I – Por força da alteração legislativa ao artigo 130º do Código da Estrada introduzida pelo decreto-lei nº 102-B/2020, de 09/12, tem que ser feita a destrinça entre caducidade provisória, que existe quando ainda é possível a renovação ou revalidação do título de condução, como nos casos previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do citado artigo 130º do CE, e definitiva quando tal não for possível, como nas situações subsumíveis ao disposto nas alíneas c), d) e e) do nº 1 do mesmo preceito.
II – Assim sendo, na actualidade, nas situações de caducidade temporária, o exercício da condução com a respetiva carta caducada é apenas sancionado como contraordenação, nos termos do nº 7, enquanto nas situações em que a caducidade é definitiva, e que na anterior versão do artigo 130º do CE correspondia ao cancelamento, o exercício da condução integra-se na previsão legal do artigo 3º, nº 1, do decreto-lei nº 2/98, de 03/01.
III – Donde, a caducidade do título por via da prática de infrações estradais no decurso do regime probatório, a par da cassação do título de condução, enquadra-se agora, como antes, nas situações de caducidade definitiva, não de caducidade provisória.
IV – De tudo isso deriva que a condução de veículo automóvel com licença de condução, em regime probatório, caducada definitivamente, por condenação, transitada em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução durante esse período, integra o cometimento em simultâneo da contraordenação prevista e punível pelo artigo 130º, nº 7, do Código da Estrada e o crime de condução sem habilitação legal previsto e punível pelo artigoº 3º, nºs. 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03/01,
V – Havendo concurso entre a contraordenação e crime, prevalece a punição da conduta observada pelo agente a título criminal.
Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Após realização da audiência de julgamento no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 151/22.0PFVNG do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi em 21.03.2025 proferida sentença, da qual se transcreve o respetivo dispositivo:
III. Dispositivo
Pelo exposto, o Tribunal decide:
1. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
2. Absolver o arguido AA pela prática de um crime de um crime de falsificação de documento, p. e. p. pelo artigo 256º, n.ºs 1, al. d) do Código Penal.
3. Substituir a pena de prisão de 10 (dez) meses de prisão pela prestação de 300 (trezentas) horas de trabalho a favor da comunidade;
4. Declarar perdoada a pena de prestação de 300 (trezentas) horas de trabalho a favor da comunidade, sob condição resolutiva de o arguido beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada, nos termos do artigo 8.º da sobredita Lei.
5. Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo penal, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça, nos termos do disposto nos artigos 513.º do Código de Processo Penal e artigos 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III anexa ao mesmo.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido AA, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. Veio o arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.e p, pelo artigo 3º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de janeiro na pena de 10 (dez) meses de prisão, substituída a pena pela prestação de 300 (trezentas) horas de trabalho a favor da comunidade; e consequentemente perdoada a pena, sob condição resolutiva de o arguido não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023.
2. Crê, no entanto, a defesa, que a conclusão de direito que resulta da sentença encontra-se ferida de erro na qualificação jurídica dos factos provados, uma vez que haveria de ter sido absolvido do crime de que veio acusado (independentemente da aplicação da Lei da amnistia).
Senão vejamos,
3. Anteriormente à data da prática dos factos vertidos nos presentes autos, o arguido havia sido já condenado por um crime de condução em estado de embriaguez praticado a 23.07.2019 cuja decisão transitou em julgado a 06.02.2020.
4. Isto é, durante o período em que se encontrava em regime probatório para obtenção de carta de condução definitiva.
5. Destarte, o Tribunal a quo considerou que à data da prática da factualidade julgada (22.02.2022) o arguido não era titular de carta de condução porque havia anteriormente caducado definitivamente, por caducidade em regime probatório.
6. Enquadramento jurídico que a defesa discorda, por não contemplar a alteração legislativa introduzida pelo DL 102-B/2020, de 09/12, e que de resto, tem efeitos imediatos na aplicação do caso concreto.
7. De acordo com o disposto na al. c) do art. 130º do Código da Estrada, o título de condução encontra-se caduco quando “ se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave”, cuja consequência será, conforme o nº 7 do mesmo preceito legal, a sanção com coima de (euro) 120 a (euro) 600.
8. Até porque diferentemente do regime atualmente em vigor, o por ora alterado nº 5 do art. 130º, previa exata e diretamente que os titulares de condução cancelados se consideravam não habilitados a conduzir veículos para os quais o título houvesse sido emitido.
9. Entendemos, por isso, desprovida de fundamento legal a destrinça elaborada na sentença recorrida quanto aos conceitos de caducidade temporária e definitiva, já que o legislador deixou notórias as alterações ao regime.
10. Seguimos o entendimento descrito no Ac. Do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.02.2025, Relator Ana Lúcia Gordinho, Proc nº. 663/24.1PBSNT.L1-5: Esta revogação tem necessariamente, de ser entendida como a vontade do legislador de distinguir o caso de caducidade durante o período probatório (anteriormente na alínea a)), dos atuais casos previstos nas alíneas c) e d), estando, agora, prevista a possibilidade de revalidação do título, nos termos do nº 4 da alínea a), Assim, da articulação destes nº 1, 3, 5 e 7, na atual redação do artigo 130º, resulta ter o legislador quis punir a condução com título caducado (nomeadamente as situações previstas no nº 2 e 4) como mero ilícito contraordenacional, na media em que tais condutores já anteriormente se submeteram a exames escritos e práticos, alcançando a respetiva aprovação que lhes permitiu obter o título de condução, e podem revalidar o título, sujeitando-se a um exame especial.”
11. Na verdade, o Tribunal a quo, reconhecendo que ultrapassa o âmbito legalmente previsto, acaba por se escudar nos elementos das regras de interpretação, previstos no artigo 9º do Código Civil, com ênfase no elemento histórico e sistemático, dado também as exigências de prevenção e proteção do bem jurídico protegido.
12. No entanto, no caso concreto, não se trata de uma interpretação extensiva, ntes sim, de uma solução não prevista, isto é – no máximo - numa lacuna normativa, que em direito penal não é possível de colmatar, pois senão que seria!
13. Não deve o julgador distinguir situações que a lé não distingue!
14. Por tudo o quanto exposto, consideramos que a qualificação jurídica da factualidade vertida deverá integrar a prática de um contraordenação p. e p. pelo artigo 130º, nº1, al. c) e nº 7 do Código da Estrada, e não na prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 3 de janeiro,
15. E consequentemente, pugnando pela revogação da sentença recorrida – nesta parte - ser o arguido absolvido da prática do crime de que resultou condenado.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, CONCEDENDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONFORMIDADE, REVOGANDO A SENTENÇA DE QUE SE RECORRE, FAR-SE-Á INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!
Por despacho proferido em 06.05.2025, foi o recurso regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público em primeira instância, apresentou resposta, na qual perfilha a decisão do tribunal no sentido de que a conduta perpetrada pelo arguido constitui crime e, não, contraordenação, e em reforço a tal posição, acrescenta, para além dos arestos mencionados pela Mm.ª Juiz e em idêntico sentido com o enquadramento jurídico realizado, pronunciaram-se, ainda, entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 23.2.2022, 14.12.2023 e 6.2.2024, disponíveis in www.djsi.pt/jtrl.
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no emitido parecer, manifesta adesão à sentença recorrida.
Efetuada a notificação a que se reporta o nº 2 do art. 417º do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Entre outros, pode ler-se no Ac. do STJ, de 15.04.2010, in www.dgsi.pt. “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.
Atentas as conclusões apresentadas, a única questão submetida ao conhecimento deste tribunal é a concernente ao:
- erro na qualificação jurídica da factualidade provada que deverá integrar a prática de uma contraordenação p. e p. pelo art. 130º, nº1, al. c) e nº 7 do Código da Estrada, e não a prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei nº 2/98 de 3/01.
Com relevo para a resolução da questão controvertida importa conferir a factualidade em que assenta a condenação proferida, incluindo a fundamentação de direito pertinente, que se transcrevem:
“II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DE FACTO
1.1. Factos Provados
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
- Constantes da acusação pública:
1. Por decisão datada de 23.07.2019, transitada em julgado a 6.02.2020, proferida pelo juízo local de pequena criminalidade do Porto, juiz 3, no âmbito do processo sumário n.º 465/19.7SJPRT, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor, prevista no artigo 69º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal, pelo período de 4 (quatro) meses.
2. O arguido foi notificado de todo o conteúdo dessa sentença e tomou assim conhecimento de que não podia conduzir veículos motorizados pelo período de quatro meses, tendo entregue a carta de condução nesse tribunal no dia 12.02.2020, a fim de cumprir aquela pena, com termo no dia 12.06.2020.
3. Não obstante, no dia seguinte ao dia da leitura da sentença – 24.07.20219 -, por saber que iria ficar sem poder conduzir por quatro meses e que para tanto teria de entregar naquele processo a sua carta de condução, o arguido solicitou no Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P, Direcção Regional do Norte, através do pedido com o n.º ..., por si assinado, uma 2ª via da carta de condução nº ....
4. Mais declarou sob compromisso de honra que “o documento ora requerido não se encontra apreendido quer por decisão judicial ou administrativa quer por autoridade fiscalizadora” e de que “Fico perfeitamente ciente de que, caso se comprove a falsidade da presente declaração, incorro em procedimento criminal”.
5. Foi, assim, emitida e entregue ao arguido uma segunda via do seu título de condução que aquele, a 22.02.2022, pelas 11h, no âmbito de uma fiscalização rodoviária levada a cabo pela PSP ..., que decorria na Rua ..., apresentou aos agentes que o abordaram, quando ali se encontrava a conduzir o veículo automóvel de matrícula ..-..-UT.
6. Contudo, nessa data, não era o arguido titular de qualquer título de condução que o permitisse conduzir veículos a motor na via pública, já que a sua carta de condução havia caducado definitivamente, por caducidade em regime probatório, a 06.02.2020.
7. O arguido ao solicitar a emissão de 2ª via da carta de condução, actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tal não havia sucedido e com a intenção de, quando viesse a ocorrer a entrega desse título no acima mencionado processo, continuar a ter na sua posse a sua carta de condução – 2ª via -, de forma a poder continuar a beneficiar das faculdades inerentes à detenção da carta de condução.
8. O arguido actuou ainda livre, deliberada e conscientemente, com intenção de conduzir, sem causa justificativa, aquela viatura, não obstante não ser já titular de carta de condução e saber que era imprescindível e necessário ser titular de carta de condução ou outro documento com força legal equivalente que o habilitasse a conduzir veículos motorizados na via publica, emitido e passado pelas entidades oficiais competentes.
9. O arguido sabia que a sua conduta referida em 6 e 7 era proibida e punida por lei.
- Quanto aos antecedentes criminais do arguido provou-se que:
10. Do CRC do arguido consta:
- em 06.02.2020, pela prática, em 08.07.2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, uma condenação na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €6, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 4 meses, extintas em 02.02.2021 e 12.06.2020, respectivamente;
- em 26.04.2022, pela prática, em 04.06.2018, de um crime de falsificação de documento, uma condenação na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €6, extinta em 31.10.2022;
- em 29.04.2024, pela prática, em 04.06.2018, de um crime de falsificação de documento, uma condenação na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €6, extinta em 31.10.2022;
- em 29.04.2024, pela prática, em 01.04.2023, de um crime de furto, uma condenação na pena de 140 dias de multa à taxa diária de €5.50.
- Quanto à situação económica, familiar, social e profissional do arguido provou-se que:
(…)
- Mais se provou:
12. O arguido é titular de carta de condução que o habilita à condução e veículos automóveis desde 27.08.2022.
(…)
2. De Direito
2.1. Enquadramento jurídico-penal
O arguido vem acusado da prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro.
Estabelece o n.º 1 do artigo 3.º em análise que “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada, é punido com pena de prisão até um 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
E o n.º 2 deste mesmo artigo prevê que “se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”.
Trata-se de um crime de perigo abstrato (que visa a antecipação da proteção de outros bens jurídicos, como a segurança rodoviária e, por via dela, a vida ou a integridade física dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas) e que se consuma logo com o mero ato da condução nas circunstâncias descritas no preceito legal em causa.
Além disso, tendo em atenção a natureza do veículo conduzido, o crime pode ser qualificado, se se tratar de motociclo ou automóvel, atenta a maior perigosidade que representa a condução de tal tipo de viaturas na via pública ou equiparada.
Quanto ao tipo subjetivo, a conduta tem de ser dolosa, em qualquer uma das suas modalidades previstas no art.º 14º do Código Penal.
O corpo do artigo em análise, conforme vimos, remete para os preceitos do Código da Estrada quanto à habilitação legal para o exercício da condução.
O Código da Estrada define, no artigo 105º, “automóvel” como “o veículo com motor de propulsão, dotado de pelo menos quatro rodas, com tara superior a 550 kg, cuja velocidade máxima é, por construção, superior a 25 km/h, e que se destina, pela sua função, a transitar na via pública, sem sujeição a carris”.
Por sua vez, nos termos do artigo 121º, n.º 1 deste código, só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.
Estabelece o artigo 121º, n.° 1 e 4 do Código da Estrada, respectivamente, que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver habilitado para o efeito” e “o documento que titula a habilitação para conduzir automóveis (...) designa-se carta de condução”.
O documento que titula a habilitação para conduzir automóveis e motociclos é, assim, a carta de condução, a qual é emitida pela entidade competente e válida para as categorias de veículos e períodos de tempo nela averbados.
A obtenção definitiva da carta de condução pressupõe, porém, a verificação de vários requisitos, entre os quais o não cometimento de certas infracções durante o período de provisoriedade do título.
Destarte, estabelece o artigo 122.°, n.° 1 do Código da Estrada que “A carta de condução emitida a favor de quem ainda não se encontrava legalmente habilitado a conduzir qualquer categoria de veículos fica sujeita a regime probatório durante os três primeiros anos da sua validade".
Acrescentando o n.° 2 da mesma disposição normativa que “Se, no período referido no número anterior, for instaurado contra o titular da carta de condução procedimento do qual possa resultar a condenação pela prática de crime por violação de regras de circulação rodoviária, contraordenação muito grave ou segunda contraordenação grave, o regime probatório é prorrogado até que a respetiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva’ e o n.° 5 que “O regime probatório cessa uma vez findos os prazos previstos nos n.os 1 ou 2 sem que o titular seja condenado pela prática de crime, contraordenação muito grave ou por duas contraordenações graves".
Revertendo agora as considerações expandidas para o caso dos autos, verifica-se que por decisão datada de 23.07.2019, transitada em julgado a 6.02.2020, proferida pelo juízo local de pequena criminalidade do Porto, juiz 3, no âmbito do processo sumário n.º 465/19.7SJPRT, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor, prevista no artigo 69º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal, pelo período de 4 (quatro) meses.
O arguido foi notificado de todo o conteúdo dessa sentença e tomou assim conhecimento de que não podia conduzir veículos motorizados pelo período de quatro meses, tendo entregue a carta de condução nesse tribunal no dia 12.02.2020, a fim de cumprir aquela pena, com termo no dia 12.06.2020.
No dia 22.02.2022, pelas 11h, no âmbito de uma fiscalização rodoviária levada a cabo pela PSP ..., que decorria na Rua ..., apresentou aos agentes que o abordaram, quando ali se encontrava a conduzir o veículo automóvel de matrícula ..-..-UT.
Contudo, nessa data, não era o arguido titular de qualquer título de condução que o permitisse conduzir veículos a motor na via pública, já que a sua carta de condução havia caducado definitivamente, por caducidade em regime probatório, a 06.02.2020.
Importa, pois, apurar a forma como é sancionada tal conduta do arguido.
Ora, com interesse para a apreciação do caso dos autos, importa atender ao disposto no artigo 130.° do Código da Estrada.
Cumpre, porém, desde já, salientar que tal disposição normativa sofreu alterações na sua redacção, introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 102-B/2020, de 09.12, as quais entraram em vigor a partir do dia 08.01.2021.
À data da prática dos factos (22.02.2022), estava, portanto, em vigor a nova redacção do artigo 130.° do Código da Estrada.
Dispõe atualmente o art.º 130º do CE sob a epígrafe «caducidade dos títulos de condução», que:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
e) O condutor falecer.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior;
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) (Revogada.)
b) (Revogada.)
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:
a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;
b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
6 - (Revogado.)
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.»
Anteriormente às ditas alterações introduzidas pelo D.L. 102-B/2020, de 09/12, era o seguinte o teor deste mesmo preceito legal:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º.
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.»
Podemos assentar que das alterações introduzidas ao art.º 130º do CE pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12, resulta que, nas situações de caducidade temporária (seja qual for a sua razão, pois o legislador não as distingue) - isto é, em que o título pode ser revalidado (trata-se de revalidação e não de novo título) -, o exercício da condução com a respetiva carta caducada é apenas sancionado como contraordenação, nos termos do nº 7 do art.º 130º do CE («Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600»); ao passo que nas situações em que a caducidade é definitiva (e que na anterior versão do art.º 130º do CE correspondia ao “cancelamento”) o exercício da condução integra-se na previsão legal do art.º 3º, nº 1, do DL nº 2/98, de 03.01, na medida em que «Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução» (nº 5 do art.º 130º do CE).
O n.º 5 daquele preceito reporta-se às situações de caducidade definitiva, daí a parte final do preceito em causa, que mais não fez do que incorporar a anterior redação do nº 6 do art.º 130º, também ele revogado pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12.
Ora, a nosso ver, as situações de caducidade definitiva (equivalente às situações de “cancelamento”, figura que desapareceu com a alteração legislativa decorrente das alterações introduzidas ao nº 3 do art.º 130º pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12), reportam-se não só às als. c) e d) do nº 3 do art.º 130º do CE (nova redação), mas também às als. c) e d) do nº 1 do mesmo preceito legal.
Isto é, a revogação a que se reporta as als. a) e d) do nº 3 do art.º 130º do CE (correspondente também às hipóteses legais das als. c) e d) do nº 1) não consente a interpretação de que o legislador pretendeu que tais condutas caíssem apenas na alçada contraordenacional, porquanto teria considerado suficiente esta forma de tutela menos gravosa em obediência ao princípio da intervenção mínima ou de última ratio do direito penal (cfr. o art.º 18º, nº 2, da CRP, segundo a qual «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»).
Na verdade, tendo em conta a exposição de motivos constante DL nº 120-B/2020, de 09.12, em que, além do mais, assume-se como objetivo primordial potenciar a segurança rodoviária, daí se extrai um indicador de que a intenção do legislador não possa ter sido o de, por desnecessidade, deixar de punir criminalmente situações equivalentes a quem nunca se habilitou para conduzir, quando é certo que não diminuíram de todo as necessidades de prevenção rodoviária em face dos altos índices de sinistralidade estradal que se continuam a verificar ano após ano.
É por isso que a Lei da Política Criminal anterior (Lei n.º 55/2020, de 27.08) consignava no seu anexo que «Releva-se, ainda, que a segurança rodoviária é uma prioridade que exige continuado planeamento, coordenação, empenhamento de meios e capacidade administrativa. De acordo com os dados do RASI de 2019, verificaram-se, face a 2018, mais 3738 acidentes rodoviários (+ 2 /prct.). Os resultados demonstram a existência de mais 2 vítimas mortais (+ 0,2 /prct.)».
No mesmo sentido, na nova Lei da Política Criminal (Lei n.º 51/2023, de 28.08), no respetivo anexo, a dado passo, consta que «São de notar também os objetivos específicos que se relacionam com o incêndio florestal, os crimes contra a natureza e o ambiente e a criminalidade rodoviária, cuja incidência estatística permanece, sendo por isso objeto de específicas orientações de política criminal. (…) Quanto aos crimes rodoviários, genericamente, apresentaram um aumento de 12 /prct. em 2021 e de 21,5 /prct. em 2022, onde se incluem os crimes que integram o direito penal de justiça. São, por isso, de prevenção prioritária. Reflexamente, quando de tais crimes resultar a morte ou ofensas à integridade física graves, a investigação será prioritária.»
Ademais, nesse contexto, não faria qualquer sentido diminuir o grau de proteção do bem jurídico protegido (segurança rodoviária e, indiretamente, a vida, a integridade física e mesmo o direito de propriedade dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas) nas situações do exercício de condução por alguém que, com o seu passado estradal, provou não estar apto ao exercício da condução, de modo tal que, para obter nova carta de condução, terá se habilitar com exame especial (teórico e prático, além de frequência com aproveitamento de ação de formação), nos termos do art.º 37º do RHLC, mais exigente até em relação a quem se propõe encartar pela primeira vez.
Para além disso, da conjugação do disposto nos arts. 16º e 17º do RHLC (que, respetivamente, definem as condições de validade dos títulos de condução e da sua revalidação) e do preceituado no art.º 129º, nºs 1 e 5, do CE, emerge que a caducidade da carta de condução seja por não se ter ultrapassado com sucesso o regime probatório (al. c) do nº 1 do art.º 130º) seja por cassação (al. d) do nº 1 do art.º 130º) não se integra na previsão legal respeitante à revalidação de títulos.
É por isso que, nessas circunstâncias, só é emitido novo título uma vez cumpridos pelo candidato os pressupostos do novo exame especial e ação de formação impostos pelo art.º 37º, nº 1, al. b), do RHLC.
Isto é, nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art.º 130º do CE, tem-se a carta de condução por definitivamente caducada e, caso se pretenda a obtenção de novo título, em face do seu passado estradal, o legislador prevê que o candidato se submeta a um exame especial teórico e prático e a frequência com aproveitamento ação de formação com vista à obtenção de nova carta de condução. Não se trata de revalidação do anterior título, mas da obtenção de um novo título, sinal de que a caducidade do anterior título é definitiva.
Estamos, pois, na hipótese legal do nº 5 do art.º 130º do CE quando alguém exerce a condução com a carta caducada nos termos das als. c) e d) do nº 1.
Com efeito, os títulos que em certas situações de caducidade careciam de cancelamento por banda da ANSR para que a caducidade fosse definitiva (art.º 130º, nºs 1, als. c) e d), e 3, als. a) e b), do art.º 130º na anterior redação), com a alteração legislativa vinda de referir – desaparecida que está a figura do “cancelamento” – a mesma tornou-se definitiva, ope legis, daí que a manutenção das als. a) e b) do nº 3 do mesmo artigo segundo a redação anterior fosse redundante (ocorrendo por esse motivo, ao que cremos, a sua revogação pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12).
Por todo o exposto, esta é a única interpretação que se deve extrair em face das alterações legais introduzidas pelo DL nº 120-B/2020, de 09.12, se, na tarefa de perscrutar a intenção do legislador, temos de partir do pressuposto que este consagrou a solução mais acertada e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º, nº 3, do Código Civil), quando é certo que «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (nº 1 do art.º 9º), ainda que se conceda que os elementos teleológico e histórico na interpretação de normas penais devam ser tidos em conta com cautela, por força do princípio da tipicidade e sem esquecer que, como adverte o nº 2 do art.º 9º do Código Civil «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
Acresce que o nosso entendimento em nada contende com a remissão em bloco efetuada pelo legislador no nº 7 do art.º 130º do CE para o nº 1 do mesmo preceito.
Uma conduta pode simultaneamente integrar uma contraordenação e um crime.
É o caso dos autos.
O exercício da condução nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art.º 130º não exclui necessariamente a sua punição a título de crime, prevalecendo a punição da conduta observada pelo agente a título criminal, cujo processo deve ser processado tendo em atenção o disposto nos arts. 38º e 39º do Regime Jurídico das Contraordenações e Coimas (aprovado pelo DL nº 433/82, de 27.10).
Daí a desnecessidade de qualquer interpretação restritiva do nº 7 do art.º 130º do CE.
Ademais, para além do referido, a interpretação de que a situação dos autos reporta-se a uma caducidade provisória e que por isso só é punível a título de contraordenação levaria a situações absolutamente incongruentes, pondo mesmo em causa a unidade de todo o sistema punitivo ligado à circulação rodoviária, como por exemplo, quem, estando encartado, mas estando inibido de conduzir, exerce a condução e por isso comete um crime (de violação de proibições, p. e p. pelo art.º 353º do Código Penal); mas quem exerce a condução conforme resulta dos autos poderia fazê-lo indefinidamente sem qualquer sanção criminal (apenas contraordenacional e, naturalmente, sem qualquer sanção acessória de proibição associada, por não prevista, como não tinha de estar, visto que o agente não está sequer habilitado a conduzir nos termos do CE).
No limite, o infrator, nessas circunstâncias, com título caducado, poderia não ter interesse em renová-lo e preferir arriscar o exercício da condução se esta apenas se consubstanciar numa infração contraordenacional apenas sancionada com coima.
Infrator esse que não reúne as condições legalmente impostas para o exercício da condução, tomando em consideração que «Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito» (art.º 121º, nº 1, do CE) e que, atento o seu passado como condutor, provou não reunir as condições necessárias para o exercício daquela atividade perigosa em segurança, colocando em risco direitos essenciais dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas.
Em suma, para efeitos de criminalização do exercício da condução “sem habilitação legal”, apenas se integra no tipo legal do nº 1 do art.º 3º do DL nº 2/98, de 03.01, o exercício da condução por quem nunca se habilitou com a respetiva carta de condução ou, tendo-se habilitado com a mesma, esta estiver definitivamente caducada, pois só tais situações são equivalentes, justificando-se assim o tratamento igual em termos de criminalização.
Como é o caso dos autos.
Veja-se ainda que, pese embora reportadas à caducidade da carta de condução por cassação, no sentido de que o agente comete o crime aqui em causa, assim se pronunciaram os acs da RE de 13.09.2022, proc. nº 20/22.4GDPTM.E1; e da RG, proc. nº 87/21.2GBVVD.G1, bem como o RLx de 07.03.2024 proc. N.º 243/23.9GEALM.L1-9, e da RP de 13.10.2021 proc. N.º 8/21.2GCPRT.P1, todos acessíveis e www.dgsi.pt.
Por conseguinte, deve ser assim o arguido condenado pela prática, a título de autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01.
(…)”
O recurso em apreço versa apenas sobre matéria de direito, posto que a irresignação do recorrente se direciona unicamente contra a qualificação jurídica da factualidade provada, entendendo que a mesma deverá integrar a prática de uma contraordenação p. e p. pelo art. 130º, nº1, al. c) e nº 7 do Código da Estrada, e não a prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 2 do Dec.-Lei nº 2/98 de 3/01.
Considerando que a decisão recorrida não patenteia quaisquer anomalias, v.g. nulidades insanáveis ou vícios, carecidas de conhecimento e reparação oficiosos, importa apreciar a questão suscitada pelo recorrente.
Avançando.
Para sustentar a sua posição, alega essencialmente o recorrente que, aquando da fiscalização rodoviária que deu origem aos presentes autos, designadamente a 22.02.2022, o tribunal a quo entendeu que o arguido não era titular de carta de condução por que havia anteriormente caducado definitivamente, por caducidade em regime probatório.
Porém, sustenta aquele que o tribunal a quo esteve mal, não atendendo devidamente à alteração legislativa ocorrida – nova redação do art. 130º do Código da Estrada (Caducidade dos títulos de condução) – devendo a penalização da conduta perpetrada pelo agente corresponder à do nº 7 do referido preceito legal e al. c) do nº 1, e assim ser sancionado por uma mera contraordenação punida com coima.
Isto porque antes da alteração legislativa introduzida pelo DL 102-B/2020, de 09/12, a lei consagrava o cancelamento do título de condução nas concretas circunstâncias que posteriormente enquadra apenas no âmbito da caducidade do título.
Refere por isso que a interpretação levada a efeito na sentença e que se socorre da destrinça de conceitos entre caducidade temporária e definitiva é completamente vazia de fundamento legal.
Vejamos então se a condução de veículo automóvel com licença de condução, em regime probatório, caducada definitivamente, por condenação, transitada em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução durante esse período, redunda no cometimento de uma contraordenação como defende o recorrente ou, de um crime de crime de condução sem habilitação legal, como entendeu o tribunal recorrido.
Cumpre então resolver a forma como é sancionada a conduta do arguido, o qual à data em que foi fiscalizado quando se encontrava a conduzir o veículo automóvel de matrícula ..-..-UT – 22.02.2022 - não era titular de qualquer título de condução que o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública, pois que a sua carta de condução havia caducado definitivamente, por caducidade em regime probatório, a 06.02.2020, como resulta da factualidade apurada.
Isto, não obstante, estar na posse de uma segunda via do seu título de condução que solicitou ao IMT, no dia seguinte ao dia da leitura da sentença - 24.07.20219 - proferida no âmbito do processo sumário n.º 465/19.7SJPRT, em que foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, n.º 1 do CP, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor, pelo período de 4 (quatro) meses, e por saber que iria ficar sem poder conduzir por aquele período.
Atentemos.
Não vemos necessidade de repisar o enquadramento legal da questão em exame que, de resto, a decisão revidenda explana em termos proficientes, mas, ainda assim, recordar apenas que o tipo objectivo do crime imputado ao arguido e pelo qual veio a ser condenado na pena de 10 (dez) meses de prisão – art. 3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei n.º 2/98, de 03/01 - é constituído pelo acto de condução de um veículo a motor (automóvel ou motociclo), na via pública ou equiparada, sem que o agente esteja legalmente habilitado para exercer tal actividade.
O documento que titula a habilitação para conduzir automóveis e motociclos é a carta de condução, a qual é emitida pela entidade competente e válida para as categorias de veículos e períodos de tempo nela averbados, tal como deflui do disposto no art. 121º do Código da Estrada nºs 1, 4 e 9 que sob o titulo “Habilitação legal para conduzir”, dispõe:
1 - Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.
(…)
4 - O documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos, automóveis e veículos agrícolas, exceto motocultivadores operados a pé, designa-se carta de condução.
(…)
9 - As cartas de condução são emitidas pelo IMT, I. P. aos cidadãos que provem preencher os respetivos requisitos legais, sendo válidas para as categorias de veículos e pelos prazos legalmente estabelecidos.
No art. 122º do antedito Código da Estrada sob o título “Regime probatório” prevê-se:
1 - A carta de condução emitida a favor de quem ainda não se encontrava legalmente habilitado a conduzir qualquer categoria de veículos fica sujeita a regime probatório durante os três primeiros anos da sua validade.
2 - Se, no período referido no número anterior, for instaurado contra o titular da carta de condução procedimento do qual possa resultar a condenação pela prática de crime por violação de regras de circulação rodoviária, contraordenação muito grave ou segunda contraordenação grave, o regime probatório é prorrogado até que a respetiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva.
(…)
5 - O regime probatório cessa uma vez findos os prazos previstos nos n.os 1 ou 2 sem que o titular seja condenado pela prática de crime, contraordenação muito grave ou por duas contraordenações graves.
Na presente situação, em suma, rediz-se, a carta de condução do aqui recorrente havia caducado definitivamente, por caducidade em regime probatório, a 06.02.2020 (em consequência do cometimento de crime durante o regime probatório de três anos ali estabelecido), pelo que, quando conduziu nas circunstâncias espácio-temporais descritas nestes autos (22.02.2022), não era titular de qualquer título de condução que o permitisse conduzir veículos a motor na via pública.
Aqui chegados, o que importa é destrinçar de que forma é sancionada tal conduta do arguido.
Tal como na sentença é perfeitamente explicado, a este respeito é imperioso atender ao disposto no art. 130º do Código da Estrada que trata da “caducidade dos títulos de condução”, ali se salientando que as alterações introduzidas à antedita norma pelo Dec. Lei n.º 102-B/2020, de 09.12, (que entraram em vigor a partir do dia 08.01.2021) não deixam margem para dúvida quanto à conclusão de que a conduta do ora recorrente integra a prática, para além de uma contraordenação p. e p. pelo art.º 130º, nº 7, do CE, na prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01.”, posição que também perfilhamos.
A interpretação do art. 130º do Código da Estrada, concretamente, o seu nº 1, c) e nº 7 feita na decisão recorrida após as sobrevindas e aludidas alterações, afigura-se-nos a correta, considerando que a condução de veículo automóvel com licença de condução, em regime probatório, caducada definitivamente, por condenação, transitada em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução durante esse período, integra o cometimento em simultâneo da contraordenação aí prevista e o crime de condução sem habilitação legal, havendo concurso entre a contraordenação e crime, nos termos do art. 38º, nº1, do RGCO.
É aliás esta também a posição adotada pelo Ministério Público em ambas as instâncias.
Em situação similar tratada no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.03.2024[i] e que nos merece concordância conclui-se “a caducidade da carta de condução pela prática de infrações durante o período probatório é causa de caducidade definitiva, a qual opera ope legis, visto que desapareceu a figura do “cancelamento” por força das alterações introduzidas ao art.º 130º do CE pelo DL nº 102-B/2020, de 09.12;
A condução de veículo ligeiro de passageiros na via pública ou equiparada por alguém cuja carta de condução se encontra caducada pela prática de infrações rodoviárias durante o regime probatório, pode consubstanciar-se, para além de uma contraordenação p. e p. pelo art.º 130º, nº 7, do CE, na prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 03.01.”
Conferindo as referidas alterações legislativas dispõe atualmente o art. 130º do CE sob a epígrafe “caducidade dos títulos de condução”, que:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
e) O condutor falecer.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior;
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) (Revogada.)
b) (Revogada.)
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:
a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;
b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
6 - (Revogado.)
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.
Anteriormente às ditas alterações introduzidas pelo D.L. 102-B/2020, de 09/12, era o seguinte o teor deste mesmo preceito legal:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º.
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.”
Antes de mais convém afirmar que, e face à discordância manifestada pelo recorrente, que, por força da alteração legislativa mencionada – “cancelamento” do titulo de condução nas concretas circunstâncias que posteriormente apenas se enquadram no âmbito da caducidade do título - efetivamente tem que ser feita a destrinça entre caducidade provisória, que existe quando ainda é possível a renovação ou revalidação do título de condução, como nos casos previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 130º do CE, e definitiva quando tal não for possível, como nas situações subsumíveis ao disposto nas alíneas c), d) e e) do nº 1 do art. 130º do CE.
E assim, é para nós ponto assente que na actualidade, nas situações de caducidade temporária, o exercício da condução com a respetiva carta caducada é apenas sancionado como contraordenação, nos termos do nº 7, enquanto nas situações em que a caducidade é definitiva (e que na anterior versão do art. 130º do CE correspondia ao “cancelamento”) o exercício da condução integra-se na previsão legal do art. 3º, nº 1, do DL nº 2/98, de 03.01 – cfr. nº 5 (que se reporta às situações de caducidade definitiva). Daí a parte final do preceito, que mais não fez do que incorporar a anterior redação do nº 6 do art. 130º, (revogado pelo DL nº 102-B/2020, de 09.12).
O nº 5 que antes se aplicava aos títulos cancelados, passa agora a prever que os titulares de título de condução caducado se consideram, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122º caso venham a obter novo título de condução (assim integrando ainda o que anteriormente constava do nº 6).
E, nos termos do disposto no art. 3º, nº1 do Dec. Lei nº 2/98, de 03/01, comete o crime de condução sem habilitação legal quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada.
Pelo que, apenas quando a caducidade do título for considerada definitiva, deverá punir-se o exercício da condução pelo crime de condução sem habilitação legal, reservando-se a punição meramente contraordenacional para os casos de caducidade provisória.
Como se aclara no citado aresto da Relação de Lisboa de 07.03.2024, “as situações de caducidade definitiva (equivalente às situações de “cancelamento”, figura que desapareceu com a alteração legislativa decorrente das alterações introduzidas ao nº 3 do art.º 130º pelo DL nº 102-B/2020, de 09.12), reportam-se não só às als. c) e d) do nº 3 do art.º 130º do CE (nova redação), mas também às als. c) e d) do nº 1 do mesmo preceito legal.
Isto é, a revogação a que se reporta as als. a) e d) do nº 3 do art.º 130º do CE (correspondente também às hipóteses legais das als. c) e d) do nº 1) não consente a interpretação de que o legislador pretendeu que tais condutas caíssem apenas na alçada contraordenacional, porquanto teria considerado suficiente esta forma de tutela menos gravosa em obediência ao princípio da intervenção mínima ou de última ratio do direito penal (cfr. o art.º 18º, nº 2, da CRP, segundo a qual «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»).
Assim, e se por um lado olhando à exposição de motivos constante DL nº 102-B/2020, de 09.12 (A promoção da segurança rodoviária e a diminuição da sinistralidade são prioridades assumidas no Programa do XXII Governo Constitucional, à semelhança do que já sucedia no âmbito do programa do anterior Governo, em cujo mandato foi aprovado o Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária (PENSE 2020), através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 85/2017, de 19 de junho.), em que, “além do mais, assume-se como objetivo primordial potenciar a segurança rodoviária, daí se extrai um indicador de que a intenção do legislador não possa ter sido o de, por desnecessidade, deixar de punir criminalmente situações equivalentes a quem nunca se habilitou para conduzir, quando é certo que não diminuíram de todo as necessidades de prevenção rodoviária em face dos altos índices de sinistralidade estradal que se continuam a verificar ano após ano.”, como se enfatiza no antedito Acórdão.
Por outro, as alterações legislativas em causa em bom rigor, mais não traduzem do que alterações formais e de procedimento, e não tanto modificações substanciais do regime concernente legal. É que sequer o preâmbulo do diploma em questão, aponta para que o legislador tenha pretendido por via deste diploma legal, alterar significativamente o regime punitivo de quem conduz com o título de condução caducado, muito menos no sentido da sua despenalização, nos casos que anteriormente dariam lugar ao cancelamento do título e ao cometimento do crime de condução sem habilitação legal, quais sejam, a cassação do título de condução ou condenação definitiva de condutor em regime probatório por crime ou infrações estradais graves.
Mais uma vez, retomando a fundamentação inserta no aresto referenciado, “não faria qualquer sentido diminuir o grau de proteção do bem jurídico protegido (segurança rodoviária e, indiretamente, a vida, a integridade física e mesmo o direito de propriedade dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas) nas situações do exercício de condução por alguém que, com o seu passado estradal, provou não estar apto ao exercício da condução, de modo tal que, para obter nova carta de condução, terá se habilitar com exame especial (teórico e prático, além de frequência com aproveitamento de ação de formação), nos termos do art.º 37º do RHLC, mais exigente até em relação a quem se propõe encartar pela primeira vez.
Para além disso, da conjugação do disposto nos arts. 16º e 17º do RHLC (que, respetivamente, definem as condições de validade dos títulos de condução e da sua revalidação) e do preceituado no art.º 129º, nºs 1 e 5, do CE, emerge que a caducidade da carta de condução seja por não se ter ultrapassado com sucesso o regime probatório (al. c) do nº 1 do art.º 130º) seja por cassação (al. d) do nº 1 do art.º 130º) não se integra na previsão legal respeitante à revalidação de títulos.
É por isso que, nessas circunstâncias, só é emitido novo título uma vez cumpridos pelo candidato os pressupostos do novo exame especial e ação de formação impostos pelo art.º 37º, nº 1, al. b), do RHLC.
Isto é, nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art.º 130º do CE, tem-se a carta de condução por definitivamente caducada e, caso se pretenda a obtenção de novo título, em face do seu passado estradal, o legislador prevê que o candidato se submeta a um exame especial teórico e prático e a frequência com aproveitamento ação de formação com vista à obtenção de nova carta de condução.
Esta, parece-nos ser a interpretação acertada que se deve extrair em face das sobreditas alterações legais introduzidas pelo DL nº 102-B/2020, recordando-se, no que toca à tarefa de interpretação da lei o que rege o art. 9º do Código Civil:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Sendo assim, não temos dúvidas que o nº 7 do art. 130º e a punição do exercício da condução como ilícito de mera ordenação social ficam reservados para as situações de caducidade provisória, em que está ainda ao alcance do titular do título de condução caducado proceder à sua revalidação ou renovação, como previsto no nº 1, a), b), 2 e 4, c), com referência ao art. 17º e 37º, nº 1, al. c), do RHLC (Regulamento da habilitação legal para conduzir).
Nem sequer se mostra necessária uma qualquer interpretação restritiva de tal normativo, perante a remissão em bloco efetuada pelo legislador no nº 7 do art. 130º do CE para o nº 1 do mesmo preceito, já que uma conduta pode simultaneamente integrar uma contraordenação e um crime, como se verifica neste nosso caso.
Pelo que o exercício da condução nas hipóteses das als. c) e d) do nº 1 do art. 130º não exclui necessariamente a sua punição a título de crime, prevalecendo a punição da conduta observada pelo agente a título criminal, cujo processo deve ser processado tendo em atenção o disposto nos arts. 38º e 39º do Regime Jurídico das Contraordenações e Coimas (aprovado pelo DL nº 433/82, de 27.10).
A interpretação pugnada pelo recorrente de que a lei não distingue as ditas situações e sendo assim não poderá o julgador fazê-lo, tendo eventualmente de ser entendida como uma lacuna, não colhe.
Antes, a caducidade do título por via da prática de infrações estradais no decurso do regime probatório, a par da cassação do título de condução, enquadra-se agora, como antes, nas situações de caducidade definitiva, não de caducidade provisória.
É que se assim fosse entendido, estaria a pôr em causa a unidade de todo o sistema punitivo ligado à circulação rodoviária, como se chama a atenção no aresto vindo de referir.
E assim como ali se exemplifica, “quem, estando encartado, mas estando inibido de conduzir, exerce a condução e por isso comete um crime (de violação de proibições, p. e p. pelo art.º 353º do Código Penal); mas quem exerce a condução conforme resulta dos autos poderia fazê-lo indefinidamente sem qualquer sanção criminal (apenas contraordenacional e, naturalmente, sem qualquer sanção acessória de proibição associada, por não prevista, como não tinha de estar, visto que o agente não está sequer habilitado a conduzir nos termos do CE).
No limite, o infrator, nessas circunstâncias, com título caducado poderia não ter interesse em renová-lo e preferir arriscar o exercício da condução se esta apenas se consubstanciar numa infração contraordenacional apenas sancionada com coima.
Infrator esse que não reúne as condições legalmente impostas para o exercício da condução, tomando em consideração que «Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito» (art.º 121º, nº 1, do CE) e que, atento o seu passado como condutor, provou não reunir as condições necessárias para o exercício daquela atividade perigosa em segurança, colocando em risco direitos essenciais dos demais utentes das vias públicas ou equiparadas.”.
E, portanto, cremos que a única posição defensável é a de que para efeitos de criminalização do exercício da condução “sem habilitação legal”, integra-se no tipo legal do nº 1 do art. 3º do Dec. Lei nº 2/98, de 03.01, o exercício da condução por quem nunca se habilitou com a respetiva carta de condução ou, tendo-se habilitado com a mesma, esta estiver definitivamente caducada, pois tais situações são equivalentes, justificando-se assim o tratamento igual em termos de criminalização.
Como ocorre no caso vertente.
Em sentido idêntico confira-se o Ac. da mesma Relação de Lisboa de 14.12.2023[ii] onde se explana no respetivo sumário:
I–A interpretação do disposto no artigo 130º do Código da Estrada segundo a qual o condutor que, sujeito a regime probatório, e que cometeu uma contraordenação muito grave no exercício da condução, incorre apenas em coima nos termos do nº 7 se conduzir, contraria a letra, o espírito e a história da lei, sendo também desconforme com a globalidade do regime jurídico da obtenção e validade dos títulos de condução, pondo em causa a unidade do sistema, devendo, por isso, ser afastada.
II–As alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09/12 ao Código da Estrada não modificaram o que foram as opções essenciais do legislador quanto à distinção entre as situações de caducidade provisória decorrente da não revalidação/renovação do título de condução até ao limite
de 10 anos desde o fim do prazo legal para o efeito, e as situações caducidade definitiva, na prática, as mesmas que anteriormente determinavam o cancelamento do título de condução, e nas quais se continua a incluir a caducidade derivada de cassação do título ou de condenação definitiva pela prática de infrações estradais no decurso do regime probatório.
III–Não pode equiparar-se a situação do condutor em regime probatório que pratica crime estradal, ou infrações graves ou muito graves determinantes da perda do título provisório de condução, à do condutor cujo título caducou por decurso do tempo e não o revalidou no prazo legal previsto para o efeito; apenas neste último caso se pode falar de revalidação do título de condução, como resulta do estabelecido no art. 17º do RHLCE, pois que apenas se pode revalidar o que existe mas está em vias de perder validade.
IV–Nos casos de cassação do título de condução ou de condenação definitiva de condutor em regime de prova por crime ou infrações estradais no exercício da condução, deixou de existir título, considerando-se os respetivos condutores, como previsto no nº 5 do artigo 130º do Código da Estrada como não habilitados a conduzir; aquele que conduzir nestas condições, verificados os demais factos integradores do respetivo tipo legal, comete o crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01.
E ainda, pese embora reportadas à caducidade da carta de condução por cassação, no sentido de que o agente comete o crime aqui em causa, se pronunciaram os Acórdão da RE de 13.09.2022, proc. nº 20/22.4GDPTM.E1; e da RG, proc. nº 87/21.2GBVVD.G1, ambos acessíveis e www.dgsi.pt.
Sem necessidade de mais considerações, e pelo exposto, improcede a pretensão recursiva, mantendo-se a condenação do recorrente nos precisos termos que constam da sentença recorrida.
Nestes termos, improcede o recurso.
3. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, e consequentemente confirmar, na integra, a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
Notifique.
Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
Porto, 22 de outubro de 2025
Cláudia Rodrigues
Maria Deolinda Dionísio
Isabel Monteiro
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