TÍTULO DE CONDUÇÃO
CANCELAMENTO
CADUCIDADE
CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM MOTOR
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONTRAORDENAÇÃO
Sumário

I - Comparando a redação do art.º 130.º do Código da Estrada, antes e depois das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9/12, resulta que o atual texto deixou de prever o cancelamento dos títulos de condução, prevendo a sua caducidade.
II - A decisão de cassação do título de condução nos termos do art.º 148.º do Código da Estrada determina agora a sua caducidade [al. d) do n.º 1 do art.º 130.º]. Diferentemente, na redação anterior, implicava o cancelamento do título de condução, sendo, consequentemente, a condução com o título de condução cassado cominada como crime de condução sem habilitação legal [art.º 130.º, nºs 3, al. b), e n.º 5].
III - Quanto à condução com titulo caducado, apenas era sancionada como contraordenação, e assim continuou não obstante a alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020.
IV - Ao sancionar no n.º 7 do art.º 130.º do Código da Estrada com coima as situações previstas no n.º 1, o legislador pretendeu, de forma expressa, aliás, tipificar as situações de cassação de título de condução como contraordenação e não como crime. Diferente interpretação seria contra legem e afrontaria o disposto no art.º 9.º do Código Civil.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo: 33/25.4PTAVR.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

Realizado julgamento em processo sumário, por sentença de 24.03.2025, proferida no Juízo Local Criminal de Aveiro, foi decidido julgar a acusação improcedente e, em consequência:

a) absolver o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º1 e 2 do Decreto-lei n.º2/98, de 3 de Janeiro;

b) plasmar que os factos descritos nos factos provados configuram a prática da contra-ordenação prevista e sancionada pelo n.º7 do artigo 130.º do Código da Estrada;

c) condenar o arguido no pagamento de custas e demais encargos com o processo, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC’s;

d) após trânsito:

i) determina-se que se notifique o arguido nos termos constantes da alínea e) do n.º1 do artigo 175.º do Código da Estrada, mais concretamente para que, querendo proceda, voluntariamente, ao pagamento da coima pelo mínimo legal (€120,00), no prazo de 15 dias úteis a contar da data de notificação para o efeito, com a advertência de que:

a) caso proceda a tal pagamento, nos termos do que prevê o n.º4 do artigo 172.º do Código da Estrada, o processo será arquivado (porquanto a contra-ordenação em apreço não é sancionada com sanção acessória);

b) caso não proceda a tal pagamento, os autos seguirão os legais trâmites previstos pelo n.º2 do artigo 175.º do Código da Estrada.


*

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso.

Termina a motivação com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. No dia 31 de Janeiro de 2025, pelas 15h25m, na Estrada ..., AA, conduzia o veiculo automóvel com a matricula ..-..-MV.
2. O arguido é titular da carta de condução n.º ... que, por decisão proferida pela ANSR no processo n.º..., desde 24-01-2024, se encontra no estado de cassada.
3. O arguido sabia que não podia conduzir veículos a motor pela via pública sem para tanto estar legalmente habilitado e, não se absteve de o fazer., conhecia as características do veículo e do local onde seguia e agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4. Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 130.º do Código da Estrada, o título de condução caduca se for cassado.
5. Nos termos do n.º 5 do artigo 130.º do Código da Estrada “Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido”.
6. Ao aplicar apenas a coima prevista no n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, violou o Tribunal a quo o disposto no n.º 5 do artigo 130.º do Código da Estrada e os n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
7. Assim sendo, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal

*

O arguido apresentou resposta ao recurso, pugnando no sentido de que não merece provimento, devendo ser julgado improcedente.

Não formulou conclusões.


*

O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deve merecer provimento, nos termos que se seguem:

Embora a jurisprudência esteja repartida, acompanha-se decididamente o sentido do recurso do Ministério Público, com os argumentos e doutrina que serviram de base ao Acórdão do TRL de 14.12.2023, proferido no processo 1098/21.3GCALM.L1-5, resultando claro, a nosso ver, do quadro legal perspectivado na sua globalidade [artigo 9.º n.º1 do Código Civil] que o legislador distinguiu claramente os casos de condução com título caducado pelo decurso do tempo –falta de revalidação em prazo-, a que fez corresponder a prática da contra-ordenação prevista no artigo 130.º n.º7 do Código da Estrada, dos casos de condução com título caducado por violação do regime probatório ou por cassação decorrente da subtracção de todos os pontos, a que fez corresponder a prática do crime de condução sem habilitação legal.

O recurso, considerando os factos provados, deve, pois, proceder.

Procedendo, deve proceder-se à determinação da espécie e medida da pena, conforme doutrina do Acórdão do STJ 4/2016.

Em CONCLUSÃO, somos de parecer que o recurso merece integral provimento, devendo revogar-se a decisão recorrida e substituir-se a mesma por outra que condene o arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal previsto e punível pela disposição do artigo 3.º n.ºs 1 e 2 do Decreto-lei n.º2/98, de 03.01, fixando a respectiva pena.


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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.

Cumpre decidir.


***

II. FUNDAMENTAÇÃO:
A) Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas e a decidir são as seguintes:
a) Se a condução de veículo automóvel com carta cassada ao abrigo do regime previsto no art.º 148.º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, integra a prática do crime de condução sem habilitação legal previsto e punível pela disposição do artigo 3.º n.ºs 1 e 2 do Decreto-lei n.º 2/98, de 03.01, ou tão-somente a contra-ordenação prevista e sancionada pelo n.º 7 do art.º 130.º do Código da Estrada.

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Factos provados na sentença recorrida [transcrição]:

1. No dia 31-01-2025, pelas 15h 25m, na Estrada ..., AA, conduzia o veiculo automóvel com a matricula ..-..-MV.

2. O arguido é titular da carta de condução n.º ... que, por decisão proferida pela ANSR no processo n.º..., desde 24-01-2024, se encontra no estado de cassada.

3. O arguido sabia que não podia conduzir veículos a motor pela via pública sem para tanto estar legalmente habilitado e, não se absteve de o fazer.

4. Conhecia as características do veículo e do local onde seguia.

5. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por contra-ordenacional.

6. O arguido é solteiro, mas mantém relação de união de facto, sendo que a companheira não tem integração laboral nem beneficia de rendimento social de inserção ou outro apoio do Estado.

7. O arguido é servente de pedreiro, encontrando-se em situação de reforma por invalidez e a auferir o montante mensal de €600,00 a título de pensão.

8. O agregado familiar é ainda composto por duas netas menores de idade, cuja progenitora se encontra detida.

9. O arguido tem 4 filhos, todos eles maiores de idade.

10. Como habilitações literárias o arguido tem o 3.º ano de escolaridade.

11. O arguido já foi condenado na pena de:
a) 3 anos e 6 meses de prisão, por sentença de 04-12-2006, transitada em julgado em 19-12-2006, proferida no âmbito do processo n.º..., do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, pela prática, em 14-07-2005, de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de detenção de arma proibida;
b) 6 anos e 6 meses de prisão, por sentença de 18-11-2009, transitada em julgado em 14-12-2009, proferida no âmbito do processo n.º..., do Tribunal Judicial da Comarca do Baixo Vouga, Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro, Juiz 2, pela prática, em 11-03-2008, de dois crimes de tráfico de estupefacientes;
c) 6 meses de prisão, suspensa na execução pelo prazo de 18 meses, sujeita a regime de prova e à regra de conduta de se manter afastado de pessoas conotadas com o tráfico e o consumo de estupefacientes, por sentença de 27-11-2020, transitada em julgado em 11-01-2021, proferida no âmbito do processo n.º..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 1, pela prática, em Julho de 2018, de um crime de consumo de estupefacientes;
d) 3 meses de prisão, suspensa na execução pelo prazo de 2 anos, sujeita a regime de prova e condições, por sentença de 01-10-2021, transitada em julgado em 02-11-2021, proferida no âmbito do processo n.º..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 3, pela prática, em 08-07-2018, de um crime de furto;
e) 3 meses de prisão, suspensa por 1 ano, por sentença de 23-11-2021, transitada em julgado em 05-01-2022, proferida no âmbito do processo n.º..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Albergaria-a-Velha - Juiz 2, pela prática, em 03-05-2020, de um crime de desobediência;
f) 1 ano de prisão, suspensa na execução pelo prazo de 18 meses, por sentença de 29-09-2022, transitada em julgado em 09-10-2022, proferida no âmbito do processo n.º..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 1, pela prática, em 13-05-2020, de um crime de desobediência.

*

Na sentença recorrida consta a seguinte motivação no que concerne ao enquadramento jurídico-penal dos factos [transcrição da parte relevante]:

Ao arguido é imputada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal.

O artigo 3.º, n.º1 e 2 do Decreto-lei n.º2/98, de 3 de Janeiro que estatui que: “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”.

Preceitua o artigo 121.º, n.º1 do Código da Estrada que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”.

Ora o documento que titula a habilitação para conduzir veículos automóveis designa-se de carta de condução.

Este é um crime de perigo comum, em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção, e, dentro dos crimes de perigo, é de perigo abstracto.

O bem jurídico protegido com a incriminação é a segurança da circulação rodoviária e, indirectamente, protegem-se outros bens jurídicos relacionados com a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida ou a integridade física.

Resultou provado que o arguido, no dia 31-01-2025, cerca das 15h 15m, conduzia um veículo automóvel numa via pública, encontrando-se a sua carta de condução no estado de cassada.

Tendo em conta a factualidade provada, está adquirida, em principio a solução jurídico criminal aplicável. Porém, não poderá o Tribunal esquecer que o Código da Estrada sofreu as alterações decorrentes do Decreto-lei n.º102-B/2020, de 09 de Dezembro que entraram em vigor em 08-01-2021 e que é necessário apreciar a conduta à luz da lei vigente.

Vejamos, em concreto, a norma do artigo 130.º do Código da Estrada, na redacção em vigor em data anterior à data da prática dos factos:

1. O título de condução caduca se:

a) não for revalidado, nos termos do RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respectivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;

b) o seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos números 1 e 5 do artigo anterior.

2. A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:

a) a causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com excepção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, A1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;

b) a causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos números 1 e 5 do artigo anterior;

c) a causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos números 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.

3. O título de condução é cancelado quando:

a) se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contra-ordenação muito grave ou de segunda contra-ordenação grave;

b) for cassado nos termos do artigo 148º do presente Código ou do artigo 101º do Código Penal;

c) o titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º2;

d) tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.

4. São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º2 os titulares de título de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.

5. Os titulares de título de condução cancelado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título foram emitido.

6. Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122º.

7. Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.

Já a nova redacção dada ao artigo 130.º do Código da Estrada, em vigor à data da prática dos factos, estatui que:

1 - O título de condução caduca se:

a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;

b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;

c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;

d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;

e) O condutor falecer.

2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:

a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;

b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;

c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.

3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:

a) [Revogada.]

b) [Revogada.]

c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;

d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.

4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º2:

a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º1;

b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.

5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.

6 - [Revogado.]

7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.”

Relevante é, ainda o texto do artigo 148.º do Código da Estrada, já que na situação concreta o arguido viu a sua carta “cassada” em virtude do regime de perda de pontos, o que decorreu das anteriores condenações pela prática de ilícitos de condução de veículo em estado de embriaguez.

Cotejando ambos os normativos legais citados, verifica-se que desapareceu do texto da lei a referência ao título cassado, passando a ter-se todos os títulos como caducados, isto apesar de na epigrafe, na alínea c) do n.º4, n.º10, 11, 12 e 13 do artigo 148.º ainda se fazer referência a cassação.

Na análise da alteração legislativa é extremamente relevante a aferição da alínea d) do n.º3, pois que é fixado um período temporal bastante dilatado dentro do qual o cidadão poderá, balizando-se de acordo com o artigo 17.º do RHLC, revalidar o seu título de condução. Na interpretação do texto da lei, a conclusão do intérprete não poderá senão que até ao decurso desses 10 anos ainda pode renovar o título (não obstante a contradição que decorre da letra do artigo 148.º quanto ao prazo de cassação e viabilidade legal de obter novo título de condução passados que estejam dois anos sobre a data da efectivação da cassação).

Dito de outra forma, não se poderá considerar que o arguido praticou um crime de condução sem habilitação legal e sim uma contra-ordenação leve (artigo 136.º, n.º1 e 2 do Código da Estrada).

Isto porque não se poderá descurar que o arguido tinha perfeita consciência da necessidade de obtenção de carta de condução válida para conduzir o veículo em causa e do facto de a não possuir, tendo tido a intenção de exercer a condução em via pública, actuando com dolo directo.

Por conseguinte, haverá que proferir decisão absolutória quanto à prática do ilícito criminal de condução sem habilitação legal.

(…)


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Decidindo a questão objeto do recurso

No recurso, o Ministério Público entende, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, que a conduta do arguido constitui o crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, nºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03.01, e não apenas a contraordenação prevista no n.º 7 do art.º 130.º do Código da Estrada.

Em síntese, acompanhando a jurisprudência de diversos acórdãos dos Tribunais superiores[1], que é maioritária, alega que a conjugação da alínea d) do n.º 1 e n.º 5 do artigo 130.º com o n.º 11 do artigo 148.º do Código da Estrada impõe a conclusão de que a condução de veículo automóvel na via pública com título de condução caducado por cassação resultante da perda de pontos configura a prática do crime de condução sem habilitação legal previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro.

Vejamos.

Nos termos do disposto no art.º 121.º, n.º 1, do Código da Estrada, só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito, sendo a carta de condução o documento que titula a habilitação para conduzir automóveis, como estabelece o n.º 4 do referido preceito,.

Por sua vez, dispõe o art.º 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, que pratica o crime de condução de veículo sem habilitação legal quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada.

No caso concreto, ficou provado que no dia 31.01.2025 o arguido conduzia um veículo automóvel na via pública quando a sua carta de condução se encontrava no estado de cassada desde 24.01.2024, por decisão da ANSR.

Antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9/12, dispunha o art.º 130.º do Código da Estrada, então sob a epigrafe Caducidade e cancelamento dos títulos de condução, que:

1–O título de condução caduca se:

a)- Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;

b)- O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.

2– A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:

a)- A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;

b)- A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.

c)- A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.

3– O título de condução é cancelado quando:

a)-Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;

b)-For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;

c)- O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;

d)- Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.

4– São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.

5– Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.

6– Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º

7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.

O Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9/12, introduziu diversas alterações ao referido art.º 130.º do Código da Estrada, que, agora sob a epigrafe Caducidade dos títulos de condução, passou a ter a seguinte redação:

1 - O título de condução caduca se:

a)- Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;

b)- O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;

c)- Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;

d)- For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;

e)- O condutor falecer.

2–A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:

a)- A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;

b)- A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;

c)- A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.

3– O título de condução caducado não pode ser renovado quando:

a)- [Revogada.]

b)- [Revogada.]

c)- O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;

d)- Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.

4– São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:

a)- Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;

b)- Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.

5–Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.

6– [Revogado.]

7– Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.

À data da prática dos factos já se encontravam em vigor alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9/12, no art.º 130.º do Código da Estrada.

Como assinala o preâmbulo do D.L. n.º 102-B/2020, de 9/12, tais alterações introduzidas ao regime de caducidade dos títulos de condução foram não só quanto às regras que permitem que condutores que deixaram caducar os seus títulos possam reavê-los, ainda que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação, como também à previsão da caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei.

Comparando a redação do art.º 130.º do Código da Estrada, antes e depois das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9/12, resulta que o atual texto deixou de prever o cancelamento dos títulos de condução, prevendo a sua caducidade. A decisão de cassação do título de condução nos termos do art.º 148.º do Código da Estrada determina agora a sua caducidade [al. d) do n.º 1 do art.º 130.º]. Diferentemente, na redação anterior, implicava o cancelamento do título de condução, sendo, consequentemente, a condução com o título de condução cassado cominada como crime de condução sem habilitação legal [art.º 130.º, nºs 3, al. b), e n.º 5]. Quanto à condução com titulo caducado, apenas era sancionada como contraordenação, e assim continuou não obstante a alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020. Com efeito, dispõe o atual n.º 7 do art.º 130.º do Código da Estrada que quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.

Temos, pois, que ao sancionar com coima as situações previstas no n.º 1, o legislador pretendeu de facto, de forma expressa, aliás, tipificar as situações de cassação de título de condução como contraordenação e não como crime. Diferente interpretação seria contra legem e afrontaria o disposto no art.º 9.º do Código Civil. Efetivamente, caso o legislador não quisesse punir como contraordenação todas as situações previstas no n.º 1 do artigo 130.º do Código da Estrada, por que razão não elencaria apenas as alíneas que quisesse ver abrangidas?!. Caso o legislador não pretendesse incluir os casos de cassação do título de condução nas situações de caducidade “não definitiva”, por que razão aditaria tal previsão no n.º 1 do artigo 130.º do Código da Estrada e a revogaria no n.º 3 do mesmo preceito legal?![2]

É certo que o n.º 5 do referido art.º 130.º dispõe que os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução. Todavia, tal norma apenas se aplica aos titulares de carta de condução caducada definitivamente (relativamente à qual já não é possível a revalidação), que, para todos os efeitos legais, se consideram não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, incorrendo em ilícito criminal se exercerem a condução de veículos motorizados nessas circunstâncias, nos termos previstos no artigo 3º, nos 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de janeiro[3]. Diferente interpretação esvaziaria por completo o disposto no n.º 7 do art.º 130.º do Código da Estrada.

Improcede, pois, o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se o decidido na sentença recorrida.


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Sumário:

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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Sem custas.

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Porto, 22 de Outubro de 2025
José António Rodrigues da Cunha
Maria João Lopes
Maria Deolinda Dionísio [(vencida)
Vencida por sufragar a tese contrária com os fundamentos aduzidos no recurso e bem assim no acórdão desta Secção proferido no Processo n.º 151/22.0PFVNG.P1, na qual intervenho como 1ª adjunta]
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[1] Ac. do TRE de 13.09.2022, Acs. TRG de 5.12.2022 e de 6.02,2023, todos in www.dgsi.pt.
[2] Recurso do Ministério Público interposto no processo n.º 117/22.0GBVVD, cujo acórdão, relatado pela Desembargadora Fátima Furtado, é citado pelo recorrente, onde defende posição diferente da defendida nestes autos.
[3] Ac. TRC de 25.06.2025, relatado pela Desembargadora Sara Reis Marques, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Ac. TRL de 6.02.2024, relatado pelo Desembargador Paulo Barreto, também in www.dgsi.pt.