DEMANDANTE CIVIL
RECURSO PENAL
ILEGITIMIDADE
CASO JULGADO
PARTE CIVIL
ALÇADA
LEGITIMIDADE
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
DECISÃO
ABRANGÊNCIA
CONSEQUÊNCIAS
Sumário

I – Carecem de legitimidade para recorrer da parte penal da sentença a ofendida e demandante cível, não constituída assistente, sendo, por isso, de rejeitar nessa parte o recurso interposto.
II – A demandante cível que decaiu na totalidade em ação civil, em processo penal, de valor superior à alçada do Tribunal recorrido, tem legitimidade para impugnar a matéria de facto, por apesar de os factos deduzidos na acusação e do respetivo pedido de indemnização civil, serem coincidentes no que se refere à caraterização do ato ilícito criminal, os factos civis daquela ganham autonomia, por a pendência do processo crime, não constituir uma questão prejudicial nem a ação civil um efeito da sentença penal.
III – O lesado na definição do artigo 74º, nº 1, C.P.P. é quem poderá ou não estar nas condições para se constituir assistente, (cf. artigo 68º C.P.P.) que poderá ter sofrido danos, com a prática do crime, razão para não lhe ser diminuída a possibilidade, por não ser assistente, de fazer valer a sua pretensão de condenação do requerido civil em indemnizá-lo, pelos prejuízos sofridos com a prática do crime.
IV – É garantido ao demandante, pelo nº 2, do artigo 74º, C.P.P. os direitos que a lei confere ao assistente para sustentação e prova do pedido civil, fundado na prática de uma infração criminal, isto é, o direito de sustentar e provar o pedido civil que abrange, os factos descritos na acusação, o crime, (causa de pedir) desde que o requerente os tenha alegado, autonomamente ou por remissão para a acusação, os danos e o prejuízo dele decorrentes, não apenas perante a 1ª instância como ainda perante o tribunal de recurso, caso admissível.
V – Assim, ainda que a sentença tenha transitado em julgado, no que tange à parte criminal, e onde se concluiu pela absolvição do arguido, tal não constitui impedimento para a demandante civil discutir perante o tribunal de recurso os factos não provados objeto dos autos, - os quais são em simultâneo os que preenchem a infração penal (e que, assim, integram a acusação pública deduzida) e que constituem a causa de pedir do pedido civil impetrado, - pois apenas impede a retirada de consequências em sede penal de uma eventual procedência da parte civil.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo nº 452/23.0KRMTS.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto; Juízo Local Criminal de Santo Tirso, Juiz 1
Recorrente: AA.
Referência documento citius nº 469593299

Acordam, em conferência, os juízes da 4ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto.

I - RELATÓRIO
1.No dia 7 de março de 2025, foi proferida sentença no Tribunal de 1ª instância, à margem identificado que terminou com o seguinte:
“V. DECISÃO
Face ao exposto, julga-se a acusação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, o decide Tribunal:
a) Absolver o arguido BB da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, al. a), do Código Penal, que lhe vinha imputado.
b) Julgar o pedido de indemnização civil totalmente improcedente, por não provado, absolvendo o demandado BB do pedido.
Sem custas na parte criminal, em face da absolvição do arguido.
Custas na parte cível a cargo da demandante, em face da total improcedência do pedido – cf. art. 523.º do C.P.P. e 527.º do C.P.P.

*
2. Inconformada com a absolvição do arguido a demandante interpôs recurso da decisão, concluindo a respetiva motivação com as seguintes
CONCLUSÕES
1. A Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida nos autos, sendo certo que, quanto à matéria de facto provada e não provada e à sua motivação, nas suas declarações, o Arguido alega que a sua relação romântica com a Recorrente persistiu para além do divórcio, que caracteriza como “uma farsa”, fazendo referência ao facto de apenas ter passado a dormir em quarto diferente da Recorrida devido ao seu alegado mau-hálito.
2. Não é, por isso, razoável que o Arguido, alegadamente ainda numa relação com a Recorrente e tão preocupado com ela que reconheceu ter contactado a sua família e a GNR, anunciando que a Recorrente sofria de Alzheimer e que tinha fugido de casa, tratasse com normalidade o facto de a Recorrente ter deixado a casa de morada de família - que lhe pertencia e pertence! - sem qualquer aviso, para prosseguir uma relação com outro homem, ainda por cima, tendo em conta que o próprio Arguido “assumiu ter sugerido voltarem a casar” e que a recusa da Recorrente “o entristeceu”, demonstrando um comportamento laissez-faire do Arguido, que não se coaduna com os seus alegados sentimentos de preocupação e carinho.
3. A solução de desligar o quadro elétrico também não é razoável para o alegado problema “de que a ofendida mantinha a luz do quarto onde dormia ligada”, sendo certo que, podia o Arguido, simplesmente, desligar essa luz, em vez de todo o quadro elétrico, ou falar com a Recorrente sobre essa situação, uma vez que, na versão dos factos do Arguido, não havia qualquer animosidade entre ambos e, por isso, nenhuma desculpa para não lidar com a situação como pessoas razoáveis.
4. A explicação do Arguido para a pendência destes autos, de “que é a forma que a ofendida encontrou de o obrigar a sair de casa, a qual disse ter construído depois do casamento, a suas expensas”, não faz qualquer sentido quando, conforme resulta da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, a casa de morada de família foi adjudicada à Recorrente aquando do divórcio, sendo esta a única proprietária da sua casa, à qual o Arguido não tem qualquer direito.
5. A Recorrente podia ter obrigado o Arguido a sair da habitação de múltiplas outras maneiras que não incluíssem ela própria ter de passar a residir numa A... e passar pelo escrutínio do presente processo crime, pelo que nos devemos perguntar o porquê de, em vez de seguir por qualquer outra via que lhe estava aberta, a Recorrente ter apresentado queixa contra o Arguido, que deu origem aos presentes autos, sendo a resposta simples: a Recorrente tinha medo do Arguido.
6. Não obstante a casa ser sua exclusiva propriedade, certo e que a Recorrente nunca equacionou forçar o Arguido a sair, falando apenas da impossibilidade de ela própria abandonar a casa, por falta de recursos financeiros e por exercer a sua atividade profissional de cabeleireira no imóvel, sendo certo que o próprio Tribunal a quo refere que “não é minimamente credível que, durante mais de 10 anos, a ofendida se tenha visto na contingência de residir com o arguido contra a sua vontade, sujeita ao comportamento degradante ou ao amesquinhamento que subjaz ao libelo acusatório.”, afirmação com a qual não podemos concordar.
7. Pois é exatamente isso que, vez após vez, acontece em situações de violência doméstica, nas quais, independentemente da existência de soluções objetivas para a sua situação, as vítimas, subjetivamente, não vêm saída, tendo medo daquilo que a alteração do status quo poderá causar, nomeadamente, perigo para o seu bem estar físico e psicológico, sendo certo que muitas delas vêm os seus medos confirmados, pois é quando a vítima decide alterar as suas circunstâncias que corre mais perigo, ocorrendo uma escalada de violência.
8. Conforme referido pelo Tribunal a quo refere, o discurso da Recorrente foi “confuso” - consequência lógica da violência que viveu, conforme resulta do relatório da APAV, junto aos autos - contudo, não se pode aceitar que tenha sido pouco circunstanciado e que não tenha clarificado as dúvidas quanto à dinâmica relacional posterior ao divórcio, sendo certo que, as declarações do próprio Arguido estão pejadas de inconsistências e contradições lógicas, discordando-se veementemente da apreciação feita pelo Tribunal a quo à prova produzida, nomeadamente das declarações do Arguido e do depoimento da Recorrente.
9. No que concerne à alínea b) e i) dos factos não provados, atentemos aos momentos [00:11:29 a 00:12:32], [00:12:53 a 00:13:23], [00:14:39 a 00:20:00], [00:21:09 a 00:23:05], [00:23:47 a 00:23:52], [00:24:11 a 00:26:41], [00:31:00 a 00:31:33], [00:31:54 a 00:33:44] e [entre 00:53:06 e 00:53:54] do depoimento da Recorrente (Registo Sonoro da Sessão de 24/02/2025 – Ficheiro “Diligencia_452-23.0KRMTS_2025-02-24_10-20-47.mp3” - AA - Início: 10:20 - Fim: 11:38 - Duração: 01:17:39), dos quais resulta claro que a Recorrente se encontrava nervosa e com medo, o que é também notório da sua voz chorosa, explicando aquilo que o Tribunal a quo caracteriza como “discurso confuso”.
10. A Recorrente é peremptória quando refere que, após o casamento, na sequência de a casa de morada de família ter sido adjudicada à Recorrente, pretendendo o Arguido que a casa fosse vendida, na clara perspetiva de se apoderar de, pelo menos, parte do produto dessa venda, o Arguido passou a ter problemas de comportamento, que se caracterizam por um aumento da sua agressividade, tanto por palavras como fisicamente, tendo a Recorrente descrito uma agressão física que ocorreu cerca de dez anos após de terem divorciado, na sequência de o Arguido ter presenciado a Recorrente a dançar com outro homem, o que é consistente com o facto de aquele regularmente a apelidar de “puta”, acusando-a de só pensar em homens e em sexo, sendo certo que, enquanto a agredia fisicamente, o Arguido chamou a Recorrente de “puta”, dizendo-lhe que se agarrava a qualquer um.
11. A Recorrente esclarece que, depois do divórcio e de modo reiterado, o Arguido a controlava, seguindo-a para onde fosse, de modo a vigiá-la, chegando ao ponto de a impedir de ter óculos de sol, de modo a garantir que a Recorrente não olhava para outros homens, acusando-a de manter uma relações com outros, de só gostar de sexo, de “olhar para qualquer um” e “fazer-se” a outros homens, dizendo-lhe para ir para a via norte, expressão comummente utilizada para, de modo enviesado, qualificar uma mulher como prostituta, e apelidando a Recorrente de “saloia”.
12. Com as recusas da Recorrente de vender a casa, surgiram também as ameaças da parte do Arguido - que a Recorrente situa no tempo como começando três anos antes de se refugiar na A... - igualmente de modo enviesado, que, em vez de explicitamente dizer à Recorrente que a mataria, referia que “alguma coisa” lhe iria acontecer, que “alguém” lhe faria mal, sendo clara a intenção e significado de tais expressões, caracterizando esse período como um inferno.
13. Devia, por isso, ter sido dado como provado o facto da alínea b), eliminando-se do mesmo apenas a menção de que o Arguido apelidou a Recorrente de mentirosa e que disse que “é um fedor que não se pode estar ao pé de ti”, acrescentando a agressão física que a Recorrente descreveu no seu depoimento, resultando: Desde o divórcio e no interior da residência de ambos, durante as discussões que mantêm o arguido afirma, com foros de seriedade, que irá matar a vítima, apelidando-a ainda de: “Saloia, só pensas em sexo, só pensas em homens”, tendo, ainda, numa ocasião, após presenciar a ofendida a dançar com outro homem, agarrado nela pelos cabelas e pela roupa, encostando-a à parede e dando-lhe estalos na cara.
14. Devia, igualmente, ter sido dado como provado o facto da alínea i), eliminando-se, contudo, a menção à inquirição de 02/10/2023, ao facto de o Arguido apelidar a Recorrente de “vaca” e à condição para a matar de ter de sair de casa, resultando: Após o divórcio, o arguido começou a apelidar a vítima de “puta”, no interior da residência do casal, dizendo ainda que esta andava com vários homens afirmando ainda que a mataria, nem que tivesse de contratar alguém para o efeito.
15. No que concerne às alíneas j) e k) dos factos não provados, atentemos aos momentos [00:34:08 a 00:34:59], [00:35:34 a 00:36:09], [00:54:05 a 00:55:33] e [00:56:03 a 00:58:38] do depoimento da Recorrente (Sessão de 24/02/2025 - Ficheiro “Diligencia_452-23.0KRMTS_2025-02-24_10-20-47.mp3” – AA - Início: 10:20 - Fim: 11:38 - Duração: 01:17:39), dos quais resulta que, após se ter recusado, perante a agente imobiliária escolhida pelo Arguido, a vender a casa, este, em vez de lhe fazer as típicas ameaças oblíquas de que “alguém” lhe faria mal, ameaçou explicitamente a Recorrente de que pegaria fogo à casa, com esta lá dentro, com o auxílio de uma botija de gás, o que repetiu noutras ocasiões, causando um medo intenso na Recorrente, que considerava o Arguido capaz de o fazer.
16. O estado de terror em que a Recorrente vivia, bem como o seu estado de saúde fragilizado, levou a que, quando viu as suas roupas espalhadas pela casa, temendo uma tentativa contra a sua vida, se trancasse no quarto durante toda a noite, usando um balde para as suas necessidades, reação esta que, não obstante, à primeira vista, parecer exagerada ou ilógica, é o culminar de anos de terror, numa fase da sua vida que a Recorrente qualifica de “inferno”, sendo certo que não agiu de modo calmo e racional, mas instintivo, refugiando-se no seu quarto, o seu local seguro, o único que tinha, onde se manteve trancada toda a noite, até à chegada da GNR na manhã seguinte, o que ilustra o estado mental da Recorrente nos meses antes de abandonar a sua casa, sendo patente o terror em que vivia e o medo que sentia do Arguido.
17. Devia, por isso, ter sido dado como provado o facto da alínea j), acrescentando-se que a ameaça ocorreu após a Recorrente se ter recusado a vender a casa e esclarecendo-se que se tratava de uma botija de gás e não um garrafão de gasolina, e que o Arguido pretendia pegar fogo à casa com a Recorrente dentro da mesma, resultando: A dada altura, não apurada em concreto, mas após a ofendida se ter recusado a vender a casa, o arguido afirmou que iria comprar uma botija de gás e pegar fogo à casa, com a ofendida dentro dela.
18. Devia, também, ter sido dado como provado o facto da alínea k), esclarecendo-se que a Recorrente se trancou apenas numa situação: Em data não concretamente apurada, mas após o circunstancialismo de j), a ofendida, chegando a casa e vendo a sua roupa espalhada e bens remexidos, temendo que o arguido a magoasse, trancou-se no quarto toda a noite, usando um balde para fazer as suas necessidades.
19. No que concerne à alínea g) dos factos não provados, atentemos aos momentos [00:36:23 a 00:38:42] e [00:40:46 a 00:41:43] do depoimento da Recorrente (Sessão de 24/02/2025 - Ficheiro “Diligencia_452-23.0KRMTS_2025-02-24_10-20-47.mp3” - AA -Início: 10:20 - Fim: 11:38 - Duração: 01:17:39), dos quais resulta que a Recorrente saiu de casa na sequência do isolamento e tristeza que sentia, caracterizando a sua vida, nessa altura, como “uma merda”, ponderando pôr fim à mesma.
20. As circunstâncias do desespero da Recorrente, que não via saída da sua situação, sentindo-se mal e massacrada, foram causadas pelo Arguido, que controlava a Recorrente, a insultava e ameaçava, sendo certo que, sair de casa com outra pessoa foi a solução que encontrou para se afastar do Arguido e tentar mudar a sua vida. sendo a Recorrente explícita quando refere que pretendia fugir do Arguido, que a rebaixava com os seus insultos e de quem tinha medo, pelo que, deviam, assim, ter sido dados como provados os factos da alínea g).
21. No que concerne à alínea h) dos factos não provados, atentemos ao momento [00:43:01 a 00:46:19] do depoimento da Recorrente (Sessão de 24/02/2025 - Ficheiro “Diligencia_452-23.0KRMTS_2025-02-24_10-20-47.mp3” - AA - Início: 10:20 - Fim: 11:38 - Duração: 01:17:39), no qual a Recorrente é é clara quando refere que, após voltar a casa, o comportamento do Arguido piorou, continuando a persegui-la para onde quer que fosse, chegando ao ponto de vigiar a Recorrente enquanto trabalhava, para controlar aquilo que dizia às suas clientes.
22. A Recorrente começou também a ficar doente, perdendo dezassete quilos no total - perdendo doze só nos últimos dois meses antes de sair para a A... - doendo-lhe o corpo todo, perdendo parte da sua visão e sentindo a sua boca queimada, não tendo o médico da Recorrente sido capaz de a diagnosticar e não tendo a medicação surtido qualquer efeito, sendo certo que, a Recorrente só melhorou - quase milagrosamente, numa questão de dias – quando abandonou a casa que partilhava com o Arguido e foi viver para a A....
23. Devia, assim, ter sido dado como provado o facto da alínea h), removendo-se apenas a menção a que o Arguido acedeu ao conteúdo do telemóvel da Recorrente, resultando: Na sequência do descrito em 11, a frustração do arguido agravou-se, o que veio a aumentar o seu nível de controle sobre a ofendida, seguindo a vítima na rua, quando esta saía.
24. No que concerne às alíneas l), q), r), s), t), u), v), w) e x) dos factos não provados, atentemos aos momentos [00:49:34 a 00:52:42], [00:58:55 a 00:59:40], [01:00:39 a 01:01:11], [01:01:44 a 01:03:08], [01:03:19 a 01:04:18], [01:04:34 a 01:05:30] e [01:05:38 a 01:05:45], do depoimento da Recorrente (Sessão de 24/02/2025 - Ficheiro “Diligencia_452-23.0KRMTS_2025-02-24_10-40 20-47.mp3” - AA - Início: 10:20 - Fim: 11:38 - Duração: 01:17:39), dos quais resulta que, quando o Arguido teve conhecimento de que a Recorrente pretendia apresentar queixa contra ele, novamente a ameaçou, dizendo que, se dissesse algo contra ele, “já sabes o que acontece”.
25. Quer o Arguido tenha ou não contratado terceiro para vigiar a Recorrente e a intimidar, certo é que, o facto de a Recorrente acreditar que o Arguido o fez é revelador do seu estado mental e de tudo aquilo que sofreu às mãos do Arguido, da paranoia que as suas palavras causaram, que fizeram a Recorrente ver perigo a toda a sua volta, situação que o relatório de processo de apoio à vítima, elaborado pela APAV e junto aos autos com o pedido de indemnização civil, caracteriza como “pensamentos intrusivos relativamente à possibilidade de vir a ser morta”, e que levou a que a Recorrente, aterrorizada, nem sequer fosse capaz de contar à GNR os factos que, posteriormente, viria a contar.
26. O grave estado de saúde da Recorrente e o seu desespero levaram a que, eventualmente, reunisse coragem suficiente para pedir a uma amiga que a acompanhasse à GNR onde, finalmente, apresentou queixa do Arguido, tendo sido encaminhada para a A..., resultando do relatório de processo de apoio à vítima, junto aos autos com o pedido de indemnização civil, que a violência perpetrada contra a Recorrente teve, sobretudo, impacto a nível psicológico e ao nível da sua saúde física, encontrando-se, à data do acolhimento, muito fragilizada, tendo partilhado que, dada a melhoria súbita do seu grave estado de saúde, imediatamente após o acolhimento, suspeitava que pudesse estar a ser envenenada pelo Arguido, suspeita esta ilustrativa do contexto de intimidação, de escalada de violência e de clima de medo/terror em que a Recorrente vivia.
27. Do relatório da APAV são patentes os sentimentos de tristeza, angústia, medo, ansiedade e preocupação da Recorrente, que desestabilizaram o seu normal funcionamento e afetaram o seu quotidiano, sendo evidentes as dificuldade de atenção e de concentração, compatíveis com o descrito pela Recorrente ao longo do seu depoimento.
28. O relatório da APAV refere ainda que, após a estabilização da Recorrente e de se sentir em segurança na A..., foi possível identificar consequências da relação abusiva a vários níveis: sentimentos de revolta, angústia, tristeza e mágoa, não só pela violência, mas pela necessidade de ser acolhida e afastada da sua casa; vergonha, que evitou que partilhasse a sua história com amigos e família; culpa, por ter permitido que a sua vergonha a impedisse de confidenciar no filho, levando ao seu afastamento; impacto na sua autoestima e capacidade de ação, que a levaram a um estado de desânimo e descrença; alteração no padrão de sono, com dificuldades em adormecer e permanecer a dormir, assim como pesadelos frequentes; e prejuízo nas relações sociais/interpessoais, considerando que o Arguido prejudicou deliberadamente as relações interpessoais mantidas pela Recorrente, com o objetivo de denegrir a sua imagem e de a isolar, dificultando quaisquer possibilidades de obter apoio.
29. Até ao dia de hoje a Recorrente sente medo do Arguido, tendo sido necessário que este abandonasse a sala de audiência aquando o depoimento daquela, resultando do relatório da APAV que, a Recorrente sente ambivalência em relação à sua casa, devido ao medo que sente de que o Arguido concretize as suas ameaças, apresentando sinais como taquicardia, pensamentos intrusivos, agitação psicomotora, dificuldade em concentrar-se e em tomar decisões.
30. Todas estas consequências são notórias do depoimento da Recorrente, vitimizada aquando das agressões e novamente ao lidar com o rescaldo das mesmas e da sua queixa, sendo certo que, quando questionada se “a sua vida ficou completamente virada do avesso”, a Recorrente responde que ficou, acrescentando, desanimada, que “mais valia não dizer nada”, pois, para a Recorrente - assim como para muitas vítimas de violência doméstica – fazer queixa implica a sua retraumatização, da qual se retira o sentimento de injustiça da Recorrente, que, quando finalmente se desprendeu das suas amarras, teve de encarar a cruel verdade de que continua dentro de uma prisão.
31. A Recorrente, agora com 69 anos, carregará o peso das agressões, dos insultos, das ameaças do Arguido para o resto da sua vida, assim como o trauma de abandonar a sua casa, apenas com a roupa que trazia vestida, para se refugiar numa A..., sendo claro o impacto causado pelo comportamento do Arguido na Recorrente, tanto a nível físico como psicológico, que a forçou a ter de abandonar a sua casa, pelo que, deviam ter sido dados como provados os factos das alíneas l), q), r), s) e t).
32. No que concerne às alíneas m), n), o), p) e y) dos factos não provados, os mesmos resultam, necessariamente, dos demais factos, sendo claro, do seu comportamento, que o Arguido pretendeu amedrontar e ofender a integridade física da Recorrente e, dessa forma, não só importunar, atemorizar e inquieta-la, mas também afetar a sua liberdade de movimentos e de atuação, querendo subordiná-la, aproveitando-se da relação que outrora tiveram de cônjuges, atuando no interior da residência que partilhavam de modo a limitar as chances da Recorrente se defender, dada a ausência de testemunhas, agindo o Arguido livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal
33. Tendo em conta o depoimento da Recorrente na sua globalidade, bem como o relatório de processo de apoio à vítima, elaborado pela APAV e junto aos autos com o pedido de indemnização civil, certo é que devia o Tribunal a quo ter dado como provados todos os factos supra, considerando-se que não restarão dúvidas quanto aos mesmos, tendo, sim, sido demonstrada a ocorrência de episódios concretos de violência do Arguido contra a Recorrente.
34. Quanto à matéria de direito, o arguido vem acusado da prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 152º, nº 1 alínea a), nº 2, alínea a), nº 4, 5 e 6 do Código Penal, reiterando-se tudo o demais referido na douta sentença recorrida quanto ao bem jurídico protegido, ao grau de lesão do bem jurídico, à autoria, ao elemento objetivo do crime e ao elemento subjetivo do crime.
35. Resultando como provados os factos das alíneas b), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p) q), r), s), t), u), v), w), x) e y), nos termos descritos na secção relativa à matéria de facto, estamos perante condutas do Arguido com relevo jurídico-penal, encerrando-se nas mesmas a prática de factos subsumíveis ao crime que lhe vem imputado, sendo certo que, através do elemento de reiteração – descrito pela Recorrente ao longo do seu depoimento - é possível unificar as múltiplas condutas do Arguido, suscetíveis de integrar vários tipos legais de crime, no crime de violência doméstica.
36. Os factos dados como provados na douta sentença recorrida e que o Tribunal a quo considerou não se tratarem de comportamentos capazes de integrar o tipo legal de crime, quando contextualizados e tendo como referência o depoimento da Recorrente e o relatório de processo de apoio à vítima, facilmente adquirem uma nova conotação, em particular, o facto de o Arguido ter contactado a GNR e familiares da Recorrente, informando-os que esta fugira e que tinha Alzheimer, após a Recorrente explicitamente lhe pedir que a deixasse em paz, que constitui uma tentativa de a rebaixar e forçar a voltar a casa, tratando-se de um novo modo de denegrir a imagem da Recorrente junto de terceiros e de a isolar, sendo certo que, caso a sua família acreditasse que a Recorrente tinha Alzheimer, não levariam a sério aquilo por ela dito, nomeadamente quanto ao Arguido, dificultando as suas possibilidades de obter ajuda.
37. Dada a nova factualidade provada, dúvidas não há que o Arguido praticou o crime de violência doméstica de que vem acusado, devendo ser condenado pelo mesmo.
38. Quanto ao pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 483º do Código Civil, com a condenação do Arguido pelo crime de violência doméstica e à luz da matéria de facto provada, nos termos do presente recurso, certo é que se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil quanto ao Arguido, na medida em que se provou que praticou atos ilícitos suscetíveis de infligir danos na esfera jurídica da demandante.
39. Conforme resulta do pedido de indemnização civil, como linearmente se infere do relatório da APAV e de depoimento da Recorrente, a violência contra ela perpetrada teve forte impacto psicológico e ao nível da sua saúde física: aquando do acolhimento na A..., a Recorrente estava muito fragilizada, apresentando vários indicadores de sofrimento emocional, relatando o clima de medo/terror em que vivia, que a levou abandonar a sua casa.
40. Atualmente, mesmo após a estabilização física e psicológica, a Recorrente ainda ostenta notórios sentimentos de tristeza, de injustiça, de vergonha e de culpa; a sua autoestima e autoconfiança sofreram forte abalo abalo, em consequência da forma como a Arguido a tratava e do abandono a que a votava, fazendo-a sentir-se diminuída e desrespeitada; a Recorrente ainda sente dificuldades em adormecer e permanecer a dormir, tendo pesadelos recorrentes; deixou de interagir com as pessoas próximas, incluindo com o próprio filho; e o seu receio de que o Arguido possa cumprir as ameaças de morte continua bem presente, o que a deixa em constante estado de ansiedade.
41. Por tudo isto, deve o pedido de indemnização deduzido pela Recorrente ser julgado provado e procedente e o Arguido condenado a pagar à Recorrente indemnização equitativa.
Termos em que, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue o presente recurso provado e procedente e o Arguido condenado em conformidade, será feita JUSTIÇA
*
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
4. O Ministério Público, em 1º instância, apresentou resposta à motivação do recurso, concluindo pela sua improcedência.

5. O Ministério Público, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer, devidamente fundamentado, acompanhando a motivação apresentada em primeira instância.

6. Foi dado cumprimento ao nº 2, do artigo 417º, do C.P.P. vindo a recorrente a reiterar a o seu dissentimento, nada de novo assinalando.

7. Efetuado o exame preliminar, somos a constatar sobrevir questão que obsta ao conhecimento parcial do mérito do recurso, que não se conheceu liminarmente por se entender por pertinente ser de levar à conferência, até porque não era um caso de rejeição total do recurso, e uma vez que não foi requerida audiência e não sendo caso de renovação da prova, foram os autos aos vistos, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), do Código de Processo Penal].

8. Definição do âmbito do recurso.
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V). e a jurisprudência (como de forma uniforme têm decidido todos os tribunais superiores portugueses), nos acórdãos, entre muitos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1. S1.) são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o “thema decidendum” que foi colocado à apreciação do tribunal “ad quem”, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetizam as conclusões do recorrente .
- Da legitimidade da ofendida e demandante cível para interpor recurso penal.
- Do recurso da pretensão cível.
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8.1 Questão Prévia.
Da legitimidade para a ofendida e demandante cível para interpor o recurso penal.
Com a epígrafe Legitimidade e interesse em agir, prescreve o artigo 401º, nº 1, do Código de Processo Penal, (diploma a que pertencem doravante as normas sem, qualquer, menção) que tem legitimidade para recorrer (…) b) o arguido, o assistente, de decisões contra eles proferidas; c) as partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas; (…)
No nosso sistema de justiça, a pessoa que sofre um crime, verificados que sejam determinados requisitos, podem assumir (de forma simultânea ou separada) a figura de ofendido, assistente, lesado ou de vítima.
Prescreve o artigo 32º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa, que “pode o ofendido intervir no processo, nos termos da lei”, resultando, assim, que é a lei que define os casos e forma- termos - da intervenção do ofendido no processo.
O ofendido é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, (vide nº 1, do art.º 113º, do Código Penal, e art.º 68º, nº 1 a)).
Nos crimes particulares e semipúblicos, os ofendidos são os titulares dos direitos de queixa, são quem livremente os pode exercer ou fazer extinguir.
Será pela análise de cada incriminação, que se surpreende os bens jurídicos (interesses) ali protegidos ou tutelados, e os seus titulares, individualizando-se, assim, os ofendidos e entre estes aqueles que poderão vir a assumir o estatuto de assistentes, em processo penal, e que o artigo 68º, identifica.
A participação no processo do ofendido, tratando-se de pessoa singular, caso tenha sofrido um dano em consequência da prática do crime, é a de assumir a qualidade de vítima, nos termos do artigo 67-A passando a beneficiar das prerrogativas e direitos ali consagrados, bem como dos demais previstos na Lei n.º 130/2015, de 4.09, figurando como testemunhas ou meros participantes processuais, sem outros direitos de conformação e tramitação processual penal do processo, com vista ao seu desfecho final.
Por sua vez, os assistentes, em processo penal, são as pessoas e entidades a quem leis especiais conferiram esse direito (cf. art.º 68º, nº 1). Podem adquirir o estatuto de assistentes, para além dos ofendidos, com mais de 16 anos de idade, qualquer pessoa nos crimes indicadas no artigo 68.º, n.º 1, al. e), ou qualquer pessoa que represente os ofendidos (al. c) e d) do nº 1, artigo 68º), nos prazos estabelecidos na lei, assim resultando que, nem todas, as vítimas, poderem ser assistentes, (o que acontece em parte dos crimes de natureza pública).
As pessoas que venham a assumir a qualidade de assistente, têm um papel de colaborador do Ministério Público, (cf. artigo 69º ressalvadas as exceções previstas na lei) pois os seus interesses, no processo, apenas são atendíveis enquanto forem coincidentes com os daquele, para o melhor exercício da ação penal.
O assistente, intervém no processo de forma ativa, nos termos do artigo 69º, apesar de subordinada ao Ministério Público, (não está ao mesmo plano deste ou do arguido) aí se prevendo o direito ao recurso, no art.º 69º, nº 2 alínea c), ao contrário do ofendido e de forma diferente das partes civis /demandante cível, (na medida em que a intervenção destas últimas está limitada à sustentação e prova do pedido de indemnização cível).
O assistente, sendo ofendido, pode ser simultaneamente demandante cível/lesado.
A prática de uma infração criminal pode causar lesão de direitos civis (patrimoniais ou outros) de certas pessoas, os lesados.
Atenta a natureza, complexa, do facto gerador de ambas as responsabilidades, criminal e civil, -o crime- e ainda por razões de economia processual e de uniformização de julgados, o legislador optou que ambas as responsabilidades, ressalvados casos excecionados, fossem apuradas no mesmo processo.
A doutrina designa, no âmbito criminal, a interdependência entre a ação cível e a ação penal, como processo de adesão, da ação cível à ação penal, princípio que está inscrito de modo expresso, no artigo 71º, ao dispor que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”. Assim, decorre deste princípio, a imposição da obrigatoriedade de dedução do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, no processo penal respetivo, ressalvadas as exceções previstas na lei.
Porém, a adesão processual, não modifica (quebrando ou unificando) a natureza e o objeto das duas ações, que se comunicam no plano processual penal, para neste se distinguirem quanto à forma, estrutura e meios (neste sentido cf. Henrique Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, em anotação ao artigo 71º).
Por sua vez, o lesado, é definido no n.º 1, do artigo 74.º (legitimidade e poderes processuais), como “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que não se tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.
Como lesado/demandante cível incumbe-lhe apresentar o pedido cível, no prazo previsto na lei (artigo 77.º), apresentar as provas (artigo 79.º), podendo intervir no julgamento (artigo 80.º) e podendo recorrer das decisões contra ele proferidas (v.g. artigos 401.º, n.º 1, al. c) e 400.º, n.º 2 e n.º 3, do C.P.P.), verificados os condicionalismos legais.
O lesado/demandante cível, tem os poderes processuais consagrados no artigo 74.º, n.º 2, que se restringem à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.
Mas “as partes civis, se podem (e porventura devem) ser considerados sujeitos do processo penal num sentido eminentemente formal, já de um ponto de vista material são sujeitos da acção civil que adere ao processo penal e que como acção civil permanece até ao fim”(cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, 1988, p. 15).
No que toca ao caso julgado, “a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado, nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”- artigo 84º.
Revisitando o recurso interposto, constatamos que a recorrente, arrogando-se ter a qualidade de assistente, veio interpor recurso da matéria de facto e de direito pugnando pela revogação da sentença, em 1ª instância que absolveu o arguido do crime de que estava acusado e consequentemente da pretensão cível, deduzida pela recorrente, no valor de 25.000€, como demandante cível contra aquele demandado (arguido), que quer ver substituída por outra que condene penal e civilmente o arguido e demandado.
No entanto, cotejado o processo verificamos que a recorrente apenas possui a qualidade de ofendida e demandante civil e por sua vez o Ministério Público não recorreu da sentença.
Assim, em face do artigo 401º, como ofendida e demandante a recorrente não detém posição processual – isto é direito ao recurso- relativamente ao objeto criminal da sentença, única via para sindicar a absolvição criminal do arguido, atenta a circunstância de não se ter constituído assistente, pois só a este sujeito processual (bem como ao Ministério Público e ao arguido) está permitido o recurso penal, conforme artigo 401, nº 1 b), carecendo, por isso, a recorrente ofendida e demandante cível de legitimidade para recorrer da sentença na vertente penal.
Não obstante o recurso em causa ter sido admitido no tribunal “a quo”, ocorre, como acima ficou dito, a falta de constituição como assistente da ofendida, o que lhe retira legitimidade para recorrer da sentença, nos termos supra expostos, e conforme o artigo 417, nº 6 a) não sendo o despacho de admissão do recurso vinculativo, nos termos do artigo 414.º, n.º 3, do C.P.P., para este Tribunal da Relação.
Pelo exposto, por falta de legitimidade da recorrente, ofendida e demandante cível, para recorrer da sentença penal, é de rejeitar o recurso por esta interposto, nesta parte, nos termos dos artigos 401º, “a contrario” e 417º, nº 6. b) e 420º, nº 1 b) 414, nº 2 e 3 todos do Código de Processo Penal.
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Prosseguem os autos para conhecimento do recurso interposto do pedido civil, em face da sua autonomia em relação ao processo crime a que está conexa.
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II – OS FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
2.1 Perante as questões suscitadas no recurso torna-se essencial, para a devida apreciação, recordar a fundamentação em matéria de facto vertida na sentença recorrida:
II. Fundamentação de Facto
Factos provados
Realizado o julgamento, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1. O arguido BB casou com a ofendida AA a 12 de Dezembro de 1976.
2. Dessa união nasceu um filho.
3. O casal divorciou-se a 12 de Dezembro de 2012 sendo que, por razões não apuradas, mantiveram-se a residir na mesma habitação, sita na Rua ..., ... Trofa.
4. O arguido tem dois filhos de outra mulher, o que a ofendida veio a descobrir e a deixou magoada.
5. No dia 8 de Junho de 2023, a ofendida deslocou-se a Chaves na companhia de um amigo.
6. O arguido ligou para as irmãs da ofendida que residem em Chaves, dizendo-lhe que esta padecia de Alzheimer e que desconhecia o seu paredeiro.
7. O arguido deslocou-se ainda ao posto da GNR, dizendo que a vítima sofria de Alzheimer e que havia fugido de casa.
8. A 13 de Junho de 2023, durante a manhã, no interior da residência que partilham, durante uma discussão que mantiveram, o arguido dirigiu-se à vítima, dizendo: “Ou sais tu, o saio eu”.
9. A ofendida abandonou a habitação, indo residir para Chaves durante 3 semanas, regressando posteriormente à residência comum.
10. O arguido chegou a propor à vítima que voltassem a casar, o que não foi aceite por esta.
11. O arguido desligava o contador de luz eléctrica da residência comum.
12. Quando soube que a vítima iria ao posto da GNR prestar declarações o arguido disse-lhe: “Tu vais lá e dizes que está tudo bem connosco, o teu Advogado que não mande nada para a frente”, o que a aquela interpretou como uma forma de ameaça a pressão.
13. A ofendida encontra-se refugiada numa Casa Abrigo.
Mais se provou que:
14. O arguido iniciou o seu percurso escolar iniciou-se em idade normal, tendo concluído o 4º ano de escolaridade com cerca de 15 anos de idade, altura em que abandonou os estudos e foi viver e trabalhar para a cidade de Lisboa.
15. O arguido manteve-se activo profissionalmente durante a sua vida, encontrando-se aposentado da Guarda Nacional Republicana, desde 1993.
16. Em 1976 contraiu matrimónio com a ofendida, tendo desta relação nascido 1 filho, actualmente adulto e autónomo, emigrado na Suíça.
17. BB tem, ainda, outros 2 filhos, actualmente adultos e autónomos, nascidos de uma relação anterior ao casamento, não mantendo uma relação de proximidade com os mesmos.
18. Desde 1993 que se encontra aposentado da Guarda Nacional Republicana, tendo exercido concomitantemente com a aposentação a actividade de porteiro num condomínio fechado, na cidade do Porto, entre 2001 e 2016.
19. Após a sua constituição como arguido no presente processo, BB saiu da casa do ex-cônjuge/ofendida e passou a residir, primeiramente, em casa do filho e posteriormente, integrou a casa da irmã e cunhado, em ..., Montalegre.
20. BB recebe cerca de €1.200/mês de aposentação e colabora nas despesas do agregado familiar da irmã, em cerca de €350/mês.
21. Este é o primeiro contacto de BB com o Sistema de Justiça Penal, o que provocou especial impacto no arguido, criando momentos de ansiedade decorrentes do presente processo.
22. Conta com o apoio da irmã e cunhado, que lhe providenciam alojamento, alimentação e apoio emocional.
23. Na comunidade, em ... e embora seja do conhecimento o presente processo, não são conhecidos sinais ou sentimentos de rejeição à sua presença.
24. O arguido não tem antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal.
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Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
a. O divórcio deveu-se ao facto de a ofendida ter descoberto que o arguido tinha dois filhos fora do casamento, com outra mulher.
b. Desde o divórcio e no interior da residência de ambos, durante as discussões que mantêm o arguido afirma, com foros de seriedade, que irá matar a vítima, apelidando-a ainda de: “Saloia, só pensas em sexo, só pensas em homens, mentirosa, é um fedor que não se pode estar ao pé de ti.
c. Nas circunstâncias descritas em “5”, a ofendida foi visitar uns familiares.
d. O arguido disse às irmãs da ofendida e aos seus próprios familiares que aquela tinha fugido de casa com outro homem, o que a deixou envergonhada.
e. Que o arguido tenha ligado insistentemente à ofendida, pedindo-lhe voltasse para casa.
f. Que o arguido tenha proferido a afirmação “não me responsabilizo pelo que te possa acontecer.”, o que deixou a vítima muito receosa pela sua integridade física ou mesmo vida.
g. Que a ofendida tenha abandonado a habitação, nas circunstâncias descritas em “9”, por medo do arguido.
h. Na sequência do descrito em 11, a frustração do arguido agravou-se, o que veio a aumentar o seu nível de controle sobre a ofendida, passando aceder ao conteúdo do telemóvel desta e seguindo a vítima na rua, quando esta saía.
i. Após a inquirição, que ocorreu no dia 2 de Outubro de 2023, o arguido começou a apelidar a vítima de “puta” e de “vaca”, no interior da residência do casal, dizendo ainda que esta andava com vários homens afirmando ainda que a mataria, caso tivesse de sair de casa, nem que tivesse de contratar alguém para o efeito.
j. A dada altura, não apurada em concreto, o arguido afirmou que iria comprar um garrafão de gasolina e pegar fogo à casa.
k. Aí, a ofendida começou a viver trancada em seu quarto, usando um balde para realizar as suas necessidades.
l. A vítima vivia com receio que o arguido atentasse contra a sua integridade física ou vida, num momento em que esteja descontrolado.
m. Quis o arguido com a sua conduta amedrontar e ofender a integridade física da vítima e dessa forma, quis não só importunar, atemorizar e inquieta-la, mas também afectar a sua liberdade de movimentos e de actuação.
n. Agiu indiferente à relação que mantinha com a vítima, enquanto sua mulher e ao dever de respeito que dessa relação para si nasceu, relação e dever de que estava bem ciente, querendo subordiná-la às suas vontades.
o. Quis ainda actuar no interior da residência do casal, bem sabendo que dessa forma limitava as chances da vítima se defender, dada a ausência de testemunhas.
p. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
q. A violência perpetrada contra a demandante teve forte impacto psicológico e físico.
r. À data de acolhimento na A..., a demandante estava muito fragilizada em resultado da conduta do demandado.
s. A demandante foi obrigada a mudar de casa.
t. Mesmo após a estabilização física e psicológica, decorrente de se sentir em segurança na A..., a demandante ainda ostenta sentimentos de tristeza, de injustiça, de vergonha e de culpa.
u. A sua auto-estima e autoconfiança sofreram forte abalo, em consequência da forma como a arguida a tratava e do abandono que a votava, fazendo-a sentir-se diminuída e desrespeitada.
v. A demandante ainda sente dificuldades em adormecer e dormir, tendo pesadelos recorrentes.
w. Deixou de interagir com as pessoas próximas, incluindo com o próprio filho.
x. O seu receio de que o arguido posa cumprir as ameaças de morte continua bem presente, o que a deixa em constante estado de ansiedade.
y. Com a sua conduta, quis o demandante amedrontar e ofender a integridade física da demandante e, dessa forma, não só importunar, atemorizar e inquieta-la, mas também afectar a sua liberdade de movimento e de actuação.
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Motivação
O tribunal valorou a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com os elementos probatórios já constantes dos autos, tudo ao abrigo do princípio da livre valoração da prova previsto no art. 127.º do C.P.P., nas suas duas vertentes: por um lado, a decisão é tomada de acordo com a íntima convicção do julgador “em face do rol de provas apresentadas no processo, em especial na audiência de julgamento, quer sejam arroladas pela acusação, quer pela defesa, quer ainda, aquelas que o Tribunal entende oficiosamente conhecer” e, por outro lado, “essa convicção, objectivamente formada com apoio em regras técnicas e de experiência, não deve estar sujeita a quaisquer cânones legalmente pré-estabelecidos” - Santos Cabral, “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2.ª edição, p. 428.
Em sede de audiência de julgamento, o arguido prestou declarações e, além de negar a globalidade das imputações que lhe são feitas, contextualizou os factos em termos muito díspares da dinâmica relacional traçada no despacho de acusação. Desde logo, negou que a causa próxima do divórcio tenha sido o facto de a ofendida ter descoberto que tinha dois filhos de uma outra relação, assegurando que isso já era do seu conhecimento quando se casaram. De acordo com as suas palavras, o divórcio foi “uma farsa” (sic) e teve como propósito único – a conselho de uma advogada - proteger o património hereditário do filho, evitando a repartição patrimonial com os irmãos consanguíneos. Nesse desiderato, acedeu a realizar a partilha e adjudicar o imóvel à ofendida. Assim, pese embora tenha reconhecido que esta ficou muito desagradada quando disse ao filho comum que tinha irmãos que desconhecia (referindo que até lhe arremessou uma garrafa), o arguido afirmou que o divórcio não era sequer do conhecimento generalizado, mas tão-só da família mais chegada.
O arguido negou ter dirigido à ofendida afirmações ameaçadoras ou injuriosas, ou em algum momento tê-la tratado com menoscabo ou sequer assumido um comportamento possessivo. Pelo contrário, foi patente a sua preocupação em perpassar a ideia de que aceitava com serenidade e galhardia os relacionamentos da ex-cônjuge, mormente com a pessoa com quem esteve fora de casa durante dois períodos relativamente longos no mês de Junho de 2023, muito embora tenha reconhecido ter contactado as irmãs da ofendida e GNR no início do período de ausência (que situou no dia 8.6.23) e referido que ela tinha sintomas iniciais de Alzheimer. No entanto, afiançou que o fez por genuína preocupação e não com intuito difamatório, já que desconhecia o seu paradeiro e, na sua perspectiva, aquela tinha lapsos de memória recorrentes típicos daquela patologia.
No que tange à pretensa afirmação de que “era um fedor que não se pode estar ao pé” da ofendida, o arguido contextualizou-a e negou o intuito injurioso pressuposto nessa imputação, ao afirmar que a ofendida padecia de mau-hálito intenso, que o incomodava durante a noite ao ponto de não conseguir descansar e de ser obrigado a dormir noutro quarto. Perpassou a ideia de que sempre verbalizou esse discurso de forma cortês.
A propósito da dinâmica factual atinente aos factos ocorridos no mês de Junho de 2023, o arguido pareceu normalizar a saída da ex-cônjuge de casa com uma pessoa com quem mantinha uma relação amorosa, o que situou temporalmente em 8.6.23. Referiu que a ofendida esteve fora de casa num primeiro período de cerca de uma semana e citou uma conversa que mantiveram aquando do seu regresso, em que aquela lhe transmitiu os fortes sentimentos que nutria em relação a essa pessoa. O arguido negou que, nesse contexto, tenha proferido as expressões “Ou sais tu, ou saio eu, não me responsabilizo pelo que te possa acontecer.”, asseverando que se limitou a pedir à ofendida que o “deixasse em paz” e seguisse com a sua vida, uma vez que não queria continuar a residir com aquela.
Segundo o arguido, a ofendida permaneceu em casa durante uma semana, tendo voltado para Chaves e regressado quando a relação terminou, não menos do que 1 mês e meio depois.
O arguido assumiu ter sugerido voltarem a casar, a conselho de um advogado, o que não terá sido aceite pela ofendida. Não obstante tenha reconhecido que essa recusa o entristeceu, o arguido foi peremptório ao negar ter reagido nos moldes que lhe vêm imputados, seja “vasculhando” o telemóvel daquela, ou exercendo qualquer outro tipo de controle, seja ameaçando-a ou dirigindo-lhe qualquer tipo de invectivas. O arguido apenas admitiu ter-lhe dito que não prosseguisse com este processo quando dele teve conhecimento e que instruísse o advogado nesse sentido e, bem ainda, ter desligado o quadro eléctrico quando se apercebia de que a ofendida mantinha a luz do quarto onde dormia ligada, o que justificou com o facto de ser ele quem pagava as contas, assim sugerindo que os gastos eram, sua perspectiva, supérfluos.
Questionado acerca da explicação que encontrava para a pendência destes autos, o arguido disse que é a forma que a ofendida encontrou de o obrigar a sair de casa, a qual disse ter construído depois do casamento, a suas expensas.
AA prestou declarações, no decurso das quais rapidamente se concluiu que padecia de dificuldades de audição, o que o arguido já havia referido como justificação para conseguir ouvir conversas telefónicas que aquela manteve, por falar num volume elevado. A ofendida confirmou, de forma emocionada, ter ficado muito magoada quando soube que o arguido tinha filhos de outra relação e justificou a circunstância de se manter na casa de morada de família após o divórcio com o facto de não ter recursos financeiros para sair, a que acrescia o exercício da sua actividade profissional de cabeleireira no mesmo imóvel. Adiantou ainda, como razão para não ter saído de casa, o facto de a neta residir com o casal, cujo filho único vivia na Suíça. Por outro lado, a ofendida disse também que apenas aceitou ficar em casa depois de se divorciarem se o imóvel ficasse para o filho, o que pode explicar que, em partilha, o mesmo lhe tenha sido adjudicado (cf. informação predial de fls. 9). Ainda a respeito da separação de meações, a ofendida aludiu que estava ciente de que o arguido era titular de elevadas quantias, pelo que, a conselho da advogada – aceite pelo então cônjuge – as quantias monetárias foram adjudicadas ao aqui arguido a troco da propriedade exclusiva do prédio.
Num discurso confuso e muito pouco circunstanciado, a ofendida não logrou clarificar as (muitas) dúvidas que tinham sobrado das declarações do arguido quanto à dinâmica relacional posterior ao divórcio, ficando sem se perceber se à dissolução formal do vínculo conjugal correspondeu uma efectiva cessação da relação marital. E o esclarecimento deste ponto assumia um relevo central para a compreensão cabal o “pedaço de vida” sob juízo. Summo rigore, as dúvidas a esse propósito provinham já do despacho de acusação, que, num único ponto (5.º) resumiu 11 anos de convivência após divórcio, consignando que «[d]esde o divórcio e no interior da residência de ambos, durante as discussões que mantêm o arguido afirma, com foros de seriedade, que irá matar a vítima, apelidando-a ainda de: “Saloia, só pensas em sexo, só pensas em homens, mentirosa, é um fedor que não se pode estar ao pé de ti.”.». Não é descrito um único episódio, uma única discussão com o mínimo de delimitação cronológica, assim franqueando as portas a uma verdadeira investigação em fase de julgamento para concretização desses putativos factos, a introduzir necessariamente no objecto do processo por via do mecanismo previsto no art. 358.º do C.P.P., cujo desiderato está longe de ser o de colmatação das insuficiências pontuais da acusação.
O certo é que, quanto ao referido período (Dezembro de 2012 – 8 de Junho de 2023), a prova foi escassa. O tribunal deparou-se com duas versões divergentes, não encontrando razão para credibilizar uma em detrimento da outra. Se, por um lado, o discurso da ofendida foi emotivo e exprimiu uma vivência sofrida (até por força do seu semblante e da linguagem corporal), limitou-se a referências vagas e genéricas a palavras proferidas pelo arguido como “Saloia, só gostas de sexo; olhas para qualquer um; vou-te arranjar um das Caldas, vais para a Via Norte”. No entanto, o arguido negou tais imputações em termos veementes e não menos dignos de crédito. Por outro lado, a referência ao pretenso problema de mau hálito da ofendida foi por aquele explicada em termos minimamente verosímeis.
Ademais, o discurso da ofendida convocou mais dúvidas do que os esclarecimentos que aportou. Desde logo, se, de uma sorte, sugeriu que o divórcio colocou um termo efectivo à relação (o que seria o normal e expectável), de outra, fez referências absolutamente contraventoras desse cenário, verbalizando que o arguido deixou de a acompanhar e que deixaram de ir à praia, acentuando que aquele mudou de comportamento logo depois da decretação do divórcio, como se isso não fosse o expectável após o termo de qualquer relação.
Mais, a ofendida deu a entender que se viu na necessidade de continuar a residir com o arguido porque não tinha alternativa habitacional nem recursos financeiros para se reorganizar, na medida em que o seu centro de vida (inclusive profissional) era justamente naquele local. Contudo, essa explicação não é consentânea com a forma como o divórcio se operou, já que, como deflui da informação do registo predial junta aos autos, a partilha foi registada no mesmo dia em que o divórcio transitou em julgado (12.12.12) e, desde essa data, a ofendida passou a ser a exclusiva proprietária do imóvel, o que significa que não só não estava obrigada a deixar de lá residir, como tinha mecanismos legais ao seu dispor para determinar a saída o arguido. E, se fosse essa a sua pretensão, era expectável que o fizesse, já que ficou claro que foi acompanhada por advogado desde o primeiro minuto, tomando a iniciativa de se aconselhar e de operacionalizar a partilha a seu contento.
Donde, não é minimamente credível que, durante mais de 10 anos, a ofendida se tenha visto na contingência de residir com o arguido contra a sua vontade, sujeita ao comportamento degradante ou ao amesquinhamento que subjaz ao libelo acusatório.
Mas – reitera-se – mesmo que assim possa ter sido, a prova produzida em audiência de julgamento não permite concluir pela ocorrência de episódios concretos (ou seja, quanto às circunstâncias de tempo, lugar e modo) de violência verbal, física, ou de outra natureza, até Junho de 2023.
A prova testemunhal não trouxe qualquer luz ao nebuloso panorama vivencial pós-divorcio.
CC, que disse ser amiga e cliente da ofendida há mais de 10 anos e conhecer o arguido há apenas 2 a 3 anos, prestou um depoimento tendencioso e manifestamente hiperbolizante, orientado a prejudicar a pessoa com quem não escondeu ter problemas pessoas. A postura de ostensiva hostilidade da testemunha em relação ao arguido foi evidenciada de forma exuberante quando, por mais do que uma vez, se voltou para trás e lhe dirigiu a palavra de forma acintosa e provocatória. Acresce que, a quase integralidade do seu testemunho consistiu em reproduzir os pretensos desabafos da ofendida quando a própria deixou muito claro que ninguém estava a par do que se passava, nem sequer o filho, porque “tinha vergonha” e, por isso, fez sempre segredo do que se passava em casa.
Destarte, temos por altamente implausível que os supostos desabafos tenham ocorrido, conclusão para a qual contribui, outrossim, a circunstância de a testemunha ter feito referências que nem mesmo a ofendida em algum momento fez e que decerto não omitiria, v.g. que o arguido fazia as necessidades fisiológicas no chão para aquela limpar.
Tratou-se, pois, de um testemunho comprometido com o desfecho da causa e, nessa medida, globalmente descredibilizado pelo tribunal.
As testemunhas DD e EE prestaram depoimento essencialmente relativos à personalidade e conduta do arguido, já que nada sabiam de concreto quanto à vivência do casal, ambos referindo que a comunidade local desconhecia a existência de problemas conjugais, desconhecendo mesmo que eram divorciados.
Assim, os únicos factos concretos que integravam o objecto do processo circunscreviam-se aos episódios ocorridos a partir de Junho de 2023 e, como avulta da sinopse da prova produzida, também nesse conspecto as versões carreadas por arguido e ofendida foram globalmente opostas, excepto no que se refere às estadias em Chaves da ofendida e contactos encetados pelo arguido junto de familiares da ofendida e da GNR, ao facto de desligar o quadro da energia eléctrica e à verbalização de que pusesse termo ao presente processo, tudo isto tendo sido admitido pelo próprio (ainda que com pontuais dissemelhanças quanto a aspectos de pormenor).
É certo que, não raras vezes, a prova predominante (se não exclusiva) do crime de violência doméstica, consiste nas declarações da vítima. Porém, para que estas possam sustentar a convicção do tribunal quanto à forma como os factos ocorreram, exige-se que as mesmas sejam persuasivas e não deixem espaço de dúvida quanto à sua sinceridade. Assim decidiu, inter alia, o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão de 28/01/2014, proc. 45/11.5GAORQ.E1 (www.dgsi.pt), ao afirmar que “nada obsta a que a convicção do tribunal se baseie apenas nas declarações do(a) ofendido(a), desde que estas, em face das circunstâncias concretas em que são prestadas, sem olvidar o eventual interesse que tenha no desfecho do processo, lhe mereçam credibilidade, sendo que, nos casos de violência doméstica, os actos ocorrem normalmente no recato do ambiente familiar, sem a presença de terceiros”. Não foi o caso.
Na situação em tela, do exame crítico destes meios de prova, autonomamente considerados, o tribunal não colheu elementos que permitissem conferir maior credibilidade a um dos relatos em detrimento do outro, não apenas tendo em conta o teor do que foi afirmado pelo arguido e pela ofendida, como também a forma como tais declarações foram prestadas, em termos de linguagem corporal, expressão facial e postura. Se a ofendida se mostrou, a espaços, comovida, também o arguido se mostrou aparentemente espontâneo na veemente refutação das imputações que lhe são feitas. O tribunal não vislumbrou qualquer menoscabo nas declarações do arguido, em termos de poder constituir reflexo de uma personalidade agressiva ou misógina, interpretando a postura algo belicosa em relação à pessoa do Sr. Advogado que patrocina a ofendida/demandante (a cujas questões recusou responder, remetendo-se ao silêncio) como sinal do desgaste decorrente de um litígio judicial em contexto familiar.
Há ainda a assinalar que a prova de que a ofendida se encontra acolhida numa A..., assim beneficiando do apoio das estruturas de apoio à vítima, não permite, per se e desgarrada de outros elementos factuais, a extracção de quaisquer ilações em termos probatórios, sob pena de subversão total do princípio do acusatório e do princípio da presunção da inocência. A circunstância de que a ofendida careceu desse apoio era o quod erat demonstrandum e dependia da prova de factos que lhe dessem respaldo, o que não ocorreu.
Abreviando razões, face a versões contraditórias dos factos, sem que ocorra motivo justificado para conferir maior credibilidade a uma em detrimento da outra, estava este tribunal obrigado a resolver esse non liquet probatório a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo. Este princípio, como é consabido, além de constituir uma garantia subjectiva do arguido, “é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” – Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 518-519.
Como assim, também no que se refere à dinâmica factual referente aos meses de Junho de 2023 e seguintes, mantendo o tribunal as dúvidas suscitadas quanto aos factos controvertidos e não sendo possível, sequer com base num juízo inferencial à luz das máximas da experiência, extrair ilações da prova directa produzida, deu-se a correspondente matéria de facto como não provada, excepto no que tange à que se acha consignada nos factos provados sob n.ºs 6 a 12, que resulta da sua admissão por parte do arguido.
Quanto à factualidade inerente ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, face ao que supra se decidiu, foi dada como não provada – factos não provados m., n., o. e p. Com efeito, sabendo-se que a motivação ínsita a qualquer conduta humana constitui um facto do mundo interno do agente, dificilmente apreensível por prova directa, as mais das vezes resultará da análise contextual da factualidade provada, de harmonia com as regras da experiência comum. E, no caso em tela, de nenhuma das apuradas condutas do arguido se poderá extrair qualquer intuito de amedrontar, ofender a integridade física, importunar, atemorizar e inquietar a ofendida, ou de afectar a sua liberdade de movimentos e de actuação, subordinando-a às suas vontades.
Não se tendo provado a factualidade que constituía seu pressuposto lógico, foi dada como não provada a matéria atinente ao pedido de indemnização civil (factos não provados q a y).
Atendeu-se ainda à certidão do assento de nascimento da ofendida, para prova dos factos n.ºs 1 e 3.
Para prova da ausência de antecedentes criminais do arguido, tomou-se em consideração o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
No que respeita à situação pessoal, familiar e profissional do arguido, os factos provados estribam-se no relatório social, que não mereceu qualquer reserva por parte do tribunal nem foi objecto de impugnação ou reparo por parte de qualquer dos intervenientes processuais. (…)
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III – FUNDAMENTAÇÃO.
3.1 Da autonomia do recurso relativo ao pedido cível.
A recorrente como demandante interpôs recurso, também, da parte cível que absolveu o demandado a pagar à recorrente o valor de 25.000€.
Como deixamos salientado acima, o pedido cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado perante os tribunais cíveis, nos casos previstos na lei, nos termos do art.º 71º. O fundamento deste normativo reside na circunstância de o pedido civil, deduzido no processo penal, ter por causa de pedir uma conduta criminosa, ou seja, a prática de um crime, razão para o funcionamento do princípio de adesão.
Citando Germano Marques da Silva, in curso de Direito Processual Penal, 1996, tomo I, 25, III, pág. 111 “Sucede é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são, também, pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgamentos contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo”. (cf. Carlos Lopes do Rego, “As partes Civis e o Pedido de Indemnização Deduzido no Processo Penal,” RMP- cadernos- 4, pp. 61 ss.).
Assim, existe independência e interdependência entre a ação penal e a ação civil. Enquanto a ação penal depende dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, a indemnização por perdas e danos emergente de um crime, é regulada pela lei civil, como estipula o art.º 129º, do Código Penal, uma vez que os pressupostos próprios da responsabilidade civil estão previstos no artigo 483º, do Código Civil.
A autonomia do pedido civil enxertado revela-se em termos processuais, nomeadamente: na suscetibilidade de intervenção de pessoas com mera responsabilidade civil, nos conceitos e estatutos processuais de demandante (lesado), demandado e intervenientes na ação civil enxertada, na força do caso julgado da ação civil, nas partes civil e penal da sentenças, na maior amplitude do direito de recurso da parte civil da sentença, atentas, respetivamente, as normas dos artigos 73.º, nº 1 e 2, 74.º, nºs 1 e 3, 84.º, 377.º, n.º 1 e 400.º, n.º 3, do CPP. A ação civil enxertada pode, em certos casos, prosseguir no processo penal apesar de a ação penal ter sido declarada extinta, antes da audiência de julgamento (veja-se o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 3/2002 relativo à extinção do procedimento criminal por prescrição depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311.º do CPP; e ainda o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 5/2018 relativo à inutilidade superveniente da lide em caso de Insolvência, mas que não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido civil deduzido em processo penal).
No processo penal, e uma vez ali exercida a ação civil emerge para o tribunal o dever de conhecer os factos deduzidos na acusação e do respetivo pedido de indemnização civil, e que, consequentemente, são coincidentes no que se refere à caraterização do ato ilícito criminal. O atributo próprio do pedido de indemnização civil formulado será o conhecimento e a definição do prejuízo reparável.
E o percurso probatório é exatamente o mesmo, no que respeita aos factos, que consubstanciam a responsabilidade criminal e civil, havendo apenas a acrescentar em relação à responsabilidade civil, os factos que indicam o dano e o nexo de causalidade entre o dano e o facto ilícito, mas onde a reparação desde o Código Penal de 1982, ganhou autonomia pois não é um efeito penal da condenação como era no Código de Processo Penal, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto n.º 16.489 de 15/2/1929 (CPP de 1929), o qual era influenciado pelo Código Penal Italiano de 1930, onde vigorava o sistema da subordinação da indemnização civil à ação penal, relação entre os processos penal e civil era orientada pelas ideias de “unidade da jurisdição”, “prevalência da jurisdição penal sobre a civil” e a pretensão de “certeza jurídica não permitia que se tolerasse pronúncias contrastantes”.
O CPP de 1987 envolveu uma profunda alteração do modelo de indemnização civil fundada na prática de um crime relativamente ao regime do código de 1929, com reforço da sua dimensão civilística (nos planos substantivo e adjetivo), e, não compreendeu nenhuma norma equivalente às mencionadas sobre a eficácia da sentença penal (tal como também já não tem nenhuma norma como a do artigo 75.º do CPP italiano sobre suspensão da instância da ação cível separada). O CPP 1987 que apenas regula, no artigo 84.º, com direta repercussão na matéria civil, o caso julgado da sentença sobre a ação civil enxertada no processo penal, estabelecendo-se a respetiva força extraprocessual por remissão para o regime da lei processual civil.
A independência da ação de responsabilidade civil, fundada na prática de um crime relativamente ao processo penal, que conforma as diferenças de estatutos dos sujeitos processuais, repercutidas na perda do estatuto de arguido e preservação apenas do de demandado civil, foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional no acórdão de fiscalização concreta n.º 269/97 (Bravo Serra) que a reconheceu.
A diferenciação de estatutos (arguido/parte civil) também analisada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, nomeadamente, destacou que a legitimidade de algumas limitações à intervenção das partes civis no processo penal depende da possibilidade de exercerem os seus direitos processuais em supervenientes ações cíveis (acórdãos Menet contra França, de 14/6/2005, § 47, e Berger contra França, de 3/12/2002, §§ 35-38). A preservação da natureza de ação civil e não penal foi considerada como nuclear na apreciação pelo Tribunal Europeu noutros acórdãos (acórdãos Lagardère contra França, de 12/4/2012, § 55, e Y contra Noruega, de 11/2/2003, §§ 35-38), tendo esse tribunal sublinhado que as noções de equidade ou fair trial aplicáveis num e noutro processo são distintas (acórdão Dombo Beheer contra Holanda, de 27/10/1993, § 32).
Revelador de tal autonomia é o reconhecimento da possibilidade de pendência simultânea de processo crime e de ação cível, em simultâneo, desde logo quando nos termos do artigo 72º, do C.P.P se admite que: a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo; b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento; c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular; d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão; e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º; f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido; g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular; h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima; i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º; 2 - No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito; (o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 5/2000, de 19-01-2000, in DR I Série A de 2-03-2000: “A dedução, perante a jurisdição civil, do pedido de indemnização, fundado nos mesmos factos que constituem objecto da acusação, não determina a extinção do procedimento quando o referido pedido cível tiver sido apresentado depois de exercido o direito de queixa se o processo estiver sem andamento há mais de oito meses após a formulação da acusação”.) não constituindo a pendência do processo crime – a responsabilidade civil fundada na prática do crime- questão prejudicial suscetível de afetar a marcha do processo civil, pois aquela não constitui pressuposto necessário da decisão de mérito, do tribunal civil.
Não se confunde, no entanto, a questão da prejudicialidade da questão, com a ponderação no pedido civil fundada na prática de um crime dos efeitos anteriores de sentença penal, nos termos do disposto nos artigos 623º e 624º, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis nos termos do artigo 4º, do Código do Processo Penal, e onde se disciplina a sua oponibilidade a terceiros e a sua eficácia da decisão penal absolutória.
Por sua vez, dispõe-se no artigo 377.º ("Decisão sobre o pedido de indemnização civil"):
1 - A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º
2 - Se o responsável civil tiver intervindo no processo penal, a condenação em indemnização civil é proferida contra ele ou contra ele e o arguido solidariamente, sempre que a sua responsabilidade vier a ser reconhecida.
Refere-se no artigo 401,º em matéria de recurso a propósito da legitimidade e interesse em agir. "1 - Têm legitimidade para recorrer: c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas; (...)".
E o artigo 400º, nºs 2 e 3 aludem que “2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. 3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.”(redação dada pela Lei nº 48/2007, de 29,08, que fez caducar a jurisprudência do acórdão do pleno do STJ nº 1 /2002, segundo a qual era irrecorrível a decisão relativamente ao pedido cível se for irrecorrível a decisão penal, ainda que se encontrem reunidos os pressupostos do artigo 400º, nº 2, na versão posterior a 1998).
Daqui resulta que, é admissível o recurso quanto ao pedido de indemnização civil “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”- artº 400º nº 2 do C.P.P., sendo que: - “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil” (nº 3 do citado preceito).
Revisitando, o nosso caso, o pedido cível que foi deduzido nos autos pela lesada é no valor de 25.000€ e a demandante, recorrente, decaiu na totalidade, razão para se julgarem verificados ambos os pressupostos de recorribilidade, previstos no nº2, do artigo 400º, já que o valor da alçada em 1ª instância é de 5.000€.
O lesado na definição do artigo 74º, nº 1, é quem poderá ou não estar nas condições para se constituir assistente, (cf. artigo 68º) poderá ter sofrido danos, com a prática do crime, razão para não lhe ser diminuída a possibilidade, por não ser assistente, de fazer valer a sua pretensão de condenação do requerido civil em indemnizá-lo, pelos prejuízos sofridos com a prática do crime. Isso mesmo lhe é garantido pelo nº 2, do artigo 74º, ao lhe reconhecer os direitos que a lei confere ao assistente na sustentação e prova do pedido civil, fundado na prática de uma infração criminal, pois existe identidade de causa de pedir civil e criminal.
É em face da identidade de causa de pedir, que se reconhece ao demandado o direito de sustentar e provar o pedido civil que abrange, os factos descritos na acusação, o crime, (causa de pedir) desde que a requerente os tenha alegado, autonomamente ou por remissão para a acusação, os danos e o prejuízo dele decorrentes não apenas perante a 1ª instância como ainda perante o tribunal de recurso, caso admissível.
Assim, ainda que a sentença tenha transitado em julgado no que tange à parte criminal, como deixamos expresso acima, onde se concluiu pela absolvição do arguido, tal não constitui impedimento para a demandante civil discutir perante o tribunal de recurso os factos não provados objeto dos autos, os quais são em simultâneo os que preenchem a infração penal (e que, assim, integram a acusação pública deduzida) e que constituem a causa de pedir do pedido civil impetrado (cf. neste sentido Ac. STJ de 23.02.2012, Proc. n.º 296/04.9TAGMR.G1.S1 que sufragando este entendimento discorre: “Se não fosse ao lesado permitido discutir perante o tribunal superior a decisão do tribunal de 1ª instância de considerar não provados factos que são fundamento do pedido de indemnização, isso equivaleria a negar-lhe a possibilidade de sustentar e provar o pedido civil. De que serviria, com efeito, numa tal hipótese a afirmação da sua legitimidade para recorrer, se não pudesse no recurso impugnar a decisão de considerar não provados factos que alegou e são determinantes para a procedência do seu pedido? A resposta é uma só: De nada.”.
Neste caso configura-se uma situação em que foi decidida a absolvição total do arguido da acusação e do pedido civil, conexo, pelo tribunal de 1ª instância por aplicação do princípio in dubio pro reo, e onde os mesmos factos eram, simultaneamente, integradores do crime em que se funda a pretensão civil da recorrente, demandante civil, e da sua pretensão civil, e tendo-se estabilizado a sentença na parte criminal, - por dela não ter sido interposto recurso pelo Ministério Público e a ofendida demandante civil, não constituída assistente, dela não poder recorrer por falta de legitimidade, - suscitando-se a questão de a demandante civil discutir em recurso os factos não provados (que determinaram a absolvição criminal) por serem fundamento (também) do seu pedido, pois mostra-se impugnada aquela matéria de facto, que a proceder pode levar à situação em que determinados factos tidos como não provados, em sede criminal, possam vir a ser dados como provados, no âmbito civil.
Também perante esta questão iremos deitar mão do Ac. STJ de 23.02.2012, Proc. n.º 296/04.9TAGMR.G1.S1, que a este respeito, assinala, “Mas uma tal situação não pode impressionar, pois as duas acções, a penal e a civil, conservam a sua autonomia. A incongruência, a verificar-se, é o resultado de não ter sido interposto recurso na parte penal, sendo-o na parte civil.
E a lei prevê a possibilidade da ocorrência dessa incongruência em certas situações, entre as quais cabe a de não ter sido interposto recurso da parte penal da sentença, sendo-o na parte civil pelo demandado, e soluciona-a, porque não podia deixar de ser solucionada.
Com efeito, nos termos do artº 402º, nº 2, alínea b), do CPP, o recurso interposto pelo responsável civil «aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais». Desta norma resulta que, havendo condenação em 1ª instância do arguido pela prática de um crime e do demandado civil em indemnização, por se terem dado como provados os factos que integram tanto a infracção criminal como a causa de pedir do pedido de indemnização, se o arguido não interpuser recurso, transitando em julgado a sentença na parte penal, mas o interpuser o requerido civil, obtendo do tribunal superior uma decisão que considera não provados os factos em que se funda o pedido civil, deparar-nos-emos com a situação seguinte: os mesmos factos estão dados como provados na parte penal e como não provados na parte civil.
Aqui, por imperativos inalienáveis, para impedir a condenação penal de um inocente, a lei resolve a incongruência fazendo valer relativamente à acção penal a decisão que, em recurso da parte civil, considerou não provados factos que, sendo fundamento do pedido de indemnização, são ao mesmo tempo integrantes do crime pelo qual o arguido fora condenado. E fá-lo porque a decisão de facto do tribunal de recurso é favorável à posição do arguido, afirmando que não se provaram os factos que sustentaram a sua condenação penal. Nessa situação, estando afirmado no processo, ainda que no âmbito da acção civil, que não se fez prova de o arguido haver praticado o crime pelo qual foi condenado, seria insuportável para a ordem jurídica a manutenção dessa condenação.
Se nesse caso, de recurso só do responsável civil, este pode impugnar a decisão de dar como provados os factos que fundamentam o pedido civil e integram o crime pelo qual o arguido foi condenado, não obstante este não ter recorrido, transitando em julgado, no âmbito penal, aquela decisão, ainda que o trânsito seja parcial, não há razão para que, em situações como aquela com que nos deparamos, de absolvição da acusação e do pedido civil, havendo recurso apenas do lesado, este não possa discutir em recurso a decisão que deu como não provados factos que, sendo integrantes do crime pelo qual o arguido foi absolvido, são também o fundamento do pedido de indemnização. A diferença está apenas em que neste caso não se tirarão consequências em sede penal da eventual procedência do recurso, por nenhumas se poderem tirar.
A incongruência que então subsiste é preferível à alternativa defendida na decisão recorrida, que significaria o sacrifício da possibilidade de o requerente civil defender eficazmente a pretensão indemnizatória em nome de considerações de ordem meramente formal. E então o princípio da adesão falharia um dos seus propósitos, que é o de protecção da vítima, permitindo-lhe, nas palavras de Figueiredo Dias, “uma realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito (…) à indemnização” (“Direito Processual Penal”, I, 1974, pág. 562). Onde estaria essa “realização mais eficaz do direito à indemnização”, se a dedução do pedido civil no processo penal representasse, em relação à sua instauração nos tribunais civis, um tal encurtamento das possibilidades de o defender, a eliminação, na prática, de o sustentar em recurso, quando este fosse admissível?” (fim de citação) (cf. Acórdãos do STJ de 22.01.2014, Proc. n.º 2956/08.6TALRS.L1,S1, relator Juiz Conselheiro Sousa Fonte e de 26.10.2016, Proc. n.º 953/09.3TASTR.E2.S1, relator Juiz Conselheiro Pires da Graça, ambos em www.dgsi.pt.)
Em suma é por força da autonomia entre as duas responsabilidades criminal e civil que ainda que o tribunal absolva da responsabilidade criminal, e assim não se possam retirar consequências em sede penal de uma eventual procedência do recurso civil, tal não obsta ao conhecimento do recurso civil, podendo ser impugnados os factos do elenco dos factos não provados na medida em que integram igualmente a pretensão civil da demandante civil.
Cumpre, assim apreciar e decidir o recurso da demandante civil.
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3.2 Como resulta das conclusões apresentadas pela recorrente e respectiva motivação, a mesma invoca o erro de julgamento.
Decorre do artigo 412º do Cód. de Processo Penal (daqui em diante C.P.P.) sob a epígrafe “Motivação do Recurso e Conclusões” que:
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 – (…)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. 5 – (…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Em face deste normativo devemos ter em mente o que resulta do art.º 428º, do C.P.P., isto é que as Relações conhecem de facto (e de direito) e de acordo com o art.º 431º, do mesmo diploma legal, “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova”.
A sindicância da matéria de facto, chamada impugnação ampla, baseada no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do C.P.P., é uma das duas vias de sindicar a matéria de facto em processo penal e tem na sua base a consideração de que o tribunal “a quo” efetuou uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Desde já, impõe-se salientar que, a sindicância da matéria de facto na impugnação ampla pressupõe o cumprimento do chamado “ónus de especificação”, traduzido na necessidade imperiosa de a reapreciação ser restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam.
No caso de existirem provas gravadas, a especificação das provas deve ser feita com referência ao que consta da ata, com indicação concreta das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412º, do C.P.P.).
Na hipótese de ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012 publicado no D.R. n.º 77/2012, Série I, de 2012-04-18), visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas.
Consequentemente, para que seja cumprido o ónus processual que impende sobre o recorrente em conformidade com tal normativo legal, é manifesto que não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica e apontar o sentido que deve ser dado à prova (v. o Acórdão da Relação de Coimbra de 8-02-2017, proferido no processo n.º 370/15.6JALRA.C1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infracitados).
De igual modo, quando pretenda impugnar a matéria de facto, não poderá o recorrente limitar-se a formular conclusões sobre qual deveria ter sido o sentido da decisão recorrida no que respeita a determinadas questões, designadamente no que toca ao preenchimento dos elementos típicos objectivos ou subjectivos do crime, concluindo, v.g., que os mesmos se verificam ou não, face à prova produzida.
Como consta do Acórdão do STJ de 25-03-2010, proferido no processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1: A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. (...)
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.
Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação (...) (cf.Ac. da Relação de Coimbra de 5-01-2011, proferido no processo n.º 888/04.6TAVIS.C1).
Assim, quando pretenda impugnar a matéria de facto, o recorrente terá de indicar concretamente as passagens das declarações e/ou depoimentos em que se funda a impugnação, não bastando que se reporte à totalidade de um ou vários depoimentos ou declarações, na medida em que são essas passagens que deverão ser ouvidas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo de outras que se entendam por relevantes (v. Ac. da Relação de Lisboa de 16-11-2021, proferido no processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5).
Por outro lado, como se evidencia ainda em tal Acórdão: Importa não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
O incumprimento das formalidades exigidas no citado art. 412º/3 e 4, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla, inviabilizando a sua reapreciação pelo tribunal de recurso.
No caso em apreciação, como decorre da motivação do recurso e respetivas conclusões, a recorrente identifica o segmento fático que entende ter sido incorretamente julgado, concretamente os factos que deveriam ter sido dados como provados, e indica as concretas provas, com indicação suficiente das respetivas passagens, em que assenta a sua discordância relativamente ao juízo probatório feito em primeira instância e qual o sentido em que deve ser operada a modificação da matéria de facto.
Tem-se, pois, por suficientemente cumprido o “iter” procedimental normativamente imposto.
Se a impugnação apresentada pelo recorrente corresponde ou não apenas a uma diversa apreciação da prova relativamente à realizada pelo julgador, é matéria que respeita já ao mérito da impugnação e não aos requisitos de que depende a sua apreciação.
Da análise do recurso resulta que a recorrente funda a sua pretensão de impugnação da matéria de facto na errada valoração que o Tribunal recorrido terá efetuado da prova produzida. Esta alegação corresponde à alegação da violação do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º, do C.P.P. o qual preside à apreciação da prova e do qual decorrem limites ao controlo da decisão sobre a matéria de facto, em sede de recurso.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do tribunal “a quo” se estriba nestes pressupostos, o tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (citado artigo 127.º) que está deferido ao tribunal de primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição. Como esclarece ABRANTES GERALDES, (in Temas da Reforma do Processo Civil, Volume II, Coimbra, 2010, págs. 201 e 273), «é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (…) E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores».
Da conjugação do regime legal vigente em matéria de apreciação e valoração da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, com as regras processuais previstas no artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, para a impugnação da matéria de facto, resulta que a tarefa do Tribunal de recurso se reconduz a aferir se o tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma norma extraída de casos similares), não retirando conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do tribunal “a quo”, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
É que, relativamente à reapreciação da matéria de facto, reitera-se, não se trata da realização de um novo julgamento, não podendo a convicção do juiz de primeira instância ser arbitrariamente modificada unicamente porque o recorrente discorda da mesma. Com efeito, a aludida reapreciação apenas poderá levar a uma alteração da matéria de facto provada quando se chegue à conclusão que os elementos de prova implicam – impõem- uma decisão diversa; contudo, tal nova apreciação da prova produzida já não poderá efetuar-se quando o pretendido é unicamente a substituição da convicção do juiz da primeira instância por uma outra, que ainda que seja plausível com base na audição das gravações, não se impõe.
Na realidade, com a aludida possibilidade de recurso em matéria de facto, o que se visa é unicamente “um remédio jurídico” para evitar erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como foi apreciada e ponderada a prova, tendo em consideração os concretos pontos de facto indicados pelo recorrente.
Assim, o tribunal de recurso deve, desde logo, avaliar se os pontos de facto em crise têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova que o recorrente considera imporem decisão diversa.
Estabelecidos os limites da análise suscitada, cumpre proceder à reapreciação da prova e da exposição motivacional do Tribunal recorrido e aferir da invocada violação do princípio da livre apreciação da prova, com fundamento na inobservância, por este, das regras da lógica e da experiência comum (juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstrata decorrentes da observação empírica de factos anteriores semelhantes e que autorizam a apreciação de determinado comportamento com recurso à generalização, usando para o efeito um raciocínio indutivo que permite concluir que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma).
Pretende a recorrente que se deem como assentes os seguintes factos:
No que concerne às alíneas b) do elenco dos factos não provados de onde consta
“Desde o divórcio e no interior da residência de ambos, durante as discussões que mantêm o arguido afirma, com foros de seriedade, que irá matar a vítima apelidando-a ainda de: “Saloia, só pensas em sexo, só pensas em homens, mentirosa, é um fedor que não se pode estar ao pé de ti.”
E da alínea i) do elenco dos factos não provados de onde consta
“Após a inquirição, que ocorreu no dia 2 de outubro de 2023, o arguido começou a apelidar a vítima de “puta” e de “vaca”, no interior da residência do casal, dizendo ainda que esta andava com vários homens afirmando ainda que a mataria, caso tivesse de sair de casa, nem que tivesse de contratar alguém para o efeito.
Aventa a recorrente que o Tribunal recorrido haveria de ter dado como provado que:
No que respeita à alínea b) que “Desde o divórcio e no interior da residência de ambos, durante as discussões que mantêm o arguido afirma, com foros de seriedade, que irá matar a vítima, apelidando-a ainda de: “Saloia, só pensas em sexo, só pensas em homens”, tendo, ainda, numa ocasião, após presenciar a ofendida a dançar com outro homem, agarrado nela pelos cabelas e pela roupa, encostando-a à parede e dando-lhe estalos na cara”.
No que refere à alínea i) que “Após o divórcio, o arguido começou a apelidar a vítima de “puta”, no interior da residência do casal, dizendo ainda que esta andava com vários homens afirmando ainda que a mataria, nem que tivesse de contratar alguém para o efeito”.
Convoca a recorrente para a modificação da matéria de facto, as declarações da demandante civil, nos concretos enxertos, que identifica e transcreve, tendo o Tribunal de recurso ouvido aquela prova e outras que considerou relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
E da analise crítica e conjugada de tal prova, não se descortina se o divórcio entre a demandante e o demandado foi apenas uma dissolução formal do vínculo, “uma farsa” como adianta o arguido, (para afastar da herança da casa os filhos nascidos fora do casamento, o que foi feito a conselho de advogada e que se compaginaria com a rapidez da partilha) ou uma cessação efetiva da relação marital, por a demandante ter descoberto que o demandado já tinha filhos anteriores ao casamento), na medida em que a demandante não trouxe clareza sob este aspeto, de modo a se alcançar qual deveria ser numa ou noutra situação a dinâmica relacional expectável do casal.
De facto, a demandante adianta que o arguido logo se arrependeu dos termos da partilha da casa que ficou para ela, (de passar a casa para o nome dela), sustentando, contraditoriamente que ora a conselho da advogada foi levantar metade do dinheiro da conta conjunta do casal, do que, aliás, o arguido se queixa, (assim partilhando os valores depositados) e por outro lado, que o arguido tinha muito dinheiro, depositado, o qual lhe foi adjudicado na partilha da casa, como sua contrapartida. Acrescenta, ainda, a demandante que a casa só lhe foi adjudicada, porque era para o filho do casal, razão pela qual não queria vender a casa. No entanto, a outro passo depois de ter rejeitado as iniciativas do demandado para vender a casa, encetou por sua iniciativa diligências para ela vender a casa, já não se preocupando com a família: filho e netas.
O modo como a demandante argumenta, contra a pretensão do demandado de pretender a venda da casa é trazer à liça de como a casa se destinaria para o filho, (e não que era de sua propriedade, por direito, na partilha) como o arguido se arrependeu a tal respeito, mesmo tendo falado sobre isso, convocando as netas, (e o afeto que o demandante lhes tem que haveria de ser motivo para não insistir na venda da casa) alegando que o demandado “só pensava nele, por querer dividir o dinheiro da venda da casa”, por isso dar-lhe de conselho que comprasse um apartamento para ali viver.
Acresce que a acusação resume 11 anos da vida do casal no ponto 5, a que corresponde a alínea b) do elenco dos factos não provados, sem que haja qualquer concretização das discussões, as ameaças, injúrias ou rebaixamento, razão pela qual se impunha com a produção de prova em audiência de discussão e julgamento, que resultasse das prova de forma clara, específica e convincente, por via de quem alegadamente vivenciou as situações a sua concretização, o que não se logrou, com a certeza constitucionalmente exigida, pois nem sequer aquela alegação foi corroborada na íntegra, que persistiu vaga e sem concretização espácio- temporal sendo negada pelo demandado.
Acresce que o divórcio do casal não era do conhecimento público (apenas do conhecimento de alguns familiares) – de amigos, vizinhos - não obstante a demandante exercer a profissão de cabeleireira, em casa, e por via da profissão privar com clientes, sendo os factos do desconhecimento de todos, pois não foi produzida prova fiável, das putativas ameaças, enviesadas ou não, (esclarecendo a demandante que o arguido nunca disse que a matava) de concretas injúrias ou que tivessem observado lesões resultantes de ofensas, ou que tivessem havido desabafos ou queixas apresentadas. Não existe outra prova a corroborar as alegações da demandante.
Pior do que o demandado não se poder defender é não saber do que se defender em concreto, por ausência do como, quando e onde o que a admitir-se traduziria uma flagrante violação do princípio do contraditório e do in dubio pro reo.
Em face do exposto, e porque a versão da recorrente não se apresenta autoevidente, não resulta da prova analisada que se imponha decisão diversa à alcançada pelo Tribunal recorrido, a qual não nos merece reparo, sendo de manter no elenco dos factos não provados as alíneas b) e i).
No que respeita à alínea j) do elenco dos factos não provados
“A dada altura, não apurada em concreto, o arguido afirmou que iria comprar um garrafão de gasolina e pegar fogo à casa.”
No que respeita à alínea k) do elenco dos factos não provados
“Aí, a ofendida começou a viver trancada em seu quarto, usando um balde para realizar as suas necessidades.”),
Aventa a recorrente que o Tribunal recorrido haveria de ter dado como provados:
- a alínea j) A dada altura, não apurada em concreto, mas após a ofendida se ter recusado a vender a casa, o arguido afirmou que iria comprar uma botija de gás e pegar fogo à casa, com a ofendida dentro dela.
A alínea k)
- Em data não concretamente apurada, mas após o circunstancialismo de j), a ofendida, chegando a casa e vendo a sua roupa espalhada e bens remexidos, temendo que o arguido a magoasse, trancou-se no quarto toda a noite, usando um balde para fazer as suas necessidades
Ora, da análise da prova produzida não resulta que a recorrente tenha aludido a um garrafão de gasolina para pegar fogo, a versão veiculada em audiência era uma ameaça repetida de compra de uma garrafa de gás, para pegar fogo à casa com ela dentro, mas sem concretização em que contexto e quando foi proferida.
Para além de a gasolina e o gás não serem confundíveis, o seu uso (para gasear ou incendiar) também não se confunde, não se revelando ser do interesse do demandado a destruição da casa.
O arguido foi veemente em negar tais ameaças, alegando serem falsas e destinadas a tirá-lo da casa.
De facto, a recorrente não justifica a sua residência na casa, com a circunstância de ser sua proprietária, que é, mas antes de não ter possibilidades económicas para ali deixar de viver e ali ter o seu cabeleireiro, como se a casa não fosse apenas dela.
Isto é, a principal razão, ser a proprietária e por isso haver de ser o demandado a deixar de ali residir, tendo esta o direito de recorrer a todos os meios para o fazer sair, nunca foi adiantado pela recorrente, e muito menos exercido por esta. Assim a dúvida a respeito da dinâmica conjugal deste casal, das suas motivações e alegações.
De igual modo, da prova não resulta que a demandante tenha passado a viver trancada no quarto, com um balde para as suas necessidades por medo do demandado. Isto implicaria que durante um período de tempo a demandante por medo do demandado, tivesse deixado de trabalhar, passasse a viver fechada no quarto, onde fazia as suas necessidades.
Ora, não só a demandante tem família, filho e netas, como vizinhança, clientes de cabeleireiro, e ninguém foi sabedor deste alegado estado vivencial que a acusação alega que o demandado a votava.
A este propósito a demandante relatou, apenas um, inusitado, episódio, numa ocasião em que já se sentia doente, mas que não localiza temporalmente, em que terá chegado a casa pelas 23 horas, e encontrou o seu quarto todo desarrumado (roupas fora das gavetas e cama desfeita) e os seus bens remexidos. Inexplicavelmente, a demandante não verifica como se encontra o resto da casa, nem chama a polícia. A demandante naquelas circunstâncias optou por se fechar no quarto a pernoitar, colocando um balde, para as suas necessidades e apenas chamou a GNR no dia seguinte, pela manhã, dando azo a que se lhe quisessem fazer mal o tivessem feito.
Em face do verificado a recorrente logo haveria de fazer intervir a polícia e não pernoitar na residência, não se logrando perceber, por um lado, como pernoitou no quarto e deixou o mesmo nas condições em que foi fotografado pela autoridade policial, e por outro se suspeitava e temia o arguido porque ficou a noite com este na mesma casa e não fez logo intervir a policia indo pernoitar para outro local, de modo a garantir a sua segurança.
A respeito deste episódio o demandado sustentou que “um amigo do alheio” havia entrado na casa e virado a mesma do avesso, à procura do que lhe pudesse interessar, tendo encontrado o seu quarto também revirado e que veio a arrumar, do que inteirou a GNR negando qualquer parte naqueles factos.
Perante versões tão contraditórias não existe a certeza constitucionalmente exigida que imponha a alteração dos factos j) e k) do elenco dos factos não provados, para os factos provados, não nos merecendo qualquer reparo a decisão alcançada pelo Tribunal recorrido.
No que concerne à alínea g) do elenco dos factos não provados de onde consta:
“Que a ofendida tenha abandonado a habitação, nas circunstâncias descritas em “9”, por medo do arguido.”
O qual deveria passar a constar do elenco dos factos provados.
Da análise da prova resulta ter a recorrente via internet passado a alimentar uma relação de “amizade” com outra pessoa do sexo masculino, a qual já durava há três meses quando, decidiu aceitar ir para Chaves com tal pessoa, que a veio buscar a casa, por se sentir sozinha e triste. O demandado não lhe dava satisfações da sua vida e ela decidiu também não lhe dar.
Não se alcança, com a certeza constitucionalmente exigida, como funcionava este casal, atentas as expectativas da demandante em relação ao demandado, de quem estava divorciada, na medida em que se inculca pretender companhia da parte dele, que este lhe desse satisfações, que a acompanhasse e a levasse a lugares, apesar de estarem divorciados.
Por outro lado, o demandado dando por falta da demandante em casa tentou saber daquela e localizá-la.
Não seria novo que situações de divórcios motivados por razões patrimoniais desembocarem em situações de efetivos divórcios, todavia no caso só o demandado alega ser o divórcio “uma farsa” pois a demandante, a tal respeito apresenta um relato confuso e contraditório.
Em face do exposto, não se descortinam razões para a alteração da matéria de facto no que à alínea g) diz respeito, por da análise da prova não resultar dever impor-se a sua alteração para o elenco dos factos provados.
No que concerne à alínea h) do elenco dos factos não provados de onde consta:
“Na sequência do descrito em 11, a frustração do arguido agravou-se, o que veio a aumentar o seu nível de controle sobre a ofendida, passando aceder ao conteúdo do telemóvel desta e seguindo a vítima na rua, quando esta saía.”
A qual deve passar para o elenco dos factos provados com a seguinte redação:
“Na sequência do descrito em 11, a frustração do arguido agravou-se, o que veio a aumentar o seu nível de controle sobre a ofendida, seguindo a vítima na rua, quando esta saía. (eliminando a menção a que o arguido acedeu ao conteúdo do telemóvel da recorrente).
A prova deste facto resultaria de uma decorrência da prova de outros factos, que se haveram de apresentar concretizados, sem margem para dúvida, como a dúvida não foi removida eis a razão para não se impor a alteração do facto h) do elenco dos factos não provados.
No que respeita à alíneas l) q) r) s) t) u) v) w) e x) do elenco dos factos não provados para o elenco dos factos provados.
Em face do teor dos factos mencionados resulta que a alteração destes para o elenco dos factos provados só se imporia no caso da modificação dos demais factos impugnados, na medida em que seriam consequência daqueles.
Não resultando concretizada na acusação nem da prova produzida a violência exercida pelo demandado sobre a demandante, nem o abandono a que a votou, nem o desrespeito, nem as humilhações os vexames que lhe dirigia, inexistindo prova de que a demandante sentia receio pela sua integridade física ou vida, num momento de descontrole do demandado; que aquela teve forte impacto psicológico ou físico na demandante; que a fragilidade por aquela apresentada quando foi para a Casa Abrigo era resultado de comportamentos do demandando (a demandante não teve diagnóstico para a sua doença, com sintomas de “boca a esfolar e a zona íntima” levando a emagrecer 17 kg e a ir várias vezes ao médico que lhe receitou antibióticos que tomou e só depois, já na Casa Abrigo começou a melhorar); nem de que forma o arguido obrigou a demandante a mudar de casa; sendo o facto s) conclusivo; ou que em consequência sentiu tristeza, injustiça, vergonha ou culpa, desrespeito, e viu a sua auto-estima e auto-confiança abaladas; ficando a sofrer de insónia e pesadelos; deixando de interagir com o próprio filho.
Como assertivamente se assinala na sentença recorrida não é a circunstância de a demandante ter sido acolhida na Casa Abrigo, beneficiando do apoio que ali lhe foi disponibilizado que permite de per se e sem outros factos a extração de quaisquer ilações em termos de prova, sob pena de violação do princípio do acusatório e do princípio in dubio pro reo.
Em face do exposto, não se impõe a alteração dos factos das alíneas l) q) r) s) t) u) v) w) e x) do elenco dos factos não provados para os provados.
Finalmente, no que concerne aos factos do elenco dos factos não provados m), n), o), p) e y) sustenta a recorrente deverem passar para o elenco dos factos provados.
Como é bom de ver respeitando estes ao dolo a transferência dos mesmos para o elenco dos factos provados resultaria da prova respeitante aos factos ilícitos típicos objetivos, o que no caso não ocorre, razão para a não alteração daqueles para o elenco dos factos provados.
Em face do exposto, e não havendo de proceder a qualquer modificação havemos de ter por definitivamente fixados os factos vertidos na sentença, não havendo qualquer reparo a efetuar à ação cível conexa que absolveu o demandado do pedido, revelando-se assim improcedente neste segmento o recurso da recorrente no que à pretensão civil respeita.
No caso dos autos, o tribunal “a quo” deparou-se com duas versões contraditórias dos factos, uma trazida pelo arguido –que o iliba das condutas imputadas- outra pela assistente –que o compromete profundamente com estas. E o ponto é saber se perante as declarações da demandante haveria o Tribunal recorrido de acolher a versão desta em detrimento da do demandado, isto é, se a versão da demandante se impunha.
E a resposta foi negativa, por a versão da demandante não ter merecido uma credibilidade acrescida à do demandado. Ainda que não seja de todo inviável credibilizar uma versão em detrimento de outra que lhe seja contraditória, o que sucede, aliás, amiúde, é certo que se exige para tal um quadro probatório de objetividade, segurança, consistência, afinação e precisão acrescidas à prova, na qual se assente uma condenação (vide o Acórdão do TRP de 28.10.2015, proferido no processo 1381/13.1PBMTS.P1).
Não estamos no caso perante uma tal situação não só por todas as razões elencadas na motivação da sentença pelo Tribunal recorrido, onde se conclui que as declarações da demandante “(…) o discurso da ofendida convocou mais dúvidas do que os esclarecimentos que aportou (…)”.
Na verdade, e como efetuamos a audição integral das declarações da demandante e do demandado, logo alcançamos os fundamentos deste convencimento. Na verdade enquanto as declarações do demandado na sua globalidade apresentam-se objetivas, factuais, admitindo factos que lhe poderiam ser desfavoráveis, desde logo, que o divórcio e a subsequente partilha não foram mais que um estratagema para sonegar a casa à herança, considerando a existência de descendência extra-conjugal, o que se mostra muito mais credível e de acordo com as regras da experiência comum, que as razões da demandante, segundo a qual tudo foi motivado por ter descoberto a existência de tal descendência (existente antes do casamento), razão para sustentar ter querido a separação, mas ao mesmo passo terem ambos continuado a viver na mesma casa, mas, principalmente, por ter a demandante pretendido que continuassem a viver como um casal normal, como reconhece a dado passo das suas declarações ao dizer “ele foi indo, foi indo, é foi por exemplo de vez em quando íamos à praia, longe a longe íamos comer fora, cortou tudo logo, cortou tudo, não queria acompanhar comigo para lado nenhum (…)”, pretensão esta que não é compatível, com um divórcio a sério.
Acresce que a queixa da demandante da reação do demandado às diligências que encetou para a propositura do processo, com o sentido de ameaça e raiva não se compatibiliza com o transporte desta pelo demandado ao advogado, com tal finalidade. Por outro lado, a demandante do que quer que lhe aconteça responsabiliza do demandado, sem qualquer lastro objetivo, é a descrição de um rapaz num carro perto de casa, que espera que a persiga para o autocarro, o que não acontece e que atribui ao demandado, é o assalto à casa que atribui ao demandado; a doença de que é acometida, que tanto diz ser cancro como estar a ser envenenada, pelo demandado, -quando está a ser tratada com antibióticos pois a tinha boca e as partes íntimas, a esfolar, não estando diagnosticada a causa.
Estas, para além de outras inconsistências assinaladas na sentença recorrida, não habilitam a acolher a pretensão da recorrente quando afirma que os citados factos dados como não provados na decisão sob recurso deveriam ter sido julgados como assentes, pois não lograram ser circunstanciados.
Na verdade, o recurso da matéria de facto não se destina a neutralizar o princípio da livre apreciação da prova, o qual encontra consagração, expressa, no art. 127º do C.P.P.
A decisão do tribunal há-de ser sempre, como escreve o Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, VoI. I, 1974, pág. 204: “uma convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais”.
Com efeito na decisão recorrida constatamos ter sido feita uma criteriosa análise de toda a prova, que é fruto de uma convicção pessoal, a qual se mostrando explicada ao se expor a dúvida insanável que se instalou no espírito do julgador, por lhe ter merecido idêntica credibilidade as versões, contraditórias, apresentadas na audiência de discussão e julgamento, o que não permitiu que uma das versões prevalecesse, determinando a absolvição do demandado em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.
Analisada a sentença não surpreendemos qualquer erro de raciocínio na apreciação da prova, pois não se decidiu contra o que se provou ou não se provou havendo antes de reconhecer que a demandante manifestou, apenas, a sua discordância resultante da forma como o tribunal apreciou a prova produzida, na medida em que não foi acolhida a sua versão em detrimento da versão do demandado.
O tribunal na sua margem de liberdade concedida pelo artigo 127º, do C.P.P. formulou o seu juízo de valoração, que se revela expresso na fundamentação da sentença de modo lógico e racional, em função da razoabilidade e das regras da experiência comum, e no qual não detetamos erros de julgamento, nomeadamente por violação do princípio da legalidade da prova, do princípio da presunção da inocência e in dúbio pro reo.
Cumpre assinalar que o princípio in dubio pro reo é uma dimensão do princípio da presunção de inocência e configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado for a dúvida, razoável e insuperável, sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo, no espírito do julgador, uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
No caso, o julgador teve dúvidas insanáveis, sobre a dinâmica familiar deste casal e em obediência ao princípio in dubio pro reo absolveu o demandado, o que deixou cabalmente explicitado.
Assim, não pode deixar de se considerar que, no caso dos autos, se justifica que se adira à decisão recorrida, no sentido e nos limites consentidos pelo artigo 425.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, norma que dispensa maior justificação.
Assim, decai na totalidade o recurso da demandante.
3.2 Das custas
Sendo negado provimento ao recurso da demandante, impõe-se a condenação da recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 523º do Código de Processo Penal.
A taxa de justiça é fixada em 4 (quatro) unidades de conta.

IV- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Desembargadores da 4ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto, em:
- Rejeitar o recurso da ofendida e demandante AA, no que à parte penal da sentença respeita, por falta de legitimidade para desta recorrer nos termos dos artigos 401º, “a contrario” e 417º, nº 6. b) e 420º, nº 1 b) 414, nº 2 e 3 todos do Código de Processo Penal.
- Negar provimento ao recurso interposto pela demandante AA, no que ao pedido civil respeita, mantendo a decisão recorrida.
Condena-se a recorrente no pagamento da importância equivalente a 4 UC.

(A presente decisão foi processada em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Desembargadores adjuntos – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)

Porto, 22/10/2025 data certificada digitalmente
Isabel Monteiro
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa