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PROVA POR RECONHECIMENTO
INVALIDADE
Sumário
Sumário (da responsabilidade do Relator): I - No âmbito do processo penal, a competência dos OPC está definida no artigo 55.º daquele Código e traduz-se, em termos gerais, e de acordo com o disposto no n.º 1 daquele normativo, em “coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo”. II - Não obstante a sua posição ser a de coadjuvantes, está prevista uma atividade por iniciativa própria no n.º 2 do mesmo artigo, no qual se estabelece que estes órgãos têm ainda competência para “colher notícia dos crimes, impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os atos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova.” III - Ora, a realização da diligência de prova por reconhecimento, atenta a particularidade deste meio de prova, deve ser levada a cabo sem que haja um resultado já predefinido, o que não se verificou no caso concreto uma vez que a fotografia/vídeo do arguido já havia sido exibida à testemunha. Deste modo, quando o arguido posteriormente foi colocado na linha de reconhecimento, uma vez tendo já sido visto em fotografia e em vídeo pela testemunha, o ato de reconhecimento realizado não poderá deixar de ser visto como um simulacro, cujo resultado já estava, à partida, garantido. IV -Estando a prova por reconhecimento dependente de uma avaliação mnemónica por parte da pessoa que vai proceder ao reconhecimento, e ocorrendo, ou devendo ocorrer, o ato recognitivo uma única vez, a possibilidade de lhe serem previamente mostradas fotografias, como aconteceu no caso concreto, distorce certamente a credibilidade do reconhecimento presencial e afeta a defesa do suspeito.
Texto Integral
Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
Por sentença proferida a ... de ... de 2025, foi decidido Condenar o arguido AA pela prática em coautoria de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelos artigos 210º, nº1 e 2, por referência ao artigo 204º, nº2, alínea f), todos do Código Penal na pena especialmente atenuada de dois anos de prisão suspensa na execução por igual período de tempo com sujeição a regime de prova.
Decido julgar parcialmente procedente por provada o pedido civil deduzido pelo demandante, em consequência do que condeno o demandado arguido AA no pagamento aquele da quantia de € 1000 (mil euros) a título de danos não patrimoniais.
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Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição): 1. Após o arquivamento do inquérito pela Procuradora titular, a PSP continuou o inquérito, sem que tivessem aparecido novas provas, motivo de reabertura do inquérito nos termos do art. 279º mas rebelando-se a PSP contra o arquivamento que prosseguiu ilegalmente. 2. O qual ficou ferido de nulidade insanável nos termos das disposições conjugadas dos art. 119º, al. b) e 48º do código de processo penal e inquina todo o processo nos termos da alínea d) da citada norma. 3. Passando a movimentar um inquérito à revelia do Ministério Público, a PSP solicitou as imagens ao metro de lisboa e também a identificação dos títulos de transporte utilizados pelos suspeitos. Das imagens constam os 3 suspeitos todos de cara tapada a apenas com os olhos visíveis. 4. Depois da PSP (por moto próprio) ter obtido a cópia do Título de transporte do arguido, onde era visível a sua fotografia, exibiram-na ao ofendido (mais de 1 ano depois, em ...) que prontamente o identificou como sendo um dos suspeitos, muito embora só o tivesse visto de cara tapada, sob emoção, durante uma curta fração de minutos e às 22h00 de uma noite de inverno ficando a partir desse momento todo o processo de reconhecimento inquinado. 5. No reconhecimento foram incluídas como figurantes duas pessoas para além do arguido que é uma pessoa de caraterísticas eslavas, de 17 anos com o cabelo claro, pelos ombros, e tez clara, sendo que as duas pessoas presentes para o reconhecimento eram visivelmente mais velhas, morenas, corpulentas com o cabelo curto e usavam bigode preto ao contrário do arguido que é imberbe e magro. 6. Tal violou grosseiramente o disposto no n.º 2 do art. 147º do CPP. 7. Tendo sido consignado que o arguido AA usava uma balaclava aquando dos factos, este e os figurantes também a deviam usar aquando do reconhecimento, que deveria ser feito pelos olhos, como a MMª Juiz a quo refere tão doutamente na sentença. 8. Os figurantes no reconhecimento foram identificados verbalmente, à revelia do art. 99º, nº 3 do código de processo penal, identificação essa que tem de ser feita pela exibição do cartão de cidadão, ou, na sua falta, por documento oficial, ao contrário do que aconteceu com o arguido AA. 9. Os figurantes foram oferecidos como testemunhas, um nem se sabia quem era, sendo a morada indicada inexistente, como está nos autos, o que conduz à conclusão de que o seu nome foi inventado, outro, BB, era polícia da esquadra onde foi feito o reconhecimento, confirmou que tinha bigode e que fazia por vezes de figurante em reconhecimentos naquela esquadra, mas não se lembrava se tinha, ou não, participado do reconhecimento dos autos (convenientemente). 10.Tal como tinha sido referido na impugnação do reconhecimento, o agente da PSP BB, tinha bigode e era um homem de cabelos pretos ondulados e com 25 anos e não 17, o que se veio a verificar aqui em audiência. 11. Contudo, muito mal, considerou a MMª Juiz que os figurantes no reconhecimento estavam bem identificados. 12.Por manifesto erro de análise escreveu a MMª Juiz na sentença que “Acresce que o facto de ter cabelo cumprido ou curto, claro ou escuro, não é, no caso vertente significativo dado que o ofendido tinha visto o arguido com uma balaclava, sendo evidente como o mesmo referiu que o que levou à identificação do arguido foi as características dos seus olhos e a sua especial configuração.” (sic.) 13.Tal reconhecimento veio a ser realizado na esquadra da PSP, não tendo tido lugar perante Autoridade Judiciária, conforme fora determinado pelo MMº JIC. 14.Não tendo sido cumpridos pela PSP os mandados de detenção. Para o que também não se encontra explicação. 15.Auto que deverá assim ser considerado nulo, por violação do disposto no art. 147º do CPP. 16.Nos dias ... de ... de 2024 a defensora tentou consultar os autos o que não teve resposta ou foi negado verbalmente pela Senhora funcionária, assim, todo o inquérito foi feito à revelia da defesa, com grave violação do art. 32º, nºs 1, 6 e 10 da Constituição da República Portuguesa, materializados no art. 89º do código de processo penal. 17.O que constitui irregularidade, atempadamente arguida, a qual, nos termos do art. 123º do CPP torna a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes. 18.Resultou evidente para o Tribunal a demonstração que que se tratava do arguido AA, desde logo, pela circunstância deste arguido ter “uma expressão ao nível dos olhos absolutamente diferenciada, cujas características são ainda mais evidentes em pessoa.” 19.Ou seja, o ofendido terá visto o autor do roubo com uma balaclava, que lhe tapava a cara, por instantes, numa situação de tensão e à noite, mas considerou a MMª Juiz como sendo evidente que o que levou à identificação do arguido AA pelo ofendido foram as características dos seus olhos e a sua especial configuração. 20.Não é possível, como já foi escrito, que uma vítima, reconheça à noite, em breves momentos e em estado de tensão uma pessoa pelos olhos e ao fim de dois e três anos. 21.O que aconteceu foi que foi exibida ao ofendido a foto do arguido AA que estava no seu título de transporte, o que criou nele a convicção que estava perante o assaltante. 22.Tal consta dos autos e foi confirmado pelo Senhor Agente CC (como consta da motivação) “ter sido” (a exibição da foto que consta do título de transporte)” um procedimento do seu colega, designadamente o confronto da vítima com a fotografia do suspeito. 23.Assistiu-se aqui não só a uma lamentável “policialização do inquérito”, prosseguindo os agentes da PSP um inquérito com despacho de arquivamento, e substituindo-se a PSP ao próprio Juiz de Instrução, em violação do disposto no art. 269º e 277º do CPP. 24.Padece a sentença recorrida do erro vertido no nº 2, al c) do art. 410º do CPP, ou seja, de erro notório na apreciação da prova. 25.Escreveu a MMª Juiz que os intervenientes no reconhecimento tinham “cabelo parecido, vestuário idêntico, idades próximas e cabelo parecido.” (com o arguido AA). 26.Ora, escrever que polícias fortes, morenos e de bigode se pareciam com um imberbe louro de 17 anos, é completamente errado. 27.Pior ainda, a MMª Juiz escreve na motivação da sentença que as testemunhas foram identificadas pelo seu nome e morada, ora, uma morada era inexistente e outra de um polícia na esquadra que declarou não se lembrar de ter participado no reconhecimento. 28.A isto chama a MMª Juiz identificação cabal! 29.A dinâmica dos factos é inverosímil porquanto todos os comportamentos típicos do crime de roubo, são imputados ao arguido AA. 30.Ou seja, exigiu dinheiro ao ofendido, empunhou uma faca e fez seus os objetos do ofendido. 31.Mas o que é verdade é que o arguido AA não estava na posse do telemóvel roubado ao ofendido, mas sim um tal “Moleque”, que o vendeu ao arguido DD. 32.Resta como prova a utilização do título do transporte registado em nome do arguido. Ora naturalmente que o passe pode ser usado por qualquer pessoa, aliás como foi também usado o passe do ofendido. 33.Não foi feita prova de que fosse o arguido AA a usar o passe. 34.Os fotogramas de fls 18 a 21 relativamente aos quais escreve a MMª Juiz “que é possível visualizar nas imagens de videovigilância, com os demais intervenientes, sendo evidente no fotograma de fl. 21 e melhor ainda da visualização as referidas características do arguido ao nível dos olhos”, imagens essas, cuja exibição muito custou e muito foi requerida, onde é impossível reconhecer o arguido AA. 35.São fugazes e de má qualidade. 36.Assim perante a insuficiência das provas na dúvida quanto à utilização do titulo do transporte o direito penal deve socorrer-se do princípio do In dúbio pro reu, devendo o arguido ser absolvido da prática do crime de roubo agravado pelo qual veio acusado. 37.Tendo o arguido sido condenado em coautoria, pela prática de um crime de roubo agravado, tendo como circunstância qualificativa agravante a circunstância vertida na alínea f) do nº 2 do art. 204º do código penal - “Trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta.” 38.A dita arma não foi apreendida nem, naturalmente, examinada. 39.A sua existência arma decorre apenas das declarações do ofendido, naturalmente parciais e emocionadas. 40.E a dita faca não é descrita, nem circunstanciada por quaisquer elementos de prova para além do depoimento do ofendido. 41.Naturalmente interessado e pouco isento, devendo também ser tido em atenção que formulou pedido de indemnização civil. 42.Não se pode, pois, concluir pela existência de uma faca, e muito menos valorar a sua utilização (que não se verificou) como circunstância qualificativa agravante. 43.Quanto ao ponto 17 da matéria de facto, que consubstancia o pedido de indemnização cível, não foi feita a mínima prova do mesmo, para além do depoimento do demandante cível, naturalmente parcelar e interessado. 44.Acresce que o vertido neste ponto – “Em consequência da atuação do arguido, o ofendido sentiu medo, temeu pela sua integridade física, sentiu receio de sair à rua e desconfiava quando passava junto de um grupo de pessoas, tendo-se abstido durante algum tempo de passar no local onde ocorreram os factos” nem sequer foi alegado pelo demandante no seu pedido de indemnização civil. 45.Este facto foi moldado pela MMª Juiz ao sabor do julgamento. 46.Convenhamos que, tendo o pedido de indemnização civil uma natureza civilística, não se pode o demandado defender de factos que não estão peticionados e que só aparecem em declarações do demandante e na sentença. 47.O ofendido deduziu pedido de indemnização cível, juntamente com a queixa, mas, não peticionou um valor pelos danos físicos e psíquicos que alega nem tão pouco juntou provas. 48.Não fez qualquer ligação entre os factos delituosos e qualquer dano indemnizável. 49.O requerimento que pede a atribuição de indemnização cível não está sujeito a formalidades “especiais”, podendo ser o próprio queixoso ou lesado a elaborá-lo pelo seu próprio punho, tal como fez, mas a lei não “abdica” de que essa declaração deva indicar todos os prejuízos sofridos, as provas que fundamentam tal pedido e o nexo entre o facto ilícito e o dano. 50.Provavelmente por falta de informação o ofendido, não cumpriu com as normas que delineiam um pedido de indemnização civil, ignorando as formalidades essenciais. Deverá pois a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido AA, quer pelo crime de roubo agravado, quer no pedido de indemnização cível. Caso assim não se entenda, o que não se concede, deverá a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de Roubo simples, visto que a circunstância qualificativa agravante, não foi provada.
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O Ministério Público respondeu ao recurso tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição): 1. Nos presentes autos foi o arguido AA, condenado pela prática, em coautoria, de um crime de roubo agravado previsto e punido pelos artigos 210.º, nº 1 e 2, por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f) todos do Código Penal na pena especialmente atenuada de dois anos de prisão suspensa na execução por igual período de tempo com sujeição a regime de prova. 2. Não se conformando com a referida decisão, o mesmo veio interpor recurso. 3. O facto da PSP ter logrado obter novas provas após o arquivamento dos autos não preenche nenhuma das situações previstas no art.º 119.º nem no art.º 120.º ambos do Código de Processo Penal, apenas poderíamos estar perante uma irregularidade que devia ter sido invocada anteriormente. Não o tendo feito a situação já se teria sanado. 4. No entanto, o que efetivamente ocorreu foi o recebimento pela PSP de novas provas que sempre determinariam, como determinaram, a reabertura do inquérito o qual foi arquivado nos termos do previsto no art.º 277.º. n.º 2 do Código de Processo Penal. 5. Em conformidade, o facto do processo ter sido reiniciado não implicou qualquer nulidade, muito menos uma que possa pôr em causa o destino destes autos. 6. Entende o recorrente que o auto de reconhecimento deverá ser considerado nulo uma vez que as pessoas que o integravam não eram semelhantes ao arguido, os intervenientes no mesmo foram identificados verbalmente e o reconhecimento foi realizado na esquadra. 7. O art.º 147.º do Código de Processo Penal dispõe sobre o modo de realização e os requisitos do reconhecimento de uma determinada pessoa. Preenchidos estes deve o mesmo ser considerado válido. 8. Nada impede que o reconhecimento seja feito na esquadra, aliás, é aí mesmo que a maior parte dos reconhecimentos são efetuados pois aí se encontram salas especialmente preparadas para tal, o que aliás, não se verifica na maior parte dos tribunais. 9. O facto do reconhecimento ter sido efetuado na esquadra e o facto de terem sido emitidos mandados resulta do facto da referida diligência apenas ter sido efetuada após diversas tentativas, primeiro por falta de pessoas que, pelas suas semelhanças físicas com o arguido, pudessem integrar o reconhecimento e posteriormente por falta do próprio arguido que se furtou ao mesmo. 10. Embora não tenha sido indicado um número de documento de identificação no auto de reconhecimento, tal não implica que os participantes não tenham apresentado o mesmo ao agente que realizou a diligencia não podendo por isso afirmar-se que os mesmos foram identificados verbalmente sobretudo, porque o agente que o realizou asseverou terem sido cumpridos os requisitos legais na sua realização. 11. Para além do afirmado pela defensora, que não é testemunha, nada indica que o reconhecimento não foi feito nos termos do previsto no dispositivo legal e nada indicia que as pessoas no reconhecimento apresentavam características diferentes das do arguido. 12. Mais resulta que tudo o atestado pela defensora do arguido quanto ao modo de realização da diligência e as suas alegadas nulidades não só não tem acolhimento nas declarações de qualquer testemunha apresentada ou em qualquer elemento constante dos autos que não tenha sido elaborado pela mesma como tem prova que se opõe a tal versão dos factos. 13. Em conformidade, não entendemos que se possa considerar que o reconhecimento apresenta qualquer vício, muito mesmo uma nulidade insanável. 14. Mais, veja-se o Ac. do TRC datado de 10-11-2020, proferido nos autos n.º 209/09.1PBFIG.C1, in dgsi.pt que uma identificação feita sem os requisito previstos no art.º 147.º do Código de Processo Penal sempre poderia ser valorada não podendo já considerar-se um reconhecimento pessoal, tal confirmação da identidade de alguém, apenas poderá ser encarada como integrante do respetivo depoimento testemunhal. 15. Aliás a identificação foi reafirmada em audiência pelo ofendido e pelos agentes presentes no mesmo. 16. O recorrente discorda que o tribunal dê como provado que o agente dos factos foi o arguido e a existência da uma faca na posse dos agentes dos factos. 17. O erro notório na apreciação da prova é “um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica” (Ac. do TRP, datado de 14-01- 2015, proferido nos autos n.º 72/11.2GDSRT.C1, in dgsi.pt). 18. Quanto à identidade do autor dos factos, a mesma resulta efetivamente da prova dos autos, nomeadamente do depoimento do ofendido, das testemunhas e bem ainda do reconhecimento que não padece de qualquer vício que o inquine. 19. Quanto à existência da faca efetivamente a mesma não foi recuperada e apreendida, todavia, resulta do depoimento do ofendido a sua existência bem como o facto de, ter sido a presença e exibição da mesma que levou o ofendido a aquiescer às exigências do arguido. 20. Quanto à dinâmica dos factos e à preponderância do arguido nos mesmos também estas resultam do depoimento do ofendido sendo que a mera presença dos outros dois indivíduos, mesmo que apenas estivessem presentes e a apoiar o arguido determinariam, mercê da superioridade numérica e características físicas visíveis nas gravações, receio no ofendido permitindo o preenchimento do tipo, Aliás o tipo seria preenchido mesmo que a faca estivesse na mão de um dos coautores e não do arguido. 21. A fixação de tais factos resulta da prova produzida em audiência de julgamento e da demais prova constante dos autos. 22. Vem ainda o recorrente considerar que o reconhecimento não resulta do facto de o arguido ter sido reconhecido no momento dos factos pelo ofendido mas por lhe ter sido posteriormente exibida a foto do mesmo. 23. Contrariamente, ao recorrente entendemos que é efetivamente mais correspondente às regras da experiência e da atividade humana, que uma pessoa se recorde das características da pessoa que praticou factos do teor dos constantes na matéria de facto dada como provada, mesmo que de noite, do que a mesma se recorde da fisionomia da pessoa constante de uma foto de “tipo passe” que lhe tenha sido exibida por pouco tempo e vários meses antes da realização do reconhecimento. 24. Tal asserção é especialmente adequada, sobretudo quando a referida testemunha referiu, no seu depoimento devidamente gravado no “citius”, que tendo percebido que não conseguiria evitar os factos teve particular atenção a características físicas que pudessem permitir reconhecer posteriormente os autores dos factos. 25. Atentas as características físicas pelas quais se guiou o ofendido para identificar o arguido seria efetivamente irrelevante usar ou não balaclava no reconhecimento 26. Mais, tendo visualizado os vídeos constantes dos autos e tendo estado na presença do arguido foi possível perceber as afirmações do ofendido e as conclusões retiradas pela M.ma Juíza da prova as quais resultam do facto do tribunal a quo ter acesso direto ao arguido e a toda a prova, o que sempre tem de ser avaliado pelo julgador e que determina as particulares regras que delimitam o que o tribunal superior aprecia previstas no Código de Processo Penal. 27. Conforme referido, a prova produzida em audiência de julgamento vai no sentido apontado pela decisão recorrida e os argumentos constantes das alegações de recurso não são de molde a pôr em crise o decidido quanto aos factos provados, nem são suscetíveis de inverter o sentido daquela decisão. 28. Ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto não foram violadas quaisquer regras da experiência, não se retiraram conclusões ilógicas, contraditórias, arbitrárias e inaceitáveis da prova produzida nem se violaram regras sobre prova vinculada. 29. O que ocorre nestes autos é uma discordância do recorrente com a matéria de facto dada como provada, com a apreciação da prova efetuada pelo tribunal a quo. Ora, não é admissível, sem mais, a mera sindicância da “forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência” quando estamos perante uma situação de livre valoração da prova (Simas Santos e Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, 7.ª Ed., Editora Rei dos Livros, pág. 78). 30. Resultando a existência da faca do depoimento do ofendido, tal facto foi corretamente dado com provado pelo que se verifica estarem preenchidos os elementos do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado, nomeadamente a agravação prevista no art.º 210.º, n.º 2, al. b) e 204.º, n.º 2, al. f) do Código Penal. 31. Invoca o recorrente a violação do princípio in dubio pro reo, todavia, o princípio em questão apenas é utilizado em caso de dúvida insanável ou contradição inultrapassável entre as versões apresentadas nos autos. 32. Nestes autos, analisada toda a prova disponível, a qual foi sujeita a contraditório em audiência de julgamento, resultaram provados os factos fixado na matéria de facto provada que preenchem, na íntegra, os elementos do tipo de ilícito pelo qual o arguido foi condenado. 33. Entendeu o tribunal, e bem, que os factos ocorreram nos termos em que os fixou e que constavam da acusação bem como entendeu não dar credibilidade à versão sustentada pelo recorrente pois que a mesma foi contraditada pelos elementos probatórios supramencionados, não tendo o tribunal ficado com dúvidas quanto ao modo como ocorreram os factos. 34. Em conformidade não foi violado o suprarreferido princípio. 35. Assim, de acordo com os argumentos acima elencados, entende-se não assistir razão ao recorrente, e pelos motivos suprarreferidos, dever ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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A Sra. PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pela improcedência do recurso aderindo à resposta apresentada pelo MP em primeira instância.
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Foi cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P.
II - Questões a decidir:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelos arguidos recorrentes, há que analisar e decidir:
Da nulidade insanável pela reabertura do inquérito;
Da irregularidade por falta de acesso ao inquérito
Da nulidade do reconhecimento por violação do disposto no art. 147º do CPP.
Do erro notório na apreciação da prova vertido no nº 2, al c) do art. 410º do CPP.
Do erro de julgamento;
Da verificação da agravação prevista no art.º 210.º, n.º 2, al. b) e 204.º, n.º 2, al. f) do Código Penal.
Do pedido de indemnização cível
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida tem o seguinte teor (transcrição): 1-No dia ... de ... de 2022, pelas 21h40, na ..., em Lisboa, o arguido e outros dois indivíduos, de identidade não concretamente apurada, abordaram o ofendido EE no momento em que este abandonava a trotinete da empresa “...” em que se fazia transportar. 2. O arguido AA encontrava-se caído no chão, tendo ao seu lado uma trotinete, e os outros indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, estavam ao lado deste, numa trotinete. 3. Momento em que o arguido AA se aproximou do ofendido e lhe exigiu que este lhe entregasse a bolsa que trazia consigo. 4. Por o ofendido ter respondido que não entregava a bolsa, o arguido empunhou de imediato uma faca, de caraterísticas não identificadas. 5. Perante a ameaça da faca que o arguido empunhava, o ofendido EE, entregou de imediato a carteira, marca Guess, de valor €60,00 (sessenta euros) que trazia consigo, que continha no seu interior uma carteira preta e cinzenta no valor de 5,00 (cinco euros), dez euros em moedas, o cartão da escola, cartão lisboa viva, chaves de casa e ainda o telemóvel, de marca ..., modelo X, de valor 290,00 (duzentos e noventa euros). 6. O arguido AA retirou e fez seus os objetos pertencentes ao ofendido 7. Logo de seguida, o arguido AA juntamente com os outros dois indivíduos encetaram fuga em direção do ..., em Lisboa. 8. O arguido, juntamente com os outros indivíduos, agiu em comunhão de esforços, com o propósito de fazer seus os objetos subtraídos, bem sabendo que não lhe pertencia e que agia contra a vontade do respetivo dono. 9. O arguido sabia que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário. 10.O arguido beneficiando de superioridade numérica, surpreendeu o ofendido quando este se encontrava sozinho, num local isolado e escuro, usando para tal uma faca, de caraterísticas não identificadas. 11.O arguido sabia que a exibição e manipulação de uma faca era um meio apto a constranger e intimidar o ofendido. 12.O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal. 13.Em data não concretamente apurada, mas situada entre ..., o arguido DD comprou o telemóvel, de marca ..., modelo X, pertencente ao ofendido EE, a um indivíduo de alcunha “...”, de aparência africana, pelo valor de €80,00 (oitenta euros). 14.Ao adquirir ao indivíduo de identidade não concretamente apurada, de alcunha “...”, o aludido telemóvel, em bom estado de conservação, pelo preço de €80,00 (oitenta euros), o arguido DD devia razoavelmente conhecer que, dado o preço abaixo do preço de mercado e o seu estado, este material tinha proveniência ilegítima. 15. O arguido não se certificou, de nenhuma forma, que o telemóvel tinha proveniência lícita. 16.O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal. 17. Em consequência da atuação do arguido, o ofendido sentiu medo, temeu pela sua integridade física, sentiu receio de sair à rua e desconfiava quando passava junto de um grupo de pessoas, tendo-se abstido durante algum tempo de passar no local onde ocorreram os factos. 18. O ofendido recuperou o telemóvel partido e o seu cartão. 19. O arguido DD foi condenado: -por sentença transitada em julgado em ...-...-2017 pela prática em ... de um crime de resistência e coação sobre funcionário na medida de acompanhamento educativo pelo período de 18 meses -por sentença transitada em julgado em ...-...-2018 pela prática em ... de um crime de furto na medida de acompanhamento educativo por 12 meses, pena declarada extinta pelo cumprimento; -por sentença transitada em julgado em ...-...-2020 pela prática em ... de um crime de ofensa à integridade física a medida de internamento em centro educativo pelo período de 12 meses , declarada extinta pelo cumprimento; - por sentença transitada em julgado em ...-...-2020 pela prática em ... de um crime de ameaça na medida de acompanhamento educativo, declarada extinta pelo cumprimento; -por sentença transitada em julgado em ...-...-2023 pela prática em ... de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de um ano de prisão suspensa por um ano com regime de prova, pena declarada extinta pelo cumprimento; -por sentença transitada em julgado em ...-...-2024 pela prática em ... de um crime de injúria agravada e um crime de resistência e coação na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €7 20.Do crc do arguido AA nada consta registado. 21.O arguido AA estudou até ao 9.º ano , tendo exercido a atividade de pintor da construção civil contudo desde há quatro meses que está a ser acompanhado por problemas de stress. O arguido vive com os pais que exercem atividade profissional remunerada. 22.O arguido DD trabalha como ... há dois meses auferindo cerca de dois mil euros mensais. Vive com a mãe, a avó e o irmão mais novo, que estuda. O arguido tem duas filhas de 2 anos e outra de 8 meses que se encontram entregues aos cuidados da mãe e a que o arguido paga o montante mensal de pelo menos € 200. Para as despesas de casa despende o montante mensal de cerca de€ 100. O arguido tem de escolaridade o 9.º ano.
Motivação da decisão de facto Atendeu-se desde logo ao teor do auto de denúncia de fl.s 2 e 3, aditamento de fl.s 15 , visionamento de fl.s 18 a 24 e em audiência de julgamento, aditamento de fl.s 107, auto de apreensão de fl.s 110 a 111, auto de exame e avaliação de fl.s 115 a 116. O arguido AA exerceu o direito ao silêncio quanto aos factos de que se encontra acusado, tenho apenas declarado sobre as suas condições sócio económicas. O arguido DD admitiu a prática dos factos de que se encontra acusado, tendo ainda declarado sobre as suas condições sócio económicas, esclarecendo as circunstâncias e que adquiriu o telemóvel que mais tarde foi apreendido, declarando ainda a desconfiança na situação vertente quanto à proveniência do referido telemóvel. A testemunha FF, agente da PSP, confirmou ter procedido à apreensão do telemóvel em causa nos autos, confirmando o teor de fl.s 88, fl.s 110 a 111, 115 a 116. A testemunha GG, mãe do arguido, referiu que no dia do reconhecimento acompanhou o seu filho e a advogada, tendo na sequência da diligência a senhora advogada dito que as pessoas não eram parecidas, um tinha o cabelo comprido e o outro rapado, exigindo que colocasse a identificação as pessoas e que colocasse a idade, tendo a senhora advogada se recusado a assinar, tendo sido referido que se o fizesse tinha consequências, designadamente, que o AA ficaria preso. O senhor agente que forçou o orçamento. Referiu, ainda, que o seu filho perdeu o passe várias vezes. Acrescentou que nas imagens não dava para ver quem era. O ofendido EE referiu as circunstâncias de tempo e lugar em que foi abordado pelo arguido e mais dois indivíduos tendo todos colocadas uma balaclava em que apenas a zona dos olhos era visível, tendo -lhe sido exibida uma faca pelo arguido AA. Descreveu toda a dinâmica que determinou que lhe fosse subtraído o telemóvel, uma bolsa da guess, a carteira com dinheiro, contendo € 10, passe e cartão da escola e as chaves de casa. Referiu que no reconhecimento, que ocorreu após três tentativas, reconheceu o arguido tendo as pessoas, cabelo parecido, vestuário idêntico, idades próximas e cabelo parecido. Acrescentou que a zona dos olhos e sobrancelhas do arguido é bastante pronunciada e distinta de qualquer outro, sendo que o Tribunal pode constatar essa mesma afirmação. Quando foi confrontado com as imagens de videovigilância reconheceu o arguido com a sua bolsa. Na altura do reconhecimento, não teve dúvidas em reconhecer o arguido desde logo pelo formato pronunciado dos olhos até porque foi a pessoa que esteve mais próxima de si, não tendo tido qualquer dúvida no reconhecimento. Recuperou o telemóvel e o cartão da escola, estando contudo o telemóvel partido quando lhe foi entregue, cujo valor confirmou. Desde então fica mais alerta quando há várias pessoas no meso local, evitando de passar em determinados locais. Confrontado com o fotograma de fl.s 28 confirmou ter visto esta fotografia do arguido. A testemunha BB, agente da PSP quando confrontado com o reconhecimento constante dos autos referiu que a morada que consta nos autos de reconhecimento que integra é a da esquadra, pelo que desconhece, pelo que não pode afirmar que tenha integrado esta linha de reconhecimento. A testemunha CC, agente da PSP, referiu ter intervindo e organizado o reconhecimento do arguido, as vicissitudes que surgiram na sequencia do mesmo, as anteriores tentativas de reconhecimento malogradas e as dificuldades em arranjar pessoas para ao efeito e de proceder à sua identificação. Acrescentou que a identificação foi cabal, não tendo o ofendido revelado qualquer dúvida. As pessoas que estavam na linha de reconhecimento tinham idades próximas ao arguido, sendo parecidas. Confrontado com o teor de fls. 15 referiu ter sido o procedimento do seu colega, designadamente o confronto da vítima com a fotografia do suspeito. Confirmou o teor de fl.s 144 a 145 dos autos. No momento em que foi dado para assinar é que a senhora advogada que representa o arguido suscitou a questão de não serem parecidos. Referiu que iria participar da senhora advogada. HH, agente da PSP, referiu não conhecer qualquer dos intervenientes, referiu ter entregue os números dos intervenientes não e recordando dos intervenientes. Veio a defesa do arguido invocar a invalidade do reconhecimento alegando em síntese que as pessoas que integram a linha de reconhecimento eram mais velhas que o arguido, a pele morena e tinham a pele morena e cabelo escuro, usando uma delas bigode. Eram mais corpulentos que o arguido. Tal circunstância viola grosseiramente o disposto no argo 147.º n.º 2 do C.P.P. tendo a defesa do arguido suscitado de imediato a irregularidade do reconhecimento. Contudo esta alegação do arguido, desde logo não resultou demonstrada, sem embargo tenha sido confirmado pelo senhor agente de autoridade que presidiu à diligência o incidente verificado com a defesa do arguido. Na verdade, o ofendido referiu que as pessoas eram semelhantes e a testemunha alegadamente interveniente no reconhecimento com uma pequena barba não confirmou ter estado no local. Acresce que o facto de ter cabelo cumprido ou curto, claro ou escuro, não é, no caso vertente significativo dado que o ofendido tinha visto o arguido com uma balaclava, sendo evidente como o mesmo referiu que o que levou à identificação do arguido foi as características dos seus olhos e a sua especial configuração. Quanto à alegada ausência de identificação completa dos intervenientes na linha de reconhecimento, resulta do auto que as pessoas intervenientes estão identificadas pelo nome e morada, tendo sido explicado pelo agente de autoridade que é muito difícil por vezes encontrar pessoas para entrar na linha de reconhecimento e sem embargo uma das testemunhas não tenha sido localizada não significa que a mesma não exista e não tivesse, como se referiu, características física semelhantes ao arguido que ali foi reconhecido. Na verdade referiu também o senhor agente que muitas vezes, as pessoas são localizadas na rua sem que tenham documento de identificação consigo, procedendo à identificação verbal, como foi o caso. Quanto à emissão dos mandados pelo senhor juiz de instrução criminal resulta evidente que à data em que o reconhecimento dos autos foi feito aqueles já não estavam válidos, pelo que não invalida o reconhecimento feito. Note-se que a exibição ao ofendido alguns meses antes do reconhecimento do fotograma constante dos autos (passe social) não inquina o reconhecimento presencial feito. Termos em que se entende não existir qualquer invalidade do auto. Independentemente do supra referido quanto à invalidade do auto de reconhecimento e desse mesmo reconhecimento pelo ofendido, resulta evidente para o Tribunal a demonstração que se trata do arguido, desde logo pela circunstância de o arguido ter de facto uma expressão ao nível dos olhos absolutamente diferenciada, cujas características são ainda mais evidentes em pessoa. Por outro lado, o ofendido não teve qualquer dúvida em reconhecer o arguido como sendo a pessoa que se encontra nos fotogramas de fl.s 18 a 21 e que é possível visualizar na imagens de videovigilância, com os demais intervenientes, sendo evidente no fotograma de fl. 21 e melhor ainda da visualização as referidas características do arguido ao nível dos olhos. Acresce que no momento em que se verifica a passagem do arguido nos pórticos do metro, é registado o seu passe e o passe do ofendido que se encontrava na bolsa que o arguido acabara de tomar posse e que o ofendido identifica nas mãos do arguido. Segundo a informação remetida aos autos pelo metropolitano de Lisboa, em nome do arguido foi requisitado um passe em .../.../2022, desde então foram registados carregamentos em .../.../2022, .../.../2023 e .../.../2023 estando o mesmo válido até ..., inexistindo nos autos conhecimento de outros pedidos, sendo que os carregamentos deixam de ocorrer depois de o arguido ter sido constituído como tal nestes autos e confrontado com esta utilização em ...-...-2023. Acresce que a menção da mãe do arguido que o seu filho perdeu várias vezes o passe não se mostra demonstrada. Face ao exposto, resulta evidente para o Tribunal que foi o arguido quem praticou os factos dados por provados pelas razões acima expostas, independentemente do reconhecimento que o ofendido dele tenha feito. Quanto ao preenchimento pelos arguidos do crime em apreço atendeu o Tribunal ao comportamento objetivo empreendido pelos mesmos a para do conhecimento generalizado que tal conduta integra a prática de um crime. Os factos não provados resultam da total ausência de demonstração. ***
Cumpre apreciar os fundamentos do recurso
A análise que iremos realizar quanto às questões recursivas não será pela ordem com que foram sendo apresentadas pelo recorrente, mas pela ordem que permitirá o melhor dilucidamento das mesmas.
Assim, importa que comecemos pela invocada violação do direito de defesa do arguido.
Da nulidade insanável pela reabertura do inquérito.
Alega o recorrente que após o arquivamento do inquérito pela Procuradora titular, a PSP continuou com o mesmo, sem que tivessem aparecido novas provas, o qual ficou, por isso, ferido de nulidade insanável nos termos das disposições conjugadas dos art. 119º, al. b) e 48º do código de processo penal e inquina todo o processo nos termos da alínea d) da citada norma.
Dispõe o artigo 119º al. b) do CPP que “ Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a atos relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência”
As nulidades insanáveis, conforme resulta da própria denominação, constituem a mais grave forma de invalidade de um ato processual afetando de modo tão grave princípios básicos jurídicos que a lei considera, porque inadmissível e contrário à essência do processo, que tal ato possa subsistir sem contaminar irremediavelmente parte ou mesmo todo o processo.
As nulidades insanáveis podem ser conhecidas oficiosamente, ou seja, devem ser declaradas independentemente de pedido ou de arguição e em qualquer fase do procedimento
A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, constante no artigo 119º, alínea b), do CPP, é o corolário do princípio do acusatório, constante do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa e determina a separação formal e material entre quem exerce a ação penal e quem julga. Com esta separação pretende-se assegurar não só as garantias de defesa do arguido e dos demais visados, bem como garantir a liberdade de convicção, a objetividade e a imparcialidade de quem julga, exigindo uma clara separação de funções entre as diversas entidades que intervêm no processo penal.
Deste modo, a usurpação do poder de promoção do processo e da ação penal conferido ao Ministério Público, quer seja pelo próprio juiz, pelo assistente ou pelos Órgãos de Polícia Criminal constitui uma nulidade insanável.
No caso em apreço, por despacho de ...-...-2023, foi pelo MP determinado o arquivamento do inquérito, nos seguintes termos: “Pelo que, determino o arquivamento dos presentes autos, nos termos do artigo 277.º, n.º2 do Código de Processo Penal, sem prejuízo de serem reabertos se novos elementos de prova forem juntos aos autos”
Nesse mesmo despacho consta que as únicas diligências de Investigação: “O ofendido foi notificado para comparecer no ..., mas o resultado foi infrutífero”
Por despacho de ...-...-2023 pelo MP foi determinado o seguinte: Determino a reabertura do presente inquérito, por constarem dos autos novos elementos de prova úteis para a descoberta da verdade, que invalidam o despacho de arquivamento proferido, artigo 279.º do Código de Processo Penal. Devolva os autos à PSP para que prossigam as diligências de investigação necessárias no âmbito dos presentes autos.
Este despacho foi proferido na sequência da comunicação de ...-...-2023 efetuada pela PSP na qual consta o seguinte: Em Aditamento ao NUIPC em epígrafe cumpre-me informar V. Exaª. que, dada a informação prestada pela vítima no Auto de Denuncia, que os suspeitos haviam fugido no sentido da estação de metro do ..., foram por mim efetuadas diligências. Munido desta informação e havendo possibilidade de os mesmos terem entrado para a estação de metro, foi solicitado ao ... as imagens da mesma, bem como, em caso afirmativo do local de saída dos mesmos. Vistas as imagens, não só é possível ver os suspeitos a entrarem em corrida na estação do ..., no hiato temporal correspondente com a hora do roubo, munidos da mala roubada momentos antes à vítima, como se verifica a sua saída na estação de .... No caso em apreço é visível os suspeitos a validarem dois títulos de transporte (suspeitos de aparência africana passaram juntos) nos torniquetes da estação. Por tal facto, foi solicitado via correio eletrónico ao ..., o tipo e número de título de transporte utilizado, obtendo como resposta que foram utilizados dois títulos de transporte "Viva Lisboa" com os números ... e ... respetivamente. Dotado desta informação, solicitei via correio eletrónico à ... (encarregado de proteção de dados) a identificação constante nos títulos de transporte com os números acima mencionados. Recebida a resposta, constatei que o titulo validado pelos suspeitos de aparência africana era pertença de EE (lesado) e o outro pertença de AA, indivíduo que se enquadrava com as características do suspeito caucasiano. Cumpre-me informar que perante este cenário contactei com II (mãe do lesado), por forma a agendar uma data para se deslocar a esta Esquadra de Investigação Criminal com o intuito de confrontá-lo com as provas recolhidas e inquiri-lo. Assim no dia .../.../2023, mostrei as imagens recolhidas pelo ... da estação de metro do ... (entrada) e ... (saída) ao lesado, onde o mesmo não teve qualquer dúvida em reconhecer os três suspeitos como sendo os que haviam cometido o roubo do qual foi vítima, reconhecendo também indubitavelmente a sua bolsa (transportada por um dos suspeitos de aparência africana). Posto isto, restava confrontá-lo com o fotograma constante no passe do suspeito caucasiano (AA), ao que o lesado não teve qualquer reserva em reconhecê-lo como um dos indivíduos que cometeu o roubo contra a sua pessoa, conforme Auto de Inquirição de Testemunha que se anexa. A ultimar importa referir que falta ainda chegar às identificações dos suspeitos de aparência africana. Foi elaborado o respetivo Auto de Visionamento que se anexa, bem como o referido DVD em folha de suporte”.
Da análise dos autos verifica-se que no dia ...-...-2023 o OPC procedeu ao visionamento das imagens relativas à estação de metro do ... relativas ao dia dos factos.
Dos autos não consta que o despacho de arquivamento tenha sido comunicado ao OPC em data anterior a ...-...-2023.
Como se pode constatar, o despacho de abertura do inquérito teve lugar no dia ...-...-2023, o despacho de arquivamento no dia ...-...-2023, a comunicação do OPC ao MP com novos elementos de prova no dia ...-...-2023 e em ...-...-2023 foi determinada a reabertura do inquérito.
Da análise da comunicação do OPC resulta que após ...-...-2023, ou seja, após o arquivamento do inquérito, na sequência do visionamento das imagens cedidas pelo ..., efetuado em ...-...-2002, o OPC solicitou o tipo e o número de título de transporte utilizado no dia dos factos. Posteriormente, no dia .../.../2023, o OPC mostrou as imagens do estação de Metro ao lesado onde este terá reconhecido o autor do roubo.
Daqui resulta, de forma clara, que após o despacho de encerramento do inquérito (o qual não se mostra comunicado ao OPC) o OPC praticou os atos de investigação acima mencionados.
Mais resulta que as imagens da estação de metro do ... foram obtidas pelo OPC em data anterior ao despacho de arquivamento, foram visionadas igualmente em data anterior, o que faz com que estes concretos atos de inquérito tenham sido praticados no âmbito da delegação de competências efetuada pelo MP ao OPC encarregue da investigação.
Resulta ainda, conforme se retira do despacho de arquivamento de ...-...-2023, que neste despacho não foram considerados todos os atos de investigação desencadeados pelo OPC e nem aqueles que ainda estavam em curso. Com efeito, já havia sido solicitado ao ... as imagens da estação do ... e já constava do processo o auto de visionamento das imagens de ...-...-2023.
De acordo com o art. 262.º, n.º 1 do CPP o “inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a sua acusação”.
Esta disposição legal coincide com a definição de «investigação criminal» que consta na Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC).
A direção do inquérito ou o exercício da ação penal cabem ao MP. Nesta atividade o MP é “assistido pelos órgãos de polícia criminal” (OPC), que “atuam sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional”, conforme resulta no art. 263.º do CPP.
Segundo a alínea c), do art. 1.º do CPP, OPC são “todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código”
A delegação de competências do MP nos OPC pode ter natureza genérica, tal como resulta dos artigo 270.º, n.ºs 1 e 4 do CPP e do artigo 2.º, n.ºs 4 e 5 da Lei de Organização da Investigação Criminal.
No âmbito do processo penal, a competência dos OPC está definida no artigo 55.º daquele Código e traduz-se, em termos gerais, e de acordo com o disposto no n.º 1 daquele normativo, em “coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo”.
Não obstante a sua posição ser a de coadjuvantes, está prevista uma atividade por iniciativa própria no n.º 2 do mesmo artigo, no qual se estabelece que estes órgãos têm ainda competência para “colher notícia dos crimes, impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os atos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova.”
Estes casos consubstanciam situações de competência especial desses órgãos, a qual pode ser exercida ainda antes da instauração do inquérito, ou seja, quando ainda não foram neles delegadas competências por parte da autoridade judiciária competente.
Estas situações correspondem, para além da detenção, às medidas cautelares e de polícia (artigo 249.º e seguintes).
No que diz respeito à iniciativa própria dos órgãos de polícia criminal, Paulo dá Mesquita, in Direção do Inquérito..., p. 11. classifica-a segundo dois vetores. Por um lado, os atos cautelares e de polícia (artigos 248º ss do CPP) segundo a égide da função de coadjuvação do Ministério Público, agindo aqueles em substituição precária deste. Por outro lado, os atos cautelares e de polícia tidos como urgentes, que exigem uma pronta atuação por parte dos órgãos de polícia criminal, sem autorização prévia do Ministério Público, sob pena de se perderem os meios de prova e, consequentemente, colocar em causa a eficácia necessária à prossecução e sucesso da investigação.
A decisão de abertura do inquérito é da exclusiva competência do MP e uma vez aberto o inquérito, já no âmbito do processo penal e das suas regras, é que podem ser delegadas diligências de investigação ao OPC. Daqui decorre que CPP não admite a realização de “inquéritos policiais” preliminares que envolvam a realização de diligências de investigação.
Não sendo, neste caso, a PSP uma autoridade judiciária - mas, sim, um órgão da polícia criminal que atua sob a direção e na dependência funcional da autoridade judiciária competente, neste caso o MP, não se integrando os atos praticados após o arquivamento do inquérito no âmbito das medidas cautelares e de polícia (sempre dependentes dos pressupostos urgência e perigo na demora) e não se tratando, em abstrato, de uma atuação por encargo do Ministério Público conferido por um despacho de delegação de competência, faz com que, à partida, os atos de investigação identificados na informação de ...-...-2023, por terem sido obtidos fora do processo penal, sejam ilegais.
Porém, se tivermos em devida conta a dinâmica processual acima recuperada, facilmente se constata que os atos em causa, apesar de formalmente praticados fora do inquérito, não poderão ser qualificados como tendo sido realizados à revelia do controlo e fiscalização judiciária ou que atentem contra a competência constitucional do Ministério Público de exercício da ação penal e de domínio sobre o inquérito e as garantias da defesa.
Na verdade, existiu uma delegação de competências por parte do MP ao OPC, a cessação dessa delegação, decorrente do arquivamento que não foi comunicado ao OPC e os concretos atos praticados são uma sequência natural dos atos de investigação que já estavam em curso, ou seja, o pedido de imagens da ... e o auto de visionamento dessas imagens onde o OPC localiza, segundo o seu entendimento, os alegados suspeitos do crime de roubo em investigação.
Deste modo, não estando em causa uma situação flagrante em que o processo penal se iniciou e avançou à revelia do titular da ação penal, ou seja, uma situação em que o OPC usurpou uma função do Ministério Público de promover a ação penal, improcede a invocada nulidade insanável.
Da irregularidade por falta de acesso ao inquérito.
Alega o recorrente que nos dias ... de ... de 2024 a defensora tentou consultar os autos o que não teve resposta ou foi negado verbalmente pela Senhora funcionária, assim, todo o inquérito foi feito à revelia da defesa, com grave violação do art. 32º, nºs 1, 6 e 10 da Constituição da República Portuguesa, materializados no art. 89º do código de processo penal.
O que constitui irregularidade, atempadamente arguida, a qual, nos termos do art. 123º do CPP torna a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes.
Ora, tratando-se de uma irregularidade, como o próprio recorrente a qualifica, a mesma só pode ser invocada e conhecida perante a entidade que praticou o ato e não em sede de recurso. Na verdade, o tribunal da relação é materialmente incompetente para conhecer, em primeira mão, de nulidades sanáveis ou irregularidades processuais relativas a atos processuais praticados na 1ª instância.
Para além disso, tratando-se de uma irregularidade a mesma mostra-se sanada pelo recurso do tempo.
Em face do exposto, sem necessidades de maiores argumentos, improcede a pretensão do recorrente.
Da nulidade do reconhecimento por violação do disposto no art. 147º do CPP.
Ao tribunal da relação incumbe pronunciar-se sobre todas as questões de conhecimento oficioso, designadamente das nulidades insanáveis a que aludem os artigos 379º e 410º, nº 3 ambos do C.P.P. e dos vícios de procedimento previstos no artigo 410, º nº 2 do C.P.P., que obstam à apreciação do mérito do recurso, assim como quanto aos meios proibidos de prova.
Deste modo, por ter sido suscitada pelo recorrente cumpre agora, por uma questão de precedência lógica e preclusiva, tomar conhecimento da validade do meio de prova por reconhecimento.
O recorrente alegou que no reconhecimento foram incluídas como figurantes duas pessoas para além do arguido que é uma pessoa de caraterísticas eslavas, de 17 anos com o cabelo claro, pelos ombros, e tez clara, sendo que as duas pessoas presentes para o reconhecimento eram visivelmente mais velhas, morenas, corpulentas com o cabelo curto e usavam bigode preto ao contrário do arguido que é imberbe e magro. Que o agente da PSP BB, tinha bigode e era um homem de cabelos pretos ondulados e com 25 anos e não 17, o que se veio a verificar aqui em audiência.
Mais alegou que tendo sido consignado que o arguido AA usava uma balaclava aquando dos factos, este e os figurantes também a deviam usar aquando do reconhecimento. Os figurantes no reconhecimento foram identificados verbalmente, à revelia do art. 99º, nº 3 do código de processo penal.
Conclui que houve violação grosseira do disposto no n.º 2 do art. 147º do CPP.
Como decorre dos autos, na fase de inquérito teve lugar a realização do meio de obtenção de prova por reconhecimento e como resulta da motivação e análise crítica da prova, o tribunal recorrido utilizou este meio de prova na formação da sua convicção quanto à condenação do arguido.
Deste modo, cumpre indagar se a prova atinente ao reconhecimento do recorrente foi recolhida com a observância do ritualismo a que alude o art. 147º do C.P.P., constitui (ou não) prova proibida.
O reconhecimento de pessoas constitui um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime.
Nas palavras de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume II, Editorial Verbo, 1994, p.149. , esta prova “consiste na confirmação de uma perceção sensorial anterior, ou seja, estabelecer a identidade entre uma perceção sensorial anterior e outra atual da pessoa que procede ao ato”.
Esta diligência deve ser realizada com as maiores cautelas, para garantir a credibilidade do reconhecimento e, pelo menos, minimizar os riscos de erro a ele associados. Para que seja assegurada a autenticidade e fiabilidade do ato de reconhecimento, este terá de obedecer a um mínimo de formalidades indispensáveis, de modo a poder ser valorado pelo tribunal como meio de prova.
Esta preocupação mostra-se bem patente no acórdão do TC nº 452/05 de 25 de agosto de 2005, quando se afirma que “Em suma, dada a relevância que na prática assume para a formação da convicção do tribunal, e os perigos que a sua utilização acarreta, um reconhecimento tem necessariamente que obedecer, para que possa valer como meio de prova em sede de julgamento, a um mínimo de regras que assegurem a autenticidade e a fiabilidade do ato”.
No mesmo sentido, o acórdão do TC nº 378/2007: “Daí que o legislador processual penal, consciente do perigo da força probatória de um meio tão exposto a enganos e de difícil sindicância, tenha desde há muito imposto formalismos específicos para a produção deste tipo de testemunho, autonomizando-o, de modo a criar mecanismos de controle da fiabilidade do reconhecimento e a minorar o apontado risco de erro”
Ciente destas dificuldades o legislador ao regular o ato de reconhecimento fez acrescentar no nº 7 do artigo 147º do CPP, o seguinte: “O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”.
Tudo isto revela a excecional preocupação em rodear o reconhecimento de especiais cautelas, procurando, na medida do possível, diminuir ao máximo os “falsos reconhecimentos” (positivos).
Assim, quanto ao procedimento a que deve obedecer o reconhecimento de pessoas, o mesmo mostra-se regulado no artigo 147º, do C.P.P.
No nº 1 do artigo 147º do CPP está previsto o reconhecimento por descrição, o qual consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros fatores que possam influir na credibilidade da identificação. Em regra, esta modalidade de reconhecimento funciona como ato preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
Por sua vez, o nº 2 do mesmo preceito prevê o reconhecimento presencial, o qual tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal. Esta modalidade de reconhecimento obedece aos seguintes trâmites: na ausência da pessoa que deve efetuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar; em seguida este é colocado ao lado daqueles outros cidadãos e, se possível, apresentando-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que deve proceder ao reconhecimento. Por fim, é chamada a pessoa que deve efetuar a identificação que, depois de ficar diante do grupo onde se encontra o cidadão a identificar e portanto, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo perguntas e respostas – estas e qualquer outra que porventura, tenha sido efetuada, registada no auto respetivo.
Como refere Bruno Alves, Da Prova por Reconhecimento em Processo Penal, Análise e Reflexão Crítica, 1ª Edição, Porto, 2012 p.42: “os figurantes devem apresentar semelhanças com a pessoa a reconhecer em termos de idade, sexo, estatura, raça, cor de pele, cor de olhos, tipo e cor de cabelo, entre outras que se julgue necessário no caso concreto”.
Este requisito é legalmente exigível por ser certo que a memória do ser humano é falível e o identificante, que muitas vezes terá visto o suspeito uma só vez e por um reduzido período de tempo e em circunstâncias muitas vezes de tensão, terá tendência para identificar a pessoa que considere mais parecida com aquela de que se recorda.
Medina de Seiça refere que o objetivo de serem estabelecidas regras à produção da prova por reconhecimento é “garantir a neutralidade psíquica da pessoa que deva proceder à identificação, evitando resultados influenciados, pré-constituídos, e inviabilizando situações formais que façam convergir invariavelmente a escolha sobre o suspeito indicado”. In Legalidade da Prova e Reconhecimentos Atípicos em Processo Penal: Notas à margem de jurisprudência (quase) constante, in AAVV, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, 1ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2003
No nº 3, com vista à proteção da testemunha, está previsto o reconhecimento com resguardo, o qual tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efetuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efetivação do reconhecimento.
Por último, o reconhecimento de pessoas que não seja realizado nos termos expostos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu (nº 7, do art. 147º, do CPP). Estamos, assim, perante uma proibição de prova, a qual é conhecimento oficioso, uma vez que a lei não faz qualquer referência à necessidade de arguição, fazendo com que o reconhecimento seja inválido e não possa, por essa razão, ser usado para fundamentar a decisão.
O reconhecimento, em regra, tem lugar nas fases preliminares do processo, ou seja, no inquérito, sendo que a lei não prevê a presença do juiz na diligência, o que cria algumas dificuldades, sobretudo nas situações em que não foram recolhidas fotografias dos intervenientes, em controlar o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º, nomeadamente quanto ao número de intervenientes, como quanto ao aspeto das semelhanças físicas. Esta mesma dificuldade aplica-se à defesa para contraditar a prova em julgamento.
Há que dizer que a prova por reconhecimento não tem valor probatório reforçado, sendo que é livremente apreciada pelo tribunal nos termos do artigo 127º do CPP. Em todo o caso, o tribunal só a poderá valorar quando tenha sido validamente obtida, ou seja, quando estejam verificados todos os formalismos processuais disciplinados pelo artigo 147º do CPP.
Na verdade, a lei processual penal é clara quanto ao formalismo para a admissão da prova por reconhecimento, pelo que no caso em que estes não possam ser cumpridos, nomeadamente por dificuldades práticas em reunir pessoas com as caraterísticas semelhantes, não pode este meio de prova ser produzido contra a lei. Em processo penal, as dificuldades em realizar determinado tipo de prova jamais poderão ser ultrapassadas pela validação de um meio de prova que não cumpre o formalismo legal.
Volvendo ao caso dos autos cumpre atentar nos seguintes aspetos.
Conforme resulta da informação do OPC de ...-...-2023, o lesado foi confrontado, em data anterior ao reconhecimento presencial, com o fotograma constante no passe do suspeito caucasiano (AA), ao que o lesado não teve qualquer reserva em reconhecê-lo como um dos indivíduos que cometeu o roubo contra a sua pessoa.
Consta da mesma informação que o lesado foi confrontado com as imagens da estação de metro do ... e que terá reconhecido os suspeitos como sendo os autores do roubo.
Do auto de visionamento de imagens realizado no dia ...-...-2023, em particular dos fotogramas, resulta que os três suspeitos no momento em que entram e circulam pela estação de metro estão de cara tapada apenas sendo vivível a região dos olhos.
Os factos ocorreram à noite, os três intervenientes nos factos estavam, segundo referiu a testemunha EE, de cara tapada “só se via os olhos e as sobrancelhas”
O arguido nasceu a ... de ... de 2006 pelo que em ... tinha 17 anos de idade.
Do depoimento da testemunha BB, agente da PSP, prestado em audiência, que segundo o recorrente terá feito parte da linha de reconhecimento, resulta que este usava bigode e pera, tinha 24 anos, mas não se recorda se esteve na linha de reconhecimento em causa, embora já tenha participado em várias linhas de reconhecimento.
Não se encontram juntas ao processo fotografias dos figurantes que participaram na linha de reconhecimento em causa, já que os mesmos, no exercício do direito que lhes é atribuído, não consentiram nessa junção.
Da informação prestada pelo agente da PSP, CC, na sequência do despacho do MP de ...-...-2024, para se pronunciar sobre a irregularidade do reconhecimento, consta que: “Os voluntários tinham características parecidas com o arguido, nenhum dos figurantes tinha bigode tal como o arguido”.
Da fundamentação da sentença consta o seguinte: “Referiu que no reconhecimento, que ocorreu após três tentativas, reconheceu o arguido tendo as pessoas, cabelo parecido, vestuário idêntico, idades próximas e cabelo parecido”, o que denota que o tribunal recorrido, embora não sendo o único elemento de prova, utilizou a prova por reconhecimento para fundamentar a decisão de condenação.
Daqui resulta, desde logo, que o ofendido EE, aquando do auto de reconhecimento já tinha sido confrontado, em momento anterior, com uma fotografia do passe do arguido, bem como com as imagens recolhidas no interior da estação do metro do ....
Ora, a realização da diligência de prova por reconhecimento, atenta a particularidade deste meio de prova, deve ser levada a cabo sem que haja um resultado já predefinido, o que não se verificou no caso concreto uma vez que a fotografia/vídeo do arguido já havia sido exibida à testemunha. Deste modo, quando o arguido posteriormente foi colocado na linha de reconhecimento, uma vez tendo já sido visto em fotografia e em vídeo pela testemunha, o ato de reconhecimento realizado não poderá deixar de ser visto como um simulacro, cujo resultado já estava, à partida, garantido.
Na verdade, estando a prova por reconhecimento dependente de uma avaliação mnemónica por parte da pessoa que vai proceder ao reconhecimento, e ocorrendo, ou devendo ocorrer, o ato recognitivo uma única vez, a possibilidade de lhe serem previamente mostradas fotografias, como aconteceu no caso concreto, distorce certamente a credibilidade do reconhecimento presencial e afeta a defesa do suspeito.
Do acima exposto resulta, também, perante a ausência de fotografias dos figurantes que participaram na linha de reconhecimento e perante a resposta não categórica da testemunha BB, não é possível concluir, com toda a segurança, que a linha de reconhecimento se mostrava composta por pessoas com caraterísticas semelhantes. Desde logo a idade do arguido, 17 anos à data e o facto de não usar bigode e pera. Para além disso, a resposta vaga prestada pelo agente CC não afasta as dúvidas suscitadas.
Ora, estes dois aspetos fazem com que não tenha sido respeitado um dos formalismos previstos no nº 2 do artigo 147º do CPP: as pessoas integrantes da linha de reconhecimento devem apresentar com o identificando “as maiores semelhanças possíveis”,
Este requisito é exigido pela lei, como já referimos acima, por se ter como seguro que a memória do ser humano é falível e o identificante, que muitas vezes terá visto o suspeito uma só vez e por um reduzido período de tempo, como se verificou no caso concreto, sendo que o arguido apenas teria visível os olhos e as sobrancelhas, terá tendência para identificar a pessoa que considere mais parecida com aquela de que se recorda.
Foram assim violados os arts. 147 n.ºs 2 e 7, 126 e 127, todos do CPP e o art. 32 da CRP, o que conduz à proibição de prova por reconhecimento.
«Declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afeta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afeta a mesma decisão o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado» Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, Almedina, pág. 407.
Vale tudo por dizer que, a sentença que se funda em prova nula é também ela nula. Neste sentido o Ac. do STJ de 06/10/2016, Proc. nº 535/13.5JACBR.C1.S1.
No seguimento do exposto, impõe-se, pois, declarar a nulidade da sentença recorrida no que se refere ao arguido recorrente, por utilização, na fundamentação da matéria de facto, de prova proibida, impondo-se a prolação de nova sentença quanto ao mencionado arguido, que exclua como meio de prova o reconhecimento, e que decida, em conformidade, de facto e de direito.
Em face do que acabamos de decidir fica, pois, prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas nas conclusões da motivação do recurso interposto pelo arguido AA.
IV – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em declarar a nulidade da sentença relativamente ao arguido/recorrente, devendo ser proferida nova sentença que exclua como meio de prova a valorar na fundamentação a prova por reconhecimento informal/identificação.
Sem custas
Notifique
Lisboa, 23-10-2025
(Elaborado e integralmente revisto pelo relator)
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Ana Paula Guedes (com voto de vencido que segue)
Joaquim Manuel da Silva
Voto vencida o acórdão, nos seguintes termos:
De acordo com o artigo 147º do CPP:
“ 1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual”.
São pressupostos do reconhecimento pessoal :
- Prévia descrição da pessoa a reconhecer pela testemunha;
- A comparação com outros dois indivíduos com características semelhantes;
- A elaboração do respetivo auto.
O reconhecimento que não obedece a estes pressupostos não tem valor como meio de prova (artigo 147, nº7 do CPP).
Ora, do artigo 147º do CPP não resulta que, anteriormente, a testemunha não possa já ter visualizado a imagem do suspeito, quer através de fotogramas, quer através do sistema de videovigilância, visualização essa necessária, muitas vezes, à contextualização dos factos e à prévia identificação do suspeito.
Assim, em casos como o dos autos, em que a testemunha/ofendido, previamente ao reconhecimento, já tinha identificado o suspeito, quer através de um fotograma, quer através de uma imagem de vídeo (e sem entrar na discussão da relevância/necessidade de realizar tal meio de prova) deve ficar ao critério do Tribunal, de acordo com o principio da livre apreciação da prova, valorar, ou não o auto de reconhecimento e aferir da sua credibilidade.
Já no que tange à questão de na linha de reconhecimento não terem estado presentes pessoas com caraterísticas semelhantes, cumpre referir que tal questão foi suscitada em sede de inquérito, tendo o OPC informado, por email datado de ........2024 o seguinte: “ 1) Os voluntários tinham características parecidas com o arguido, nenhum dos figurantes tinha bigode tal como o arguido. 2) O nome e morada dos voluntários é a indicada verbalmente pelos mesmos e efectivamente um deles tinha mais um ano que o arguido, mas nenhum dos voluntários é Policia (idade mínima para ingressar é 18 anos), foram sim requisitados na via pública, atendendo às características físicas idênticas ao arguido a reconhecer e de forma aleatória”.
Acresce que, em sede de audiência de julgamento, a testemunha BB, PSP que segundo a defesa do recorrente fez parte da linha de reconhecimento, mencionou não poder afirmar que tenha integrado a linha de reconhecimento.
Ora, a este respeito, consta da sentença:
“ Veio a defesa do arguido invocar a invalidade do reconhecimento alegando em síntese que as pessoas que integram a linha de reconhecimento eram mais velhas que o arguido, a pele morena e tinham a pele morena e cabelo escuro, usando uma delas bigode. Eram mais corpulentos que o arguido. Tal circunstância viola grosseiramente o disposto no argo 147.º n.º 2 do C.P.P. tendo a defesa do arguido suscitado de imediato a irregularidade do reconhecimento. Contudo esta alegação do arguido, desde logo não resultou demonstrada, sem embargo tenha sido confirmado pelo senhor agente de autoridade que presidiu à diligência o incidente verificado com a defesa do arguido. Na verdade, o ofendido referiu que as pessoas eram semelhantes e a testemunha alegadamente interveniente no reconhecimento com uma pequena barba não confirmou ter estado no local. Acresce que o facto de ter cabelo cumprido ou curto, claro ou escuro, não é, no caso vertente significativo dado que oofendido tinha visto o arguido com uma balaclava, sendo evidente como o mesmo referiu que o que levou à identificação do arguido foi as características dos seus olhos e a sua especial configuração”.
Desde logo, cumpre referir que não resulta dos autos (inclusive do auto de reconhecimento), nem da fundamentação da sentença que o reconhecimento não obedeceu aos pressupostos do artigo 147, nº2 do CPP, nomeadamente que os indivíduos colocados na linha de reconhecimento não tinham características idênticas às do arguido.
Assim, não resultando dos autos que a prova é proibida (que na situação concreta seria a prova por reconhecimento), mal seria que a simples alegação pelo arguido de que determinado meio de prova é nulo fosse suficiente para colocar em causa esse meio de prova. Na verdade, compete à defesa demostrar que tal meio de prova é ilegal, nomeadamente por violação do artigo 147, nº2 do CPP, constituindo o auto de reconhecimento um documento.
Acresce que, como bem refere a sentença recorrida, a questão da barba e do cabelo seria sempre irrelevante na medida em que o ofendido afirmou que: “ tinha visto o arguido com uma balaclava, sendo evidente como o mesmo referiu que o que levou à identificação do arguido foi as características dos seus olhos e a sua especial configuração”.
Finalmente cumpre referir que consta da sentença “Face ao exposto, resulta evidente para o Tribunal que foi o arguido quem praticou os factos dados por provados pelas razões acima expostas, independentemente do reconhecimento que o ofendido dele tenha feito” (sublinhado nosso).
Perante tal, e resultando da fundamentação da matéria de facto que a valoração do reconhecimento não foi determinante na fixação dos factos assentes, mesmo que se concluísse que o reconhecimento constituía prova proibida, nunca determinaria a nulidade da sentença e a prolação de nova sentença, por não afetar o ato, ou seja a conclusão do Tribunal sobre a intervenção do recorrente nos factos (artigo 122, nº1 do CPP) .
Pelo exposto, voto vencida a fundamentação (na parte que considera proibida a prova por reconhecimento) e a decisão do acórdão.
Ana Paula Guedes