ATO SEXUAL DE RELEVO
ART.º 171º DO CÓDIGO PENAL
PENA ACESSÓRIA DO ART.º 69º-B DO CÓDIGO PENAL
Sumário

I - Para os efeitos do art.º 171.º, n.º 1, do CP, ato sexual de relevo abrange toques com alguma intensidade, carícias, apertos ou apalpes em partes erógenas do corpo (genitais, vulva, seios, nádegas, coxas, boca), por se tratarem de condutas próprias da esfera da sexualidade íntima.
II - O aperto e apalpão intencional de uma nádega, com intensidade e duração relevantes, praticado sobre vítima de 12 anos, no contexto de autoridade do agente (professor em sala de aula, a sós com a aluna), consubstancia ato sexual de relevo, afastando a qualificação como mera importunação.
III - O art.º 69.º-B, n.º 2, do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 15/2024, eliminou a automaticidade da aplicação da pena acessória de “proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades”, “cujo exercício envolva contacto regular com menores”, mantendo, contudo, a respetiva moldura temporal entre 5 a 20 anos.
IV - A restituição ao julgador da ponderação quanto à aplicação dessa pena acessória não constitui remédio absoluto quando o limite mínimo legal é tão elevado que impede a justa calibragem da medida em função do grau de culpa e da gravidade do caso concreto. Este figurino legal tenderá a afastar a aplicação da pena acessória em muitas condenações - quiçá demasiadas - por crimes de natureza sexual envolvendo vítimas menores e, em última instância, redundará numa menor proteção das potenciais vítimas.

Texto Integral

Processo: 2456/23.4JAPRT.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
I.1. Por sentença datada de 15.01.2025 o arguido AA foi condenado:
- Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do CP, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova, bem como na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 anos, ao abrigo do disposto no art.º 69.º-B, n.º 2, do CP.

I.2. Recurso da decisão
Inconformado, o arguido interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
I - Vem o presente Recurso interposto da Decisão que condenou o arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova cujo plano a elaborar e acompanhar pela D.G.R.S.P., bem como na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 (cinco) anos, ao abrigo do disposto no artigo 69º- B nº 2 do Código Penal, havendo ainda condenado o arguido no pagamento das custas processuais, cuja taxa de justiça se fixou em 2 UC’s:
II - O Recorrente entende que o Tribunal não podia ter dado como provados aqueles factos, designadamente os factos constantes dos Pontos 2 a 6 dos factos provados, que assim julgou já que os referidos meios de prova não permitem e não são suficientes, por si sós, ou conjugados com as regras da experiencia comum, a logica e a razão de levarem a tal conclusão e consequente condenação;
III - Há por isso manifesta insuficiência e insanáveis contradições para a decisão da matéria dada como provada, porquanto:
- existem ostensivos erros na apreciação da prova e erros graves de julgamento, os quais determinaram o Tribunal à decisão condenatória, em total violação da lei, dos princípios gerais do direito e dos direitos fundamentais da recorrente constitucionalmente garantidos e protegidos;
- e ainda erro na interpretação e aplicação da norma do art.º 177.º do C.P.,
IV - Sendo estes os fundamentos legais do presente recurso, que aqui se deixam expressamente consignados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410.º, n.º 2, alíneas a) e c) e art.º 412, ambos do C.P.P.
V - Pelo que, com o presente recurso, para além de não se conformar com a decisão de direito e respectiva matéria e com a pena que lhe foi aplicada, que também impugna, o Recorrente pretende impugnar expressamente a decisão proferida sobre a matéria de facto uma vez que, tendo na devida conta e consideração as provas constantes dos autos e as produzidas em audiência de julgamento, se impunha uma decisão absolutória.
VI - Na verdade e tal como resulta do registo digital dos depoimentos do Recorrente, da ofendida e das testemunhas, para os quais desde já expressamente se remete e que deverão ser reapreciados pelo Venerando Tribunal da Relação, não poderia o Tribunal decidir como decidiu a matéria de facto, uma vez que estas provas são manifestamente insuficientes para fundamentar a decisão;
VII – Quanto ao Ponto 2 dos factos provados entende o Recorrente que o mesmo não podia ser dado como provado nos termos em que o foi. Na verdade, do processo constam outros elementos que permitem situar no espaço o recorrente e a ofendida e que são relevantes para se perceber a distância a que o arguido estava da ofendida e o modo como se dispuseram naquela sala ..., factos estes muito importantes para a defesa do arguido, pois como este desde sempre afirmou o arguido nem sequer se levantou do local onde se encontrava sentado ao fundo da sala;
VIII – Das declarações ao arguido no dia 11.10.2014, gravadas e cuja transcrição se encontra junta no corpo da motivação, resulta que o arguido estava ao fundo da sala, a cerca de 15/18 metros de distância da ofendida, sendo que as declarações da mesma, gravadas na Audiência de 19.11.2024, gravadas e cuja transcrição se encontra junta no corpo da motivação resulta a mesma factualidade;
XIX – Pelo que deverá ser alterado este ponto 2 dos factos provados para que dos mesmos passe a constar que: 2 - Naquela ocasião, a ofendida e o arguido encontravam-se sozinhos na sala, porquanto aquela faltou na data ordinária para a realização do teste referido, dias antes, encontrando-se a ofendida junto à porta de saída e o arguido na parte de trás da sala, a cerca de 15/18 metros da ofendida”
X – O Tribunal não poderia ter dado como provado o ponto 3 dos factos Provados, quer porque o arguido o negou peremptoriamente nas suas declarações quer porque a prova do facto se baseou unicamente nas declarações da ofendida e estas são falsas e inconsistentes, não constando dos autos qualquer prova que pudesse levar o Tribunal a dar esta facto como provado;
XI – Assim o Tribunal deu como provado que:
“3- Terminado o teste escrito, no momento em que a ofendida ia a sair da sala, o arguido colocou a sua mão na NADEGA ESQUERDA da ofendida e apertou-a, durante cerca de 3 a 4 segundos, apalpando-a.”
XII – Mas da Acusação deduzida pelo Ministério Publico consta que:
3 - Terminado o teste escrito, no momento em que saia da sala, o arguido AA colocou a sua mão na NADEGA DIREITA da ofendida e apertou-a, durante 3 ou 4 segundos, apalpando-a”..
XIII - Ora, não podia o Tribunal ter condenado o arguido por (supostamente) ter apertado a nádega esquerda, quando da acusação consta que o arguido (supostamente) apertou a nádega direita, o que constitui uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, sendo certo que o Tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação, que qual deve manter-se inalterado como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao Recorrente que apenas tem que se defender os factos acusados e não de outros;
XIV - Pelo que, não tendo o Tribunal cumprido o disposto nos art.º 358.º e 259.º do C.P.C., a sentença proferida é NULA;
XV – O Tribunal não analisou convenientemente a prova pois para dar este facto como provado, baseou-se exclusivamente nas declarações da ofendida, defendendo na motivação que forma corroboradas pelo depoimento da mãe e da irmã. Acontece porem que a mãe e a irmã não estavam no local no dia dos factos, apenas sabendo o que a ofendida lhes contou;
XVI – É inequívoco que a ofendida foi apresentando sempre diferentes versões do acontecido, designadamente quando ouvida no momento a seguir aos supostos factos pelo director da escola, pela GNR, mais tarde, na policia judiciaria, ao Sr. Juiz de Instrução Criminal, à Sra Procuradora do Ministério Publico e finalmente em audiência de julgamento:
- Ao director BB disse: “parece que o professor lhe pôs a mão assim”…um bocadinho abaixo da cintura – cfr consta do depoimento gravado em audiência de 11.10.2024, ao minuto 04.43 a 05.27, cfr transcrição integral junta e reproduzida no art.º 38.º e 39.º da motivação de recurso;
- à directora adjunta da escola, CC disse: “teve a impressão, a sensação de que o professor lhe tinha tocado aqui na anca”, cfr consta do depoimento gravado em audiência de 11.10.2024, ao minuto 03.55 a 16.58, cfr transcrição integral junta e reproduzida no art.º 38.º e 39.º da motivação de recurso;
- Do auto de Noticia da GNR Junto aos autos a fls 01 consta que: o professor AA colocou a mão na sua nádega direita….
- Nas declarações prestadas na Policia Judiciaria a 19. 07.2024., cfr auto de inquirição a fls 13 do processo, disse que: “ele apalpou-me a nádega direita durante cerca de 4 segundos. Não foi a passar a mão, foi mesmo agarrar
- Ao Sr. Juiz de Instrução Criminal, em sede de declarações para memoria futura gravadas no dia 27.02.2024, pelas 14:08m, entre os minutos 02.25 e 04.00 disse que: sentiu um toque…um toque tipo apalpe…mas não muito…
- A Sra procuradora adjunta, neste mesmo dia e quando por esta instada já confirmou que não tinha apanhado mesmo a parte da nádega, e que achou que esse toque foi um apalpão porque tinha ouvido coisas sobre o professor…burburinhos, cfr se afere das suas declarações entre os minutos 04.44 a 10.17, transcritas na motivação.
- Em julgamento no dia 19.12.2024 ao minuto 03.34, diz que: eu estava a ir à porta e senti um toque em mim. Senti na minha nádega, um toque assim, que durou 4/4 segundos….
XVII - Na verdade, o que resulta deste processo é que a própria Ofendida não apresenta qualquer coerência no seu depoimento, ora dizendo que lhe parece que o professor lhe tocou, ora dizendo que foi entre a anca e a nádega, que foi na direita, que foi na esquerda….
XVIII - O certo é que o arguido nega tais factos, dizendo aliás em sua defesa que NUNCA sequer se levantou da cadeira e do local onde sempre esteve, declarações que o Tribunal desvalorizou sem nenhum fundamento, pois é certo que da sentença não consta uma única linha sobre a falta de credibilidade das declarações prestadas pelo arguido;
XIX – As declarações de arguido são o seu meio de defesa por excelência e não se sabe porque forma desvalorizadas ou não mereceram credibilidade, sendo que deveriam ter sido valoradas pelo Tribunal nos termos do disposto no ar.º 344.º do CPP;
XX – também as regras da experiencia comum so forma valoradas a favor da ofendida e em total desrespeito pelo direitos de defesa do arguido;
XXI - Se o Tribunal se valeu dos princípios e das regras da experiencia comum para fundamentar a sua convicção, com o devido respeito que muito é, deveria também ter-se valido das mesmas regras da experiencia comum para fazer uma analise mais criteriosa e objectiva da prova, designadamente atentando no facto de que o arguido não teve sequer necessidade de se levantar para acompanhar a aluna à saída da sala uma vez que foi a própria a levar o seu teste para a professora que estava na outra sala;
XXII – Se o arguido pretendesse aproveitar-se da Ofendida poderia simplesmente ter fechado a porta da sala, o que porém nunca fez, mantendo-a aberta para trás, tendo passado nos corredores enquanto o mesmo decorria, vários alunos nos intervalos, funcionários, professores;
XXIII - O Tribunal desvalorizou o depoimento das testemunhas que estiveram com a ofendida nos minutos seguintes aos alegados factos, dando apenas prevalência e relevância aos depoimentos da mãe e irmã da Ofendida, que apenas conhecem o que Ofendida lhes contou.
XXIV - Não se compreende nem se aceita porque não foram valoradas os depoimentos das testemunhas do arguido, sendo que a fundamentação para não terem sido valoradas não colhe, pois não é pelo facto de não ter sido aberto um processo interno sobre o arguido, que tal facto afecta a credibilidade destas testemunhas;
XXV - É jurisprudência pacífica a convicção por livre não deixa de ser fundamentada e o Tribunal não explica quais os fundamentos porque não valorou as declarações do arguido, as quais desconsiderou, sem explicar porquê, o que constitui omissão de pronuncia e gera a NULIDADE da sentença;
XXVI - Pelo facto de estar em causa uma menor, já pré-adolescente não pode levar a que a convicção do Tribunal seja uma convicção puramente subjectiva ou emocional, pois curando-se sempre de uma convicção pessoal, ela é necessariamente objectivável e motivável;
XXVII - Estão assim coarctados e subvertidos todos os direitos de defesa do arguido, pois a realidade do quotidiano desmente muitas vezes os padrões de normalidade, que não constituem regras absolutas e por vezes estes comportamentos de menores ou adolescentes como a Ofendida são apenas reacções, eventos ou comportamentos anormais ou imprevisíveis, mas que contra razoáveis expectativas, podem não se verificar, como será manifestamente o caso dos autos, pois o arguido não praticou os factos pelos quais vem acusado.
XXVIII - O Tribunal deveria ter efectuado uma analise muito criteriosa da prova, o que no entender do recorrente não foi feito, pois são inúmeras e inconsistentes as contradições nas declarações da ofendida, o que deveria ter conduzido à absolvição do arguido, sob pena de se condenar uma pessoa inocente, como é manifestamente o caso.
XXIX - A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dúbio pro reo, o que, neste processo, manifestamente não se verificou;
XXX – O arguido nem sequer tinha noção do facto de que o acusa a ofendida do que apenas tomou conhecimento em conversa com o director da escola, cfr resulta das suas declarações gravadas do minuto 8:51 ao minuto 13.52, transcritas no art.º 74 da motivação e ora juntas;
XXXI - Recai sempre sobre o acusador o encargo de destruir a presunção de inocência, o in dubio impõe a valoração do non liqued em sentido favorável ao arguido; Só que, neste caso, não se estava em presença de um non liqued, pois as provas do facto apreciado – todas elas indirectas, é certo – permitiam concluir, em conjunto também com as declarações do arguido, pela manifesta inconsistência dos factos da acusação.
XXXII - Atento o exposto, é manifesto que o facto descrito no PONTO 3 DOS FACTOS PROVADOS não poderia ter sido dado como provado, devendo assim ser alterada a decisão quanto à matéria de facto constante deste
PONTO 3 dos factos provados, passando o mesmo a constar dos factos NÃO PROVADOS.
XXXIV - Igual sorte deverá ter a matéria de factos dada como provada nos PONTOS 4. a 6. DOS FACTOS PROVADOS, os quais devem ser alterados passando a constar dos factos não provados.
XXXV - Inexiste nos autos qualquer prova que sequer indicie que o arguido, tendo conhecimento da idade da ofendida e aproveitando-se desse facto, tivesse praticado facto descrito em 3, com o intuito libidinoso de satisfazer os seus instintos, tendo perfeita consciência de que a idade daquela não lhe permitia autodeterminar-se sexualmente e que o acto que praticou punha em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade daquela menor;
XXXVI - Para a prova destes factos, o Tribunal partiu de presunções, que não foram provadas, pois não são suportadas por quaisquer meios de prova constantes do processo, remetendo para a prova de outros factos para considerar provados estes, assim violando a lei;
XXXVII – Pelo que também nesta parte enferma a sentença de NULIDADE, uma vez que a falta de fundamentação e prova destes factos impede que se conheça a razão de tais factos terem sido dados como provado, remetendo-se ainda quanto à não prova destes factos 4 a 6, relativamente à matéria de facto para tudo quanto supra exposto nas conclusões supra e do corpo da motivação do arguido quanto á não prova dos factos 2 e 3, pelo que deverá ser alterada decisão quanto aos mesmos, passando estas a constar dos FACTOS NÃO PROVADOS;
XXXVIII – Verificou-se ainda que, com a decisão proferida o Tribunal violou o PRINCIPIO IN DUBIO PRO REU, com assento Constitucional no art.º 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, o qual obriga o julgador a pronunciar-se de forma favorável ao arguido quando não tem a certeza ou não existe prova cabal dos factos;
XXXIX – Para condenar o arguido o Tribunal apenas atentou nas (incongruentes e incertas) declarações da ofendida, que não são corroboradas por qualquer outra prova, existindo nos autos prova abundante a infirmar o descrito na acusação;
XXXX – Entre elas, designadamente as declarações de todas as restantes testemunhas, designadamente BB, CC, DD, as declarações que a própria ofendida prestou perante a GNR e a Policia Judiciaria que deixam grande margem para duvidas de que efectivamente os factos aconteceram tal qual descrito pela ofendida, uma vez que nem mesmo a própria ofendida tem um discurso com certezas, coerente e rectilíneo, faltando à verdade!
XXXXI – Ao não absolver o arguido o Tribunal violou o principio da presunção de inocência, ou seja, o principio in dubio pro Reu, assim violando o art.º 32.º da C.R.P.;
XXXXII – Sem prescindir, existe notório erro na interpretação e aplicação da norma, já que o art.º 171.º, n.º 1 do C.P. determina que “quem praticar acto sexual de relevo com um menor de 14 anos, ou levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”, sendo assim necessário que, para que o crime seja praticado se provem os elementos tipo do crime: a acção típica do agente, isto é, o elemento objectivo que consiste na desigualdade entre a vítima e o agente do crime e o elemento subjectivo, que está relacionado com o aproveitamento dessa desigualdade, o que no caso, manifestamente não aconteceu;
XXXXIII - Ora, entende o Recorrente que não há qualquer prova nos autos de que o arguido tenha pretendido aproveitar-se da inexperiência ou da idade da ofendida para praticar tal acto pois todos os factos e prova resultantes do processo e da Audiência de julgamento demonstram precisamente o inverso, não sendo a conduta do arguido é integradora da ilicitude que a norma reclama, desde logo no que resulta das suas declarações, dos depoimento das varias testemunhas de defesa ouvidas e da própria inconsistência do discurso da ofendida;
XXXXIV - O "acto sexual" assume o significado "de relevo" quando constitua ofensa séria e grave à intimidade e liberdade da ofendida no domínio da sexualidade, o que manifestamente não se provou, nem aconteceu:
XXXXV - Não tendo o legislador esclarecido quais as modalidades típicas da acção que pretendia incriminar como contacto de natureza sexual com relevo penal, cabia à Meritíssima juiz fazê-lo, tendo em conta o circunstancialismo de lugar, de tempo, as condições que o rodeiam e que o façam ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo, prova esta que não resultou dos autos;
XXXXVI – Até porque valendo-se dos tais juízos e regras decorrentes da experiencia comum não teria o tribunal que atentar o que levaria um professor com 43 anos de profissão, sem antecedentes criminais e sem registo de qualquer acontecimento desta natureza ao longo destes infindáveis 43 anos de leccionação, (cfr resulta da prova testemunhal de BB, de CC, DD e do Relatório Social bem como das declarações do próprio arguido e cfr consta dos factos provados) condenado por estas afirmações da aluna, desprovida de qualquer outra prova? Sem que se prove que existiu efectivamente um apalpe, consciente e voluntario por parte do arguido? Como de todo não se verificou….
XXXXVII - Na hipótese que se conjectura meramente de forma académica, de se considerar que ocorreram os factos descritos na acusação – que não aconteceram - mas que o dever de patrocínio impõe que se salvaguarde, estamos em crer que a conduta do arguido apenas poderia subsumir-se ao crime de Importunação Sexual previsto e punido pela disposição do art.º 170 do Código Penal, requerendo-se assim a alteração da qualificação jurídica do crime para o Crime de Importunação Sexual, com todas as legais consequências;
XXXVIII – Sem prescindir, caso o tribunal decida por manter a condenação, o que não se concebe, contudo, por cautela de patrocínio o arguido entende que a pena aplicada é demasiado gravosa, fundamento também pelo qual deveria ter ocorrido a alteração da qualificação jurídica do crime para o crime de importunação sexual;
XXXIX – O arguido é professor há 43 anos, é treinador no clube de atletismo que fundou há mais de 30 anos, tem uma família, é o único elemento activo do seu agregado familiar dele depende financeiramente a esposa, pelo que o Tribunal deveria ter ponderado nas circunstância do caso concreto, designadamente naquelas que abonam a favor do arguido, quando condenou o arguido no crime do art.,º 171.º do C.P. o qual necessariamente acarreta a condenação do n.º 1 do art.º 69.º-B do mesmo código;
XXXXX – Condenar o arguido no crime já é demasiado doloroso para quem nada fez, mas onerá-lo com 5 anos durantes os quais não pode exercer a profissão, é além do mais desumano;
XXXXXI – Pelo que sempre o Tribunal deverão ter ponderado em todas as circunstância do caso concreto e designadamente em todas as circunstancias que abonam a favor do arguido, designadamente e desde logo a total ausência de qualquer registo criminal;
XXXXXII – Caso assim não se entende, sempre a pena deverá ter sido diminuída para os mínimos legais, não se aplicando o disposto no art.º 69-B, n.º do C.P.;
XXXXXIII - Estando em causa a justa medida da reacção penal ao suposto comportamento do arguido, a condenação do mesmo nesta pena acessória viola o princípio da proporcionalidade inserto no art.º 18.º, n.º 3 da C.R.P., situação esta que o Tribunal também não ponderou na sua decisão quando decidiu pela condenação do arguido e consequente condenação nesta pena acessória.
XXXXXIV - A decisão do Tribunal viola o art.º 18.º da CRP, além de que viola o art.º 30.º, n.º 4 daquele mesmo corolário dos direitos fundamentais tendo em conta que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos;
XXXXXV – O Arguido é bem inserido social familiar e profissionalmente, com uma percurso profissional e social imaculado, sem qualquer registo de qualquer infracção, crime ou atitude menos própria, sendo um homem bem considerado por todos com quem se relaciona e pêlos seus pares ou alunos, cfr demonstra O relatório social, os depoimentos das testemunhas EE e FF, prestados na Audiência de Julgamento dos dias 11.10 e 08.11, respectivamente, e cuja transcrição integral se junta ao presente recurso
XXXXXV – A decisão é ainda nula porquanto violou grosseiramente o Principio in dúbio pro reu quando o Tribunal optou e decidiu condenar o arguido, pelo que deverá o mesmo ser absolvido do crime pelo qual vinha acusado. E assim decidindo, absolvendo-o o arguido, será feita a Costumada Justiça,

I.3. Resposta ao recurso
O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, em termos sintetizados nestas conclusões (transcrição):
1 - O Recorrente põe em causa é a forma como foi formada a convicção do Tribunal, a qual passa sempre por uma ponderação da prova na sua globalidade.
2 - Esta convicção não se confunde com a impressão, ideia ou juízo pessoal, profundamente arbitrário uma vez que tem por base as convicções de cada um, os pré-conceitos, as experiências e estruturas cognitivas individuais. Esta convicção é aquela que resulta da análise objectiva dos meios de prova, tendo por base um juízo de normalidade das coisas. Funda-se nas regras da experiência que são comuns à generalidade das pessoas, e na forma como habitualmente os acontecimentos são causais uns dos outros. Este raciocínio lógico e objectivo de apreciação dos factos é depois vertido na motivação da decisão, permitindo assim a reconstituição do processo decisório e a sindicância das decisões.
3 - Na audiência de discussão e julgamento do presente processo foram apresentadas duas versões contraditórias dos factos e incompatíveis entre si, uma narrada pela ofendida e outra pelo arguido.
4 - Pela forma como o depoimento foi prestado, a Meritíssima Juíza a quo considerou credível e sincero o depoimento da ofendida, porque corroborado de forma lateral, quer pelo depoimento de diversas testemunhas inquiridas (designadamente GG (mãe da ofendida) e HH (irmã da ofendida), quer pelo teor do relatório pericial junto aos autos.
5 - Tais declarações foram convergentes, coerentes entre si, e mostraram conhecimento da factualidade em apreciação, estando tais depoimentos alinhados com a decisão sobre a matéria de facto plasmada na sentença.
6 - Sufragamos por isso, na íntegra, a apreciação de tais depoimentos feita pela Meritíssima Juíza a quo relativamente à credibilidade e pertinência dos mesmos, tanto mais que a versão dos factos descrita pela ofendida mostrou-se coerente, sem qualquer intuito persecutório relativamente ao arguido, limitando-se a descrever factos sem os empolar ou exagerar nas suas consequências.
7 - Apurou-se de forma clara no julgamento que o arguido não era professor da ofendida, ou de qualquer familiar desta, não tendo tido sequer qualquer interação prévia ou desentendimento que pudesse justificar uma narração de factos falsos por parte da ofendida.
8 - O conhecimento público dos factos não foi desejado ou promovido pela ofendida, que, perante o nervosismo e perturbação de ter sido vítima de um comportamento daquela natureza, se limitou a narrá-los à sua irmã mais velha, por não saber como lidar com o sucedido.
9 - Foi a irmã da ofendida que, à revelia desta, relatou o sucedido à mãe de ambas, assim se adquirindo a notícia do crime.
10 - Não se vislumbrou no depoimento da ofendida qualquer intuito persecutório relativamente ao arguido, tendo inclusivamente a primeira manifestado oposição a que lhe fosse atribuída indemnização pelos factos de que fora vítima.
11 - A mesma conclusão foi extraída do relatório de perícia médico-legal de pedopsiquiatria.
12 - Por todo o exposto, do depoimento da ofendida II conjugado com o das testemunhas GG e HH e com o teor do relatório de perícia médico-legal de pedopsiquiatria junto aos autos, não resultou qualquer dúvida que levasse a dar-se os pontos 2 a 6 dos factos provados como não provados.
13 - O Tribunal a quo decidiu de forma correcta a factualidade em causa, sendo perfeitamente defensável, lógica e coerente a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, conforme resulta dos depoimentos prestados (considerados na sua globalidade) e da motivação da factualidade provada, não cabendo ao Tribunal da Relação sindicar a credibilidade atribuída a cada uma das testemunhas pela Juíza da l .ª Instância e reformular a convicção desta sobre a prova produzida.
14 - Alega ainda o Recorrente que as condutas que lhe são imputadas não integram a prática do crime de abuso sexual de crianças, nem podem ser considerados actos sexuais de relevo para efeitos da incriminação deste tipo legal, porém, tal argumentação está alicerçada num pressuposto incorrecto.
15 - O crime de abuso sexual de criança protege o livre desenvolvimento das crianças no campo da sexualidade, considerando-se aqui que, determinados actos ou condutas de natureza sexual podem, mesmo sem violência, em razão da pouca idade da vítima, prejudicar de forma séria o seu crescimento harmonioso e, por consequência, o livre desenvolvimento da sua personalidade.
16 - Para o preenchimento do tipo legal não é necessário demonstrar que o arguido “tenha pretendido aproveitar-se da inexperiência ou da idade da ofendida para praticar tal acto", mas antes que o acto praticado consubstancie um acto sexual de relevo, como foi o caso.
17 - Entre a factualidade imputada na acusação e a dada como provada na sentença não se verifica qualquer alteração dos factos, seja ela substancial ou não substancial, mas mera concretização ou precisão dessa mesma factualidade, com grau de rigor acrescido.
18 - Uma vez que da realização do julgamento foi possível apurar com maior rigor o concreto local do corpo da ofendida tocado pelo arguido (nádega
esquerda e não direita como estava descrito na acusação), a Mma. Juíza introduziu tal precisão na matéria de facto dada como provada.
19 - Tal precisão não configura qualquer alteração da factualidade imputada à arguida, mas apenas uma precisão da mesma, que não coloca em causa a defesa do arguido e que por isso mesmo não carecia de ser comunicada ao arguido ao abrigo do disposto no art. 358.º, n.º 1, al. a) do C.P.P.
20 - Tendo por base a concreta factualidade imputada ao arguido, a circunstância de não ter confessado a sua prática, nem demonstrado qualquer arrependimento pela sua conduta, é manifesto que a pena aplicada ao arguido se mostra ajustada.
21 - Basta atendermos que a pena foi fixada muito perto do limite mínimo da moldura legal para concluirmos pela adequação da medida concreta da pena e, se alguma censura lhe poderá ser feita, é ter pecado por defeito e não por excesso.
22 - Atendendo às concretas funções exercidas pelo arguido, professor de ginástica numa escola básica, exercendo diariamente funções de autoridade sobre crianças que não possuem a capacidade para se oporem a condutas análogas à descrita nos autos, necessariamente teria de lhe ser imposta a pena acessória de proibição de exercer funções que envolvam contacto regulares com menores, ao abrigo do disposto no artigo 69º-B nº 2 do Código Penal, tratando-se de verdadeira tutela antecipatória do direito à autodeterminação sexual de potenciais lesados.
23 - Relativamente à concreta medida da pena acessória, tendo a mesma sido fixado no mínimo da moldura prevista (5 a 20 anos), também não vislumbramos qualquer desajuste que se imponha corrigir por via do recurso.
Porque a sentença apreciou devidamente os factos em questão e efectuou uma correcta subsunção jurídica dos mesmos, deve a sentença ser mantida no seus exactos termos, sendo julgado improcedente o Recurso interposto, assim se fazendo a habitual, JUSTIÇA!

I.4. Parecer do ministério público
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416.°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu às alegações do recurso apresentadas pelo Ministério Público na primeira instância.

I.5. Resposta ao parecer
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.

I.6. Foram colhidos os Vistos e realizada a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Delimitação do objeto do recurso
O recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, que estabelecem os limites da cognição do tribunal superior, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, como os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP (cf. art.ºs 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, ambos do CPP).
Passamos a delimitar o thema decidendum:
- As nulidades da sentença, previstas nos art.ºs. 379.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP.
- Os vícios da sentença da insuficiência da matéria de facto provada e do erro notório, previstos no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP
- A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento de facto.
- A decorrente violação do princípio “in dubio pro reo” e do princípio da presunção da inocência.
- O enquadramento jurídico.
- A desproporcionalidade da pena acessória de proibição de funções por 5 anos.

II.2. Decisão Recorrida
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição parcial, na medida do necessário ao conhecimento do objeto do recurso):
Factos provados:
1- No dia 28 de Abril de 2023, pelas 11h30m, na sala ..., na escola sita na Rua ..., ..., Matosinhos – actualmente denominada Escola Básica ..., anteriormente ... – a ofendida II, nascida em ../../2010, à data com doze anos de idade, realizava um teste escrito da disciplina de português, tendo como vigilante o arguido AA, professor de educação física;
2- Naquela ocasião, a ofendida e o arguido encontravam-se sozinhos na sala, porquanto aquela faltou na data ordinária para a realização do teste referido, dias antes;
3- Terminado o teste escrito, no momento em que a ofendida ia a sair da sala, o arguido colocou a sua mão na nádega esquerda da ofendida e apertou-a, durante cerca de 3 a 4 segundos, apalpando-a;
4- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente;
5- Tinha conhecimento da idade da ofendida e, aproveitando-se desse facto, praticou o acto acima descrito, com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que a idade daquela não lhe permitia autodeterminar-se sexualmente e que o acto que praticou punha em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade daquela menor;
6- Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
Mais se provou que:
7- Houve oposição expressa, por parte da ofendida, ao arbitramento de uma quantia a ser-lhe paga pelo arguido, a título de reparação;
8- O arguido reside numa moradia restaurada com condições de habitabilidade e conforto, desde 1989, quando contraiu matrimónio, casa inserida numa zona tranquila de moradias, que herdou em 2013, após falecimento dos progenitores;
9- À data dos factos, o seu agregado era composto pelo próprio, pela esposa (de 58 anos, doméstica) e por uma filha (de 27 anos, gestora de marketing);
10- O casal tem mais uma filha, de 34 anos, autónoma há vários anos;
11- Presentemente, o casal reside sozinho, embora as suas filhas frequentem a casa com regularidade aos fins-de-semana, sendo a dinâmica familiar tida como funcional, direccionada para os afectos e interajuda entre os distintos elementos que a compõem e sendo o relacionamento conjugal tido como gratificante;
12- O arguido é professor de educação física do Agrupamento de Escolas ... desde 01.09.1992; paralelamente, vêm-lhe sendo atribuídas outras funções, nomeadamente de responsável pelo Desporto Escolar, Coordenador do agrupamento dos professores de educação física e ainda avaliador externo e interno de professores, sendo considerado um professor muito exigente no desempenho das suas funções e para com os alunos no cumprimento de regras;
13- Em 1993, o arguido fundou o Clube ..., de Atletismo, fazendo parte da sua direcção e exercendo funções de treinador feminino e masculino e de coordenação dos diversos treinadores do clube, de diversos escalões etários, tendo a sua filha mais nova praticado esta modalidade no clube durante vários anos, até ingressar no ensino superior, e tendo a família acompanhado com proximidade esta actividade do arguido;
14- O casal conheceu-se e iniciou o relacionamento afectivo na sequência da prática da modalidade de atletismo por parte da esposa do arguido, enquanto este era seu treinador;
15- O arguido iniciou a actividade lectiva em 1982, como professor de educação física, enquanto estudante, tendo a conclusão da licenciatura em desporto e educação física – opção complementar de desporto de rendimento, ocorrido em Setembro de 2002;
16- O arguido é o único filho dos seus progenitores, tendo o seu percurso vivencial decorrido em ambiente familiar tido como harmonioso e com uma situação económica favorecida; neste contexto, herdou imóveis que se encontram arrendados, auferindo ainda um ordenado ilíquido de €3.613,16;
17- A sua esposa, também licenciada em desporto, optou por deixar de trabalhar há vários anos para cuidar dos progenitores e dos sogros;
18- O quotidiano do arguido é preenchido pela vida profissional, pelo seu desempenho no clube que fundou, o qual lhe ocupa parte dos fins-de-semana e finais de tarde, e pelo convívio familiar e com um grupo restrito de amigos com quem o casal convive;
19- A esposa e a filha mais nova do arguido têm o mesmo como uma pessoa com uma conduta sem reparos e pautada pelos valores sociais convencionais, designadamente de cariz sexual, parecer partilhado pelo Director do Agrupamento de Escolas;
20- O arguido não tem condenações criminais registadas.
Motivação da decisão de facto:
A convicção do Tribunal, no tocante aos factos provados, fundou-se na análise crítica e conjunta da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada à luz das regras da experiência e da livre convicção do julgador, de harmonia com o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Desde logo, no que tange à factualidade enunciada de 1. a 3., importa referir que o arguido reconheceu a mesma, à excepção do facto de ter tido a actuação descrita em 3.
Com efeito o arguido assegurou que durante a realização do teste em causa, estava sentado a cerca de 15/18 metros da porta de saída, estando a ofendida sentada a cerca de 3 metros dessa mesma porta, e que, quando esta tinha terminado de efectuar tal teste, a mesma se tinha levantado e saído, permanecendo o próprio sempre no sentado no referido lugar. Assim, o arguido afirmou que nunca tinha havido qualquer tipo de aproximação entre si a e menor, não podendo ter havido qualquer tipo de toque, ainda que inadvertido.
Diga-se ainda que o arguido mencionou que não era nem tinha sido professor desta menor, bem como que a mesma não tinha frequentado actividades no âmbito do desporto escolar. Assim, o arguido apenas admitiu que se pudesse já ter cruzado com a turma da ofendida no âmbito de alguma substituição de professor, mas disse não saber se tal teria efectivamente acontecido, ou não.
Perguntado sobre se via alguma explicação para se ver envolvido nesta situação, o arguido mencionou que era um professor exigente e que, por vezes, os pais achavam que uma forma de se vingarem era fazerem queixa de si, dizendo coisas que não tinha feito.
Por sua banda, a ofendida, que foi ouvida em sede de tomada de declarações para memória futura (devidamente gravadas, as quais são valoráveis e validamente utilizáveis sem necessidade de leitura/reprodução em audiência de julgamento, conforme se deixou claro no A.U.J. nº 8/2017, do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 11 de Outubro de 2017, disponível em www.dgsi.pt), relatou os factos do modo descrito na factualidade provada, não se vendo que em algum momento tenha procurado empolar a gravidade de tais factos. Neste conspecto, refira-se, por exemplo, que a mesma frisou que o “apalpo” não tinha sido com força, não deixando contudo de esclarecer que não tinha sido um mero toque, mas que“apertou um bocado”. A ofendida também foi clara ao afiançar que não tinha havido troca de palavras entre ambos.
Apesar de, logo nas declarações para memória futura, a ofendida ter apontado a nádega esquerda como local em que o arguido tinha colocado a mão, apertando (sendo que o próprio Mmo. Juiz de Instrução Criminal deu essa indicação, ao ver o gesto efectuado pela menor), considerando as perguntas subsequentemente efectuadas à mesma no âmbito das declarações para memória futura, designadamente pela Digna Magistrada do Ministério Público (atinentes ao facto de o local atingido não ser mais abaixo, onde era costume acontecerem apalpões, designadamente por parte de “miúdos”), entendeu-se ser relevante inquirir novamente a ofendida, em sede de audiência de julgamento, com vista a esclarecer cabalmente o local exacto em que o arguido tinha colocado a sua mão. Ora, neste âmbito, resultou claro que o local em apreço, segundo a menor, era a nádega (sendo certo que a mesma trajava calças de ganga e que, quando quis mostrar a parte do corpo em que tinha sido apalpada, a sua mão ocupou o espaço do bolso traseiro das calças).
II também explicou que, na sequência da actuação do arguido, tinha ficado sem reação, nada dizendo, apenas tendo pensado em entregar o teste e procurar alguém, tendo falado com a sua irmã, a qual, por sua vez, tinha ligado para os seus pais.
Nos dois referidos momentos (declarações para memória futura e audiência de julgamento), o discurso da menor afigurou-se espontâneo, coerente e objectivo.
Neste particular, foi igualmente valorado o teor do relatório pericial de fls. 54 e ss., em que se fez constar, nomeadamente, que “Não foi aparente coação ou instrumentalização direta / indireta por terceiros” e que “A examinanda foi coerente em relação à narrativa dos factos, as circunstâncias descritas foram consistentes com o que se poderia esperar em situações semelhantes, demonstrou emoções relacionadas com os eventos, tais como ideias ruminativas e pensamentos de evitação da escola. Assim, a examinanda perante as questões com valor simbólico mais intenso, em termos emocionais, reagiu com humor congruente ao conteúdo do discurso, foi coerente e segura ao longo da narrativa. Adicionalmente, nãoapresentou limitações emocionais ao longo da entrevista, ou seja, não foi necessário fazer adaptações relevantes à entrevista em resultado de uma resposta emocional que pudesse prejudicar a sua narrativa”.
Apesar de resultar das palavras do arguido e da ofendida que mais ninguém presenciou o momento em que esta terminou o teste e se dirigiu para a porta de saída da sala de aula, há que frisar, quanto à prova testemunhal produzida, que os depoimentos de GG (mãe da ofendida) e HH (irmã da ofendida) se harmonizaram com o depoimento de II.
Com efeito, a primeira referiu que tinha recebido uma chamada da sua filha HH, transmitindo-lhe que a II lhe tinha dito que tinha sido apalpada pelo professor. GG explicou, em síntese, que se tinha dirigido à escola com o seu marido, encontrando a ofendida muito nervosa, a qual tinha relatado que o arguido a tinha apalpado na nádega do lado esquerdo.
A mãe da menor – que afiançou que o arguido nunca tinha sido professor de qualquer um dos seus filhos – também aludiu ao facto de a escola não ter dado resolução ao problema, mencionando que o professor BB apenas lhe tinha dito que a ofendida não iria ser leccionada pelo arguido, bem como à circunstância de a menor ter ficado abalada com esta situação e se ter começado a fechar, passando a frequentar um psicólogo e acabando por mudar de estabelecimento de ensino.
Diga-se ainda que GG assegurou que a ofendida era uma criança muito sincera e verdadeira e que nunca tinha duvidado que o seu relato era verdadeiro.
HH esclareceu, em suma, que a ofenda tinha vindo ter com ela num intervalo escolar, mostrando-se muito tensa e nervosa e dizendo que o professor a tinha apalpado no rabo, pelo que a própria tinha ligado para a mãe e o pai (de ambas).
Esta testemunha referiu que nunca tinha acontecido algo de parecido com a ofendida e que nunca a tinha visto assim, sendo que, a partir daí, a mesma tinha começado a estar sempre “no mundo da lua”, muito fechada e a pensar muito no que se passava.
HH também asseverou que tinha acreditado na sua irmã, tanto que tinha de imediato telefonado aos seus pais, e que o arguido nunca tinha sido professor de qualquer uma delas.
Mais perplexidades suscitaram os depoimentos de BB, director do agrupamento escolar em causa, e CC, que disse ser adjunta da direcção.
O primeiro – que esclareceu qual o nome actual e anterior da escola em questão – começou por dizer que tinha perguntado à II o que se tinha passado e que ela tinha dito “parece que o professor AA pôs a mão assim”, referindo-se a um local um bocadinho abaixo da cintura, na parte de trás do corpo.
Mas no final do seu depoimento, quando questionado sobre os procedimentos que tinham sido adoptados, o depoente explicou que não tinha existido qualquer processo disciplinar nem tinha sido tomada qualquer medida, em suma, porque os pais não tinham apresentado uma queixa escrita à escola, porque o arguido tinha negado os factos e porque uma autoridade tinha tido intervenção, sendo que tinha sido a G.N.R. a ouvir a menina, porquanto o próprio praticamente não o tinha feito, dado que “o senhor que estava com a mãe nem sequer deixava ouvir ninguém”. Assim, retirou-se das suas palavras que, da parte da escola, apenas houve o compromisso de que o arguido não iria ser professor da ofendida (tal como foi referido por GG).
Explicite-se ainda que, quando instado sobre a forma como se apresentava a ofendida, BB afirmou que não tinha achado que a mesma estivesse nervosa e que quem estava nervoso era o companheiro da sua mãe.
Por seu turno, CC explicou que tinha ido à sala ... durante a realização do teste pela ofendida, com vista a entregar uns papéis, vendo a aluna e o arguido sentados em lugares distintos da sala. Relatou que, pouco depois, quando já estava sentada no local da Direcção, lhe tinham comunicado que estava uma aluna cá em baixo, muito nervosa, à espera dos pais. A testemunha prosseguiu referindo que a aluna tinha acabado por entrar na direcção com a sua directora de turma, contando que tinha a impressão ou sensação de que o professor lhe tinha tocado na anca. No entanto, quando, mais em diante, fez o gesto que tinha sido efectuado pela menor, a depoente colocou a mão na nádega.
CC disse ter perguntado à menor se o professor se tinha levantado, ao que a mesma tinha respondido “acho que sim”.
Esta testemunha aludiu igualmente à posterior chegada da mãe da menor, do respectivo companheiro, do pai da ofendida e da G.N.R.
Quando perguntada sobre o estado da ofendida, CC começou por dizer que a mesma estava perturbada, mas tinha ficado mais nervosa e mais branca à chegada da sua mãe. Todavia, mais em diante, disse que a menor tinha entrado relativamente serena, que tinha ficado nervosa à chegada dos pais e que tinha ficado branca quando tinha sido dito que vinha a polícia.
Afigura-se ainda revelante mencionar que a testemunha em apreço fez menção ao facto de este assunto ter sido do conhecimento de diversas pessoas e ter chegado a outras escolas, tendo-lhe sido perguntado o que tinha acontecido com o professor AA, ao que a própria tinha respondido “não aconteceu nada”. E quando se procurou confirmar esta sua resposta, a testemunha tentou desdizer o que acabara de afirmar, referindo que tinha dito que não estava provado, sendo que “ainda por cima aumentaram muito as coisas”.
Quanto a DD, que era directora de turma da ofendida, mesma revelou algumas dificuldades de memória, que justificou com problemas de saúde que concretizou devidamente. Ainda assim, a mesma não deixou de sublinhar que a menor estava muito nervosa e transtornada quando se deslocara à direcção e que tinha percebido que havia uma situação grave, pela forma como a mesma estava a reagir. Apesar de não ter conseguido mostrar-se segura quanto ao local do corpo indicado pela menor, DD referiu que a jovem tinha descrito que o professor, que tinha estado a fazer a vigilância num teste, lhe tinha posto a mão numa zona do corpo que a tinha deixado desconfortável. Esta testemunha esclareceu ainda que a ofendida era uma aluna bastante reservada e que não era conflituosa.
Os depoimentos das testemunhas FF, JJ (ambos professores e colegas do arguido) e EE (que disse ser atleta e ter sido treinada pelo arguido) não assumiram particular relevância, dado que não tinham conhecimento directo dos factos em análise, apenas se retirando dos mesmos, no essencial, que estes depoentes nunca tinham tomado conhecimento de qualquer comportamento incorrecto da parte do arguido.
Ora, analisada toda a prova produzida, cumpre mencionar que, além de o depoimento da ofendida ter sido considerado objectivo, consistente, verosímil e aparentemente sincero, o mesmo não deixou de ser corroborado, em diversos pontos, pelos depoimentos de GG e HH, sendo certo que o seu estado de intenso nervosismo e perturbação foi confirmado por DD, a qual, a este respeito, apresentou um depoimento claramente discrepante de BB e CC.
Como dito, os depoimentos destas duas últimas testemunhas suscitaram perplexidades, não sendo crível, por exemplo, que a menor não tivesse sido segura, designadamente, sobre a questão de saber se o arguido se tinha levantado ou não (tanto mais que é pacífico que, quando se encontravam sentados, ambos estavam em partes bem distintas da sala de aula), e sobre se o mesmo lhe tinha efectivamente tocado ou não. O certo é que, perante o Tribunal, a mesma foi clara quanto a estes pontos, descrevendo qual tinha sido a actuação do arguido. Suscitaram-se igualmente perplexidades sobre a actuação dos membros da direcção da escola, sendo no mínimo nublosas as explicações dadas a este respeito por BB e sendo ainda mais duvidosa a reacção de CC, que terá rapidamente concluído que nada tinha acontecido, apesar de a escola não ter procedido a qualquer averiguação ou adoptado qualquer medida.
A verdade é que resultou da prova produzida que o arguido não era professor da ofendida ou de qualquer irmão seu, que não tinha havido qualquer problema anterior entre aquele e a menor, e que não havia registo de os pais de II terem apresentado queixas anteriores na escola, não se vendo que a jovem, que foi descrita como uma pessoa reservada, tivesse algo a ganhar com a invenção destes factos, devendo sublinhar-se que não foi a própria quem voluntariamente desencadeou o que quer que fosse junto da escola ou das autoridades (apenas tendo relatado os factos à sua irmã) e que a mesma se opôs a receber qualquer quantia a título de reparação/indemnização.
Acresce ainda que, apesar de o depoimento de BB ter originado as reservas supra citadas, não deixou de se retirar de tal depoimento que a versão que o arguido apresentou em Tribunal era diferente da versão que o mesmo terá apresentado a esta testemunha.
Com efeito, em audiência de julgamento, o arguido asseverou que, no final do teste, o próprio tinha permanecido sentado no mesmo local, não tendo havido qualquer aproximação com a ofendida. No entanto, BB afirmou que o arguido lhe tinha relatado que, no final do teste, se tinha levantado e perguntado à menina se queria levar a ficha ou se a queria deixar.
Concatenando todo este acervo probatório, e tendo sido atribuída inequívoca credibilidade à ofendida, entendeu-se que estava demonstrada a factualidade descrita de 1. a 6., sendo certo, por um lado, que quanto à data de nascimento da menor foi tido em conta o teor do assento de nascimento de fls. 36 e 37 e, por outro lado, que para a prova dos factos atinentes ao foro interno se recorreu ainda às regras da experiência comum e aos elementares juízos de normalidade, sendo a actuação objectiva levada a cabo pelo arguido suficientemente elucidativa a este respeito.
A prova da matéria plasmada em 7. resulta do que foi expressamente manifestado pela ofendida em sede de audiência de julgamento, em consonância com o que tinha sido vertido no requerimento junto em 21 de Outubro de 2024, complementado pelo esclarecimentoprestado na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 8 de Novembro de 2024 pela Ilustre Advogada que apresentou tal requerimento.
Os factos descritos de 8. a 19. foram dados como provados com base na análise do relatório social junto aos autos, cujo teor foi confirmado pelo arguido em sede de audiência de julgamento.
Por fim, a prova atinente à ausência de condenações criminais registadas do arguido, em 20., extraiu-se do teor do seu certificado de registo criminal actualizado, que consta dos autos.
Enquadramento jurídico-penal dos factos:
Como já se referiu, o arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º nº 1 do Código Penal.
Dispõe o artigo 171º do Código Penal que:
“1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2. Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3. Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4. Quem praticar os actos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
5. A tentativa é punível”.
Este ilícito encontra-se sistematicamente inserido no Capítulo referente aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, mais precisamente na Secção atinente aos crimes contra a autodeterminação sexual.
Está em causa um crime doloso que, para além da autodeterminação sexual da vítima, lesa o bem jurídico consubstanciado no livre desenvolvimento da personalidade do menor, no que respeita ao plano sexual.
O crime de abuso sexual de crianças apenas se aplica, como o nome o indica, quando o sujeito passivo é uma criança, ou seja, uma pessoa menor de catorze anos de idade.
No artigo 171º do Código Penal estão descritas as diversas modalidades típicas, sendo certo que a gravidade do acto tem reflexo no quantum da pena aplicável.
Relativamente ao que se pode qualificar como acto sexual de relevo, a jurisprudência tem sublinhado que é perante o caso concreto que se poderá determinar se o acto é de relevo, ou não, designadamente pela sua intensidade objectiva.
Ainda assim, tem-se entendido que “É acto sexual de relevo todo o que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas” (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Junho de 2013, no processo nº 204/10.8TASEI.C1, disponível em www.dgsi.pt, em que se sustenta ainda que “Manifestamente, circunscrevem-se nesse domínio os casos traduzidos em acariciar/apalpar nádegas e a parte interior das coxas, actos preliminares do acto sexual final que conduz ao orgasmo”).
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8 de Fevereiro de 2016, no processo nº 624/12.3GBBCL.G2 (igualmente disponível em www.dgsi.pt), se escreveu que “A doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que acto sexual de relevo será o acto dotado de conotação sexual objectiva identificável por um observador externo, que seja abstractamente idóneo à satisfação de instintos sexuais e que seja apto a ofender o adequado desenvolvimento sexual de uma criança ou jovem menor de 14 anos, e que, por isso mesmo, seja susceptível de vir a condicionar a sua liberdade e autonomia sexual.
(…)
Na previsão da norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º, podem então ser incluídos os actos ou gestos com conotação sexual e susceptíveis de afectar o adequado desenvolvimento da sexualidade da vítima menor de 14 anos de idade, que não envolvem contacto físico (pois é esta a esfera do exibicionismo) ou aqueles outros que envolvam contacto de natureza sexual mas que fiquem aquém da gravidade exigível para o preenchimento do conceito de acto sexual de relevo. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, págs. 468-469), «o contacto de natureza sexual é a ação com conotação sexual realizada na vítima, que não tem a gravidade do ato sexual de relevo. O contacto de natureza sexual pode incluir o toque (com objetos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima (…)”’.
No caso concreto, considerando a actuação levada a cabo pelo arguido e o respectivo contexto, entende-se que a conduta em apreço consubstancia a prática de um acto sexual de relevo e que se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime previsto no artigo 171º nº 1 do Código Penal.
Com efeito, o acto em questão tem uma conotação sexual objectiva (desde logo atenta a zona corporal da menor em que existiu o contacto, bem como o tipo de contacto em questão), é idóneo à satisfação de instintos libidinosos/sexuais do agente e é apto a pôr em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade daquela menor.
Paralelamente, também está verificado o tipo subjectivo de ilícito, na medida em que se provou que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente; que tinha conhecimento da idade da ofendida e, aproveitando-se desse facto, praticou o acto acima descrito, com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que a idade daquela não lhe permitia autodeterminar-se sexualmente e que o acto que praticou punha em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade daquela menor e que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Assim, e não se verificando qualquer causa de justificação ou desculpação, deverá o arguido ser condenado pelo cometimento de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º nº 1 do Código Penal.
Determinação da medida da pena:
O crime de abuso sexual de crianças perpetrado pelo arguido é punido com pena de prisão de um a oito anos.
Não havendo que proceder à escolha do tipo de pena, passaremos, desde já, à determinação da medida concreta da pena.
Antes de mais, há que atender ao disposto no artigo 40º do Código Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade da protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em consonância com o disposto no artigo 71º do mesmo diploma legal, a determinação da medida concreta da pena é feita em função das categorias da culpa e da prevenção (especial e geral), sendo nomeadamente as circunstâncias mencionadas no nº2 dessenormativo importantes, quer para a culpa, quer para a prevenção. Saliente-se que a culpa constitui o factor limitativo máximo superior da pena.
Por outro lado, e como deriva dos artigos 40º nº2 do Código Penal e 1º da Constituição da República Portuguesa, não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Posta esta barreira, a medida da pena há-de ser dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos (prevenção geral positiva de integração).
Por fim, dentro da moldura penal assim encontrada, a exacta medida da pena advirá das exigências de prevenção especial que se fizerem sentir.
Revertendo ao caso em análise, as exigências de prevenção geral são elevadas, em face das necessidades de revalidação da norma incriminadora que se fazem sentir na sociedade, devendo ser promovida a consolidação da mesma, designadamente atenta a ressonância das condutas que a ela se subsumem e a frequência com que as mesmas ocorrem, sendo ainda relevante ter em conta ao contexto escolar em que o acto em análise foi praticado.
No que se refere às exigências de prevenção especial, as mesmas não são ponderosas, tendo em conta o grau de inserção social, familiar e profissional do arguido, bem como a circunstância de o mesmo ser primário.
Em obediência ao prescrito no artigo 71º nº 2 do Código Penal, cabe atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Nestes moldes, para a determinação da medida concreta da pena, há que atender aos seguintes factores:
-o grau de ilicitude é médio/baixo, tendo em atenção a gravidade já pressuposta no tipo legal de crime em questão (na modalidade prevista no nº 1 do artigo 171º do Código Penal);
- o arguido agiu com dolo directo, ou de primeiro grau;
- no que concerne às condições sócio-económicas do arguido, reitera-se, nesta sede, o que se expôs nos pontos 8. a 19. da factualidade provada;
-quanto à conduta anterior e posterior aos factos, importa repisar que pesa a favor do arguido a circunstância de não ter qualquer condenação criminal registada (quer por factos anteriores a estes, quer por factos posteriores a estes).
Sopesados todos estes factores, o Tribunal entende ser adequado fixar ao arguido a pena de um ano e dois meses de prisão.
*
Uma vez que se determinou a aplicação ao arguido de uma pena de prisão em medida não superior a cinco anos, cumpre agora decidir se esta pena deve ou não ser substituída por trabalho a favor da comunidade ou ser suspensa na sua execução.
Efectivamente, o nº 1 do artigo 58º do Código Penal estabelece que “Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição”, acrescentando o nº 2 deste normativo que “a prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas colectivas de direito público, ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade”.
E de acordo com o disposto no artigo 50º nº 1 do Código Penal, “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Nas palavras de Figueiredo Dias, “o pressuposto material deste instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente” (Vide “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Edição revista, Aequitas, p. 342 e 343).
In casu, entende-se que, em face dos contornos do caso e da situação do arguido, a solução que mais adequadamente responde às exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir é a suspensão da execução da pena de prisão (sendo certo que o arguido se mostra integrado profissionalmente, pelo que não se vê que necessite de desenvolver esforços e competências para efeitos de ressocialização).
Em sentido favorável à suspensão existem determinados vectores que indicam que o juízo de prognose a que alude Figueiredo Dias é favorável.
É que, como já tivemos o ensejo de o referir, o arguido é primário e está social, profissional e familiarmente inserido. Estes elementos levam a acreditar que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por igual período, realizará as finalidades de prevenção existentes no caso.
Contudo, considerando a factualidade provada, a personalidade revelada pelo arguido e o disposto no artigo 53º nº 4 do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão será sujeita a regime de prova, cujo plano individual de reinserção social a elaborar e acompanhar pela D.G.R.S.P. deverá incidir sobre a cabal interiorização do desvalor da sua conduta.
Destarte, decide-se suspender a execução da pena de prisão, por igual período, em conformidade com o prescrito no artigo 50º nºs 1 e 5 do Código Penal, nos termos supra descritos.
O crime perpetrado pelo arguido é ainda abstractamente punido com as penas acessórias previstas nos artigos 69º-B nº 2 e 69º-C nº 21 do Código Penal (não sendo aplicável o nº 3 do último artigo, uma vez que o crime não foi praticado contra descendente do arguido, do seu cônjuge ou de pessoa com quem mantenha relação análoga à dos cônjuges).
Estabelece o artigo 69º-B nº 2 do Código Penal que “Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
Por sua banda, o artigo 69º-C do mesmo diploma prescreve, no seu nº 2, que “Pode ser condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
In casu, atenta a factualidade que foi dada como provada, entende-se que se impõe a aplicação da pena acessória prevista no artigo 69º-B nº 2 do Código Penal.
Efectivamente, não obstante o facto de apenas ter sido dada como provada uma única situação, e não obstante o grau de inserção do arguido, não se pode olvidar o contexto em que este actuou, isto é, tendo-se permitido proceder do modo descrito em plena sala de aula, em horário escolar, perante uma aluna da escola em que ele era professor de educação física e quando estava a exercer funções de vigilante num teste, existindo um grau de culpa relevante. Assim, o contexto em que o arguido actuou está inequivocamente relacionado com o exercício da sua profissão, não tendo tal contexto constituído um factor inibidor. Cumpre ainda ter em atenção que está em causa um tipo de criminalidade em que o risco de recidiva não pode ser desvalorizado, tratando-se de uma delinquência permeável a compulsões.
Para a determinação da medida concreta desta pena, devem ser tidos em linha de conta os supra explanados factores, nomeadamente atinentes à situação pessoal do arguido e à circunstância de o mesmo ser primário.
Tudo ponderado, entende o Tribunal que é adequado condenar o arguido na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de cinco anos, que corresponde ao limite mínimo legalmente previsto, o que se afigura ser suficiente em face do quadro exposto.
Já no que concerne à pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, entende-se que não se justifica a sua aplicação, considerando a situação pessoal e familiar do arguido e o contexto em que o mesmo agiu.

II.3. Análise dos fundamentos do recurso (pela ordem de lógica jurídica)
II.3.1. Das nulidades da sentença previstas no art.º 379.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP.
§1. O recorrente alega que a sentença recorrida é nula por três motivos:
- Falta de fundamentação da prova dos factos provados nos pontos 4. a 6. (conclusão XXXVII).
- Ter sido dado como provado que o arguido apertou “a nádega esquerda”, quando na acusação constava a “nádega direita”, o que entende constituir uma alteração substancial dos factos (conclusão XIII e XIV).
- Falta de explicação das razões pelas quais o tribunal não valorou as declarações do arguido, o que, a seu ver, configura omissão de pronúncia (conclusão XXV).
§2. Nos termos do art.º 379.º, n.º 1, do CPP, é nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Dispõe o art.º 374.º, n.º 2, do CPP, referente aos “requisitos da sentença”, que: ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
§3. Iniciando pela nulidade por alegada falta de fundamentação dos factos dados como provados em 4. a 6 (art.º 379º, n.º 1, al. a)):
3.1. As sentenças e os acórdãos judiciais, enquanto atos decisórios, carecem necessariamente de fundamentação, designadamente quanto ao julgamento da matéria de facto. Essa exigência abrange tanto a enumeração ou especificação da matéria de facto provada e não provada (reportada pelo menos à factualidade constante da acusação e/ou da pronúncia, da contestação do arguido e do pedido cível do demandante), como a explicitação do processo de formação da convicção do julgador - art.ºs 205.º, n.º 1, da CRP, 97.º, n.ºs 1, al. a) e 5 e 374.º, todos do CPP.
A fundamentação da matéria de facto deve indicar os meios de prova que serviram de base à convicção do julgador e explicar o processo intelectual do respetivo convencimento, isto é, como e porquê cada meio de prova lhe permitiu considerar demonstrada (ou não demonstrada) a factualidade, eventualmente com recurso às regras de experiência e a raciocínios de prova indiciária. É também nesta fase que o julgador deve expor as razões pelas quais credibilizou certa prova e não credibilizou outra, assim como o peso probatório comparativo que conferiu a cada qual.
A lei processual não esclarece o grau de profundidade exigível ao exame crítico, que terá de ser ajustado à natureza e complexidade de cada caso. O essencial é que esse exame permita assegurar a transparência do processo decisório, a segurança do sistema de prova, a credibilidade da justiça e a possibilidade de controlo racional da decisão.
Como salientou o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 21.03.2007:
«a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo». (proc. n.º 07P024, disponível em dgsi.pt)
A omissão da indicação das provas ou do exame crítico determina a nulidade da sentença, por violação das exigências do art.º 374º, n.º 2, do CPP.
3.2. No caso em análise, a sentença expõe de forma suficientemente clara o processo de convicção dos factos internos provados – que constituem o essencial em causa. Trata-se de matéria que, não sendo suscetível de prova direta (salvo em caso de confissão), exige o recurso à prova indiciária e a raciocínios de inferência, construídos a partir dos factos objetivos dados como provados. A decisão esclarece que a atuação objetiva demonstrada – colocar intencionalmente uma mão numa nádega de uma jovem de 12 anos, apertar e apalpar – apenas pode ser interpretada como expressão de um intuito de satisfação de instintos libidinosos. O arguido, conhecendo a idade da vítima, tinha necessariamente de saber que esta não possuía capacidade para se autodeterminar sexualmente e que a sua conduta afetava o livre desenvolvimento da menor. Tratam-se de raciocínios que, embora presuntivos, são os únicos compatíveis com as regras do normal acontecer e da experiência comum.
Assim, a fundamentação da matéria de facto demonstra ter sido realizada uma apreciação global e crítica da prova, cumprindo integralmente as exigências legais e doutrinais.
§4. Passando à nulidade por condenação com base em factos diversos dos descritos na acusação (art.º 379.º, n.º 1, al. b)):
4.1. A estrutura acusatória do processo penal impõe a vinculação temática do julgamento aos factos constantes da acusação ou do despacho de pronúncia (quando exista), o que é essencial à garantia dos direitos de defesa do arguido (art.º 32.º, n.ºs 2 e 5, da CRP).
Porém, a lei abre exceções a esta correspondência absoluta, admitindo que na sentença sejam substituídos e/ou aditados factos antes não integrados no objeto do processo, observadas que sejam as formalidades previstas nos art.ºs 358.º e 359.º, do CPP.
Uma alteração substancial de factos é a que “tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” (art.º 1.º, al. f), do CPP). Tal alteração não pode ser tomada em conta numa condenação no processo, salvo se houver acordo dos intervenientes processuais quanto ao prosseguimento dos autos com os “novos” factos (art.º 359.º, do CPP).
A contrario, uma alteração não substancial é uma modificação que não tenha como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Esta alteração, por não contender com o núcleo ou a identidade do processo, pode ser considerada numa condenação no processo, desde que o arguido seja previamente confrontado com a mesma e tenha a possibilidade de dela se defender, nos termos previstos no art.º 358.º, do CPP.
4.2. Regressando ao caso, a modificação operada respeita apenas à lateralidade da nádega da vítima que foi apertada (direita/esquerda), o que em nada altera a substância da atuação imputada ao arguido, que em tudo se mantém idêntica (quanto aos sujeitos, ao modo de execução, ao contexto factual, ao efeito típico). Trata-se, pois, de uma variação descritiva que não transforma o núcleo factual imputado ao arguido, não criando uma nova conduta ou um novo tipo criminal, não tendo, manifestamente, carácter substancial.
Da ata da leitura da sentença de 15.01.2025 e da audição da gravação resulta que o tribunal comunicou a alteração nos termos legais, não tendo a defesa solicitado prazo de defesa. Fica, assim, demonstrado o cumprimento da comunicação da alteração não substancial prevista no art.º 358.º, do CPP, e afastada qualquer nulidade.
§5. Por fim, quanto à nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, al. c)):
5.1. O vício ocorre quando o tribunal não decide todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuando aquelas cujo conhecimento esteja prejudicado pela solução dada a outra. São classicamente dados como exemplos o não conhecimento de algum crime imputado ao arguido, a omissão de pronúncia sobre a prescrição, a aplicação de penas acessórias ou penas de substituição, a aplicação do regime aplicável a jovens delinquentes, a não suspensão da execução da pena aplicada, a aplicação de perdão ou amnistia, etc…
Por “questão” entende-se todo e qualquer problema concreto (não já os motivos, argumentos ou pontos de vista e doutrinas expostos pelos sujeitos processuais) que seja submetido à apreciação do tribunal pelos intervenientes processuais, desde que sobre eles o julgador não esteja legalmente impedido de se pronunciar, e bem assim os de conhecimento oficioso.
5.2. In casu, a recorrente sustenta que a sentença é nula por não explicar os motivos pelos quais não atribuiu credibilidade à versão do arguido (face à da ofendida), considerando a sua contraditoriedade.
O art.º 127.º, do CPP, consagra o princípio da livre apreciação da prova, determinando que o tribunal decide com base na sua livre convicção, salvo tratando-se de prova vinculada. Este princípio atribui ao julgador ampla margem para avaliar a credibilidade e relevância dos meios de prova, considerando-os no seu conjunto e em coerência com os demais elementos do processo.
Neste quadro, quando num processo coexistem duas versões dos factos diametralmente opostas – a do arguido e da vítima – o tribunal, ao enunciar que concedeu credibilidade à vítima, explicando as razões pelas quais a considerou verosímil e consistente, está, de modo implícito, mas inequívoco, a não atribuir credibilidade à versão contrária. Dito de outra forma, ao justificar-se a adesão a uma das versões, revela-se automaticamente afastada a outra. Não se mostra, por isso, necessário acrescentar expressamente que as declarações do arguido não foram credibilizadas. Qualquer afirmação neste sentido seria redundante, pois a estrutura da motivação da decisão da matéria de facto assenta, justamente, na opção entre versões inconciliáveis.
Sem prejuízo, o tribunal não deixou de exarar que a versão do arguido, além de ser contraditória com a da ofendida (cujas declarações se consideraram inequivocamente credíveis), também foi abalada pelo depoimento da testemunha BB, diretor da escola, o qual afirmou que aquele lhe havia transmitido ter-se levantado e estado junto da ofendida, quando esta ia a sair da sala de aula.
Acresce que o modo como se valorou a prova e se fundamentou (ou não) essa valoração não constitui uma “questão” no sentido jurídico do art.º 379.º, n.º 1, al. c). A valoração da prova, seja ela considerada errada ou não, não determina, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, podendo apenas ser sindicada pelos mecanismos apropriados da impugnação da matéria de facto.
Não se verifica, pois, qualquer nulidade por omissão de pronúncia.
Termos em que se julga improcedente o recurso neste segmento.
II.3.2. Dos vícios da sentença da insuficiência da matéria de facto provada e do erro notório, previstos no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP.
§1. O recorrente alega que a sentença recorrida padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque “as provas são manifestamente insuficientes para fundamentar a decisão”, em virtude o tribunal se ter baseado apenas e só nas declarações incongruentes da ofendida, e de erro notório “na apreciação da prova e no recurso a presunções judiciais em evidente ofensa ao princípio fundamental da presunção da inocência”.
§2. Vejamos, então.
Nos termos do art.º 428.º, do CPP, as Relações conhecem de facto, para além de direito.
Essa sindicância da matéria de facto opera-se por duas vias: através da designada “revista alargada”, com um âmbito mais restrito, por via dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP; ou por meio da apelidada “impugnação ampla”, aludida no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.
No que respeita à “revista alargada”, estabelece o n.º 2, do art.º 410.º, do CPP, que o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Nestes vícios há algo de errado na decisão da matéria de facto e tal é percecionado pelo leitor de forma imediata e patente do próprio texto da decisão, sem necessidade de recurso a elementos estranhos à mesma.
Tratam-se de vícios intrínsecos e inerentes à estrutura interna da própria decisão (em contraponto com os erros de julgamento), que terá de ser considerada de forma autossuficiente, sendo o seu conhecimento considerado ainda matéria de direito.
Por outro lado, na “impugnação ampla” a sindicância da matéria de facto não se restringe ao texto da decisão, havendo necessidade de cavar para além desse texto e de entrar na apreciação e valoração da prova documentada produzida em sede de julgamento, embora dentro dos limites dos ónus de especificação impostos ao recorrente pelo art.º 412.º, n.ºs. 3 e 4, do CPP.
Não se confundem os aludidos dois tipos de sindicância da matéria de facto. Pode não existir nenhum vício dos previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, e a matéria de facto não ter sido bem julgada, havendo um verdadeiro erro de julgamento, pode ocorrer o inverso e, no limite, podem coexistir os dois tipos de vicissitudes na decisão da matéria de facto.
§3. Dito isto, haverá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando os factos dados como provados são insuficientes para fundamentar a solução de direito adotada e o tribunal não investigou toda a matéria de facto relevante para a decisão (desde que contida na acusação, na defesa dos arguidos, no pedido cível ou resultante da discussão da causa, se pertinente para o objeto do processo).
Como se lê em “Recursos Penais”, de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Rei dos Livros, 9ª edição, p. 74 e 75:
a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher. Porventura melhor dizendo, só se poderá falar de tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
Já não ocorre esse vício quando o Tribunal investigou tudo o que podia e devia e, não obstante, os factos dados como provados são insuficientes para preencher os elementos do tipo pelo qual o arguido foi condenado e para a determinação da sanção aplicável.
Sublinha-se que o desacerto respeita à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, não podendo ser confundido com a insuficiência da prova para a decisão de dar como provado certo facto, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova.
Na situação que nos ocupa, o recorrente não esclarece devidamente porque razão entende que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito, antes argumenta que a matéria de facto foi incorretamente julgada e que, com base no que entende dever ser dado como provado e não provado, a decisão jurídica deveria ser diferente. É, igualmente, omisso, quanto a factos que, a seu ver, deveriam ter sido investigados e o não foram.
O que se extrai das conclusões do recurso é que o recorrente discorda da leitura da prova feita pelo tribunal, confundindo a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito com a insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, cuja sindicância está reservada à impugnação ampla.
Por outro lado, o que se verifica é que os factos provados preenchem os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual o arguido foi condenado, como melhor se detalhará infra.
§4. Haverá erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c), quando houver uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, falha detetável no teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras do senso comum. Verifica-se, igualmente, quando são violadas as regras de prova vinculada ou das legis artis.
Nas palavras de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques quando, de forma manifesta, o tribunal violou as regras da experiência ou efetuou uma apreciação incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios (cf. “Recursos Penais”, Rei dos Livros, 9ª edição, p. 78).
O requisito da notoriedade afere-se pela circunstância de o erro não passar despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., p. 341).
Será o caso se na decisão recorrida se der por provado ou não provado um facto que para o homem médio, com toda a evidência, contraria um raciocínio lógico elementar ou afronta de forma clara as regras da experiência comum. Ou quando se retirou de um dado facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, resultando tal evidente do próprio texto da decisão. Ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo), contido no texto da decisão recorrida. Consiste, basicamente, em dar-se como provado o que, aos olhos de um homem de formação média, não pode ter acontecido ou dar-se como não provado o que só pode ter acontecido, ou decidir-se contra o que se provou ou não provou.
Este erro-vicio não se reconduz à discordância sobre a forma como o tribunal apreciou a prova produzida, isto é, ao simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal, sendo esta divergência apenas sindicável através da impugnação irrestrita da matéria de facto, prevista no art.º 412.º, do CPP.
No caso em apreço, o recorrente insiste na ideia da inexistência de prova segura que permita consentir dar como provados os factos que lhe são imputados, dado que o tribunal baseou-se apenas nas declarações da ofendida, deu crédito ao depoimento de testemunhas que não presenciaram os factos, não credibilizou as declarações do arguido, nem as das testemunhas que estiveram presentes logo após o alegado episódio.
Ora, nada impede que a prova dos factos se baseie no depoimento do ofendido e/ou de determinadas testemunhas, em detrimento das declarações do arguido e/ou de outras testemunhas, desde que a motivação dê nota das razões pelas quais se conferiu credibilidade a uns depoimentos em detrimento de outros.
Da mesma forma, certas discrepâncias entre os depoimentos de diversas testemunhas, ou mesmo da mesma pessoa, quando tomados em momentos diferentes, mas que, no essencial, apontam na mesma direção, não legitimam a conclusão pretendida pelo recorrente, ou seja, a falta de veracidade dos mesmos. Pequenas discrepâncias são até frequentemente valoradas como um sinal de autenticidade, e não como contradições insanáveis. Cabe à imediação do juiz e à sua experiência de julgar avaliar a natureza dessas discrepâncias, nomeadamente se reforçam a sinceridade e, assim, acrescentam credibilidade, ou se a põem em causa. A prova de certo facto raramente é constituída por peças que encaixam perfeitamente, como se de um jogo de construção se tratasse. Se assim fosse, o ato de julgar seria uma tarefa desprovida de dificuldade.
Não contraria as regras da lógica, nem da experiência comum, dar credibilidade ao depoimento da vítima, devidamente respaldado em perícia junta aos autos, em detrimento da versão dada pelo arguido.
Relativamente aos elementos subjetivos (dolo, intenção de satisfação de instintos libidinosos), face à materialidade objetiva dada como provada, na ausência de um contexto factual que ofereça alternativa de explicação aceitável, é manifestamente razoável inferir, de acordo com as regras de experiência comum e a lógica do homem médio, que a ação tinha um propósito de natureza sexual, considerando a zona do corpo onde o contacto manual foi realizado e a natureza desse contacto. Ademais, a impropriedade e proibição desta conduta é de conhecimento geral. Portanto, o que resulta da sentença é que o tribunal não se orientou por conjeturas, antes por uma lógica inferencial normal, por isso, perfeitamente suportável.
§5. Resumindo: do texto da decisão recorrida não se identifica nenhum dos vícios apontados, que se percecione aos olhos do homem médio como ostensivo ou manifestamente incompatível com o sentido comum, estando a motivação dos factos provados, no essencial, congruente com a prova produzida (tal como enunciada na decisão recorrida) e, portanto, com o principio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127º, do CPP, sendo perfeitamente suportada e suficientemente motivada a decisão de dar como provada a materialidade imputada ao recorrente.
Nestes termos, o recurso improcede neste segmento.

II.3.3. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por erro de julgamento.
§1. O recorrente impugna amplamente os pontos 2-, 3- e 4- a 6- dos “factos provados”, em virtude de existir erro de julgamento.
Quanto ao ponto 2., requer o aditamento de factualidade; relativamente aos restantes, pretende que que sejam dados como não provados.
Para sustentar a sua posição, transcreve excertos da prova oral produzida.
§2. Vejamos.
A "impugnação ampla" da matéria de facto permite reavaliar a razoabilidade da convicção do julgador em relação aos factos impugnados, recorrendo a provas que, segundo o recorrente, imporiam uma decisão distinta da tomada.
Trata-se, porém, de um mecanismo sujeito a forte regulamentação e uso parcimonioso, desde logo condicionado ao cumprimento dos chamados três “ónus de especificação”, previstos no art.º 412.º, n.º 3 e 4, do CPP.
Estes impõem que o recorrente especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com referência precisa às passagens da gravação que fundamentam a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º, do CPP); e
c) As provas que devem ser renovadas. (…).
O recorrente deve, ainda, demonstrar porque motivo essas provas impõem uma decisão diferente da proferida, e não apenas a permitem. Não basta uma discordância genérica com a avaliação da prova realizada pelo tribunal. É necessário demonstrar que a convicção do julgador é manifestamente desprovida de razoabilidade ou impossível (parte final da al. b), do n.º 3, do citado art.º 412.º).
Como refere o Ac. do TRL, de 06.06.2017:
Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente”. (proc. n.º 224/13.0PTFUN.L1-5, disponível em dgsi.pt)
As exigências impostas à reapreciação ampla da matéria de facto decorrem da necessidade de equilibrar dois interesses em conflito:
­ Por um lado, o direito ao recurso sobre a matéria de facto, que permite corrigir erros ou injustiças na sua apreciação, protegendo os direitos do arguido (art.º 32.º, n.º 1, da CRP). Sem este direito, erros de julgamento permaneceriam sem correção, comprometendo a equidade do processo.
­ Por outro lado, o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º do CPP), que confere ao juiz a liberdade de formar a sua convicção com base na sua avaliação pessoal e nas regras da experiência, sem estar limitado por critérios rígidos. Esta liberdade é reforçada pelos princípios da oralidade e da imediação, que asseguram o contacto direto do juiz com as provas, testemunhas e outros elementos do processo, permitindo-lhe captar não só o conteúdo verbal, mas também expressões e comportamentos relevantes para a formação da sua convicção.
Na reapreciação ampla da matéria de facto o tribunal de recurso não tem contacto direto com os elementos de prova, estando, por isso, numa posição mais desfavorável para (re)avaliar a prova com o mesmo rigor e profundidade.
O equilíbrio entre estes dois interesses em conflito é um exercício delicado. A solução passa por limitar a intervenção dos tribunais de recurso à verificação de erros concretos e flagrantes na apreciação da prova, que estejam fora da margem da livre convicção do juiz de primeira instância.
Por isso é comum afirmar-se que a reponderação “ampla” da matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas sim uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência de erros concretos e manifestos apontados pelo recorrente. Trata-se apenas um remédio jurídico para colmatar erros crassos de julgamento da matéria de facto, não para substituir a convicção do juiz de primeira instância.
Como corolário, o tribunal de recurso só pode sobrepor-se à convicção do julgador da primeira instância quando esta violar aspetos fundamentais, como basear-se em provas ilegais, contrariar a força probatória plena de certos meios de prova, contrariar manifestamente as regras da experiência comum, da lógica, dos conhecimentos científicos adquiridos ou ainda o princípio in dubio pro reo. O mesmo se aplica quando se dá como provado um facto na ausência total de prova, ou quando se baseia num certo testemunho que, na realidade, nada declarou sobre a matéria.
Em suma, os rigorosos requisitos da impugnação ampla visam proteger a livre apreciação da prova, a oralidade e a imediação, sem comprometer a possibilidade de correção de erros evidentes no julgamento da matéria de facto. O tribunal de recurso só poderá intervir quando se verificar, fora do âmbito da livre convicção, um erro flagrante no julgamento da matéria de facto indicado pelo recorrente, sendo que esse deverá resultar claro das provas por si indicadas.
§3. Relativamente ao pedido de aditamento ao ponto 2-, o recorrente pretende aditar o seguinte:
, encontrando-se a ofendida junto à porta de saída e o arguido na parte de trás da sala, a cerca de 15/18 metros da ofendida
Como meios de prova que, na sua leitura, impõem o pretendido aditamento, transcreve segmentos das declarações do arguido, do depoimento da ofendida e da testemunha CC.
Apreciando:
No âmbito do art.º 412.º do CPP, a competência da Relação limita-se a rever o resultado da apreciação crítica da prova produzida na primeira instância, podendo alterar o sentido de factos já apreciados, mas não introduzir outros.
Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 21.03.2012:
VII - No que respeita à impugnação da matéria de facto ante a Relação, nos termos dos arts. 427.° e 428.º do CPP, não dispensa o recorrente, além do mais, do ónus de enumeração especificada, ou seja, um a um, dos factos reputados incorrectamente julgados, dentre os elencados como provados ou não provados, quer provenientes da acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa, por força do art. 412.°, n.º 3, al. a), do CPP.
VIII - Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida”, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjectiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal. (proc. n.º 130/10.0JAFAR.F1.S1, disponível em diariodarepublica.pt ).
Chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade desta interpretação, no Ac. 312/2012, o Tribunal Constitucional decidiu:
“Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida”.
Para encerrar a questão, os elementos de prova invocados tão pouco imporiam o aditamento pretendido.
Embora o arguido tivesse mantido essa versão, a ofendida declarou que o arguido se aproximou dela, junto à porta de saída da sala de aula, depoimento a que foi dada ampla credibilidade.
A testemunha CC apenas referiu que, num determinado momento, viu o arguido sentado no fundo da sala e a vítima sentada junto à porta da saída, o que não exclui que ele se tivesse aproximado da ofendida mais tarde.
A testemunha BB, diretor da escola, confirmou, aliás, que o arguido lhe disse ter-se aproximado da menor quando esta se preparava para sair.
§4. Quanto aos restantes pontos, o recorrente não esclarece de modo convincente porque é que as provas que cita imporiam decisão diferente. Ainda assim, apreciam-se os factos impugnados.
4.1. Facto 3-:
3- Terminado o teste escrito, no momento em que a ofendida ia a sair da sala, o arguido colocou a sua mão na nádega esquerda da ofendida e apertou-a, durante cerca de 3 a 4 segundos, apalpando-a;
O recorrente alega a inexistência de prova e contradições nas declarações da ofendida, sustentando a credibilidade das suas declarações.
Como meios de prova que impõem decisão diversa, invoca ̶ de entre a prova valorável, produzida em sede de audiência ̶ excertos das declarações do arguido, dos depoimentos da ofendida, prestados para memória futura e em audiência, e das testemunhas BB (diretor da escola) e CC (subdiretora).
Apreciando:
Os trechos transcritos da prova oral não abalam a convicção do tribunal recorrido, fundada nas declarações coerentes e espontâneas da ofendida, tanto nas declarações para memória futura, como em julgamento, às quais foi “atribuída inequívoca credibilidade”, bem como no relatório de perícia pedopsiquiátrica do INML, que confirmou a coerência e autenticidade emocional da menor. Os depoimentos da irmã, da mãe e da professora DD reforçam essa versão, descrevendo a ofendida como nervosa e perturbada imediatamente após o episódio.
A ofendida, nas declarações que prestou para memória futura (que ouvimos), disse ter sentido um toque, tipo um apalpe mas não muito…, entre a anca e o…, de acordo com o verbalizado pelo juiz de instrução, apontou a nádega esquerda. Apertou um pouco. Durou 3-4 segundos. Interpretou logo como um apalpão, não teve dúvidas. Até porque já lhe tinham contado muitas situações dele. Apertou um bocado, mas não muito. Sabe a diferença entre um apalpão e um toque. Na altura ficou nervosa, com medo de que lhe acontecesse mais alguma coisa. O toque foi com intenção. Ficou paralisada, não disse nada ao professor e este também não lhe disse nada. Em audiência de julgamento referiu ter sentido na sua nádega um toque, 3-4 segundos, sentiu um aperto que não foi forte, foi um apalpão, ao demonstrar o local, colocou a mão no bolso de trás das calças de ganga, em plena nádega.
O relatório de perícia pedopsiquiátrica realizada pelo INML atesta que a ofendida não foi alvo de aparente ou instrumentalização por terceiros. Foi “coerente em relação à narrativa dos factos, as circunstâncias descritas foram consistentes com o que se poderia esperar em situações semelhantes, demonstrou emoções relacionadas com os eventos, tais como ideias ruminativas e pensamentos de evitação da escola.”, “reagiu com humor congruente ao conteúdo do discurso, foi coerente e segura ao longo da narrativa”.
O arguido negou os factos, designadamente que se tenha aproximado da II. Porém, tal versão foi contrariada por outros elementos, inclusive pela testemunha BB.
Além da escassa relevância de se saber se a nádega apertada foi a direita ou a esquerda, eventuais discrepâncias nessa matéria (que não conseguimos devidamente sindicar, em virtude de não nos ser possível a visualização dos locais do corpo indicados pela ofendida nos dois momentos processuais relevantes), foram devidamente avaliadas e resolvidas pelo julgador, com base na imediação.
O tribunal não valorou de modo mais robusto o depoimento das testemunhas BB e CC, diretor e adjunta da direção do agrupamento escolar, mas explicou porquê. Tais testemunhos suscitaram perplexidades – que sem dúvida acompanhamos –, desde logo por não terem iniciado qualquer procedimento ou averiguações internas relativamente à situação e, ainda, por terem referido que a menor não aparentava estar nervosa devido ao episódio, versão contrariada pelo testemunho de DD (professora da ofendida), que atestou o estado de intenso nervosismo antes mesmo de os pais chegarem.
A sentença explica, de forma lógica, as razões da convicção formada. Nem se afigura que se impusessem dúvidas, face à prova produzida. Ao contrário do defendido pelo recorrente, essa convicção nada tem de subjetivo ou emocional, antes foi apoiada em elementos de prova seguros e foi transparentemente fundamentada.
De resto, a chamada “impugnação ampla” da matéria de facto não se confunde com uma mera discordância quanto à apreciação da prova realizada pelo tribunal recorrido, dentro do espaço de livre apreciação previsto no art.º 127.º do CPP, com base nas regras da experiência e na livre convicção do julgador.
Nos casos em que a prova permite mais do que uma solução plausível, se a decisão do julgador estiver devidamente fundamentada e for uma das soluções plausíveis, não pode ser atacada.
Concluindo, o recorrente não aponta qualquer violação dos critérios de formação da convicção do tribunal, limitando-se a contestar a valoração da prova, em particular do depoimento da ofendida.
4.2. Factos 4-, 5- e 6-:
4- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente;
5- Tinha conhecimento da idade da ofendida e, aproveitando-se desse facto, praticou o acto acima descrito, com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que a idade daquela não lhe permitia autodeterminar-se sexualmente e que o acto que praticou punha em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade daquela menor;
6- Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
O recorrente sustenta que tais factos devem ser dados como não provados, por ausência de prova direta e recurso a presunções que não foram provadas.
Apreciando.
É patente que o recorrente não apresenta qualquer elemento de prova que imponha decisão diversa. Limita-se a contestar a legitimidade do recurso à prova indireta em processo penal e a sustentar a pretendida alteração na interpretação pessoal que faz da prova produzida em audiência, relativa à materialidade objetiva que serviu de base aos juízos de inferência em que o tribunal fundou a sua convicção.
Contudo, o art.º 125.º do CPP admite toda e qualquer prova não proibida por lei, entre as quais está a prova por presunção judicial. É perfeitamente válido recurso à chamada prova indireta, assente em presunções hominis ou naturais, em que de um ou de vários factos conhecidos se retiram ilações ou se deduz logicamente um facto não conhecido, cujo raciocínio de lógica dedutiva colhe o contributo das máximas de experiência comum. As presunções vivem e geram factos, sendo por isso uma prova, ainda que indireta.
O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a constitucionalidade em processo penal da prova de um facto em resultado do funcionamento de uma presunção e da sua compatibilidade com os princípios da presunção geral de inocência e do princípio in dubio pro reo, tendo decidido:
“Não julgar inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.os 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição, o artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal” (Ac. 521/2018, disponível em tribunalconstitucional.pt).
Por outro lado ̶ conforme antes referido ̶ a prova dos elementos internos (dolo, intenção de satisfação de instintos libidinosos), apenas se alcança por recurso à prova indireta, a partir dos factos objetivos provados, salvo caso de confissão.
In casu, a presunção judicial de que o arguido agiu com intenção sexual é uma inferência absolutamente lógica e racional, atendendo à materialidade objetiva dada como provada. Com efeito, num contexto em que um professor, sozinho numa sala de aulas com uma pré-adolescente de 12 anos de idade, coloca a mão e aperta/apalpa uma nádega da ofendida, na ausência de um contexto factual que possa oferecer uma explicação alternativa com alguma racionalidade, é manifestamente de inferir o propósito de natureza sexual. Tal inferência em nada contraria as regras de experiência comum, antes se alinha com o sentido comum de que o contacto manual (com alguma intensidade) numa parte erógena do corpo da vítima é um gesto reservado a contactos sexuais íntimos e claramente associado a um intento de satisfação libidinosa.
As restantes ilações ̶ representação dos elementos do tipo e a vontade de os praticar, sabendo da sua natureza proibida, bem assim que a sua conduta prejudicava o são desenvolvimento da vítima, atendendo, nomeadamente, à sua idade ̶ são inferências em cadeia, por isso ainda mais claras e coerentes.
O que resulta da sentença é que o tribunal não se orientou por intuições subjetivas ou meras conjeturas/especulações, antes por uma lógica inferencial normal, por isso, perfeitamente suportável.
Tais presunções judiciais observam os limites do princípio da presunção de inocência, dado partirem de factos objetivos provados, serem congruentes com a experiência comum e a lógica do homem médio e não se mostrarem infirmadas por contraindícios, encontrando-se, por essa razão, dentro dos parâmetros admissíveis no ordenamento penal.
§5. Em síntese, o que se extrai do recurso é que o recorrente apresenta uma interpretação distinta da prova, pretendendo impor a sua própria narrativa dos factos em detrimento da convicção do julgador. No entanto, tal pretensão não é admissível no nosso ordenamento jurídico, pois o recurso sobre matéria de facto constitui um meio jurídico de caráter cirúrgico, destinado a corrigir eventuais erros pontuais de julgamento, e não um mecanismo de reapreciação integral da prova produzida.
Assim, a decisão do tribunal recorrido deve ser mantida.
Termos em que improcede o recurso em mais neste segmento.
II.3.4. Da violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência.
§1. O recorrente sustenta que o tribunal a quo violou os princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência, por entender que, face à prova produzida – na leitura que dela faz – deveria ter sido absolvido.
§2. O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção da inocência do arguido na vertente probatória, consagrada no art.º 32.º, da CRP, aplica-se em situações de incerteza factual, operando na fase de valoração da prova. Assim, quando o julgador se depara com uma dúvida insuperável quanto à verificação ou autoria dos factos, o princípio impõe uma decisão favorável ao arguido, funcionando como um limite ao princípio da livre apreciação da prova.
Importa salientar que a dúvida razoável apta a desencadear a aplicação do princípio não pode ser ligeira, hipotética ou subjetiva, nem resultar de meros estados emocionais ou de livre arbítrio. Pelo contrário, deve assentar em fundamentos sérios, ancorados em argumentos lógicos e racionais, compreensíveis pelo menos para a comunidade jurídica. Sem embargo, também não é qualquer dúvida que um dos intervenientes processuais, na sua leitura subjetiva e interessada da prova, entenda que o julgador deveria ter criado no seu espírito (quando a materialidade relevante está provada) ou não deveria ter criado (quando os factos essenciais não estão demonstrados).
§3. Na presente situação o julgador não manifestou réstia de dúvida, hesitação sequer, relativamente à verificação e autoria dos factos atribuídos ao recorrente, como se depreende da fundamentação clara e consistente da sentença.
Não tendo o tribunal, na apreciação da prova, chegado a uma encruzilhada dubitativa quanto à autoria dos factos ou ao modo como os mesmos ocorreram, não há violação do princípio in dubio pro reo.
Nestes termos, o recurso improcede também neste segmento.

II.3.5. Do enquadramento jurídico dos factos.
§1. O recorrente invoca erro na subsunção jurídica, sustentando que a materialidade dada como provada não integra o elemento típico de “ato sexual de relevo” previsto no crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do CP, mas antes um ato de importunação sexual, para os efeitos do art.º 170.º, do CP.
Alega, ainda, que não se mostram verificados “o elemento objetivo que consiste na desigualdade entre a vítima e o agente”, nem o “elemento subjetivo” do “aproveitamento dessa desigualdade”, por “não haver prova de que o arguido tenha pretendido aproveitar-se da inexperiência ou da idade da ofendida”. Acrescenta, por fim, que o ato não era “reconhecível pela vítima como sexualmente significativo”.
§2. Vejamos.
Preceitua o art.º 171.º, n.º 1, do CP, que comete o crime o crime de abuso sexual de crianças“ [q]uem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos”.
Trata-se de um crime de perigo abstrato que tutela a liberdade de autodeterminação sexual numa perspetiva específica de proteção da vítima menor de 14 anos, presumindo a lei, juris et de jure, que a prática dos atos objetivos típicos compromete o normal desenvolvimento da sua personalidade. O eventual consentimento da vítima é, por isso, irrelevante.
A revisão do CP de 2007 ampliou o âmbito da incriminação do tipo, passando a abranger, para além dos atos de introdução, outros atos sexuais de relevo.
O preenchimento do tipo legal exige, no plano objetivo, a prática de ato sexual, de relevo, com ou em menor de 14 anos, e, no plano subjetivo, o dolo, que deve abranger a representação, “nem que seja ao nível da coconsciência”, da “idade natural ou socialmente aparente” da vítima (cf. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in “Código Penal Parte geral e especial”, Almedina, 2018, p. 822).
O conceito de “ato sexual de relevo” – núcleo do tipo objetivo – abrange um amplo espectro de condutas de natureza sexual (excluídas do tipo legal do crime de violação) que, pela sua espécie, intensidade ou duração, afetam de forma significativa a liberdade de autodeterminação sexual da vítima.
Como refere Figueiredo Dias, ato sexual é aquele que, “de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem o sofre ou pratica”, sendo irrelevante o motivo da atuação do agente, nomeadamente “a intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual (dita também intenção libidinosa)”. (in Comentário Conimbricense do Código Penal Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 447 e 448).
Mas exige-se que o ato, para além de sexual, seja também “de relevo”. A jurisprudência e a doutrina têm entendido como tal todo o ato objetivamente praticado que “tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas” (cf. Ac. do TRC, de 05.06.2013, proc. n.º 204/10.8TASEI.C1, disponível em diariodarepublica.pt). Incluem-se nessa categoria toques com alguma intensidade, carícias, apertos, apalpes, esfreganços, em partes erógenas do corpo, como é o caso dos órgãos genitais, da zona vulvar, dos seios, das nádegas, das coxas e da boca.
Em contrapartida, os atos que não se encontrem habitualmente ligados apenas a esse contexto da atividade sexual entre pessoas – ainda que tenham conotação sexual – não assumem esse “relevo”, na perspetiva do bem jurídico. É o caso dos toques praticados com motivação sexual em partes do corpo que não se mostram diretamente relacionadas com a prática de sexo. Estes integram-se na chamada “importunação sexual”, que, referente a vítimas menores de 14 anos, encontram-se criminalizados no art.º 171.º, n.º 3, al. a), do CP (e não no art.º 170.º, como refere o recorrente).
Assim, o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo n.º 1, do art.º 171.º, do CP, tem como limite inferior os comportamentos previstos no n.º 3, do referido dispositivo legal.
§3. In casu, o aperto e apalpão intencional de uma zona erógena, como é o caso das nádegas, insere-se manifestamente no domínio dos atos que se reconduzem à esfera da sexualidade íntima. Tal constatação, associada à intensidade do gesto (colocação da mão, aperto, apalpe), à sua duração (3-4 segundos, não se tratando de um ato fugaz, instantâneo), à idade da vítima (apenas 12 anos) e ao contexto de autoridade em que o arguido atuou (quando se encontrava sozinho numa sala de aulas com a aluna), afastam a qualificação da conduta como mero ato de importunação.
O entendimento de que apalpar ou acariciar nádegas consubstancia ato sexual de relevo tem colhido uma certa unanimidade jurisprudencial, como resulta de diversos acórdãos que aqui se mencionam a título exemplificativo (alguns citados pela decisão recorrida e/ou pelo Ministério Público):
- Ac. do TRP, de 24.01.2024:
Um apalpão na zona nadegueira da ofendida, efectuado de modo inesperado, ao mesmo tempo que o agente lhe cheira o pescoço e acompanhado de frases de natureza sexual, distancia-se de um simples ato sexual, constituindo um ato sexual de relevo.”. (proc. n.º 891/20.9PAESP.P1, disponível em dgsi.pt).
- Ac. do TRC, de 05.06.2013:
é manifestamente o caso de acariciar/apalpar nádegas e parte interior das coxas, actos preliminares do acto sexual final que conduz ao orgasmo”. (proc. n.º 204/10.8TASEI.C1, disponível em diariodarepublica.pt).
- Ac. do TRL, de 21.05.2024:
Quando a vítima é uma menor de 14 anos, que fica exposta à investida de um homem de 51 anos que a acaricia pelas costas até às nádegas, onde deixa ficar a mão, estamos perante um acto sexual de relevo. (proc. n.º 55/22PHOER.L1.5, disponível em dgsi.pt).
- Ac. do STJ, de 12.01.2022:
“Estão aqui em causa a cópula vulvar e o toque, com objectos e partes do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca das crianças abusadas. (…) não restam quaisquer dúvidas de que o arguido praticou dolosamente vários actos sexuais de relevo ali previstos contra os referidos menores, nomeadamente (…) palmadas e apertões nas nádegas”. (proc. n.º 1079/20.4PASNT.S1, in jurisprudencia.pt).
Na doutrina, Pinto de Albuquerque, dando exemplos de atos sexuais de relevo, reporta-se a:
toque, com objetos ou parte do corpo, nos órgãos geniais, seios, nádegas, coxas e boca,” por afetarem “gravemente a liberdade sexual da vítima, que é transformada em objecto do prazer do agente, como se de uma coisa se tratasse e de que ele pudesse dispor desde que esses actos fossem em “pequena quantidade”, ou “ocasionais” ou “instantâneos”.
Já exemplificando condutas que ficam aquém da gravidade exigível para o preenchimento do conceito, menciona:
o toque (com objetos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima (…)”. (in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 4ª ed., p. 702 e 735)
A conduta do arguido é idónea a afetar diretamente a autodeterminação sexual da ofendida e a colocar em causa o normal desenvolvimento da sua personalidade, a sua capacidade de construir a sua identidade sexual de forma saudável, sem traumas ou constrangimentos emocionais que comprometam a sua maturação sexual, emocional, afetiva e social, inserindo-se, pois, no conceito de ato sexual de relevo.
§4. Contrariamente ao alegado pelo recorrente, o tipo legal não exige, para o seu preenchimento, a prova de um qualquer concreto aproveitamento de uma situação de desigualdade entre o agente e a vítima, nem que o agente tenha atuado com o intuito específico de explorar a inexperiência ou a idade da vítima, nem, por fim, a perceção da vítima da conotação sexual do ato, até porque muitas crianças jamais o poderiam ter, como será o caso de o caso de um bebé. A incriminação assenta na proteção reforçada da autodeterminação sexual das crianças, por lhes faltar maturidade para, com pleno conhecimento do alcance e efeitos do ato sexual de relevo, poderem-se determinar com liberdade nesta matéria, o que prejudica o seu desenvolvimento. Tal incapacidade, em razão da idade, é presumida pela lei de forma absoluta, não havendo necessidade de em concreto avaliar essa desigualdade, abuso de inexperiência ou exploração de fragilidade. O dolo exigido é apenas o genérico, não um dolo específico ou intencional.
§5. Não existe, portanto, qualquer erro na qualificação jurídica dos factos operada na sentença recorrida.
Termos em que improcede o recurso em mais este segmento.
II.3.5. Da pena acessória de proibição de funções.
§1. O recorrente sustenta que o tribunal recorrido não deveria ter aplicado a pena acessória de proibição de exercício das funções pelo período de 5 anos, por a considerar desproporcionada face aos factos provados, ao seu percurso profissional irrepreensível e à ausência de registo criminal. Entende que tal pena viola o princípio da proporcionalidade e os art.ºs 18.º, n.º 3 e 30.º, n.º 4, da CRP.
§2. Nos termos do art.º 65.º, n.º 2, do CP, "a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões".
§3. Dispõe o art.º 69.º-B, n.º 2, do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 15/2024, de 19.01.2024, em vigor a partir de 01.03.2024, que: “Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
A redação anterior (decorrente da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) vigente à data da prática dos factos ̶ 28.04.2023 ̶, dispunha que: “É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor”.
A alteração textual mais saliente entre as duas versões é a passagem de uma formulação afirmativa e aparentemente imperativa (“É condenado…”) para uma formulação que expressamente afasta a obrigatoriedade/automaticidade da aplicação da pena acessória (“Pode ser condenado…”). O legislador optou, contudo, por manter a moldura penal abstrata, de 5 a 20 anos.
O Tribunal Constitucional decidiu, em vários arestos “Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores” (vide, por exemplo, Acs. do TC de 09.10.2024, proc. n.º 688/2024, disponível em diariodarepublica.pt, de 15.05.2025, proc. n.º 396/2025, disponível em tribunalconstitucional.pt).
§4. Considerando que a redação do art.º 69.º-B, n.º 2, do CP, na versão introduzida pela Lei n.º 15/2024, de 19.01.2024, se apresenta mais favorável ao arguido, por contemplar a possibilidade formal de afastamento da aplicação da pena acessória, será esta a aplicar (art.º 2, n.º 4, do CP).
§5. Nas palavras do Ac. do TC de 15.05.2025 (proc. n.º 396/2025, disponível em tribunalconstitucional.pt), a pena acessória de proibição de exercício de funções e atividades que envolvam contacto regular com menores foi introduzida ““[c]om o objetivo declarado de prevenir a prática de crimes sexuais contra crianças e jovens no espaço da União, este instrumento de Direito europeu vinculou os Estados membros a implementarem quadros legais que assegurassem que a condenação por infrações desta natureza (artigos 3.º a 7.º do diploma) importasse a inibição dos agentes de desenvolverem atividades que importassem contactos regulares com crianças ou jovens, ao menos de cariz profissional, tendo em vista prevenir o perigo inerente de vitimização de pessoas em situação de vulnerabilidade (artigo 10.º da Diretiva 2011/93/EU).”
Esta sanção traduz uma restrição severa dos direitos fundamentais da liberdade de escolha e de exercício da profissão, por gerar “uma barreira legal ao desenvolvimento de atividade profissional que deles dependa (v. g., professor, educador de infância, treinador de equipas de formação, animador cultural, etc.).
Mas também se estende ao contexto não profissional, “(v. g., a impossibilidade de manter certos hobbies ou de realizar serviço de voluntariado, quando ambos caiam no âmbito da proibição criminal), e ao perímetro de proteção do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, “restringindo a constelação de contactos humanos e de interação com terceiros que lhe é permitida”.
§6. As penas acessórias estão sujeitas aos critérios gerais de aplicação das penas.
Esses critérios gerais mostram-se consagrados nos art.ºs 40.º e 71.º, do CP.
O art.º 40.º, n.ºs 1 e 2, define que a pena “visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. O art.º 71.º, n.º 1, orienta a fixação da pena “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
Conforme se refere no Ac. do STJ, proc. n.º 98P1019:
"A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define um concreto o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. (…)
Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que - dentro, claro está, da moldura legal - a moldura da pena aplicável ao caso concreto ("a moldura de prevenção") há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social" (datado de 09.12.1998, disponível em https://juris.stj.pt/).
O art.º 71.º, n.º 2, elenca alguns “elementos factuais de individualização da pena” ̶ que deponham a favor do agente ou contra ele ̶, desde que não integrem o tipo de crime, evitando a dupla valoração.
A pena acessória de proibição de exercício de funções ou atividades tem, ainda, “uma função preventiva adjuvante da pena principal”, cuja finalidade “se não se esgota na intimidação da generalidade, mas se dirige também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do delinquente”, “reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação” (cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Aequitas/Editorial Notícias., §88, p. 96, e §.232, p.181).
É sabido que a concretização de qualquer pena ̶ principal ou acessória ̶ terá de ser norteada pelos princípios da proibição do excesso e da proporcionalidade (adequando-se à gravidade dos crimes, ao grau e intensidade da culpa e às necessidades de prevenção).
Do que se trata é de exigir que os efeitos lesivos decorrentes da aplicação de uma concreta pena estejam “calibrados” com os fins de prevenção geral e especial, dentro dos limites da culpa, o que implica uma ponderação de justa medida entre os efeitos almejados e a pena a aplicar.
A pena justa, adequada e proporcional é, pois, a que responde eficazmente às exigências preventivas, sem exceder a medida da culpa.
§7. A questão jurídica que se impõe é a de saber se a manutenção de um limite mínimo de 5 anos para a proibição de exercício de profissão ou atividades é compatível com os princípios da proporcionalidade e da medida da culpa e, no caso concreto, se a pena acessória, ainda que aplicada nesse limite mínimo, é proporcional, ou antes configura um excesso sancionatório.
Embora a revisão de 2024 ̶ num esforço óbvio de eliminar o automatismo associado à duração mínima de 5 anos, considerado problemático pelo Tribunal Constitucional na redação de 2015 ̶ tenha introduzido uma solução normativa que, formalmente, repõe alguma margem de apreciação ao julgador, a manutenção de um mínimo legal tão elevado continua a limitar a possibilidade de uma ponderação verdadeiramente individualizada. Na prática, esse parâmetro tenderá a conduzir à frequente não aplicação da pena acessória, por se revelar desajustada à culpa concreta e à gravidade do facto.
Em outras palavras, a mera devolução ao julgador da faculdade formal de ponderar a aplicação da pena acessória não parece constituir-se como um remédio absoluto quando o limite legal mínimo é tão elevado que impede a justa calibragem da pena ao grau de culpa e à gravidade do caso concreto. Este figurino legal tenderá a afastar a aplicação da pena acessória em muitas condenações ̶ quiçá demasiadas ̶ por crimes de natureza sexual envolvendo vítimas menores e, em última instância, redundará numa menor proteção das potenciais vítimas.
§8. No caso vertente, o comportamento do arguido dado como provado apresenta-se como um episódio isolado numa longa carreira profissional. Professor de educação física desde pelo menos 1982, com responsabilidades ao nível do desporto escolar, fundador de um clube de atletismo, descrito como um profissional exigente e cumpridor. Não tem antecedentes criminais, encontra-se socialmente integrado e mantém uma vida familiar estável, com esposa e duas filhas já autónomas, com quem tem contacto estreito.
Os factos provados situam-se num patamar leve ou de reduzida gravidade, dentro do espectro das atuações objetivas que em abstrato cabem no tipo e da gravidade pressuposta pelo crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo n.º 1, do art.º 171.º, do CP.
Apesar de a conduta do arguido ser fortemente censurável, até do ponto de vista ético e deontológico, ponderadas as circunstâncias e o seu perfil, não se impõem necessidades preventivas que justifiquem a aplicação de uma pena acessória de proibição do exercício da profissão e de outras atividades que envolvam contacto regular com menores por um período tão longo de 5 anos.
Repare-se que, relativamente à pena principal, numa moldura entre 1 e 8 anos de prisão, a pena concreta foi situada 2 meses acima do mínimo legal, suspensa na sua execução, e isto apesar do dolo direto com que atuou e da ausência de elementos atenuativos ligados ao seu comportamento posterior à prática do crime.
Não existem factos concretos de onde se possa extrair um risco efetivo e consistente de recidiva, pois que, não obstante no exercício da sua profissão contacte necessariamente com crianças e jovens, a verdade é que o faz há já 43 anos, sendo que o juízo de prognose da sua reinserção social é francamente favorável.
Aplicar uma pena acessória com duração mínima de 5 anos, sem possibilidade legal de redução, representaria, no caso, uma lesão excessiva dos direitos fundamentais do arguido, que afronta os princípios da proporcionalidade e da culpa.
Assim, atendendo à natureza e grau de gravidade dos factos, à culpa do arguido e às necessidades de prevenção, revoga-se a sentença recorrida na parte em que aplicou ao arguido a pena acessória prevista no art.º 69.º-B, n.º 2, do CP.
O recurso procede nesta parte.

III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, decidem:
- Revogar a sentença recorrida na parte em que aplicou ao arguido a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 anos, ao abrigo do disposto no art.º 69.º-B, n.º 2, do CP; e
- No mais, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas (art.º 513.º, n.º 1, “a contrario”, do CPP).
Notifique e D.N..

Porto, 15/10/2025
Madalena Caldeira
Castela Rio
Amélia Catarino