OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

Sumário (da responsabilidade do Relator):
I. A omissão de pronúncia é um “não dizer” quando se teria de “dizer”;
II. Não é, seguramente, um “dizer” contrário às pretensões de um interveniente;
III. A alegação de omissão exige, pois, que a recorrente identifique uma “questão” autonomizada nas conclusões e demonstre que faltou qualquer decisão sobre ela.
IV. Ora, quando o acórdão expressamente aborda as questões propostas pelo recorrente e as decide (ainda que a descontento do recorrente) não se pode falar em omissão de pronúncia.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
AA, arguido nos presentes autos, inconformado com a decisão instrutória de pronúncia, veio da mesma interpor recurso para este Tribunal da Relação formulando, após motivações as seguintes conclusões:
1 – O presente recurso tem por objecto a decisão instrutória que pronunciou o arguido por factos constantes do requerimento de abertura de instrução da assistente, tendo o Ministério Público arquivado o inquérito por entender que não se encontravam preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do crime de maus tratos a menores e o de violência doméstica.
2 – As questões postas pelo arguido à apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa, são as seguintes questões;
a) a decisão recorrida é nula por violação do disposto artigo 283º nº 2 do CPP, aplicável por força do disposto no artigo 308º do mesmo diploma;
b) ausência do preenchimento dos elementos do tipo legal do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A do Código Penal;
c) erro na qualificação jurídico penal dos factos considerados indiciados;
d) violação do principio in dubio pro reo;
e) erro na decisão quanto a considerar suficientemente indiciados determinados pontos de facto identificados na decisão instrutória.
3 – O despacho de pronuncia escora-se em factos que podiam e deviam ser melhor concretizados no que respeita às circunstâncias de modo, tempo, lugar e, também motivação da sua pratica, violando assim o disposto no artigo 283º nº 3 al. b) do CPP, aplicável dado o disposto no artigo 308º do mesmo diploma, violando assim os direitos de defesa do arguido, ao contraditório e ao de recurso, pelo que a decisão recorrida é nula, o que se invoca para todos os efeitos legais.
4 – Sem prescindir, defende o arguido que do despacho de pronúncia não consta factos reconduzíveis e susceptíveis de preencher os elementos do tipo do crime de maus tratos a nível subjectivo, nomeadamente que se traduzam na intenção no conhecimento, na representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido correspondente ao desvalor, não podendo esta omissão ser sanada em julgamento.
5 - O elemento subjectivo do crime de maus tratos é o dolo que se manifesta na vontade do agente infligir sofrimento à vitima aproveitando a sua situação de fragilidade ou desta se encontrar indefesa circunstancialismo que não consta não resulta nem se imputa ao arguido nos factos tidos como indiciados, pelo que o tribunal errou na qualificação jurídico-penal dos factos pronunciando o arguido pela pratica de um crime que não praticou.
6 – Ao contrário do decidido a matéria de facto tida como indiciada não é susceptível de ser qualificada e subsumida ao crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º A e ao crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do mesmo diploma.
7 – Do quadro global da matéria de facto considerar suficientemente indiciada não resulta um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da assistente e um quadro de maus tratos que justifica uma especial tutela e punição agravada pelo que o tribunal ao qualificar a conduta do arguido e subsumi-la ao crime de violência domestica violou a lei, artigo 152º do Código Penal e a jurisprudência.
8 – De toda a prova produzida incluindo as declarações da assistente resulta que o arguido pretendia divorciar-se, separar-se da assistente e não dominá-la ou privá-la do direito de autodeterminar-se e foi esta que de forma livre, voluntária e consciente quis manter uma relação e um casamento disfuncional contra a vontade do arguido.
9 – Conforme resulta da prova produzida na fase de inquérito e na fase de instrução, mesmo após a separação a assistente persistiu de forma obsessiva em estar e contactar com o arguido e entrar como quis e entendeu na casa onde vivia, comportamento este desconforme com o ambiente de medo e de fragilidade que agora afirma ter vivido, pelo contrário, o arguido desde o dia da separação que evita estar com a assistente, rodeando-se de testemunhas, para evitar quaisquer razões de queixa por parte da assistente.
10 – Mesmo nos casos em que se verificam insultos e em poucas ocasiões especificas acções fisicamente agressivas, de baixa intensidade, como é o caso das consideradas suficientemente indiciadas, só se está perante um caso que integra a pratica de um crime de violência doméstica se caracterizando o quadro global e as circunstâncias em que os factos aconteceram se verifique um grau de gravidade e de ilicitude que ponha em causa a possibilidade de autodeterminação e dignidade da pessoa visada, circunstancialismo este que não se verifica no caso concreto nem resulta da matéria de facto tida como indiciada.
11 – Entendendo-se como se entendeu que a conduta do arguido está, no mais das vezes em zona de fronteira entre aquilo que tem ou não tem relevância criminal, o tribunal atendendo ao principio da presunção de inocência e do “in dúbio pro reo”, que pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos de facto típico e ilícito que a suporta, assim como o dolo do seu autor, devia ter optado por um entendimento e decisão favorável ao arguido, o que não aconteceu.
12 – A decisão recorrida não identifica a prova em que assenta a sua convicção, não faz qualquer exame critico sobre depoimentos e imagens que não identifica, pelo que não se compreende o substrato racional que conduziu à decisão de considerar-se suficientemente indiciada a matéria de facto que descrimina o que constitui violação dos direitos de defesa do arguido nomeadamente o do contraditório e o direito ao recurso.
13 – Ao contrario do que foi entendido e decidido da prova produzida não resulta como suficientemente indiciados os seguintes factos:
“ - Em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos desde ... que o que o arguido apelida a assistente de teimosa, babaca, incompetente, és burra, mula, teimosa, deficiente, tens uma deficiência mental, autista e filha da puta.
- No dia .../.../2017, no seguimento de discussões o arguido apertou a cara de assistente, cortando-lhe o lábio, bem como apertou-lhe os braços e atirou-a contra a parede.
- No dia .../.../2018, na presença da filha BB, o arguido em discussão com a assistente, apertou-lhe os braços e o pescoço, deixando marcas nos locais atingidos. - Em data não concretamente apurada, no decurso de uma viagem a Lisboa e na presença da menor BB empurrou a assistente contra a parede e apertou-lhe o pescoço. O pai disse muitas vezes que queria que a mãe morresse;
- O arguido ofende física e verbalmente a assistente, gritando com ela “teimosa, babaca, incompetente, filha da puta”.
- Numa viagem de família a Lisboa, e após uma pequena conversa num táxi, o arguido apertou-lhe o pescoço, atirou-a contra a parede enquanto a assistente estava com a filha ao colo;
- O arguido quando irritado frequentemente dizia para a assistente se matar e afirmava que queria que a mesma morresse, o que fazia em frente às filhas menores.;
- No dia de Natal de ..., na hora da refeição na presença das filhas apelidou a assistente de maluca e tonta;
- O arguido durante o casamento, em datas não concretamente apuradas, atirava pratos com comida ao chão e às paredes;
- Nas mesmas circunstâncias, quando a assistente já se encontrava deitada, acordava sobressaltada com pancadas nas costas que o arguido lhe dava.;
- Também em data não apurada, o arguido atirou o telemóvel da arguida dentro de água;
- No Natal de ..., o arguido, na presença das filhas, chamou apelidou a assistente de maluca ou tonta;
- Nessa noite, contrariado com a entrega de presentes gritou para a BB: “Eu mato a tua mãe”, referindo-se à assistente e dirigindo-se à assistente: “vais matar-te ou eu mato-te?”;
- No dia seguinte a assistente regressou a casa para ir buscar a filha CC e, no após discussão com o arguido este disse-lhe que “não perdia pela demora”;
- A assistente nessa ocasião chamou a PSP após o que foi conduzida ao Hospital;
- No dia ... de ... de 2020, a assistente voltou à residência comum para ir buscar as filhas, não mais voltando a viver com o arguido;
- Perante a recusa e insistência da criança o arguido, puxou-a apertando os braços até o elevador e depois empurrou-a com força para dentro do carro;
- A BB continuou a insistir em falar com a mãe e disse que ia pedir à vizinha para telefonar à mãe, altura em que o arguido a agarrou pelos braços e apertou-lhe o maxilar e a boca com força, causando-lhe vermelhidão na pele e sangramento no lábio;
- Nessas circunstancias, o arguido aos gritos disse à BB: “Não quero saber mais de ti para nada”, “Não venhas mais nenhum fim de semana”, “para mim estás morta”, “que não te vou mais buscar à escola nem pôr”, acrescentando que à DD ia dar tudo e que ela não ia ter nada nem lhe pedisse nada no futuro;
- Após, o arguido saiu novamente de casa, e com as menores no seu carro imprimiu velocidade ao veiculo, gritando para a filha DD “segura-te” e em acto continuo, gritava à BB “ e tu não abras a boca senão eu mato-te!!”, após o que a deixou na casa da avó.;
- O arguido em datas não concretamente apuradas disse à BB que queria que “a mãe morresse”;
- Os comportamentos do arguido causaram medo à BB;
- A assistente sente-se envergonhada e angustiada pela atuação do arguido e foi obrigada a abandonar a casa de morada de família, juntamente com as duas filhas, deixando todos os seus bens, inclusivamente os pessoais na residência;
- O arguido ao proferir as expressões acima descritas na presença das filhas menores do casal pretende atingir a ofendida na sua honra, consideração e dignidade, o que consegue;
- O arguido sabe que a assistente não padece de nenhuma doença, nem é demente, pretendendo com a frase atingi-la na sua honra e consideração, com o objectivo de diminui-la e humilha-la;
- O arguido sabe que não pode atingir fisicamente as filhas, e bem assim que os seus actos não são actos educacionais;
- O arguido sempre agiu livre e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram contrárias à convivência em sociedade, bem como proibidas e punidas pela lei penal, e ainda assim, não se coibiu de as praticar.”, sendo que alguns dos demais factos indiciados estão deturpados e retirados do contexto em que ocorreram.
14 – Os pontos de facto dados como assentes identificados em 13 das conclusões não se mostram conforme com a prova produzida na fase de inquérito na fase de instrução, impondo decisão diversa as declarações do arguido que foram coerentes, lógicas e racionais corroboradas pelo depoimento das testemunhas EE - fls. 568 e FF – de fls. 728 e, até as partes relevantes das declarações da assistente e da BB, pelo que ao decidir como decidiu o tribunal violou o princípio da livre apreciação a prova, a razão a lógica e as regras de experiência comum.
15 – Ao contrário do que foi entendido, ponderada toda a prova produzida em sede de inquérito e instrução não se verifica uma probabilidade razoável e condenação do arguido pela pratica dos crimes que lhe são imputados.
Termos em que e nos demais de direito dever ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, com as legais consequências, fazendo-se assim, JUSTIÇA”
Ao assim recorrido respondeu o Ministério Público concluindo que:
1. De acordo com o preceituado no artigo 308º, nº1 do CPP: “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”
2. Estes indícios são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.
3. O recorrente sufraga um entendimento diferente do que foi levado a cabo pela MMª. JIC no que concerne à prova que foi carreada para os autos e à sua virtualidade de conduzir a uma futura condenação.
4. O que o recorrente põe em crise é, no fundo e essencialmente, a forma como o Tribunal apreciou a prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova inserta no artigo 127º do Código de Processo Penal (CPP), no qual se diz que “... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
5. A MMa. JIC demonstrou ter feito uma correcta aplicação das regras de interpretação e valoração da prova, devidamente fundamentada e alicerçada nos meios de prova carreados para os autos, de acordo com um raciocínio lógico e coerente.
6. Bem andou a MMa. JIC ao dar os factos impugnados, como suficientemente indiciados.
7. A violação do Princípio “in dubio pro reo” pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando sucede que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
8. Da análise da fundamentação conclui-se que o Tribunal não teve qualquer dúvida acerca da factualidade que deu como suficientemente indiciada.
9. Não se vislumbra qualquer violação do Princípio “In dubio pro reo”.
10. De acordo com o estatuído no artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, resulta no que aos autos interessa, que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido (alínea a) do referido art. 283.º, n.º 3); a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (alínea b) do preceito); a indicação das normas legais aplicáveis (alínea c).
11. A factualidade imputada em sede de acusação/despacho de pronúncia tem que permitir ao arguido defender-se da mesma, para que este não seja surpreendido, na audiência de discussão e julgamento, com factos que não tenham sido descritos na acusação.
12. No caso dos autos, a matéria descrita no despacho de pronúncia encontra-se suficientemente concretizada quanto ao lugar dos factos – no interior da habitação- e balizada no tempo- entre ... e ... de ... de 2021, sendo que uma grande parte dos concretos factos imputados ao arguido, encontram-se ainda mais circunstanciados e restringidos, designadamente com a indicação das concretas datas.
13. No que tange aos restantes factos em que não se fez uma indicação das datas, foi, apesar de tudo, efectuada uma localização num determinado período temporal, numa situação em que está em causa uma conduta prolongada e repetida no referido período temporal e com base nela permite-se concluir pela ocorrência de factos, num determinado lugar e em determinados períodos temporais, que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.
14. O arguido pode defender-se do despacho de pronúncia por esses factos, não saindo violado, quer, o princípio do contraditório, quer o princípio do acusatório.
15. Os factos descritos no despacho de pronúncia configuram, de modo suficiente, o elemento subjectivo do tipo de maus-tratos.
16. A conduta do arguido, descrita no despacho de pronúncia, consubstancia, em nosso entender, uma conduta maltratante que assume a intensidade exigida pela incriminação prevista no artigo 152º, nº1 do CP.
17. Bem andou o Tribunal ao qualificar os factos descritos como violência doméstica. 18. Destarte, salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão instrutória não merece qualquer reparo.
Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!””
Também a assistente respondeu ao recorrido sustentando, em síntese conclusiva, que:
“(I) Não existe qualquer nulidade do despacho de pronuncia por violação dos artigos 283º n.º3 e 308º n.º 2 CPP, nem erro na qualificação jurídica dos crimes e ou erro na apreciação da prova e indicação do recorrente.
(II) O douto despacho de pronúncia em crise limitou-se a aplicar o Direito, em conformidade com a evolução jurisprudencial.
(III) O recorrente alega, em primeiro lugar, que o despacho de pronúncia deverá ser nulo uma vez que poderia e deveria estar melhor concretizado quanto às circunstâncias de modo, tempo e lugar da prática dos factos e elemento subjectivo do crime de maus-tratos.
(IV) Ora, o artigo 283º n.º 3 CPP refere que a acusação, in casu o despacho de pronúncia ex vi artigo 308º n.º 2 CPP, deverá conter uma narração, ainda que sintética, das circunstâncias que impõe a aplicação de uma pena ao arguido.
(V) Não se tratando a decisão instrutora de uma sentença ou acórdão, e averiguada a existência de indícios suficientes e probabilidade de condenação em julgamento, o despacho de pronúncia deverá descrever, tanto quanto possível, em que factos esses indícios se consubstanciam.
(VI) Nos presentes autos, estão em causa actos e condutas com mais de 10 anos o que implica, inevitavelmente, falhas de memória que sempre dificultarão a precisão de tempo e lugar de determinadas situações - especialmente agressões verbais.
(VII) Mais, tratando-se de comportamentos reiterados ao longo do tempo, não é razoável exigir que a acusação ou despacho de pronúncia indiquem de forma exaustiva, todas as datas em que se verificaram ofensas verbais ou agressões físicas.
(VIII) Estamos perante factos ocorridos no seio de uma relação amorosa e familiar prolongada, com início anterior a ..., marcados por dinâmicas afectivas complexas, num contexto em que a recorrida procurou sempre minimizar ou apagar os episódios vividos, na esperança de preservar o casamento e a estabilidade familiar.
(IX) Esta realidade contextual justifica que, ao longo do tempo, a assistente tenha manifestado dificuldades em precisar com rigor cronológico cada episódio de violência ou abuso.
(X) Assim, não se verifica qualquer omissão inibitória do exercício do contraditório – os factos estão suficientemente descritos por forma a que o arguido, ora recorrente, consiga exercer todas as suas garantias legais de defesa,
(XI) Quanto ao elemento subjectivo, dúvidas também não poderão existir, perante todos os factos indiciados, que o mesmo está descrito - devendo ser rejeitada a alegação do recorrente da sua omissão.
(XII) Contrariamente ao alegado, a decisão instrutória contém formulações inequívocas quanto a conhecimento e vontade do arguido no cometimento dos factos imputados: tinha plena consciência da ilicitude da sua conduta, quis actuar nos moldes em que actuou e conformou-se com o resultado lesivo dessas actuações.
(XIII) Trata-se de um dolo directo, tal como previsto nos artigos 14º n.º 1 e 2 do Código Penal, encontrando-se, salvo melhor entendimento, suficientemente descrito.
(XIV) Nestes termos, deverá a arguição da nulidade ser improcedente por não verificada uma vez que a decisão instrutora contém todos os elementos exigíveis para o despacho de pronúncia.
(XV) O despacho de pronúncia narra, com suficiente densidade factual, os factos imputados ao arguido, com referência a comportamentos reiterados, locais, datas aproximadas, vítimas, natureza dos actos e intenção do arguido, satisfazendo plenamente as exigências legais.
(XVI) O despacho recorrido cumpre cabalmente o dever de fundamentação e identifica factos indiciários suficientes para sujeitar o arguido a julgamento.
(XVII) O recorrente sustenta que os factos indiciados não integram os elementos típicos do crime de maus-tratos, p.e.p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, nem do crime de violência doméstica, p.e.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e b), do mesmo diploma.
(XVIII) Tal alegação é infundada, porquanto o despacho de pronúncia descreve factos concretos que revelam um padrão reiterado de agressões físicas, verbais e psicológicas exercidas pelo recorrente sobre a filha menor, BB, e sobre a progenitora da menor, na presença da criança.
(XIX) O recorrente tenta reduzir as alegações da menor como sendo apenas referências a uma ofensa física e algumas expressões como “para mim estás morta” e “não te vou buscar mais à escola”, expressões estas que terão sido ditas de cabeça perdida por estar a desobedecer ao progenitor.
(XX) Não obstante, as condutas relatadas pela menor incluem empurrões, murros, puxões de cabelo, insultos graves, exclusão do convívio familiar e privação de alimentos — práticas que excedem, de forma inequívoca, qualquer finalidade educativa admissível, atentando contra a dignidade e a integridade física e moral da vítima.
(XXI) E aqui impõe-se a leitura das declarações da menor BB, integralmente transcritas nos presentes autos e inicialmente ignoradas pelo Ministério Público que as considerou “inaudíveis”.
(XXII) O despacho de pronúncia valorou adequadamente declarações da menor prestadas com detalhe, coerência e consistência perante o juiz de instrução, repondo a verdade processual ignorada na fase de inquérito.
(XXIII) A jurisprudência internacional e nacional é clara: a pretexto de práticas educativas não se admitem comportamentos que violem o direito da criança à sua integridade física e moral, nem à sua dignidade da pessoa humana.
(XXIV) Condutas que poderiam se encontrar na fronteira entre o ilícito e o licito seriam as típicas práticas “punitivas” de educação como uma palmada nas mãos ou nas nádegas - nunca comportamentos ameaçadores e atentadores da integridade física e moral da menor.
(XXV) Um progenitor dizer ao seu filho que a odeia, passar dias sem comunicar com a mesma, ignorá-la, destratá-la e beneficiar a sua irmã como “vingança” não é uma prática educativa muito menos socialmente aceite- é grave, é traumatizante e é contrária ao direito.
(XXVI) Acresce que, além das agressões que a menor sofreu, foi ainda exposta a agressões físicas e verbais do recorrente para com a sua progenitora, na sua presença.
(XXVII) Estes comportamentos integram o tipo legal de crime de maus-tratos e consubstanciam também crime de violência doméstica contra menor, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, enquanto exposição de menor a violência doméstica.
(XXVIII) Também relativamente à recorrida, o recorrente procura minimizar e desvalorizar as condutas por si praticadas ao longo dos anos, reduzindo-as a 2 ofensas verbais e “apenas” 2 ofensas à integridade física.
(XXIX) Contudo, o recorrente ignora e omite, assim, o recorrente as ameaças de morte, o arremesso de objectos no interior da residência do casal e as ofensas perante a menor BB (e por ela concretizadas) referidas no despacho de pronúncia.
(XXX) Não são apenas 2 ofensas verbais e 2 ofensas físicas, são várias e durante um lapso temporal vasto que, como já foi explicado, serão difíceis de recordar e especificar pois eram reiteradas.
(XXXI) O recorrente, ao longo do texto do seu recurso, tenta justificar ou descredibiliza a vítima referindo que estava sob pressão laboral, cansado, exausto e farto das insistências da recorrida para manter o relacionamento.
(XXXII) Contudo, NENHUM destes factos exclui a censura penal dos comportamentos do recorrente: agressões físicas, condutas de humilhação verbal e emocional continuada (incompetente, puta, babaca, demente), comportamentos de desvalorização, rejeição, indiferença e punição psicológica, um contexto de intimidação e medo permanentes através de ameaça e arremesso de objectos no lar.
(XXXIII) Os comportamentos e condutas do recorrente não são meras reacções irreflectidas ou desabafos esporádicos, típicos de um casal em discussão como tenta alegar- são manifestações sucessivas de um padrão de dominação emocional, imposição de medo e aniquilação progressiva da autoestima da vítima.
(XXXIV) Os indícios recolhidos são suficientes para sustentar a pronúncia e não se verificou qualquer erro na qualificação jurídica dos crimes.
(XXXV) Por fim, o recorrente alega discorda dos factos indiciados no despacho de pronúncia por falta de exame crítico da prova e, até, falta de indicação da prova que sustente esses factos.
(XXXVI) Contudo, a decisão instrutória contém a fundamentação que lhe é exigida por lei e pela sua própria natureza: nesta fase procura-se apenas apurar se existem indícios suficientes, como suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para “convencer” de que há crime e é o arguido o responsável por ele.
(XXXVII) Trata-se juízo de probabilidade razoável de condenação, constante do artigo 283º n.º 2 CPP, e não de um juízo de certeza exigido a um juiz de condenação.
(XXXVIII) O recorrente sustenta não conseguir identificar e compreender as provas que serviram para formar a convicção do Tribunal o que, mais uma vez, não merece colhimento - uma análise dos depoimentos da menor BB, da assistente e da mãe da assistente dissipam qualquer alegação de obscuridade probatória.
(XXXIX) Para demonstrar a sua discordância com a análise, ou falta de, da prova, o recorrente transcreve alguns dos seus depoimentos em fase de inquérito e em sede de instrução diante da Meritíssima Juíza de Instrução Criminal.
(XL) O recorrente tenta apresentar-se como um refém de um relacionamento amoroso que pretendia cessar mas que nunca o fez, invocando alegadas pressões obsessivas da recorrida e exaustão motivada por motivos profissionais.
(XLI) Todavia nenhum destes motivos permitem excluir ou justificar os actos por si cometidos de violência física, psicológica e verbal dirigida à recorrida e às suas filhas menores.
(XLII) As declarações da recorrida não permitem muitas dúvidas: são relatados episódios de agressividade impulsiva, arremesso de objectos, destruição de bens, humilhação verbal, intimidação constante, castigos contrários ao socialmente aceite e agressões físicas.
(XLIII) Todas as declarações foram espontâneas, coerentes e com a emotividade natural que um depoimento desta natureza levanta.
(XLIV) O recorrente não pode crer quem as suas declarações são mais credíveis apenas porque foram “no essencial corroborado pelo depoimento das testemunhas FF e EE”.
(XLV) A verdade é que, e conforme esclarecido pela recorrida nas suas declarações, o recorrente não tinha condutas e comportamentos ilícitos diante de terceiros ou sequer quaisquer familiares que não a recorrente e as suas filhas na esfera privada do lar.
(XLVI) Pelo que nenhuma das testemunhas poderia ter presenciado qualquer situação para negar ou confirmar a mesma.
(XLVII) Mais, o recorrente sustenta, com uma expressão particularmente infeliz, que “a assistente é ... e tinha condições para em qualquer momento fazer cessar tais condutas sendo certo que apesar de estar livre para o fazê-lo insistia e persistia”.
(XLVIII) Sem tecer juízos de valor sobre a referida expressão que merece total reprovação, importa relembrar, uma vez mais, que o próprio recorrente também não era refém do relacionamento- que o mesmo alega tanto que queria abandonar.
(XLIX) A par da recorrida ser ..., o recorrente é bancário e com um percurso em funções de responsabilidade pública e política e, portanto, também ele com autonomia pessoal, profissional e económica para se afastar da relação.
(L) No entanto, não só não o fez, como manteve as condutas reiteradamente agressivas, verbais e fisicamente violentas, perante a companheira e as filhas, que agora pretende que sejam justificadas ou descredibilizadas perante a vontade da recorrida manter o casamento e desculpar os seus comportamentos.
(LI) A recorrida, por seu turno, é uma pessoa de profundas convicções religiosas, para quem o casamento constitui um compromisso sério e que não deve ser dissolvido perante desafios.
(LII) É uma pessoa que se viu humilhada e agredida e tinha profunda vergonha de cessar o seu casamento, tendo medo de confrontar o recorrente por represálias ou agressões que pudesse vir a sofrer.
(LIII) O seu apego ao compromisso matrimonial, aliado do medo e intimidação que testemunhou, permite compreender a sua permanência na relação durante o período alargado de tempo que se verificou.
(LIV) Dito isto, é evidente os factos indiciados no despacho de pronúncia não foram ilações arbitrárias, mas resultaram de elementos objectivos e subjectivos que, conjugados, integram o tipo legal do crime de violência doméstica.
(LV) Pois uma vez que, ao contrário do que o recorrente sugere, não existem contradições materiais capazes de colocar em causa o juízo indiciário formulado pelo juiz de instrução.
(LVI) Descreveu, sempre, com coerência e firmeza episódios de agressões físicas, nomeadamente apertões no rosto, braços e pescoço, empurrões contra a parede e até o acordar com pancadas nas costas.
(LVII) A menor BB corroborou diversos episódios concretos de violência, nomeadamente na agressão em Lisboa com a menor DD ao colo, as ofensas verbais constantes e o abuso por si sofrido.
(LVIII) Quanto às acções contra a menor BB por a mesma estar a fazer uma “birra” sempre se dirá que, como já referido antes, é claro não estamos no âmbito de qualquer prática educativa.
(LIX) Apertar a boca da menor, até a mesma sangrar, puxar-lhe o cabelo e referir “para mim estás morta” não podem ser desvalorizados nem justificados perante uma birra.
(LX) No caso em apreço, os actos de agressão física, os insultos reiterados, as ameaças (“quero que tu te mates”, “quero que a tua mãe morra”), a destruição de bens e o controlo sobre a liberdade de movimentos e decisões da vítima são tudo elementos indiciários que justificam, e bem, a pronúncia.
(LXI) Bem como as fotografias juntas nos autos que demonstram várias marcas que a recorrida apresentava bem como os destroços após arremesso de objetos.
(LXII) A crítica do recorrente à “ausência de exame crítico da prova” cai por terra face à análise feita no despacho de pronúncia, onde o julgador ponderou os diferentes meios de prova, expôs os elementos que consolidaram o juízo de indiciamento e concluiu que os indícios são suficientes, credíveis e concludentes quanto à prática do crime de violência doméstica.
(LXIII) É manifesta a tentativa do recorrente de inverter os papéis de agressor e vítima, desresponsabilizando-se das suas condutas e culpabilizando a assistente. Trata-se de uma estratégia processual infelizmente comum, mas que não resiste a uma análise objectiva, atenta e informada dos autos.
(LXIV) Assim, conclui-se que a decisão instrutória foi correctamente proferida, com base em indícios suficientes, juridicamente relevantes e coerentes com os meios de prova disponíveis nos autos, inexistindo erro na indiciação dos factos ou na sua qualificação jurídica, o recurso deve ser integralmente julgado improcedente.
Nestes termos e demais de direito, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na integra o despacho de pronuncia proferido.
Assim, se fará a costumada justiça”
Os autos subiram a este Tribunal.
O processo foi a vistos e à conferência.
*
II– Do âmbito do recurso, do despacho recorrido e seus fundamentos.
O objecto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in www.dgsi.pt ) : “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”, sem prejuízo, obviamente da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Considerando a ditas conclusões temos que as questões que se colocam nestes autos são precisamente as delineadas pelo recorrente, a saber:
a) a decisão recorrida é nula por violação do disposto artigo 283º nº 2 do CPP, aplicável por força do disposto no artigo 308º do mesmo diploma;
b) ausência do preenchimento dos elementos do tipo legal do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A do Código Penal;
c) erro na qualificação jurídico penal dos factos considerados indiciados;
d) violação do principio in dúbio pro reo;
e) erro na decisão quanto a considerar suficientemente indiciados determinados pontos de facto identificados na decisão instrutória.
A estas questões acresce uma outra, prévia, que é a de conhecer da recorribilidade da decisão, questão essa suscitada já nesta instância pelo Ministério Público.
A fim de decidirmos recordaremos o teor da decisão instrutória na parte relevante.
Assim:
“No que respeita aos demais crimes que a assistente imputa ao arguido importa ter em conta que até à entrada em vigor da Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto que alargou a protecção às vitimas de violência doméstica incluindo no elenco das vítimas do mesmo os menor que seja seu descendente - ou do cônjuge do unido de facto ou de progenitor de descendente comum – os comportamentos integradores do tipo legal praticados relativamente a filhos não coabitantes era integrável no crime de maus tratos a menores, previsto e punido nos termos do artº 152.º-A, n.º 1 al. a) do Código Penal.
Nos termos do referido preceito, quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O tipo legal de crime em causa está inserido no capítulo dos crimes contra a integridade física, visando proteger a pessoa individual na sua dignidade humana e prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho.
“Na definição de maus tratos, mormente sobre menores, importa ter presente que se trata de uma área em constante e rápida evolução, resultante de tomadas de consciência colectiva, de alterações legislativas e dos compromissos internacionais assumidos, que tornam cada vez mais exigente e cuidada a educação e formação das crianças, impondo-se que se coloque o acento tónico no poder da palavra, na persuasão, no exemplo e na palavra, sem necessidade de provocar dor física ou danos de natureza psíquica” (Acórdão da Relação de Coimbra de 25.10.2023, in www.dgsi.pt.)
No caso dos autos, entendeu o Ministério Público que a conduta do arguido – naquilo que era cognoscível face à impossibilidade de audição da gravação contendo as declarações da menor - estaria abrangida pelo poder-dever de correcção do arguido sobre a sua filha BB.
Quanto à gravação, simplesmente se dirá, como já se fez constar dos autos, que para além da mais prova, as declarações da BB prestadas nas instalações da Polícia Judiciária para além do registo áudio efectuado no sistema CITIUS são igualmente registadas quer em suporte vídeo como áudio que consta dos autos.
No que respeita ao mais, é certo que, como em toda a sua actuação, a conduta do arguido está, as mais das vezes, em zona de fronteira entre aquilo que tem ou não relevância criminal.
É esta a dificuldade de apreciação da prova em grande parte dos crimes de violência e maus tratos, designadamente naqueles em que não são praticados actos tão flagrantemente violadores da integridade física ou brutais que impliquem imediata repulsa.
Desde já se diga que, muito do imputado ao arguido pela assistente e que respeita à BB não integra o tipo legal, não porque seja um comportamento adequado, mas porque do mesmo não decorre que o arguido pretendesse com o mesmo infligir à criança uma lesão física ou psicológica.
Porém, das declarações da criança, bem como das prestadas pela assistente resulta que o arguido, para além da lesão física tratou a BB de forma cruel e de molde a preencher o tipo legal.
A capacidade das crianças de se adaptarem ao comportamento do adulto e de ultrapassarem o mau trato não o desculpabiliza. Da circunstância da criança se ter divertido com o pai no fim-de-semana de ..., como demonstram as fotos juntas por este, não se retira que a agressão não tenha ocorrido, apenas a contextualiza e permite perceber que se tratou de reacção depois ultrapassada que a criança no conflito de lealdades entre os pais desvalorizou perante um e enfatizou perante outro e que, em termos probatórios não pode ir além da prova física e daquilo que são as regras da experiência comum.
Mais grave do que a reacção física é talvez a diferenciação entre as filhas e aquilo que resulta dos depoimentos já referidos quanto à depreciação da criança e aquilo que resulta desses elementos de prova permite considerar suficientemente indiciado que o arguido infligiu maus tratos psíquicos à BB e que, como tal, a sua conduta ultrapassa a ofensa à integridade física e se enquadra no tipo legal em apreço.
Também quanto ao crime de violência doméstica, o caso dos autos é um caso de fronteira. Para tal conclusão basta ouvir sequencialmente as declarações da assistente e as do arguido.
Do seu confronto resulta uma posição de domínio do arguido que a assistente aceitou e à qual se conformou até à ruptura do relacionamento, interpretando um e outro de formas diametralmente diferentes os mesmos eventos de vida. A assistente interpreta a entrega de prenda de Natal como forma de agrado e reconciliação na época natalícia, o arguido entende-a como uma provocação pois havia já manifestado não pretender que essa entrega ocorresse. A assistente considera os seus apelos para a realização de actividades conjuntas como uma forma de defesa da família e das filhas, o arguido vê-os como uma forma de constrangimento perante a sua vontade de por fim ao casamento. Os exemplos são tantos como que foram objecto das declarações.
E se é certo que, as regras de experiência comum nos dizem que nas situações de ruptura conjugal nem tudo o que é percebido como ofensa ou depreciação, o é, a violência física é inequivocamente o elemento que permite concluir pela existência ou não de indícios do crime. Embora seja por vezes a mais marcante e aquela que mais danos provoca, a violência psicológica é de difícil prova mas sendo esta acompanhada de violência física, como ocorreu no caso dos autos, é possível concluir pela existência de indícios da prática do crime imputado, embora devam ser excluídos os factos constituem apenas interpretações da assistente relativamente à intenção do arguido ou que não tem outro suporte probatório que não essas declarações.
Em suma, relativamente a estes crimes, face à coerência entre as declarações das testemunhas, que credibilizam as declarações da assistente, considerando ainda as imagens juntas outra conclusão não é possível que não a de que existe uma probabilidade razoável de condenação do arguido.
(…)
Assim, e em face de tudo o que ficou exposto, considero que os indícios recolhidos em sede de inquérito e de instrução são apenas suficientes para que o arguido seja submetido a julgamento pela prática do crime de maus tratos e de violência doméstica que lhe foram imputados, onde, fazendo-se aplicação plena dos princípios do contraditório, da imediação, da livre apreciação da prova e da liberdade de convicção do julgador, se formulará então um juízo de condenação ou absolvição do mesmo.
Assim sendo e ao abrigo do disposto nos art.º 283.º n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido:
- não pronunciar o arguido AA pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 199.º, nº 1, alíneas a) e b) n.º 2, alíneas a) e b) do Código Penal.
- não pronunciar a arguida EE pela prática, de um crime de maus-tratos a menores, previsto e punido nos termos do artº 152.º-A nº 1 al. a) do Código Penal, como cúmplice e de um crime de violência doméstica contra a assistente, em autoria material, previsto e punido, no artigo 152º, nº 1 alínea a) e nº 2 alínea a e b), do Código Penal.
- pronunciar o arguido AA pela prática, na forma consumada, em autoria material, e com dolo direito, de um crime de maus-tratos a menores, previsto e punido nos termos do artº 152.º-A nº 1 al. a) do Código Penal e de um crime de violência doméstica contra a assistente, previsto e punido, no artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea a) e b), do Código Penal.”
Vejamos então a questão prévia.
O recurso interposto nestes autos pelo arguido é da decisão instrutória proferida.
No âmbito da mesma foi decidido:
- não pronunciar o arguido AA pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 199.º, nº 1, alíneas a) e b) n.º 2, alíneas a) e b) do Código Penal.
- não pronunciar a arguida EE pela prática, de um crime de maus-tratos a menores, previsto e punido nos termos do artº 152.º-A nº 1 al. a) do Código Penal, como cúmplice e de um crime de violência doméstica contra a assistente, em autoria material, previsto e punido, no artigo 152º, nº 1 alínea a) e nº 2 alínea a e b), do Código Penal.
- pronunciar o arguido AA pela prática, na forma consumada, em autoria material, e com dolo direito, de um crime de maus-tratos a menores, previsto e punido nos termos do artº 152.º-A nº 1 al. a) do Código Penal e de um crime de violência doméstica contra a assistente, previsto e punido, no artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea a) e b), do Código Penal.
O Ministério Público junto deste Tribunal suscitou a irrecorribilidade do despacho com base no disposto no artº 310º nº 1 do C.P.P. que dispõe que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.”
Ora, tal preceito não tem aplicação no caso vertente pois que, como resulta da análise dos autos, o processo foi inicialmente alvo de arquivamento e a pronuncia advém de requerimento instrutório da assistente
Improcede, assim, a questão prévia suscitada.
Quanto à primeira questão suscitada (“a decisão recorrida é nula por violação do disposto artigo 283º nº 2 do CPP, aplicável por força do disposto no artigo 308º do mesmo diploma”).
Dispõe o artº 283º nº 2 do C.P.P. que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”
Por sua vez dispõe o artº 308º nº 2 do C.P.P. que “É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2,3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.”
A simples leitura dos preceitos deixa desde logo antever que carece de razão o recorrente.
Na verdade, se se determinar que não existem indícios suficientes da prática dos factos a decisão não é a afirmação de uma nulidade mas sim a não pronúncia.
Dito isto temos que a Lei é inequívoca no que sejam indícios suficientes: aqueles dos quais resultam uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Ora, numa primeira abordagem recursal é necessário analisar se o raciocínio do Tribunal é o correcto para depois se analisar se o raciocínio do recorrente o é.
Vale por dizer que não basta ao recorrente apresentar uma versão alternativa à escolhida pelo Tribunal, ainda que também ela viável, para que se altere a posição assumida. É necessário que a posição assumida pelo Tribunal padeça de um erro, seja interpretativo, seja factual. E é assim porque os recursos não são segundas opiniões sobre as mesmas questões mas sim formas de obter um remédio jurídico para peças que tenham patologias (jurídicas).
No caso concreto, o recorrente não disputa a seriação de meios de prova. O que sustenta é que outros meios de prova poderiam ser considerados em detrimento daqueles que foram.
Contudo, tal exercício é querer fazer com que a sua apreciação factual suplante a do Tribunal sem que se demonstre que aquela que foi adoptada está errada.
Tendo presente que estamos numa fase embrionária do processo não há certezas de uma condenação mas, analisada a posição do Tribunal, aquela que foi adoptada é consistente e suficiente para fazer crer que, uma vez provada, levará à condenação especialmente porque a prova avançada pelo recorrente são declarações de quem dirá que nada presenciou quando se circunstancializa o sucedido em ambiente privado.
Improcede, pois, este segmento recursal.
A segunda questão prende-se com a ausência do preenchimento dos elementos do tipo legal do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A do Código Penal.
Esta questão parece-nos de fácil resolução sendo fácil alcançar a ausência de razão do recorrente.
O recorrente alega que no despacho de pronuncia falta a narração da factualidade reconduzível ao tipo subjectivo do ilícito de maus tratos, que se traduzem na intenção, no conhecimento, na representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.
Do despacho de pronúncia pode ler-se o seguinte:
“- O arguido sabe que não pode atingir fisicamente as filhas e bem assim que os seus actos não são actos educacionais.
- O arguido sempre agiu livre e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram contrárias à convivência em sociedade bem como proibidas e punidas pela lei penal, e ainda assim não se coibiu de as praticar.”
Tal caracteriza de forma suficiente o elemento subjectivo do crime.
A terceira questão prende-se com a não aplicação do princípio in dubio pro reu.
A violação do princípio in dubio pro reo, a qual pode e deve ser conhecida como vício do texto da decisão, não se detecta na leitura da decisão recorrida, nomeadamente na fundamentação da matéria de facto pois que da leitura da mesma não ressalta qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados.
Dentro do escopo que lhe é permitido, a Srª Juiz de Instrução, ponderou os indícios que tinha perante si e sobre a valia dos mesmos (indícios) não apresentou quaisquer dúvidas, nem estas se vislumbram.
O princípio in dubio pro reo também pode e deve ser entendido objectivamente, ou seja, desgarrado da dúvida subjectiva ou histórica do julgador, postulando uma análise da sua violação já não como vício decisório, mas como erro de julgamento, e neste particular o recorrente nada diz pois que o que critica é a valoração da prova e não a seriação factual feita.
Mas, salienta-se, o princípio in dubio pro reo corresponde a uma regra de decisão (e não de interpretação dos factos ou da prova), através da qual, após produção da prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, que tem de ser razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, o juiz deva decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Ou seja, exige se que no espírito do julgador tivesse de subsistir uma dúvida positiva e invencível, efectivamente impeditiva da convicção do tribunal, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas, sobre a verificação, ou não, dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena.
No caso concreto, não é invocável o princípio in dubio pro reo, atenta a prova produzida e que fundamentou a decisão da matéria de facto provada, sendo que, no caso em apreço, o tribunal a quo não teve, correctamente, qualquer dúvida quanto à veracidade dos factos dados como provados, nem deveria ter tido tal dúvida.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
A última questão suscitada é apresentada como “erro na decisão quanto a considerar suficientemente indiciados determinados pontos de facto identificados na decisão instrutória.”
Neste particular permita-se-nos transcrever a resposta do Ministério Público a qual, pelo seu acerto, merece a nossa inteira concordância.
Assim: “Defende o arguido que o tribunal ao qualificar os factos indiciados no crime de violência doméstica, violou a lei e a jurisprudência, porquanto, no seu entender, os factos analisados no seu conjunto e no contexto em que ocorreram não evidenciaram um estado de degradação enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima como exigido para a verificação do crime de violência doméstica.
Refere, ainda que essa factualidade poderá integrar, eventualmente, a comissão de crimes de injurias e ofensa à integridade física.
O art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP –, integra-se no âmbito da legislação que tem em vista prevenir o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus-tratos familiares.
«O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar».
Afirma Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305) que não se vê «razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos».
Descendo ao caso dos autos, da análise da matéria descrita no despacho de pronúncia, sempre sem desatender às concretas circunstâncias em que os factos ocorreram, conclui-se que a mesma se mostra suficiente para integrar o crime de violência doméstica.
A conduta do arguido consubstancia, em nosso entender, uma conduta maltratante que assume a intensidade exigida pela incriminação prevista no artigo 152º, nº1 do CP.
Temos para nós que a agressão física ou psicológica prevista no artigo 152º, nº1 do CP, há-de ter sempre o propósito de permitir ao agressor, por meio dela, ascender nessa relação e ocupar na mesma um lugar superior ao da vítima, assim quebrando a paridade, o que foi possível apurar que ocorreu no caso dos autos.
Pelo exposto, bem andou o Tribunal ao qualificar os factos descritos como violência doméstica.”
Improcede, assim e in totum, o recurso.
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V - Dispositivo
Por todo o exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelo arguido que se fixam em 4 (quatro) U.C..
Notifique.
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelos Venerandos Juízes Adjuntos.

Lisboa e Tribunal da Relação, 22 de Outubro de 2025
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles
Cristina Almeida e Sousa