe o pagamento da quantia de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), tendo para tanto emitido um documento datado de 13.11.2023 e intitulado “Fatura (…), Data de Emissão 13.11.2023, Dados do Prestador de Serviços (…) e Dados do Adquirente de Serviços “(…)”, “Valor Base € 22.500,00” e ainda “Descrição: serviço prestado em 10/11/2018, no resgate de 15 canídeos em vivenda, solicitado pelo Dr. (…) para dar cumprimento a um processo judicial”.
14. Em 23.11.2023, o Réu enviou um escrito ao Autor com o seguinte teor:
Assunto: devolução de recibo
Exmo. Senhor,
Venho por este meio devolver a Vossa fatura n.º 2, de 13/11/2023, pois nunca em momento algum tive qualquer processo em que estivessem em perigo canídeos nem em momento algum foram contratados serviços profissionais de resgate, aliás, profissão que nunca por si foi exercida, não tendo atividade aberta para o efeito.
Com efeito, não nos foram prestados quaisquer serviços, seja em que área fora, nem nessa data, nem em outra, razão por que entendemos a entrega dessa fatura certamente por mero lapso.
Mais informo que, continuando a importunar o subscritor e as funcionárias do escritório deste, com ameaças veladas, teremos que acionar os mecanismos legais adequados.”
15. E em 05.12.2023, o Autor, através de carta registada com aviso de receção, enviou um escrito ao Réu com o seguinte teor:
Venho pela presente, em resposta à carta que me foi enviada por si, reiterar a minha solicitação para que proceda ao pagamento do montante de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), na sequência do serviço de resgate de 15 canídeos por mim prestado por sua solicitação, em 10.11.2018, no âmbito de uma ação executiva por si patrocinada.
Deste modo, agradeço que proceda ao pagamento do supra referido montante, no prazo máximo de 15 dias a partir da data de receção desta carta,
Caso não proceda ao pagamento do serviço por mim prestado no prazo indicado, ou não manifeste qualquer propósito de o fazer, serei obrigado a recorrer à via judicial para defesa dos meus direitos.
Sem outro assunto de momento, (…)”.

1.2 A decisão recorrida não considerou provados os seguintes factos:

i) O Autor tenha procurado interessados na adopção dos cães no âmbito de campanhas de peditórios para os animais realizadas nesse período no Centro Comercial (…), em (…), e na Concentração de Motas em Faro;
ii) Com vista a arranjar interessados na adopção, o Autor tenha contactado ainda pessoas que tem conhecido desde 2012, na qualidade de voluntário no Canil de (…), e através de membros da Associação (…), sita em Faro, que resgata, cuida e diligencia pela adopção de cães;
iii) O Réu tenha tido intervenção na acção executiva identificada em 4;
iv) A solicitação referida em 15 tenha sido feita via carta, acompanhada da respetiva factura;
v) Na data referida em 7, o portão de acesso ao imóvel estivesse encerrado, tendo sido um serralheiro quem teve de o abrir.»

2. Do objeto do recurso

2.1 Da impugnação da decisão da matéria de facto

O Recorrente pretende que o facto 2 passe a ter a seguinte redação:

“O Autor exercia profissionalmente a função [de] tosquiador e resgatador”.

À data o facto 2 tem o seguinte teor:
“O Autor exercia a função de “cãobeleireiro”, atividade que consistia em cortar o pêlo a cães, dar-lhes banho entre outros serviços da mesma natureza.”
Trata-se de facto alegado pelo Réu no artigo 6º da contestação, ao invés do facto que o Recorrente pretende agora ver dado como provado, já que este não foi alegado por qualquer das partes.
Ainda assim e considerando o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, vejamos se o tribunal a quo devia ter dado tal facto como provado.

O Recorrente sustenta a sua pretensão nas declarações de parte do Autor, no depoimento da testemunha (…) e na fatura junta aos autos.
Começando por esta última, trata-se de documento emitido mais de cinco anos após os factos (o que, ainda assim, encontrará explicação na circunstância de o Autor ter estado privado da liberdade entre, segundo afirmou, dezembro de 2018 e outubro de 2023 – cfr. 54:09) e preenchido pelo próprio Autor, sendo natural que espelhe a sua visão dos factos.
Ouvidas as declarações de parte do Autor, verifica-se que, muito embora este se identificasse inicialmente como tendo, designadamente, a profissão de “resgatador” (cfr. 00:40), descreveu ao longo do depoimento um cenário pouco compatível com um desempenho profissional de tal atividade, quer quando visto o local onde manteve os animais até à adoção (o seu próprio quintal – cfr. 6:40), quer quando vista a forma como transportou os animais (no carro onde até momentos antes circulava com a sua família e lançando ainda mão do carro da companheira/mulher – cfr. 6:24 e 7:18), bem como quando vista a ausência de preço minimamente tabelado para os “resgates” (cfr. 29:00 e ss.), a forma como “resolveu” fixar o valor que fez constar na fatura junta aos autos (cfr. 29:18: por o achar justo, mormente quando em vista a capacidade económica do Autor, mas adiantando logo que poderia baixar o valor – cfr. 29:24) e, ainda, a forma como divulgou a existência dos animais para adoção e da qual resultou, ora, que a sua profissão é verdadeiramente aquela descrita atualmente no ponto 2 (cfr. 21:55 a 22:09), ora que, quando “resgata” animais, o faz respondendo porque lhe pedem ajuda (cfr. 22:45) e com caráter altruísta (evidenciado, mormente, na proatividade junto de canis e associações, para os quais organizava designadamente peditórios – cfr. 18:10, 18:55, 23:25). E, muito embora enunciasse a existência de “outros trabalhos” que terá realizado para o Réu, cedo se percebe que nada tiveram a ver com animais e seu resgate (cfr. 25:15, 25:28, 35:31 e 29:24). Acresce que, ainda que tendo referido – como descreve o tribunal a quo – um outro resgate, de que teriam sido alvo dois cavalos (41:26), afirmando ter cobrado € 2.500,00 por cavalo, não deixa de impressionar que não procurasse evidenciar essa realidade mormente através da exibição da respetiva fatura.
Toda esta perceção foi corroborada pelo depoimento da testemunha (…), filho do Autor, que espontaneamente disse que o seu pai vive de “tosquias” (19:02), fazendo “tosquias e voluntariados em canis” (11:15).

Em suma, escrutinada a prova, não se vislumbra que a mesma tenha sido de molde a que o tribunal a quo pudesse – para mais sem alegação do facto pelo Autor, em sede do articulado próprio – levar à matéria de facto provada que o Autor exercia profissionalmente a atividade de “resgatador”.
Inexiste, pois, motivo para alterar a matéria de facto nos termos peticionados.

2.2 . Fundamentos de Direito
Soçobrando a impugnação da matéria de facto, é manifesto não dever ser alterada a decisão também em sede da aplicação do direito aos factos.

O tribunal a quo analisou fundada e minuciosamente os vários aspetos a atender:

- dissecou o conceito de contrato e enunciou a relevância da autonomia privada no mesmo;

- analisou a figura do contrato de prestação de serviços e a aplicabilidade ao mesmo do disposto no artigo 1158.º do Código Civil (de ora em diante CC), bem como reconheceu não se tratar de contrato necessariamente formal;

- concluiu, certeiramente, que, analisada a factualidade apurada, não pode entender-se ter existido uma declaração negocial expressa ou tácita entre as partes, lançando para o efeito mão das regras sobre interpretação da declaração negocial (artigo 236.º do CC);

- escrutinou a existência de um acordo de vontades no caso em apreço, debruçando-se inclusivamente sobre a possibilidade de as declarações negociais serem meramente tácitas;

- aplicou, com acerto, as regras do ónus da prova e demonstrou por que motivo não pode o Autor beneficiar da presunção prevista no artigo 1158.º, n.º 1, do CC;

e

- explicou por que motivo a emissão de “recibo verde” não constitui, por si só, prova da existência de um contrato de prestação de serviços.

Assim, em síntese, tal como refere a decisão sindicada, a ter havido uma prestação de serviços (e não apenas um ato de altruísmo, inserido no voluntariado prosseguido pelo Autor), a beneficiária dos mesmos foi a senhora agente de execução, pelo que o contrato, a existir, teria sido celebrado com esta e era a esta que o Autor podia reclamar o pagamento de qualquer remuneração.

Não se vislumbra, em síntese, motivo para alterar a decisão recorrida.

3. Custas
Custas pelo Recorrente, atento o decaimento (artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC e tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

III. DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Évora, 16 de outubro de 2025

Sónia Kietzmann Lopes (Relatora)

Sónia Moura (1ª Adjunta)

Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)

(Acórdão assinado digitalmente)