DIREITO DE NECESSIDADE
ART.º 34 DO CÓDIGO PENAL
Sumário

A invasão do logradouro, vedado ao público, da habitação dos avós maternos de uma filha menor, com o propósito de obter informações sobre o seu estado de saúde (febril há 4 dias), não exclui a ilicitude da conduta do arguido ao abrigo do direito de necessidade (art.º 34.º, do CP). Tal ocorre porque o alegado direito à informação não constitui um bem jurídico sensivelmente superior ao sacrificado – nem, de resto, se encontra protegido por norma penal – e porque o meio utilizado se revela inadequado para a obtenção de tais informações.

Texto Integral

Processo: 12/23.6GBAGD.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
I.1. Por sentença datada de 09.02.2025 o arguido AA foi condenado:
- Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art.º 191.º, do CP, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de €7,00, perfazendo um montante global de €210,00;
- A pagar aos demandantes BB e CC, a quantia de €1.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora.

I.2. Recurso da decisão
Inconformado, o arguido interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
A) Com o devido respeito, o tribunal a quo andou mal ao condenar o Recorrente pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art.º 191º do Código Penal, uma vez que, não considerou factos relevantes e que impunham a aplicação do instituto do direito de necessidade previsto no art.º 34º do Código Penal, impondo por esta via a absolvição do Recorrente.
B) Na sentença proferida, o tribunal a quo, não considerou provados factos que, com o devido respeito, são relevantes para a decisão a proferir e que foram por um lado relatados pelo Assistente/Demandante BB conforme o articulado em 10º desta peça que aqui se dá por inteiramente reproduzido e integrado, e por outro que estão visíveis nas imagens da videovigilância que os Ofendidos juntaram aos autos, ficheiro denominado “...”, tempo da gravação de 00:00:05 a 00:01:35.
C) O tribunal a quo deveria ter dado como provados os seguintes factos;
-A filha mais velha do Recorrente/Arguido e neta dos Ofendidos estava com febre no dia 29.12.2022, o que vinha a acontecer desde há alguns dias antes;
-O Recorrente/Arguido tentou contactar a mãe das suas filhas, através do número de telefonemas e mensagens, para saber do estado de saúde da filha mais velha, não tendo tido sucesso, uma vez que, a progenitora não atendeu as chamadas telefónicas e nem respondeu às mensagens “SMS”;
-No dia 29.12.2022, antes de deslocar-se a casa dos avós maternos e Ofendidos, o Recorrente/Arguido deslocou-se ao posto da GNR da área da residência daquela casa dos Ofendidos e solicitou que o acompanhassem a casa dos avós maternos e
-Uma vez chegado a casa dos Ofendidos, o Recorrente tocou à campainha e aguardou, não tendo sido recebido/atendido por ninguém, tendo posteriormente aberto os 2 ferrolhos interiores do portão exterior da habitação. – Este facto corresponde à verdade e altera o vertido no facto n.º 3 que omite por completo o toque na campainha e que o recorrente tenha aguardado ser atendido.
D) Ao dar tais factos como provados como deveria ter dado, o tribunal a quo teria aplicado o instituto legal do direito de necessidade, previsto no artigo 34º do Código Penal, uma vez que, os requisitos encontram-se preenchidos, pois no que respeita à alínea a), a situação da filha estar com febre há vários dias, somada ao facto de ser ignorado nas tentativas de contacto e inclusive ser ignorado quando tocou à campainha da casa dos Ofendidos, não foi voluntariamente criada pelo Recorrente; quanto à alínea b), a saúde e o bem estar da criança e o direito à informação que o pai tem sobre o estado de saúde da sua filha, que por sua vez também influi no seu bem estar e saúde, são interesses bem superiores ao interesse material previsto no artigo 191º do Código Penal e por fim quanto à alínea c), entrar no quintal/jardim, sem qualquer dano material, é um sacrifício imposto ao lesado inferior ao sacrifício que um pai tem ao não ter notícias de uma filha criança que está doente.
E) Pelo que, perante a falta de resposta às tentativas de contacto do recorrente para com a sua ex-mulher com vista à obtenção de informação sobre o estado de saúde sobre o estado de saúde da sua filha menor de 6 anos de idade, que sabia estar com febre à vários dias, não é ilícito o facto praticado pelo Recorrente de entrar no jardim da casa dos avós maternos das suas filhas, para tentar obter informações, perante a falta de resposta e o ignorar no toque da campainha, sabendo que a criança e os avós e mais pessoas estavam dentro de casa.
F) Isto posto, perante a falta de resposta às tentativas de contacto do Recorrente para com a sua ex-mulher com vista à obtenção de informação sobre o estado de saúde sobre o estado de saúde da sua filha menor de 6 anos de idade, que sabia estar com febre à vários dias, não é ilícito o facto praticado pelo Recorrente de entrar no jardim da casa dos avós maternos das suas filhas, para tentar obter informações, perante a falta de resposta e o ignorar no toque da campainha, sabendo que a criança e os avós e mais pessoas estavam dentro de casa.
G) Deste modo, deverá o Recorrente ser absolvido do crime de introdução em lugar vedado ao público, por ter atuado sob o direito de necessidade que lhe assiste, perante o quadro fáctico supra exposto.
H) Nestes termos, e nos melhores de direito, que V/ Exas. doutamente decidirão, deverá a douta sentença ser revogada, sendo substituída por Douto Acórdão que acolha o modesto entendimento, assim se fazendo a habituada JUSTIÇA.

I.3. Respostas ao recurso
O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, em termos sintetizados nestas conclusões (transcrição):
1 - A douta Sentença proferida decidiu correctamente a matéria aí controvertida e sob concreta apreciação, não se mostrando violada qualquer norma legal, substantiva ou adjectiva, que imponha, tal como pugna o recorrente, a sua alteração ou revogação.
2 - Pode discordar-se da fundamentação aí sustentada, mas o facto é que a Douta Sentença recorrida, é clara, sintetizando as razões de facto e de direito pelas quais o Tribunal “a quo” entendeu, (na nossa perspectiva bem), que os factos enquadravam a prática do crime de introdução em lugar vedado do público, p. e p. pelo art.º191º, do Código Penal.
3 - Pese embora toda a argumentação sustentada pelo arguido/recorrente, a conduta pela qual o mesmo foi responsabilizado é censurável, pelo que não se concorda com o arguido quando refere que terá que se considerar provada a existência de uma causa de exclusão de ilicitude de tais factos, visto aquele ter actuado no legítimo direito de necessidade que lhe assistia, nunca podendo como tal o arguido ser condenado, impondo-se a correção da decisão, nos termos dos artigos 34.º do Código Penal, absolvendo-se o arguido da prática dos factos que lhe são imputados, não evolando da sobredita decisão qualquer erro, fazendo de forma clara e inequívoca uma correcta e equilibrada interpretação dos comandos normativos em vigor, assim chegando à solução ponderada e conforme ao Direito.
4 - Sendo certo ainda que o arguido/recorrente não menciona ou descrimina os concretos factos que considera erradamente dados como provados, nem menciona qual a prova concreta conducente a uma conclusão diversa;
5 - Não explicitando em que é que os mesmos estão errados, ou em que medida é que a conclusão deveria ser diferente, tendo em conta a prova produzida em sede de audiência;
6 - E igualmente não indica as normas jurídicas violadas na douta sentença, nem sequer indica os factos concretos que deveriam ser objecto de reapreciação, para se poder concluir de forma diferente, por forma a conduzir à absolvição do Recorrente;
7 - Pelo que, negando provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmando a sentença recorrida farão Vossas Excelências, como sempre, Justiça!

O assistente/demandantes BB e mulher CC contra-alegaram com estas conclusões (transcrição):
a) Ora, salvo o devido respeito, relativamente a tais factos, não entende o Recorrido, com que dúvidas poderá ter ficado o Recorrente, após análise detalhada da douta sentença, na secção referente à fundamentação da decisão da matéria de facto. Pois que:
b) No dia 29.12.2022, cerca das 11:50m, o arguido dirige-se à habitação dos ofendidos sita na Rua ..., ..., ..., concelho de Águeda. Uma vez aí chegado, o arguido abriu os dois ferrolhos interiores do portão exterior da habitação. De seguida, entrou no pátio da referida habitação, circulou no interior do mesmo, dirigiu-se à porta de entrada da habitação onde desferiu murros de modo insistente e aos gritos para que os ofendidos abrissem a porta que dava acesso ao espaço interior da habitação, bem como desferiu murros nos vidros das portas de sacada exteriores da sala de estar. Perante isto, o ofendido saiu do interior da habitação e dirigiu-se ao pátio da habitação, onde disse repetidamente ao arguido para sair do local, dado que não tinha autorização para ali permanecer. Todavia, o arguido permaneceu no local, contra a vontade e sem autorização dos donos, não obstante ter sido interpelado várias vezes para sair, ao mesmo tempo que iniciou uma discussão relacionada com as visitas parentais às suas filhas. Tal situação apenas veio a cessar, quando os ofendidos chamaram a GNR, que se deslocou ao local.
c) Ora, pela análise de tais factos, não se vislumbra, onde poderá ter aplicação o invocado instituto do estado de necessidade, que o arguido/recorrente alega.
d) Aliás, nunca tal foi referido pelo arguido/recorrente nem em sede de contestação, nem em sede de audiência de discussão de julgamento, apenas agora em sede de recurso, invoca tal instituto jurídico.
e) O que em nosso entender, é totalmente descabido e não tem aplicação ao caso concreto.
f) Atendendo inclusivamente a que, a filha do ex-casal, estava no período de férias escolares correspondente ao período de estadia com a mãe e estar constipado e com febre, em período de Inverno é totalmente normal.
g) Assim, bem esteve o Tribunal a quo, ao proferir a douta sentença que consta dos autos.
h) Sendo certo que, o recorrente não menciona ou descrimina os concretos factos que considera erradamente dados como provados, nem menciona qual a prova concreta, que conduziria a uma conclusão diversa…
i) Não explicitando em que é que os mesmos estão errados, ou em que medida é que a conclusão deveria ser diferente, tendo em conta a prova produzida em sede de audiência.
j) Igualmente no recurso ora apresentado, o Recorrente não indica as normas jurídicas violadas na douta sentença, nem sequer indica os factos concretos que deveriam ser objecto de reapreciação, para se poder concluir de forma diferente…por forma a conduzir à absolvição do Recorrente.
k) Assim, pelo exposto, e pela fragrante falta de fundamentação apresentada pela Recorrente, outra conclusão não pode ser retirada que não seja a improcedência do recurso apresentado.
l) Sendo certo que, a douta sentença encontra-se bem fundamentada e foi baseada na diversa prova testemunhal com conhecimento directo e presencial dos factos.
m) Fazendo assim, uma correcta interpretação dos factos e do direito aplicável, não violando qualquer dispositivo normativo-legal e devendo portanto a mesma ser mantida e confirmada, por estar conforme a Lei e o Direito.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve julgar-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a douta sentença proferida a fls., assim se fazendo, justiça.

I.4. Parecer do ministério público
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416.°, do CPP, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta aderiu às respostas ao recurso apresentadas na primeira instância pelo Ministério Público e pelos assistentes, tendo pugnado, igualmente, pela improcedência do recurso.

I.5. Resposta ao parecer
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.

I.6. Foram colhidos os Vistos e realizada a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Delimitação do objeto do recurso
O recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, que estabelecem os limites da cognição do tribunal superior, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, como os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP (cf. art.ºs 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, ambos do CPP).
Passamos a delimitar o thema decidendum:
- No âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, o aditamento de factualidade, dada a sua alegada essencialidade à boa decisão da causa.
- Em caso de procedência da primeira questão, da verificação da figura do “direito de necessidade”, previsto no art.º 34.º, do CP.

II.2. Decisão Recorrida
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição parcial, na medida do necessário para o conhecimento do objeto do recurso):
Factos provados:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da mesma:
1. O arguido AA tem duas filhas, DD e EE, as quais são netas dos ofendidos BB e CC.
2. Nesse contexto, no dia 29.12.2022, cerca das 11h50m, o arguido dirigiu-se à habitação dos ofendidos sita na Rua ..., ..., ..., concelho de Águeda.
3. Uma vez aí chegado, o arguido abriu os dois ferrolhos interiores do portão exterior da habitação.
4. De seguida, o arguido entrou no pátio da referida habitação, circulou no interior do mesmo, dirigiu-se à porta de entrada da habitação onde desferiu murros de modo insistente e dirigiu-se aos gritos para que os ofendidos abrissem a porta que dava acesso ao interior da habitação, bem como desferiu murros nos vidros das portas de sacada exteriores da sala de estar.
5. Perante isso, o ofendido saiu do interior da habitação e dirigiu-se ao pátio da habitação, onde disse repetidamente ao arguido para sair do local, dado que não tinha autorização para ali permanecer.
6. Todavia, o arguido permaneceu no local, contra a vontade e sem autorização dos donos, não obstante ter sido interpelado várias vezes para sair, ao mesmo tempo que iniciou uma discussão relacionada com as visitas parentais às suas filhas.
7. Tal situação apenas veio a cessar, quando o ofendido chamou a GNR que se deslocou ao local.
8. O arguido quis entrar no pátio e jardim daquela habitação, bem sabendo que não estava autorizado pelos donos.
9. O arguido quis permanecer no pátio e jardim daquela habitação, mesmo depois de interpelado para abandonar o local, bem sabendo que não estava autorizado pelos donos.
10. Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
11. O arguido confessou os factos.
12. O arguido aufere €850,00 de salário.
13. Vive sozinho.
14. O arguido é sócio-gerente de uma empresa do ramo imobiliário, pagando esta a renda da sua habitação, no valor de €600,00 e disponibilizando-lhe veículo automóvel.
15. Por referência ao ano de 2020/2021, em Agosto de 2024 a empresa do arguido procedeu à distribuição de lucro no valor de € 8.000,00.
16. O arguido paga €115,00 a cada uma das filhas, a título de pensão de alimentos e contribui para as despesas médicas e extracurriculares, gastando por mês, em média, €100,00/120,00.
17. É licenciado em Direito.
18. O arguido não tem antecedentes criminais.
19. O assistente é licenciado em Engenharia Mecânica.
20. Trabalha por conta de outrem, auferindo o salário mensal de €1.700,00.
21. Vive com a esposa, em casa própria, que se encontra paga.
22. A esposa é licenciada em Ciências da Educação, auferindo o salário mensal de €2.000,00.
23. O casal aufere uma renda mensal de €400,00.
24. Com a atuação do arguido, o assistente e a demandante ficaram muito perturbados, nervosos e incomodados, tanto mais que tinham a família toda reunida na Quadra Natalícia.

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Foram estes os factos provados, mais nenhum outro se provou com interesse para a decisão da causa.
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Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados, ou contém expressões conclusivas ou de direito, ou são irrelevantes para a decisão da causa.
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Motivação da matéria de facto:
A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se, desde logo, na confissão integral e sem reservas do arguido e nas suas declarações quanto às condições pessoais, profissionais, familiares e económicas.
Valoradas ainda as certidões de assento de nascimento juntas em 26.03.2024 e o certificado de registo criminal junto em 19.12.2024.
No que concerne ao estado em que o assistente e a demandante ficaram, ao sentimento de abalo e todo o incómodo causado por este comportamento do arguido, foram valorados os depoimentos dos próprios que descreveram que se encontravam em sua casa, reunidos com toda a família (a filha e as netas, que haviam chegado no dia 25 de Dezembro para o almoço de Natal e o filho que se encontra emigrado na Suécia e que estava também de férias, juntamente com a sua companheira), num ambiente descontraído (as meninas ainda de pijama), sereno e sem qualquer factor de perturbação. Que a presença do arguido naqueles moldes (sem ter sido convidado, aos gritos e a desferir murros nos vidros, a exigir ver as filhas, fora do período convencionado para tal) foi um factor altamente perturbador e destabilizador, que a todos incomodou, tanto mais que os demandantes, que ali estavam na qualidade de pais e avós das demais pessoas (os dois filhos, a companheira do filho e as netas) eram não só os donos da casa como também os responsáveis pelo bem-estar e tranquilidade da família. Os seus depoimentos foram confirmados pela testemunha FF, filho dos demandantes, que estava presente e que descreveu a perturbação que os pais sentiram com toda esta situação e que foi transversal a toda a família ali presente e que, por isso, adensou ainda mais o sentimento de nervosismo e de intranquilidade que os pais sentiram porque se preocupam/aram com o bem-estar de toda a família. O seu depoimento, ainda que filho dos demandantes foi positivamente valorado pelo Tribunal porquanto se mostrou e espontâneo, sério, circunstanciado e não efabulado.
As condições económicas dos demandantes resultaram das declarações de cada um, nada havendo nos autos que as infirme.

II.3. Análise dos fundamentos do recurso
§1. Apesar de o recorrente não invocar qualquer vício formal da sentença ou de procedimento, nem sequer enquadrar a questão sob o prisma jurídico-processual, das conclusões do recurso e da respetiva motivação resulta inequívoca a sua pretensão de ver reapreciada a prova produzida, com vista ao aditamento aos factos provados da seguinte materialidade:
-A filha mais velha do Recorrente/Arguido e neta dos Ofendidos estava com febre no dia 29.12.2022, o que vinha a acontecer desde há alguns dias antes;
-O Recorrente/Arguido tentou contactar a mãe das suas filhas, através do número de telefonemas e mensagens, para saber do estado de saúde da filha mais velha, não tendo tido sucesso, uma vez que, a progenitora não atendeu as chamadas telefónicas e nem respondeu às mensagens “SMS”;
-No dia 29.12.2022, antes de deslocar-se a casa dos avós maternos e Ofendidos, o Recorrente/Arguido deslocou-se ao posto da GNR da área da residência daquela casa dos Ofendidos e solicitou que o acompanhassem a casa dos avós maternos e
-Uma vez chegado a casa dos Ofendidos, o Recorrente tocou à campainha e aguardou, não tendo sido recebido/atendido por ninguém, tendo posteriormente aberto os 2 ferrolhos interiores do portão exterior da habitação.
Defende que estes factos resultam, desde logo, do depoimento do assistente BB, cujos excertos transcreve, bem como do “filme 29 de 2022”, junto aos autos pelos ofendidos.
Acrescenta que os mesmos preenchem os pressupostos do direito de necessidade previsto no art.º 34.º, do CP, razão pela qual deve ser absolvido.
§2. Vejamos.
A "impugnação ampla" da matéria de facto permite reavaliar a razoabilidade da convicção do julgador relativamente aos factos impugnados, com base nas provas que, na visão do recorrente, conduziriam a uma decisão distinta.
Contudo, essa impugnação está sujeita a forte regulamentação e deve ser exercida com parcimónia.
Desde logo, exige-se o cumprimento dos chamados três “ónus de especificação”, previstos no art.º 412.º, n.º 3 e 4, do CPP.
Estes impõem que o recorrente especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com referência precisa às passagens da gravação que fundamentam a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º, do CPP); e
c) As provas que devem ser renovadas. (…).
Relativamente à pretensão de aditar factos à matéria de facto provada no âmbito de impugnação ampla, nos termos do art.º 412.º, do CPP, o recurso apenas pode incidir sobre os factos que foram efetivamente apreciados pelo tribunal de primeira instância, sejam estes considerados provados ou não provados. Não é permitido aditar novos factos que, embora a recorrente entenda resultarem da discussão da causa, não constem da lista dos factos provados ou não provados na sentença.
Em termos simples, o tribunal de recurso não pode acrescentar novos factos ao processo no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, uma vez que esses factos não foram considerados na fundamentação da decisão recorrida. A competência da Relação limita-se a rever o resultado da apreciação crítica da prova produzida na primeira instância, podendo eventualmente considerar provados factos que antes não o foram, ou vice-versa.
Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 21.03.2012, proferido no processo n.º 130/10.0JAFAR.F1.S1 (disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao /130-2012-89840575):
VII - No que respeita à impugnação da matéria de facto ante a Relação, nos termos dos arts. 427.° e 428.º do CPP, não dispensa o recorrente, além do mais, do ónus de enumeração especificada, ou seja, um a um, dos factos reputados incorrectamente julgados, dentre os elencados como provados ou não provados, quer provenientes da acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa, por força do art. 412.°, n.º 3, al. a), do CPP.
VIII - Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida”, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjectiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.
Chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade desta interpretação, o TC, no acórdão 312/2012, decidiu:
“Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida”.
§3. Isso não significa que o recorrente estivesse impedido de reagir por outros meios legais, como a arguição de nulidade (art.º 379.º, n.º 1, do CPP) ou de o erro-vício (art.º 410.º, n.º 2, do CPP) da sentença. Porém, não invocou tais fundamentos, limitando-se à impugnação, por defeito, da materialidade provada, com reapreciação da prova produzida. Importa ainda notar que o dever do tribunal da Relação de apreciar oficiosamente as nulidades e erros-vício da sentença restringe-se aos que efetivamente existam, o que não se nos evidencia.
Ademais, a versão agora trazida aos autos pelo arguido não foi, sequer, alegada na contestação (onde apenas se limitou a oferecer o mérito dos autos), não podendo, por isso, ser considerada como proveniente da defesa ou complemento da acusação.
§4. Deve, ainda, sublinhar-se constar expressamente da fundamentação da sentença que o arguido confessou os factos provados de forma integral e sem reservas, o que o próprio não contestou no recurso. Assim, não faz sentido que o mesmo venha agora impugnar a matéria de facto, pretendendo o aditamento de matéria que, na sua interpretação jurídica, excluiria a ilicitude da sua atuação.
§5. Para encerrar a questão, ainda que os factos invocados pelo recorrente fossem atendidos, não preencheriam os pressupostos do “direito de necessidade” justificante previsto no art.º 34.º, do CP.
Dispõe este preceito que:
Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.
Este instituto exclui a ilicitude de uma conduta apenas quando esteja em causa a salvaguarda de um interesse sensivelmente superior ao sacrificado. Tal significa que uma conduta criminal só deixará de ser ilícita quando o agente agir para salvaguardar um bem jurídico ou um interesse manifestamente mais valioso do que aquele que é lesado. Esta avaliação deve ser feita em concreto, ponderando-se globalmente os interesses em conflito, embora a análise abstrata de interesses possa/deva servir de ponto de partida.
No caso, em termos abstratos, de um lado está a proteção da esfera de liberdade do proprietário/possuidor em manter terceiros afastados do seu espaço, numa perspetiva de autonomia da vontade e de privacidade, bem jurídico tutelado pelo crime de introdução de espaço vedado ao público (no caso, o logradouro da habitação dos ofendidos), aqui sacrificado pela atuação do agente. Do outro lado, surge a alegada salvaguarda de um direito do recorrente a ser informado sobre a evolução do estado de saúde da filha. Este direito, embora natural e importante para qualquer progenitor, não se encontra tutelado pela lei penal, na medida em que a sua violação não integra qualquer ilícito criminal, estando antes previsto e protegido pelo direito da família, enquanto direito geral de informação enunciado no art.º 1906.º, n.º 7, do CC.
Em concreto, o arguido alegou que pretendia saber do estado da filha de 6 anos, febril há 4 dias. Como a mãe da filha não lhe prestou essa informação, procurou obtê-la de outra forma. Depois de tocar à campainha sem sucesso, sem autorização, abriu e entrou pelo portão exterior da habitação dos avós maternos da criança, desferiu murros nos vidros das portas da sala de estar e, mesmo interpelado, recusou-se a sair.
Não se pode considerar que o direito a essa informação constitua, por si só – quer em abstrato, quer em concreto – um interesse sensivelmente superior ao de propriedade/posse/autonomia e privacidade dos ofendidos. Uma febre numa criança pequena, no pico do inverno, ainda que preocupante para o recorrente, não justifica a invasão e inviolabilidade de um espaço privado, nem o sacrifício do sossego familiar de terceiros alheios que, além do mais, nem têm qualquer dever legal de prestar informações sobre a saúde da neta.
Acresce que o meio utilizado também não se mostrava adequado, porquanto a invasão de um espaço vedado não obriga ninguém a falar sobre o que não quer, logo não lhe traria – como aparentemente não lhe trouxe ̶ resposta sobre a evolução da saúde da filha.
Assim, mesmo que fossem considerados, os factos que o recorrente pretende aditar não seriam relevantes para afastar a ilicitude da sua confessada conduta, nem eliminariam a sua responsabilidade criminal.
Termos em que se julga o recurso improcedente.

III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s (art.ºs 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do RCP, com referência à tabela III anexa).
Notifique e D.N.

Porto, 15/10/2025
Madalena Caldeira
Lígia Trovão
Paulo Costa