NE BIS IN IDEM
LIBERDADE CONDICIONAL AOS 2/3 DO CUMPRIMENTO DE PENA
Sumário

I - Para efeitos da ponderação do juízo de prognose exigido na concessão da liberdade condicional (art.º 61.º, n.º 2, al. a), do CP), não viola o princípio da proibição da dupla valoração a consideração de factos concretos anteriormente atendidos na determinação da medida da pena de prisão em execução, por se tratar de uma (re)valoração de um “idem” naturalístico e não de um “idem” jurídico.
II - O juízo de prognose favorável fica comprometido quando, apesar do cumprimento de 2/3 da pena de prisão e de relatórios e parecer técnico positivos, o recluso, nas declarações prestadas, revela incapacidade de autocrítica e de empatia para com a vítima de crime sexual, denotando ausência de mecanismos internos que inibam a repetição da conduta criminosa.

Texto Integral

Processo: 902/23.6TXPRT-F.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
I.1. Respeitante ao condenado AA, em 24.03.2025 foi proferida decisão judicial no incidente de Liberdade Condicional (Lei 115/2009) apenso 902/23.6TXPRT-B, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, no confronto de todas as circunstâncias apontadas, entendo não resultarem preenchidos os pressupostos previstos no artigo 61.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, razão pela qual decido não colocar o condenado AA, com os demais sinais dos autos, em liberdade condicional.

I.2. Recurso da decisão
Inconformado, AA interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1) O Recluso encontra-se a cumprir pena, ininterruptamente, desde 31/05/2022.
2) NaÞo tem quaisquer outros processos disciplinares;
3) NaÞo tem quaisquer processos judiciais pendentes;
4) Tem apoio familiar;
5) Tem projecto laboral;
6) O Conselho Técnico emitiu parecer favorável por unanimidade;
7) Já foi testado em meio livre, através do gozo de licenças de saída jurisdicional;
8) Colocado em RAI em 27/02/2025 e já beneficiou de uma licença de curta duração que correu sem incidentes;
9) Tem hábitos e rotinas de trabalho;
10) Tem um projecto laboral na empresa A...;
11) Pensamos que, verificando com atenção todas as circunstâncias que envolveram o processo de concessão de liberdade condicional do recluso, estaì explícito de que estariam reunidas as condições objectivas e subjectivas para que lhe pudesse ser concedida a liberdade condicional.
12) Mas, o douto parecer do Ministério Publico, que concretamente, não conhece nem acompanha o condenado, foi mais valorizado, que do Conselho Teìcnico, composto por “teìcnicos” privam e lidam com o mesmo.
13) A liberdade condicional, constituindo uma medida de execução de sanção penal não privativa da liberdade, traduz-se na libertação antecipada associada a um período de transição entre a prisão e a liberdade cujo propósito é dar ao condenado a oportunidade e reais condições de adaptação gradual à nova realidade e, consequentemente, de adequação da sua conduta aos padrões éticos e jurídicos essenciais ao convívio social em liberdade, presumidamente enfraquecidos pelo período de reclusão suportado.
14) O grande objectivo é, pois, o da ressocialização do condenado em pena privativa da liberdade, com o controlo e supervisão, na faze inicial do seu regresso a liberdade, precisamente, para assegurar o sucesso da sua reintegração (Moraes Rocha & Catarina Sá Gomes, Algumas notas sobre direito penitenciário, in Moraes Rocha, Entre a Reclusão e a Liberdade Estudos Penitenciários, vol. I, Almedina, 2005, pp 42 e Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 15ª ed., 2002, pp 220 e segs.; Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Noticias, 1193, 528).
15) Com este pressuposto, deveria o tribunal ter colocado o condenado em liberdade condicional aos 2/3 da pena de 4 anos e 2 meses.
16) A liberdade condicional fora do condicionalismo previsto no artigo 61/4 do C.P., só poderá ser concedida, de acordo com os números 2 e 2 do mesmo artigo 61º se, alem dos pressupostos de natureza formal, exigidos pelo artigo 61º, quanto a existência do consentimento do condenado, ao tempo mínimo de cumprimento de pena (seis meses) e a duração de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão, se for razoável e fundadamente de esperar que, uma vez em liberdade, o condenado conduzira a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes e, ainda assim, que a sua libertação antecipada seja ajustada e compatível à e com a satisfação das finalidades preventivas da pena, quer ao nível da prevenção especial da socialização, quer de prevenção geral de integração.
17) O que aqui esta em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontra-se disposto a correr um certo risco, fundado e calculado.
18) Assim, não poderá constituir entrave a libertação, nas precisas circunstâncias do caso, o fundamento da ausência de consciência auto critica ou a persistência de lacunas ao nível de responsabilização, e que é afinal a verdadeira razão da decisão.
19) Ora o artigo 61/2/a do C.P. não faz qualquer referência ao arrependimento ou a falta de interiorização da culpa enquanto requisito para se avaliar a liberdade condicional.
20) A jurisprudência e a doutrina vão no sentido de considerar que é mais eficaz para prevenir a reincidência e facilitar o processo de ressocialização que se inicie a transição gradual e fiscalizada do Recorrente para a vida livre através da concessão da liberdade condicional em vez de o manter em reclusão, criando assim as bases sustentáveis para o seu futuro com o auxílio de técnicos de reinserção social.
21) A liberdade condicional não pode ficar unicamente dependente da possibilidade da formulação de um juízo de prognose positivo relativamente ao condenado.
22) Ora o Tribunal “a quo”, naÞo considerou preenchido o requisito previsto no artigo 61/2/a do C.P., relativo a um juízo de prognose favorável sobre o que será de esperar que seja a conduta do recluso, uma vez em liberdade.
23) É hoje entendimento jurisprudencial pacifico que a concessão da liberdade condicional não esta dependente, nem da assunção da prática do crime, nem do arrependimento, assim como a filosofia dos novos entendimentos sobre os critérios da liberdade condicional defendem o mesmo entendimento.
24) O que a lei exige é que se verifique um pronóstico favorável, no sentido de que, uma vez em liberdade, o recluso não voltara a cometer novos crimes.
25) Ora a sentença agora recorrida, perfilha uma orientação errónea quanto ao preenchimento do requisito previsto no artigo 61/2/a, a qual viola o artigo 40/1 do C.P., que estabelece que a aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, o que não contempla a necessidade da assunção de culpa, por parte do recluso, única situação concreta invocada pelo tribunal para, no quadro geral estabelecido, recusar a liberdade condicional ao recorrente.
26) E isso não é aceitavel.
27) Esperar que do condenado, ou exigir-se-lhe, para a concessão da liberdade condicional, que mude a sua história, que mostre arrependimento (ainda que falso) equivale a negar a liberdade condicional, o que poderá não ser consentâneo com os nossos valores constitucionais e altamente discriminatório para uma parcela significativa dos nossos condenados.
28) Alias, os fins de expiação da pena não são incompatíveis com a ressocialização do recluso.
29) Deste modo, o elemento da relação do recluso com o crime cometido, a ponderar nos termos do artigo 173/1/a do C.E.P.M.P.L., só poderia ter relevância se reportado a qualquer dado concreto que permitisse estabelecer que o Arguido apreende o desvalor de condutas que ponham em causa o bem jurídico protegido, o que não acontece neste caso e não se pode depender da mera ausência de uma assunção de culpa, porque essa valoração foi efectuada, de uma vez para sempre, na sentença condenatória.
30) Assim sendo, a situação concreta do Recorrente deve levar a que se considere preenchido o requisito previsto no artigo 61/2/a do C.P., que a recorrida decisão não aplicou adequadamente ao caso dos autos.
31) Existem, pois, referências, absolutamente consistentes, da efectiva ressocialização do recorrente, e, por isso, era possível formular um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do recorrente (juízo indiciador de que o mesmo, colocado em liberdade, vai pautar a sua vida sem cometer crimes).
32) Parece-nos que neste caso concreto estão preenchidos os pressupostos para que ao recorrente tivesse sido concedida a liberdade condicional, ainda que o mesmo ficasse sujeito a regras de conduta, pelo tempo de duração da liberdade condicional, impostas e destinadas a facilitar a sua reintegração na sociedade, conforme decorre do artigo 52 do C.P., aplicável por força do artigo 64 do mesmo código.
33) Ou até, de igual modo, o tribunal poderia ter determinado, se o considerasse conveniente e adequado e facilitasse a reintegração do condenado na sociedade, que a liberdade condicional fosse acompanhada de regime de prova, ou seja, um plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da liberdade condicional, dos serviços de reinserção social.
34) A douta decisão ora em recurso viola os direitos humanos de qualquer recluso já que este continua a ser um ser humano, independentemente da prática do crime, conforme artigos 30º e 32º da C.R.P.
35) Viola ainda o espírito da lei 59/2007 de 4 de Setembro, designadamente o artigo 61/3, e omissão de aplicação do artigo 62º, ambos do Código Penal,
36) A exigência de que nos crimes de violência domestica é necessária a assunção de culpa é inconstitucional por violação dos artigos 1º, 18/2, 25/1 e 32/1, todos da C.R.P., o que desde já se deixa arguido.
37) Em primeiro lugar, esta em causa a dignidade da pessoa humana (artigo 1º da C.R.P.) e o direito à integridade moral (artigo 25/1 da C.R.P.), porque ninguém pode ser violentado na sua consciência e levado a assumir aquilo que não é a sua convicção.
38) Em segundo lugar, tal entendimento violaria o princípio da proporcionalidade constante aos fins das penas, como decorre do artigo 18/2 da C.R.P., uma vez que as penas servem para defender bens jurídicos e promover a ressocialização do condenado, conforme prevê o artigo 40º do C.P., mas não para promover a expiação da culpa.
39) Em terceiro lugar, a obrigação da assunção da culpa consequente “arrependimento” poderia conduzir a confissões falsas de condenados dispostos a retomar carreiras criminosas e, o que é ainda mais grave, à recusa de concessão da liberdade condicional a vítimas de erros judiciários, subordinando o acesso a esse regime à renúncia a interpor recurso extraordinário de revisão de sentença, o que violaria o direito ao recurso consagrado no artigo 32/1 da C.R.P..
40) Ora o risco de reincidência esta mitigado, uma vez que o condenado atingiu já os 2/3 da pena.
41) Não há que exigir ao condenado que concorde com a condenação, nem que se tenha tornado bom e humilde, obediente e concordante com o ordenamento jurídico, embora essa adesão seja desejável, mas, como diz Vaz Pato, não exigível, pois o direito penal situa-se num âmbito distinto do da moral (ver a este respeito, entre outros, Anabela Miranda Rodrigues, Novo Olhar sobre a questão penitenciaria, Coimbra Editora, 2000, págs. 52 a 63).
42) O juízo sobre se o Recluso interiorizou suficientemente o desvalor da sua conduta, é um juízo sobre um facto interno que na sua integralidade, escapa ao conhecimento de qualquer juiz, mesmo ao do Tribunal “aquo”.
43) Esse risco é contrabalançado pelo comportamento do condenado, o apoio psiquiatrico, o aproveitamento do programa Vida, o apoio familiar, e o projecto laboral.
44) È um risco que se situa dentro dos limites socialmente aceitáveis, podendo ser controlado através de regras de conduta que condicionem adequadamente a liberdade condicional.
45) No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/07/2010, aqui a aplicar em pleno “[n]a anaìlise dos pressupostos da aplicação da liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena, a avaliação da compatibilidade da libertação do condenado com a defesa da ordem e da paz social (al. b) do n.° 2 do art. 61.°, do CP) remete para elementos como a neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, a dissuasão e fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma jurídica violada e, portanto, para a natureza e gravidade do crime praticado; em caso de conflito entre os vectores da prevenção geral e de prevenção especial, o primado pertence à prevençaÞo geral”.
46) Assim, parece-nos que neste caso concreto estão preenchidos os pressupostos para que ao Recorrente tivesse sido concedida a liberdade condicional, ainda que a mesma ficasse sujeita a regras de condutas, pelo tempo de duração da mesma e também a um regime de prova, ou seja, a um plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social.
47) E por todo o exposto deverão V. Exas., Exmos. Senhores Venerandos, nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas., mui doutamente, suprirão, conceder provimento ao presente recurso sendo, por efeito do mesmo, substituída a Douta Decisão recorrida por outra, nos termos da antecedente motivação, sendo concedida de imediato a liberdade condicional ao ora Recorrente.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas., mui doutamente, suprirão, conceder provimento ao presente recurso sendo, por efeito do mesmo, substituída a Douta DecisaÞo recorrida por outra, nos termos da antecedente motivaçaÞo, sendo concedida de imediato a liberdade condicional ao ora Recorrente. Assim se declarando procedente o presente recurso Com o que se faraì, a costumada, Justiça.

I.3. Resposta ao recurso
O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, em termos sintetizados nestas conclusões (transcrição):
1.- o recurso versa a recusa de liberdade condicional aos dois terços do cumprimento da pena única de 4 Anos e 2 Meses de prisão em que o recluso está condenado pelas práticas de um crime de violência doméstica, um crime de violação e um crime de dano;
2.- os pressupostos para a concessão de liberdade condicional neste marco decorrem do disposto, ex vi o seu nº 3, no artº 61º, nº 2, al. a), do Cód. Penal, pelo que são as razões de prevenção especial que norteiam a decisão a proferir;
3.- para além das demais nele enunciado, releva o juízo crítico e a evolução da personalidade que o recluso evidencie, atento o tempo de prisão cumprido, que permita, fundamentadamente, formular de um juízo de prognose favorável no sentido de ser de confiar que, se libertado, logre readaptar-se, mantendo conduta normativa;
4.- in casu, o recluso evidencia fraquíssima interiorização do desvalor dos crimes cometidos e total falta de empatia com a vítima, bem como das consequências que dos mesmos advieram para esta;
5.- o recluso nega, não só o facto de ter criado um perfil falso da vítima numa rede social, como a prática do crime de violação, persistindo em afirmar que o trato sexual ocorreu com consentimento da vítima;
6.- perante as questões colocadas pelo Tribunal quanto ao crime de violação, o recluso recusou-se a, com patente irritação, responder a quaisquer outras questões quanto aos crimes;
7.- a negação, não só do crime de violação como de atos que integraram o de violência doméstica, com a manifestada irritação perante as questões que o Tribunal colocou, conduzem à conclusão de não ter ocorrido nenhuma evolução da personalidade no decurso da reclusão;
8.- sem esta evolução impedido está o Tribunal de, fundamentadamente, poder confiar que em liberdade o recluso venha a adotar comportamento readaptado, mormente de respeito para pessoas que lhe são próximas;
9.- as muito elevadas exigências de prevenção especial, ressaltavam já do Acórdão condenatório;
10.- a reincidência no crime de violência doméstica é real e cada vez mais as situações veem demonstrando como, concomitantemente com o mesmo, são praticadas das mais das vezes crimes de violação;
11.-, comportamento intramuros e a integração familiar e laborar que apresenta no exterior, em nada belisca a decisão de não concessão de liberdade condicional;
12.- o parecer emitido pelo Conselho Técnico não só não é vinculativo, como tão pouco é condição, necessária e/ou, suficiente, para que a liberdade seja concedida a discordância;
13.- o parecer do Ministério Público é emitido por um órgão do poder judicial investido na defesa da legalidade e dos interesses que a lei determina.
14.- a decisão recorrida obedece, escrupulosamente, ao disposto, ex vi o seu nº 3, no art.º 61º, nº 2, al. a), do Cód. Penal;
15.- o recurso não merece provimento.
Nestes termos, e nos demais de direito que, se necessários serão suprimidos, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, assim se fazendo justiça.

I.4. Parecer do ministério público
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416.°, do CPP, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pugnou, igualmente, pela improcedência do recurso.

I.5. Resposta ao parecer
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.

I.6. Foram colhidos os Vistos e realizada a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Delimitação do objeto do recurso
O recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, que estabelecem os limites da cognição do tribunal superior, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, como os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP (cf. art.ºs 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, ambos do CPP).
Passamos a delimitar o thema decidendum:
- Saber se se verificam os pressupostos materiais de concessão da liberdade condicional ao recorrente.

II.2. Decisão Recorrida
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição integral):
I. Corre o presente processo de liberdade condicional referente ao condenado AA, identificado nos autos.
Foram elaborados os pertinentes relatórios.
Reuniu o Conselho Técnico, que emitiu parecer favorável (por unanimidade) à concessão da liberdade condicional, e procedeu-se à audição do recluso, que consentiu na aplicação de tal regime.
O Ministério Público pronunciou-se pela não concessão da liberdade condicional.
Cumpre decidir, nada obstando.
II. Com interesse para a decisão a proferir, consigna-se a seguinte factualidade, resultante do exame e análise do teor da(s) certidão(ões) proveniente(s) do(s) processo(s) da condenação, do CRC do condenado, dos relatórios elaborados em cumprimento do preceituado no artigo 173.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CEP, da ficha prisional remetida pelo estabelecimento prisional, da reunião do Conselho Técnico e da audição do recluso, tudo elementos documentados nos autos:
O condenado nasceu em ../../1991.
Cumpre a pena única de 4 anos e 2 meses de prisão, à ordem do processo n.º 125/22.1GAVLG, da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal do Porto –Juiz 5, no âmbito do qual foi condenado pela autoria de um crime de violência doméstica, um crime de violação e um crime de dano
(1 - A ofendida BB e o arguido conheceram-se no ano de 2021, nas redes sociais.
2 - No início do ano de 2022 iniciaram uma relação de namoro, encontrando-se frequentemente.
3 - A relação de namoro decorreu sem incidentes até ao inicio de Março de 2022, ocasião em que a ofendida descobriu que o arguido vivia em casa da mãe de um dos filhos e que não tinha emprego fixo (ao invés daquilo que lhe dissera quando se conheceram, que era empresário da construção civil e que tinha apenas um filho).
4 - Quando a ofendida descobriu que o arguido tinha dois filhos e o confrontou com tal facto, no início do mês de Março de 2022, o mesmo, irritado, desferiu-lhe bofetadas na face e puxões de cabelo e disse-lhe “és uma cabra”;
5 - Tais factos ocorreram quando ambos circulavam no interior de um veículo automóvel na zona de ..., nesta cidade do Porto.
6 - Logo após, o arguido mostrou-se muito arrependido, pediu desculpa à ofendida e esta aceitou.
7 - Porém, desde então que o arguido passou a controlar a ofendida, ligando-lhe constantemente e esperando-a à porta da sua residência, em ..., Valongo.
8 - Por várias vezes a ofendida tentou terminar a relação.
9 - A maioria das discussões ocorreram no interior do veículo de matricula ..-UZ-.., ocasiões em que o arguido ficava alterado e conduzia com excesso de velocidade, sempre com o intuito de intimidar a ofendida, sua namorada.
10 - Após muita insistência da ofendida, o arguido deixou de viver em casa da mãe de um dos seus filhos e foi viver com amigos, na cidade da Maia;
11 - Desde o inicio do mês de Maio que passou a morar num hostel, nesta cidade do Porto.
12 - Desde então que o arguido passou a mostrar-se ainda mais controlador e possessivo, telefonando à ofendida várias vezes ao dia, perguntando onde estava e com quem.
13 - No dia 12 de Maio de 2022 o arguido deslocou-se para junto da residência da ofendida e ambos saíram de carro, para um local ermo, em ..., Paços de Ferreira.
14 - Uma vez aí, quando a ofendida disse ao arguido que não pretendia manter relações sexuais, ele teve um acesso de fúria, chamou-lhe “cabra” e disse-lhe “se não és minha, não és de mais ninguém”.
15 - Enquanto proferia tais expressões, conduzia a alta velocidade, assustando a ofendida.
16 - De seguida, o arguido deslocou-se para a localidade de ..., zona de prostituição;
17 - Com a ofendida no interior do veículo, rasgou-lhe as calças de ganga e a blusa que a mesma usava e de seguida disse-lhe “sai, sua cabra”.
18 - A ofendida saiu do carro e tentou chegar até à estrada nacional, mas o arguido foi no seu encalço e mandou que entrasse no veículo dizendo “entra dentro o carro sua cabra, vais conhecer o filho do diabo”, tendo-a puxando, de forma violenta, para dentro do veículo.
19 - O arguido conduziu apenas uns metros, depois imobilizou o veículo e ordenou à ofendida que fosse para o banco de trás, o que a mesma, receosa, fez.
20 - Mandou que tirasse as calças, o que a mesma também fez.
21 - Estando a ofendida no banco de trás, o arguido despiu as suas calças e boxers e, após a ter manietado pelos braços, disse àquela “abre as pernas, sua cabra senão deixo-te aqui nua”.
22 - Tendo o mesmo, de seguida, com o pénis erecto penetrado a ofendida, sem qualquer protecção, de forma rápida e violenta, até ejacular na vagina da mesma, provocando-lhe dores.
23 - No regresso a casa o arguido disse à ofendida “este assunto fica entre nós, ninguém tem de saber, tu é que provocaste esta situação”.
24 - A ofendida chegou à sua residência cerca das 03h do dia 13 de Maio de 2022.
25 - Na sequência de tal conduta do arguido, sofreu a ofendida dores no membro superior direito e escoriações no pescoço, lesões que foram causa directa e necessária de 5 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
26 - Até se deitar, a ofendida esteve em chamada telefónica com o arguido, por exigência do mesmo, acabando este por dizer que estava muito arrependido, tendo pedido desculpa pelos seus actos.
27 – Nesse dia 13 de Maio de 2022 o arguido procurou a ofendida, pelas 14h., que acedeu a encontrar-se com ele no parque da ..., por ser um local público.
28 - Em tal local, o arguido, mais uma vez, pediu desculpa e insistiu para que retomassem a relação de namoro, o que a ofendida recusou.
29 - Desde então que a ofendida bloqueou o arguido nas chamadas e redes sociais, razão pela qual aquele passou a telefonar para o local de trabalho da ofendida – supermercado ... – e pedia para falar com a ofendida, o que fez por várias vezes, dizendo que era um caso de vida ou morte, deixando a ofendida assustada atento o facto de o seu pai se encontrar muito doente.
30 - Como não conseguiu chegar à fala com a ofendida, pelas 12h do dia 14 Maio de 2022 o arguido deslocou-se para o referido supermercado, tendo sido impedido de entrar pelo vigilante.
31 - Durante tal período de tempo o arguido enviou SMS à ofendida exigindo que fosse ter com ele ao estacionamento do supermercado.
32 - A ofendida abriu o seu veículo à distância e então o arguido entrou e permaneceu no interior do mesmo.
33 - A ofendida chamou a GNR, sendo que, após abordagem ao arguido, este acabou por sair do local.
34 – Porém, quando a ofendida saiu do trabalho, pelas 16h.30m., deparou-se com o arguido deitado no banco traseiro do seu veículo.
35 - Ao ver a GNR, o arguido foi embora do local.
36 - Decorridos alguns instantes, quando a ofendida estava no seu veículo, parada num semáforo, em ..., o arguido, de forma inesperada, abriu a porta do veículo, empurrou a ofendida para o lugar do passageiro, entrou no dito veículo e passou a ocupar o lugar do condutor.
37 – Aí, apoderou-se do telemóvel da ofendida (no valor de, pelo menos, € 175,00) e lançou o mesmo pela janela, partindo-o.
38 - Decorridos alguns metros, o arguido parou o veículo e foi buscar o telemóvel da ofendida.
39 - Após, deixou a ofendida em casa.
40 - Como não conseguia contactar a ofendida, o arguido passou então a contactar uma amiga da mesma, de nome CC.
41 - No dia 22 de Maio de 2022, cerca das 09h, quando a ofendida se deslocava para o seu local de trabalho, de carro, ao parar numa passadeira, de imediato o arguido se lançou sobre o veículo, desferiu socos no mesmo e tentou arrancar as escovas do limpa para-brisas;
42 - Mercê do pânico que se instalou, a ofendida fez marcha-atrás acabando por embater com o veículo num poste.
43 - A mala do veículo ficou danificada.
44 - No dia 29.05.2022, dia em que a ofendida festejava o aniversário do seu filho, a sua amiga CC recebeu um pedido de amizade no facebook, com o nome “DD”.
45 - Tal conta de facebook, com perfil falso, foi criada pelo arguido.
46 – O arguido tinha na sua posse fotos íntimas da ofendida, em roupa interior – que obteve com o consentimento desta, quando namoravam – que enviou pelo facebook para a ofendida através de um perfil falso.
47 – A ofendida, em virtude das condutas a que foi sujeita por parte do arguido, viveu em pânico, num clima de verdadeiro terror.
48 - As condutas do arguido apenas cessaram em 31.05.2022, data em que o mesmo foi detido.
49 - O arguido agiu com o propósito, conseguido, de: -molestar a ofendida no respectivo corpo e saúde; - atentar contra a sua honra e dignidade pessoal; - a intimidar e fazer crer que tinha de acatar todas as suas vontades e desmandos; - controlar todos os movimentos da mesma; - anular a respectiva autoestima; - a menorizar perante si e perante os outros; - a humilhar, vexar e maltratar, física e psicologicamente.
50 - O arguido quis maltratar e humilhar a ofendida, sua (ex) namorada, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada e atemorizada, o que conseguiu, bem sabendo que a afectava na sua saúde física e psíquica, querendo, ainda, atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que logrou.
51 - E quis, também, satisfazer os seus instintos libidinosos, sujeitando a ofendida a actos que sabia contrariarem a vontade da mesma, que lhe provocavam vergonha, vexame e humilhação e que punham em causa o seu bem-estar físico e psíquico, revelando desprezo e desconsideração pela mesma.
52 - Quis danificar o telemóvel da ofendida, sabendo que actuava contra a vontade daquela.
53 - O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.).
Atingiu a metade da pena em 01.07.2024, os dois terços da mesma foram alcançados em 11.03.2025, estando o seu termo calculado para 01.08.2026.
Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida BB, com afastamento da residência e do local de trabalho desta, pelo período de 4 anos e 2 meses, contado desde 09.11.2023, e na pena acessória de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica.
Foi também condenado no pagamento à vítima, cujo estatuto se mantém em vigor, da quantia de €2.000,00.
O condenado encontra-se recluído pela primeira vez em estabelecimento prisional.
No CRC junto figuram duas outras condenações, a primeira das quais proferida em 05.12.2022 (factos de 06.11.2016), relativas à prática de crimes de falsificação de documento e condução de veículo sem habilitação legal e tráfico de menor gravidade de estupefacientes; mostram-se extintas as penas não privativas da liberdade aplicadas.
Ouvido, o condenado prestou as declarações registadas no sistema de gravação.
No estabelecimento prisional é seguido em consultas de Psiquiatria, às quais tem vindo a aderir; desde Agosto de 2022, vem desenvolvendo, com adequação, actividade laboral, inicialmente no armazém geral e, a partir de Dezembro de 2024, como faxina do pavilhão.
Iniciou em 17.12.2024 a frequência do Programa …, destinado a agressores em contexto de violência doméstica, com termo previsto para Junho de 2025.
Foi alvo da aplicação, em 13.04.2023, da medida disciplinar de repreensão escrita, por envolvimento em altercação durante um jogo de futebol.
Beneficiou, com êxito, de duas licenças de saída jurisdicional, tendo sido colocado em RAI em 27.02.2025, regime que tem vindo a decorrer em condições de normalidade; neste âmbito, já beneficiou de uma licença de saída de curta duração.
Se colocado em liberdade condicional, o condenado pretende integrar o agregado constituído do seu progenitor, composto por este, pelo filho menor mais novo do condenado, pela madrasta e por um filho da mesma; trata-se de um apartamento de tipologia 2, adquirido em nome do filho da madrasta, reformado por invalidez; o condenado nunca residiu nesta morada nem é conhecido nessa zona residencial de ..., onde não são identificadas problemáticas sociais ou criminais.
A ofendida mostra-se resignada face a uma eventual libertação, embora verbalize algum receio.
O condenado está habilitado com o ensino secundário; possui experiências de trabalho na restauração e na construção civil, exibindo hábitos e rotinas de trabalho; para o futuro, pretende iniciar atividade laboral, de forma regular, na empresa “A...”, beneficiando da imagem positiva que o progenitor possui na empresa, onde trabalhou até à idade da reforma.
III. Apreciando.
Verificados que estão os pressupostos formais para a concessão da liberdade condicional (aquisição temporal e consentimento do condenado, este último imposto pelo artigo 61.º, n.º 1, do Código Penal), cumpre avaliar o preenchimento dos respectivos requisitos de natureza material, os quais, dada a presente fase da execução da pena, são os estabelecidos no artigo 61.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Em primeira linha, no quadro das circunstâncias do caso sub judice - artigo 61.º, n.º 2, al. a), do Código Penal -, pondera-se o elevado desvalor objectivo dos factos subjacentes aos crimes, manifestado, nomeadamente, na dimensão global de violência instalada pelo condenado nos seus contactos com a vítima, revelando os factos repetidamente praticados uma personalidade de desrespeito para com o seu semelhante próximo.
Sofreu o recluso, para além disso, as demais condenações acima referidas as quais, embora por crimes de naturezas diversas, contribuem para o recorte de um modo de ser e de estar revelador de desrespeito pelos padrões normativos vigentes.
Deste modo, visto o descrito quadro, afiguram-se relevantes as necessidades de prevenção especial que operam no caso em análise, as quais demandam acrescido período de prisão efectiva, por forma a ser possibilitada, por parte do condenado, uma melhor interiorização do desvalor das condutas assumidas e dos fundamentos da condenação.
Em ordem a esta conclusão concorre a circunstância de o condenado, em audição, não ter assumido parte substancial dos factos pelos quais está condenado, concretamente no que se refere ao crime de violação e à criação de um perfil falso no facebook, mais tendo revelado claro agastamento em face das instâncias do tribunal, com verbalização de intenção de não responder a mais perguntas neste âmbito, realidades que impedem o exercício de autocrítica satisfatória, por deficiente interiorização da culpa e da necessidade da pena, observando-se que, neste parâmetro, não operou qualquer evolução positiva na sua personalidade desde a anterior apreciação – cf. o artigo 61.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, norma que é densificada no artigo 173.º, n.º 1, alínea a), do CEP, ao aludir à “sua relação com o crime cometido”.
Conforme se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 14.03.2012 (no processo n.º 4188/10.4TXPRT-D.P1), “o facto de o recorrente não exprimir juízo auto crítico relativamente ao crime por cuja prática foi condenado, tendendo para a negação da sua responsabilidade, obstaculiza de modo acentuado o juízo de prognose favorável à concessão da liberdade condicional, uma vez que é de concluir que a personalidade do recorrente, não obstante o comportamento ajustado que tem revelado durante a execução da pena, não evoluiu ainda o suficiente para que possa, quanto a este aspecto, considerar-se satisfeita a condicionante imposta pela alínea a) do art. 61.º, n.º 2, do CPenal”.
Por seu turno, no acórdão do mesmo tribunal superior prolatado em 12.02.2014 (no processo n.º 1165/11.TXPRT-D.P1), considerou-se que “sem arrependimento não pode considerar-se que o condenado teve evolução favorável durante a execução da pena. Falta, no caso, uma clara interiorização da ilicitude da sua conduta (que nem sequer admite), não obstante a condenação com trânsito em julgado e o cumprimento de mais de 2/3 da pena aplicada. Por outro lado, a natureza dos crimes cometidos (…) e o seu elevado número (…), conjugados com a não admissão do desvalor do seu comportamento, ou seja, com a ausência de um arrependimento efectivo e sincero, não permitem um juízo objectivo de que, neste momento, o condenado está definitivamente afastado de tais comportamentos.”
E no acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 26.01.2022 (no processo n.º 203/20.1TXPRT-A.P19), ajuizou-se que “o percurso prisional do recorrente, pela ausência de qualquer efeito, no plano subjectivo, sobre a consciencialização do desvalor ilícito-penal da sua conduta, assumindo, mesmo, apesar da condenação sofrida, comportamentos de desculpabilização, não permite concluir como objectivamente fundada a possibilidade de o mesmo vir a ter no futuro um comportamento responsável, se colocado em liberdade”.
Como factores de valoração positiva, sem, contudo, se sobreporem ao conjunto dos demais acima enunciados, verifica-se existirem algumas condições objectivas (familiares, habitacionais e, eventualmente, laborais) favoráveis em meio livre, adesão, no meio controlado e vigiado em que se encontra o recluso, a consultas de Psiquiatria, ausência de medidas disciplinares e elevada gravidade e manutenção, com adequação, de actividade laboral, tudo no quadro de uma primeira reclusão.
IV. Pelo exposto, no confronto de todas as circunstâncias apontadas, entendo não resultarem preenchidos os pressupostos previstos no artigo 61.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, razão pela qual decido não colocar o condenado AA, com os demais sinais dos autos, em liberdade condicional.
Notifique e comunique, aguardando os autos renovação anual da instância, nos termos do artigo 180.º, n.º 1, do CEP, devendo, dois meses antes da data em referência, ser solicitado o cumprimento do disposto no artigo 173.º, n.º 1, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, fixando-se, desde já, o prazo de um mês para a elaboração dos respectivos relatórios.

II.3. Análise dos fundamentos do recurso
§1. O recorrente sustenta reunir todos os pressupostos legais para a concessão da liberdade condicional. Invoca, para tanto, o seu comportamento prisional exemplar, o apoio familiar e social de que beneficia, a inexistência de processos pendentes, a colocação em RAI e o gozo de licença de curta duração sem incidentes. Acrescenta que o Conselho Técnico emitiu parecer favorável por unanimidade e sublinha que o arrependimento ou interiorização da culpa não constituem requisitos indispensáveis para a liberdade condicional.
Aponta a violação dos art.ºs. 40.º, n.º 1, e 61.º, do CP, e 1.º, 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, 30.º e 32.º, n.º 1, da CRP.
§2. Vejamos.
No plano dos princípios, importa recordar que a execução da pena de prisão visa, primordialmente, a reintegração social do recluso (art.º 42.º, do CP), em consonância com as finalidades da pena e com o princípio da necessidade da sua aplicação, consagrados no art.º 40.º do CP.
A liberdade condicional ̶ enquanto fase de transição entre a prisão e o regresso à liberdade, que visa uma readaptação progressiva à vida em sociedade ̶ constitui um instrumento ao serviço daquele objetivo.
Assim, mesmo quando facultativa (a ½ ou a 2/3 da pena), a liberdade condicional não é uma medida de graça, mas sim um poder-dever do tribunal, condicionado unicamente à verificação dos respetivos pressupostos legais, de natureza formal e material. Tais pressupostos variam consoante o momento em que é apreciada a concessão (a meio ou a 2/3 da pena), numa lógica de exigência preventiva decrescente à medida que aumenta a fração da pena já cumprida.
§3. Nos termos do art.º 61.º, n.ºs 1, 3 e 2, al. a), do CP, a concessão de liberdade condicional ope judicis aos 2/3 da pena exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- Formais: o cumprimento de, pelo menos, seis meses de prisão; o cumprimento de 2/3 da pena; e o consentimento do condenado.
- Materiais: um juízo positivo de prevenção especial de ressocialização, traduzido numa prognose favorável quanto ao comportamento futuro em liberdade, designadamente no que respeita à adoção de um modo de vida socialmente responsável e isento da prática de novos crimes (art.º 61.º, n.º 2, al. a), do CP).
Na formulação desse juízo, o art.º 61.º, do CP, determina a consideração das seguintes dimensões: “as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão”.
Nada obsta, nesta avaliação, à convocação de elementos factuais apurados à data da condenação.
A consideração das “circunstâncias do caso” ̶ nomeadamente o número e gravidade do(s) crime(s) cometido(s) ̶ implica necessariamente a valoração dos comportamentos que justificaram a aplicação da pena (não os elementos e agravantes típicos do ilícito, dado fazerem parte do crime, mas sim fatores agravantes externos ao tipo), ainda que tal valoração haja já sido ponderada na determinação concreta da medida da pena em cumprimento (nos termos do art.° 71°, n.ºs 1 e 2, do CP).
O mesmo se aplica pelo menos à análise da “vida anterior do agente”, incluindo a eventual existência ou mesmo ausência de antecedentes criminais, circunstâncias também já ponderadas no momento da determinação da pena em cumprimento (art.º 71.º, n.º 2, al. e), do CP).
O recurso, nesta fase, aos referidos mesmos elementos factuais tidos em conta na determinação da pena não constitui violação do princípio ne bis in idem (que está na base da proibição da dupla valoração), uma vez que está em causa uma nova apreciação, com base em critérios jurídicos distintos e com finalidades diversas – não punitivas ou de duplicação de sanções, mas de prognose sobre o comportamento futuro do condenado em liberdade. Em suma, trata-se de uma revaloração de um “idem” (mesmo facto) naturalístico, não já de um “idem” jurídico, sendo este releva para aferir da violação dos referidos princípios.
Conclui-se, assim, que a ponderação de elementos factuais relativos às circunstâncias do crime (que extravasem os elementos típicos) e à vida anterior do condenado é legítima no âmbito da decisão sobre a liberdade condicional. Excluir tal valoração equivaleria a esvaziar a exigência legal de apreciação das necessidades de prevenção, no caso especial.
§4. In casu, o recorrente prestou declarações, que ouvimos. Afirmou estar arrependido, mas negou a prática de parte dos factos, sustentando não ter criado o perfil falso e insistiu que o ato sexual foi consentido. Recusou-se a responder a questões adicionais sobre os crimes, alegando já o ter feito em datas anteriores. Esclareceu não ter dado início ao pagamento da indemnização fixada à vítima, justificando que a questão estava ainda em tratamento.
O juízo material de prognose favorável assenta na ideia de que a pena já cumprida produziu uma mudança efetiva no recluso e preparou-o para uma vida em sociedade respeitadora da lei.
É sabido que esse juízo ̶ individualizado e sempre incerto (não passando de uma mera previsão) ̶ se tem de construir sobre fatores objetivos e avaliáveis, como seja a vida anterior do agente (incluindo os antecedentes criminais), o número, a natureza e gravidade dos crimes cometidos, as circunstâncias da sua prática, o comportamento prisional, a personalidade do agente, a sua evolução pessoal ou evidências de mudanças e, de forma também relevante, “a sua relação com o crime cometido” (art.º 173.º, do CEPMPL).
É certo que a lei não exige uma manifestação expressa e sincera de arrependimento como condição de liberdade condicional aos 2/3, pois o condenado não tem de concordar com a condenação, nem alterar (quiçá hipocritamente) aquela que foi a sua posição processual desde o início, beneficiando, além do mais, do direito ao silêncio.
Porém, tal não impede que a ausência de reflexão autocrítica e de empatia pelo sofrimento das vítimas possam legitimamente ser tidas em conta como dados relevantes ̶ a par de outros ̶ na avaliação da evolução (ou falta dela) da personalidade do arguido e do risco de reincidência.
A jurisprudência dos tribunais superiores (cremos que maioritária) tem traduzido esse entendimento, embora sublinhando que “[q]uem não logra percecionar em plenitude o mal cometido, dificilmente possui mecanismos passíveis de evitar a repetição da sua conduta.” (Ac. do TRL, de 28.06.2017, proc. 2284/13.5.TXLSB.N.L1-3, disponível em dgsi.pt)
Também a doutrina acentua que “sem interiorização da responsabilidade dificilmente será possível alterar comportamentos” (João Luís de Moraes Rocha e Sónia Maria Silva Constantino, in “Reclusão e Mudança” - “Entre a Reclusão e a Liberdade”, Vol. II, Pensar a Reclusão, Almedina, pág. 171).
Ora, quando um condenado por crime de violação insiste em sustentar a natureza consentida do ato sexual – apesar da evidência exuberante da oposição da vítima, que incluiu o rasgar roupas, a fuga da vítima para a estrada nacional, o subsequente resgate forçado pelo arguido, a colocação violenta dentro do veículo, a deslocação para um local mais ermo, a ordem para que passasse para o banco de trás, a imobilização dos braços e expressões como “sai sua cabra”, “não és minha não és de mais ninguém”, “entra dentro do carro, sua cabra, vais conhecer o filho do diabo”, “abre as pernas, sua cabra, senão deixo-te aqui nua”, “esse assunto fica entre nós, ninguém tem de saber, tu é que provocaste a situação” (factos dados como provados pontos em 13 a 23 do acórdão condenatório) ̶ está patente a sua incapacidade de compreender que “não é não”, não é “nim” e muito menos “sim”.
Tal postura evidencia ausência de consciência crítica e de interiorização da gravidade, ilicitude e culpa. Revela, ainda, um continuado desrespeito pela vítima. Esta atitude fragiliza profundamente qualquer juízo de prognose favorável, pois a incapacidade de autocrítica e de empatia pelo sofrimento causado impedem vislumbrar que, em situação análoga, o condenado seja capaz de mobilizar mecanismos internos que inibam a repetição da conduta criminosa.
No momento da decisão recorrida, o recorrente encontrava-se a frequentar um programa de intervenção terapêutica destinado a trabalhar precisamente estas valências, cuja duração se projetava até meados do ano em curso.
Deste conjunto de factos resulta que, à data da prolação da decisão recorrida, o percurso do recorrente no sentido da consciencialização da gravidade do seu comportamento, do respeito pelas vítimas de crimes sexuais e de violência doméstica e de mudança endógena se encontrava ainda numa fase incipiente, ou seja, que as suas necessidades de reinserção social careciam de reforço significativo.
O recorrente também não deu início da reparação da vítima, apesar do cumprimento de 2/3 da pena, o que, mais uma vez, não favorece o juízo de prognose.
Deve acrescentar-se que o recorrente possui antecedentes pela prática de crimes de falsificação de documentos e de condução sem carta, igualmente reveladores de uma personalidade resistente ao cumprimento de regras de vivência em sociedade e pouco sensível ao efeito dissuasor das penas anteriormente aplicadas, factos que acentuam as necessidades de prevenção especial.
Acresce que o condenado está a cumprir pena de prisão pela prática de três crimes – violação, violência doméstica e dano – o que, a par da falta de interiorização da gravidade da sua conduta e dos antecedentes criminais – reforçam aquele quadro, traduzindo um padrão de desrespeito pelos valores fundamentais da ordem jurídica e pela dignidade das vítimas.
A boa conduta prisional, apenas beliscada por um registo disciplinar, bem como o apoio familiar de que beneficia, a colocação em RAI e o gozo de licença de curta duração sem incidentes, embora fatores positivos, não bastam para afirmar uma transformação interna sólida que permita projetar uma adesão às normas jurídico-penais. De resto, mesmo quando o juízo de prognose permaneça incerto, deve prevalecer um juízo desfavorável, em vista da proteção da ordem jurídica e da prevenção de novos ilícitos.
§5. Importa sublinhar não se verificar qualquer violação dos princípios constitucionais ínsitos nos art.ºs 1º (vertente da proteção da dignidade da pessoa humana), 18.º, n.º 2, (dimensão do carácter restritivo das restrições dos direitos, liberdades e garantias), 25.º, n.º 1, (“direito à integridade pessoal”), 30.º (“limites das penas e das medidas de segurança”) e 32.º, n.º 1, (“garantias de processo criminal”, nomeadamente de defesa), da Lei Fundamental, porquanto a decisão recorrida não erigiu a necessidade da assunção de culpa como pressuposto abstrato da concessão de liberdade condicional facultativa, antes fundamentou o juízo negativo de prognose na conjugação de vários fatores objetivos.
§6. Em suma, a decisão recorrida ponderou todos os elementos disponíveis, incluindo os relatórios e parecer técnicos favoráveis (que não têm carácter vinculativo), não se eximiu à valoração da materialidade constante dos autos e que deve ser valorada a crédito do condenado, mas concluiu, de forma fundamentada, pela persistência de fatores que convergem no sentido de um juízo de prognose negativo, em especial a ausência de autocrítica, claramente patenteada nas declarações prestadas no âmbito deste incidente, e os seus antecedentes criminais, que comprometem o juízo de prognose favorável.
Tal decisão não nos merece censura.
Conclui-se, pois, pela improcedência do recurso.

III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s (art.ºs 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do RCP, com referência à tabela III anexa).
Notifique e D.N.

Porto, 15/10/2025
Madalena Caldeira
Lígia Trovão
Raúl Esteves