ARRENDAMENTO
PRÉDIO RÚSTICO
RURAL
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator):
I. A realidade contratual de arrendamento de prédio rústico não corresponde ao conceito legal de arrendamento rural;
II. O arrendamento rural é determinado pela finalidade do negócio – destinação ao setor produtivo primário – não pelo seu objeto;
III. O regime legal aplicável a arrendamento de prédios rústicos para finalidades não habitacionais é o do arrendamento urbano, o NRAU.

Texto Integral

Decisão:
I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo de Execução de Sintra - Juiz 4;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Execução Ordinária n.º 3444/25.1T8LSB;
- Decisão recorrida – Despacho liminar.
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (exequente):
- AA;
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I.III. Síntese dos autos:
- Instaurou a exequente execução invocando a formação do título especial previsto pelo art.º 14.º-A do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano).
- Apresenta dois escritos intitulados Contrato-Promessa de Arrendamento Condicional e Contrato de Arrendamento, bem como cartas registadas com aviso de receção, datadas de dia 26 de novembro de 2024, de comunicação de resolução de tais contratos;
- Alega, em síntese:
- Celebrou contrato-promessa de arrendamento e contrato de arrendamento, com a executada, por esses instrumentos cedendo o gozo do prédio rústico denominado de ---, situado em ---, com uma área de 121,0266 hectares, composto por parcela de terreno de cultura arvense, eucaliptal, sobreiros, pinhal e montado de sobro, descrito na Conservatório Predial de ---, sob o n.º ---, da freguesia de ---;
- Que foi acordada renda e estabelecida contratualmente sanção pelo não pagamento atempado;
- A executada faltou ao pagamento de rendas, que descreve;
- Na sequência, pela comunicação supra referida, declarou comunicar à executada a resolução dos contratos e exigir o pagamento o valor das rendas em dívida, acrescidas de 20% (liquidando o respetivo valor em €7.400,00 e €94.000,00, e em €1.480,00 e €19.887,25 o valor das penalizações contratuais em cobrança), valores a que acrescem juros moratórios;
- Apresentados os autos a despacho, foi proferida decisão de indeferimento liminar da execução, por falta de título executivo;
- Com esse despacho, não se conformando a exequente, interpôs recurso, pela presente apelação. --
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II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações:
1. O contrato de arrendamento dos autos tem como fim a atividade de produção de energia solar, fotovoltaica e de hidrogénio;
2. Não poderá ser qualificado como um arrendamento rural;
3. O regime do arrendamento rural apenas é aplicável ao arrendamento para fins agrícolas, florestais, ou outras atividades de produção de bens ou serviços associados à agricultura, à pecuária ou à floresta;
4. Consequentemente, ao contrário do decidido, ao contrato dos autos não é aplicável o regime jurídico do arrendamento rural aprovado pelo Decreto-Lei 294/2009, de 13 de outubro;
5. Tratando-se de um arrendamento rústico não sujeito a regime especial, é lhe aplicável o regime geral da locação civil e do arrendamento urbano para fins não habitacionais;
6. De acordo com este último regime aplicável, em caso de não pagamento de, pelo menos 3 rendas, basta a interpelação extrajudicial do senhorio ao arrendatário para fazer cessar o contrato de arrendamento;
7. A Exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento por intermédio das cartas registadas com aviso de receção, que juntou com o requerimento executivo;
8. Tais cartas, configurando comunicações ao arrendatário do montante em dívida, em conjunto com o contrato de arrendamento, constituem título executivo;
9. Decidindo, como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas do art.º 2º do DecretoLei n.º 294/2009, de 13 de outubro; dos art.ºs 1108º, 1047º, 1048º, n.º 4, 1084º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código Civil; dos art.ºs 9º, n.º 1 e 7, al. c), 10º, n.º 3 e 4 e 14-A, n.º 1 do NRAU; e do art.º 703º, n.º 1 al. d) do CPC.
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II.II. Questões a apreciar:
As alegações do recorrente delimitam o objeto do recurso, não havendo questões cujo conhecimento oficioso se imponha.
Nesta apelação, a única questão a apreciar é a existência do título executivo para fundar a presente execução. –
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
Os fundamentos do despacho recorrido:
Transcrevendo os trechos relevantes do despacho recorrido, este assentou nos seguintes fundamentos:
Conforme resulta do teor dos contratos juntos com o requerimento executivo, o arrendamento celebrado entre as partes teve por objeto um prédio rústico, “com vista à construção e instalação no mesmo de uma central de produção de energia solar fotovoltaica e hidrogénio e respetivas infraestruturas associadas”.
Trata-se por isso de um arrendamento rural, a que é aplicável o regime do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro, e não de um arrendamento urbano, pelo que não tem aplicação o regime do NRAU.
Nos termos do art. 33.º, n.º 2, do citado Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro, “O contrato de arrendamento constitui título executivo para a acção de pagamento da renda, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.”.
Ocorre que, ao contrário do que acontece com o regime do NRAU, em que, quando exista domicílio convencionado, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento podem ser realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção, o Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro, estatui, no seu art. 26.º, n.º 4, que “A comunicação pelo senhorio destinada à cessação do contrato por resolução, nos termos do artigo 17.º, é efectuada mediante notificação avulsa, ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução, sendo, neste caso, feita na pessoa do notificando, com entrega de duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original.”
Ou seja, no regime do arrendamento rural, a comunicação da resolução do contrato terá sempre de operar por meio de notificação judicial avulsa ou por meio de contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução, com as formalidades ali previstas, não se admitindo a comunicação da resolução do contrato por simples carta registada com aviso de receção.
A resolução contratual efetuada foi por isso inválida, por não estar legalmente prevista a possibilidade da cessação contratual, fundada em resolução, através do meio utilizado.
Quer isto dizer, sintetizando:
a. O despacho recorrido identificou os contratos cujo incumprimento é objeto de execução (e que são elementos integrantes do título executivo) como arrendamentos rurais;
b. Afirmou que a comunicação resolutiva, feita por carta registada com aviso de receção, não satisfaz as exigências resolutivas do arrendamento rural;
c. Por consequência, estabeleceu que o título composto apresentado, ao não respeitar tais exigências, não reúne qualidade para fundar a execução.
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b) Posição da recorrente-exequente:
Começando por apresentar uma síntese da posição da recorrente, como apresentada nas suas alegações, esta infirma a asserção inicial do juízo jurídico do tribunal – a qualificação do arrendamento como rural.
Aduz que arrendamento de prédio rústico e arrendamento rural são conceitos legais distintos, sendo que o contrato celebrado não se enquadra nesta categoria.
Na sequência dessa infirmação da premissa maior do juízo formulado a quo, retira consistência ao respetivo desenvolvimento e à conclusão retirada.
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Desenvolve a exequente os seus argumentos dizendo:
- Os contratos juntos com o requerimento executivo têm por objeto um prédio rústico, “com vista à construção e instalação no mesmo de uma central de produção de energia solar fotovoltaica e hidrogénio e respetivas infraestruturas associadas”;
- Não obstante o arrendamento recair sobre um prédio rústico, isso, só por si, não estabelece a sua qualificação como um arrendamento rural;
- O fim do arrendamento (instalação de uma central de produção de energia solar fotovoltaica e hidrogénio e infraestruturas associadas) não é um arrendamento rural;
- Não lhe sendo aplicável o regime especial deste tipo contratual, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 294/2019 de 13/10 - Novo Regime do Arrendamento Rural (NRAL);
- Esta conclusão resulta clara deste regime, desde logo se extraindo da definição constante do n.º 1, do art.º 2.º deste diploma – o arrendamento rural é a locação, total ou parcial, de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais, ou outras atividades de produção de bens ou serviços associados à agricultura, à pecuária ou à floresta;
- O arrendamento rural só é aplicável a finalidades contratuais específicas e taxativamente previstas, relacionadas com o setor produtivo primário (fins agrícolas, florestais ou outras atividades de produção de bens ou serviços associados à agricultura, à pecuária ou à floresta);
- A instalação de uma central de energia solar não é, manifestamente, uma atividade agrícola e/ou florestal ou destinada à produção de bens associados à agricultura, pecuária ou à floresta;
- Não se tratando de um arrendamento rural, não lhe é aplicável o respetivo regime legal e, especialmente, o disposto no art.º 33.º, n.º 2, do NRAL, relativo às exigências formais de comunicação da resolução para formação de título executivo;
- Não se tratando de um arrendamento rural, ao arrendamento em causa é aplicável o regime do arrendamento urbano para fins não habitacionais, conjugado com o regime geral da locação civil, nos termos do art.º 1108.º do Código Civil (CC);
- Dispõe este preceito (art.º 1108.º CC) que estas regras (do arrendamento urbano) aplicam-se aos arrendamentos urbanos para fins não habitacionais, bem como, com as necessárias adaptações e em conjunto com o regime geral da locação civil, aos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais;
- À resolução do arrendamento dos autos é aplicável o disposto no art.º 1047.º do CC e, portanto, pode ser feita judicial ou extrajudicialmente;
- À resolução extrajudicial do contrato de arrendamento de prédio rústico não sujeito a um regime especial, por falta de pagamento da renda ou aluguer é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 1084.º CC;
- Tal concede a faculdade de a concretizar por comunicação à contraparte, onde fundamentadamente se invoca a obrigação incumprida (cf. n.º 2);
- Tal determina que seja aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 7 do art..º 9.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU):
n.º 1 - Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção.
(...)
n.º 7 - A comunicação pelo senhorio destinada à cessação do contrato por resolução, nos termos do n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, é efetuada mediante:
a. Notificação avulsa;
b. Contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução, comprovadamente mandatado para o efeito, sendo feita na pessoa do notificando, com entrega de duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original;
c. Escrito assinado e remetido pelo senhorio nos termos do n.º 1, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, caso em que é inoponível ao senhorio qualquer alteração do local, salvo se este tiver autorizado a modificação.
- É redutor o entendimento da sentença recorrida no sentido que as normas do NRAU se destinam a regular apenas arrendamentos urbanos e não arrendamentos rústicos;
- Nos termos do art.º 14-A do NRAU o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.
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c) Apreciação da matéria recursória:
Pode começar-se por afirmar, sem necessidade de grandes referências além das apresentadas pela recorrente, que a associação feita na decisão recorrida a um arrendamento rural não é fundada.
O regime do arrendamento rural é um regime especialíssimo, que se delimita pelo fim do negócio e não pelo seu objeto e, consequentemente, não será a circunstância de um prédio estar registalmente descrito como rústico que determina que a sua cedência temporária e onerosa se traduza num arrendamento deste tipo.
Dir-se-á que, idealmente, uma adequada gestão e ordenamento do território deveria fazer corresponder a afetação dos prédios rústicos a finalidades do chamado setor primário (agrícola, florestal ou pecuária), o que levaria a que tal coincidência entre objeto e finalidade contratuais fosse efetiva. Essa não é, manifestamente, a situação da realidade predial de vastas áreas do território nacional, multiplicando-se as cedências onerosas de prédios classificados como rústicos para finalidades diversas das rurais.
Independentemente destas considerações, é claro do regime legal que a qualificação do arrendamento como rural se determina pela finalidade do contrato, não pela classificação do prédio e, por isso, é linear que uma cedência destinada a instalar e explorar uma central de produção de energia não constitui um fim relativo ao setor primário, mas um fim industrial-relativo ao setor secundário.
Não se trata, portanto, de um arrendamento rural – vejam-se, a propósito, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 24/9/2013 – Marques Pereira1 e o acórdão STJ de 5/12/2017 – Fátima Gomes2.
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Estabelecida esta base, a questão passa a ser a de saber se o contrato em causa pode ser classificado com arrendamento urbano, ou se o respetivo regime legal lhe poderá ser aplicável.
Acolhe-se entendimento no sentido que, não se tratando de arrendamento urbano propriu sensu, é aplicável à situação de arrendamento de prédios rústicos a finalidades não habitacionais (e não rurais) o regime legal do NRAU, por via da aplicação do art.º 1108.º do CC3.
O conceito de arrendamento urbano foi-se amplificando e aplicando compreensivamente a realidades de cessão onerosa de prédios, fora de previsões especiais, de um lado, e do quadro do arrendamento habitacional vinculístico, de outro.
Ganhou, portanto, como sustenta a recorrente, uma verdadeira função operativa central de regulação das situações locatícias, assim garantido a coerência e a compleição do sistema jurídico nesta área.
O arrendamento urbano tornou-se, portanto, o regime locatício geral.
Porque não há qualquer razão para distinguir onde o intérprete não distingue, deve entender-se que o regime do NRAU é integralmente aplicável a este tipo de arrendamentos e, portanto, comportando todas as suas regras, incluindo as de formação dos títulos executivos.
Conclui-se destas premissas que tem sustentação a apelação, sendo válida a comunicação efetuada para formação do título executivo.
É o que se decide. --
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III. Decisão:
Face ao exposto, concedendo-se a apelação, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a sua substituição por outra que, considerando a existência de título executivo, determine o prosseguimento dos autos.
Custas pela recorrente, computando-se com as da execução e sem prejuízo da imputação final de responsabilidade pelas mesmas.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 23 de outubro de 2025
João Paulo Vasconcelos Raposo
António Moreira
Teresa Bravo
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1. ECLI:PT:STJ:2013:317.09.9TBOLH.E1.S1.ED
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
3. Assim, Ricardo Costa, O novo regime do arrendamento urbano e os negócios sobre a empresa, Congresso nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Coimbra Editora, 2007, p. 479 e seg.