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COACÇÃO SEXUAL
VIOLAÇÃO
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
CONSTRANGIMENTO
Sumário
Sumário (da responsabilidade da Relatora): I. O conceito de constrangimento, que integra o elemento objectivo nos crimes de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º, nºs 1 e 3, violação, p. e p. nos termos dos artigos 164º, nº1 e 3, e importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º, todos do C.Penal, terá que ser densificado e interpretado casuisticamente, sempre tendo presente a vontade cognoscível da vítima (a que alude o nº 3 dos artigos 143º e 163º mas que, assim se entende, terá que ser tida em conta também no crime p. e p. no artigo 170º, todos do C.Penal). II. A cognoscibilidade da vontade, enquanto elemento do tipo objetivo, prende-se com a existência de factos e/ou circunstâncias que demonstrem – possam demonstrar - uma falta de conformidade entre a prática sexual e a vontade da vítima. III. A vontade não tem de ser cognoscível apenas para o agente: o critério é o do homem médio colocado naquela posição, que se concebe como um ser razoável, prudente, com um mínimo de escrutínio para compreender a situação. IV. Para se preencher o tipo subjectivo, na vertente do preenchimento do elemento cognitivo ou intelectual do dolo, é necessário que o agente tenha condições para representar a oposição da vítima e, não obstante, actue desrespeitando tal vontade.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I Relatório
1.
Em ........2025, veio AA recorrer do despacho judicial, datado de ........2025, proferido após primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva - Inquérito com o nº 589/25.1PBOER que corre termos no DIAP 1ª Secção de Oeiras - Tribunal Judicial da Comarca de ... Oeste – juízo de Instrução Criminal de Cascais.
Transcrevem-se as conclusões do recurso apresentado – Ref Citius 52979772:
“
1- O recorrente encontra-se indiciado da prática de um crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo art. 358º al. b); dois crimes de violação, previsto e punido pelo art. 164º n.º 1 al. a), um crime de coação sexual, previsto e punido pelo art. 163º e um crime de importunação sexual, previsto e punido pelo art. 170º, todos do Código Penal.
2- Tendo o mesmo sido detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial, em ... de ... de 2025.
3- Em sede de primeiro interrogatório judicial, o mesmo prestou declarações de forma livre, esclarecida, sincera, por verdadeira, confessando os factos que praticou (teve relações sexuais de forma livre por consentida e de espontânea vontade de ambos, com a ofendida) tendo negado todos os demais factos que lhe são imputados, por serem falsos.
4- No seguimento do interrogatório judicial, a Digna Magistrada do Ministério Público, peticionou como medida de coação a aplicar ao arguido, atenta a prova produzida e existente nos autos, apenas requereu e considerou ser possível aplicar enquanto medida de coação, apresentações no OPC, atento que considera existir alguns indícios mas não existem fortes indícios, referindo neste seguimento “em consciência, acho que o arguido deve aguardar os ulteriores termos do processo, sujeito a apresentações na PSP, nem que seja todos os dias, para não se esquecer, para mim não há elementos para mais, para uma medida mais gravosa.”
5- A Juiz de Instrução, aplicou “No caso vertente, considero verificado um concreto perigo grave de ordem e tranquilidade pública, dado que os crimes de violação geram sentimentos de alarme social e de insegurança na população. Por outro lado, o facto do arguido já ter uma acusação pela prática de idêntico crime ao dos presentes autos, três crimes de violação agravada, fazem temer seriamente o perigo de continuação da actividade criminosa. Em face do disposto no art. 204º do Código Penal, que contém os requisitos gerais de aplicação da medida de coação, haverá que ponderar, no caso concreto o perigo de continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade pública”
6-Ora o despacho que faz a aplicação das medidas de coação, que não esteja sujeito às rígidas regras dos arts. 374º e 379º do Código de Processo Penal, constitui, em si, uma falta de fundamentação (nos termos do art. 97º n.º 5 os actos decisórios são sempre fundamentados) uma irregularidade, nos termos do art. 119º do mesmo diploma.
7-A Exma. Senhora Doutora Juiz de Instrução, vem referir, no seu douto despacho, que existe perigo de continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade pública, atento que existe outro processo crime. Ora, não podemos concordar com esta conclusão claramente viciada e violadora do princípio da presunção de inocência, constante do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
8-Ora, de forma primeira, se dirá que nos presentes autos, não existem nem provas, nem sequer fortes indícios da prática de qualquer ilícito, perpetrado pelo arguido, tendo tal sido reconhecido pela Digna Magistrada do Ministério Público.
9-Mais, os parcos indícios existentes nos autos, assentam de forma exclusiva na versão apresentada pela ofendida, a qual facilmente se demonstrará não ser verdadeira, tal como já foi peticionado pelo recorrente.
10-De harmonia com o art.194ºdo Código Penal, o despacho que aplicar uma medida de coação tem que ser devida e legalmente, fundamentada.
11- Pelo que é, por demais evidente que o despacho de que aqui se recorre, decretou a medida de coação mais gravosa no nosso ordenamento jurídico, fora das condições em que é legalmente permitida, isto é, sem curar e fundamentar sequer de saber se, outra medida menos gravosa para o arguido, por si só ou mesmo conjugada com outra medida, seria adequada, necessária, proporcional ou suficiente, não cuidando, ainda, de referir e justificar, os factos concretos, que preenchem os pressupostos da necessidade, proporcionalidade e adequação e a justificação concreta dos pressupostos do art. 204º do Código de Processo Penal.
12-Ora, o recorrente é uma pessoa de bem, trabalhador, inserido profissionalmente e inserido pessoal e socialmente, tem uma família e uma casa onde reside com a sua esposa e filha desta, nunca, antes esteve sujeito a uma medida de coação gravosa, uma vez que, nunca, o arguido, antes, foi condenado pela prática de qualquer ilícito, pelo que não é correcto afirmar, a insuficiência de outras medidas de coação face ao arguido/recorrente.
13- Enquanto que, para a aplicação de qualquer medida de coação, prevista nos arts. 197º a 199º do Código de Processo Penal, se mostra por suficiente a existência de indícios, já para a aplicação de medidas de coação previstas nos arts. 200º a 202º, mostra-se necessário, por essencial, a existência de fortes indícios da prática do crime pelo arguido, indícios estes que conforme, foi a percepção e análise da Digna Magistrada do Ministério Público, no presente caso, não existem.
14-O Tribunal, concluiu sem justificar ou fundamentar, que qualquer outra medida, menos gravosa do que a prisão preventiva, se revela insuficiente ou desadequada, sendo nesta medida o douto despacho ilegal por violador dos preceitos legais.
15-Encontrando-se as medidas de coação, elencadas no Código de Processo Penal, atenta a sua gravidade. Face ao arguido e aqui recorrente, que tudo explicou e com verdade em sede de primeiro interrogatório judicial, sendo o mesmo primário, encontrando-se o mesmo inserido profissionalmente, tendo o mesmo família, não se concebe a razão para a desconsideração completa, de outra medida de coação menos gravosa. Verificando-se, assim, uma violação do disposto no art.191º, 192º, 193º, 200 º e 204º do Código de Processo Penal e uma clara e grosseira violação do direito fundamental à liberdade, conforme vertido e apresentado nos arts. 27º e 28º da CRP.
16-Mais, acresce, que a parca prova indiciária nos presentes autos face ao ilícito de que o arguido vem indiciado, é insuficiente, incerta e muito dúbia, não existindo mais do que a versão apresentada pela Ofendida e mesmo esta é no sentido que não existe ilícito, inexistindo qualquer prova que venha sustentar a queixa apresentada.
17- Existem assim, duas versões, sendo que o recorrente, já ofereceu prova que irá comprovar que todo o oferecido pela ofendida é falso.
18-As medidas de coação, são medidas processuais, que tendem a garantir a contactabilidade do arguido e não repetição da actividade criminosa. Para aplicação de qualquer medida, com excepção do termo de identidade e residência, previsto no art. 196º do Código de Processo Penal, são requisitos gerais para a aplicação de qualquer medida de coação as elencadas no art. 204º do Código Penal.
19- Para além de inexistirem fortes indícios, o que afasta desde logo, a possibilidade de aplicação da medida de coação prisão preventiva, nos termos do art. 202º do Código Penal, nos presentes autos inexiste uma falta absoluta de preenchimento dos requisitos que se têm legalmente por necessários, para aplicação da medida mais gravosa, não se encontrando sequer a medida aplicada, justificada, face a patente impossibilidade.
20- Mesmo a tentativa de justificação, da presente medida de coação aplicada, com perigo de perturbação do inquérito e da ordem pública, certo é que, para a aplicação deste preceito, disposto na al. c) do art.204º do Código de Processo Penal, exige-se, necessariamente que, no momento da aplicação da medida, a verificação do perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade pública.
21-Ora, o perigo de continuação da actividade criminosa, terá de ser aferido a partir de elementos factuais que revelem ou indiciem e não de mera presunção ou suposição. Elementos estes, que no caso concreto, inexistem.
22-Sublinhando-se assim, o excesso, a desnecessidade e desadequação da medida imposta por tudo o supra alegado, quer subjectiva quer objectivamente, em termos humanos, a medida imposta é desproporcional, desnecessária, excessiva e nesta medida ilegal, por estar em clara violação do art. 204º, 202º, 193º, 192º, 191º todos do Código de Processo Penal.
23-Em face do exposto, considera-se que a presente medida de coação de prisão preventiva, é ilegal, por violar os diversos preceitos legais, pelo que, deve vir revogada, devendo a mesma vir substituída, por uma medida de coação que seja necessária, por proporcional e adequada ao caso concreto e ao recorrente, que é primário, encontra-se inserido profissional, familiar e socialmente, considerando-se face aos parcos indícios existentes, como suficiente face ao caso sub judicio, a proibição de contactar com a ofendida e de frequentar os mesmos locais, nos termos do art. 200º do Código Penal ou as apresentações no OPC da zona de residência, conforme alegações da Digna Magistrada do Ministério Público.
24-Não existindo conforme exposto e comprovado, qualquer outro perigo. Estas medidas, em conjunto ou isoladas, são adequadas, proporcionais por suficientes aos (parcos) indícios existentes nos autos sobre e contra o arguido/recorrente. Encontrando-se assim todas as exigências processuais do caso concreto, mais do que previstas, preenchidas, protegidas e acauteladas. Salvaguardando a dignidade do arguido, a sua vida pessoal, familiar, bem como a correcta aplicação da Lei e consequentemente a realização da Justiça.
Nestes termos e, nos melhores do Direito, se requer a V. Exas. Juízes Desembargadores a imediata revogação da medida de coação de prisão preventiva, por se considerar a mesma ilegal, por desproporcional, desadequada e excessiva e a sua substituição por uma medida de coação menos gravosa em estrito cumprimento com todos os requisitos legais, estareis assim a praticar a tão costumada, Justiça.
2.
O recurso foi admitido, por despacho proferido ........2025, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo – Ref Citius ....
Na sua resposta, apresentada em ........2025, pugnou o Ministério Público pelo não provimento do recurso – Ref 54570.
Transcrevem-se as conclusões da resposta apresentada:
“1. A aplicação da prisão preventiva, no nosso ordenamento processual, pressupõe, por um lado, se observem as condições gerais contidas nos artigos 191° a 195°, do CPP, em que avultam os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade, e, por outro, que se encontrem verificados os requisitos gerais a que alude o artigo 204º, do mesmo diploma legal, e os específicos a que alude o artigo 202° do mesmo diploma legal.
2. O princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coacção, contido no artigo 1919, n.º 1, do C P Penal, dispõe que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
3. As medidas de coacção estão subordinadas aos princípios da adequação e da proporcionalidade, cfr. artigo 193°, n.º 1, do CPP, não devendo ser aplicada qualquer medida de coacção quando houver fundado motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, artigo 1929, n.º 2, do CPP.
4. A prisão preventiva tem natureza residual só podendo, pois, ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção, artigo 193º, n.° 2, do CPP.
5. Acresce que a medida de coacção prisão preventiva, como todas as outras com excepção do termo de identidade e residência, não pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
a. Perigo de fuga;
b. Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova ou
c. Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, cfr. artigo 2049 alíneas a), b) e c), do CPP.
6. Para aplicação da prisão preventiva, é ainda necessário que existam, além do mais, fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, artigo 2029, n.° 1, alínea a), do CPP.
7. In casu, resulta dos autos fortemente indiciada a prática, pelo arguido, em autoria a. 1 (um) crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358.º, alínea b) do Código Penal;
b. 2 (dois) crimes de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
c. 1 (um) crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal; e
d. 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal.
8.O arguido prestou declarações admitindo a prática dos atos sexuais descritos no requerimento de apresentação do mesmo a 1.º interrogatório, mas dizendo que tais atos ocorreram por livre e espontânea vontade de ambos.
9.No entanto não é isso que decorre dos autos, designadamente quando a vítima referiu “De repente, ele começou-me a beijar na boca. E depois pôs-me as mãos nos ombros e fez força pra eu me baixar. Eu lembro-me de fazer força para tentar ficar de pé…. Ele fez mais força e eu fiquei de joelhos. Ele pegou a minha cabeça e obrigou-me a pôr o pénis dele na boca”(cfr. fls. 33).
10.Por outro lado, a insistência do arguido para a vítima marcar consultas com ele, o não recebimento do dinheiro dessas consultas, o dinheiro que deu à vítima para pagar a inscrição dela no ... a fim de aí efetuar um tratamento de relaxamento muscular, a disponibilidade que manifestou para pagar um seguro de saúde à vítima, o conhecimento de que a vítima tinha uma depressão e que estava vulnerável com o termo de um namoro recente configura todo um enquadramento factual do qual é possível retirar que o arguido se aproveitou da vulnerabilidade da vítima e das suas fragilidades para praticar com esta os atos sexuais descritos nos autos, satisfazendo assim os seus impulsos libidinosos.
11. Acresce que desde ........2024 a até ........2025, o arguido tem enviado insistentemente mensagens para a vítima com uma cadência quase diária, através do n.º ..., insistindo para que esta se dirija à ... para “consultas”, para o acompanhar ao ... ou para encetar conversas.
12. Dúvidas não se suscitam da prática, pelo recorrente, dos factos que lhes são imputados.
13. Ou seja, consideramos que a prova é suficiente para se concluir pela existência dos fortes indícios que se verificam, considerando que a versão dos factos apresentada pelo arguido não se mostra credível, ao contrário do que acontece com a versão da vítima me que o seu depoimento se apresenta como circunstanciado e claro, descrevendo a mesma de forma estruturada os acontecimentos ocorridos desde que conheceu o arguido.
14. Por outro lado, o facto de o arguido já ter uma acusação pela prática de idêntico crime ao dos presentes autos –três crimes de violação agravada, fazem temer seriamente o perigo de continuação da actividade criminosa.
15. Do que se deixa dito e atentas as condutas e o percurso de vida do arguido, pode-se concluir pela existência, em concreto, o perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e da tranquilidade pública, atendendo à natureza e gravidade de todos os ilícitos imputados ao recorrente e à visibilidade social que a prática dos mesmos implica, considerando o aumento da insegurança das populações no que diz respeito, dado que crimes de violações geram sentimentos de alarme social e de insegurança na população.
16. Entendemos que nenhuma outra medida de coacção se revela adequada ou suficiente á situação grave a acautelar, inclusivamente a medida de obrigação de permanência na habitação, que no nosso entender, não acautela, nem o perigo de continuação da actividade criminosa nem o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso a que ora se responde ser julgado totalmente improcedente, por não provado, e, em consequência, ser mantido o douto Despacho recorrido e a prisão preventiva aplicada a AA, assim fazendo V. EXAS. a costumada JUSTIÇA!
3.
Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos no art. 416º do C.P.P., foram os autos com vista ao Ex.mº Procurador Geral Adjunto, que emitiu o Parecer que se transcreve – Ref Citius 23554113:
“Visto do Ministério Público art.º 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
Do Recurso.
Veneranda Desembargadora Relatora
I. Recurso próprio e tempestivo, apresentado por quem para tanto detém legitimidade, sendo correto o efeito e o regime de subida atribuídos.
II. O arguido recorre do despacho de reexame de medida de coação aplicada em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido.
III. Compulsada a matéria em análise entendemos que ao arguido/recorrente não assiste qualquer razão.
IV. O Ministério Público respondeu ao recurso, equacionando de forma bem estruturada e completa a matéria a resolver nesta lide, defendendo a manutenção da decisão recorrida, em termos de facto e de direito que, pelo rigor e propriedade, suscitam a mais completa adesão.
V. Assim, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público, emite-se parecer consonante, no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente, sendo de manter o despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva.
Mas a final, não obstante, melhor se dirá.
Lisboa, ds “
Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417º, nº2, do CPP, o arguido veio responder nos seguintes termos ( transcrição):
“AA, recorrente, melhor identificado nos autos à margem indicados, tendo sido notificado do douto parecer do Ministério Público, vem pelo presente, responder ao mesmo, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos.
- De forma prévia se dirá que o presente recurso foi proposto do despacho que aplicou a medida de coação e, nesta medida que ordenou a aplicação da medida de coação, prisão preventiva e, não como parece ser o entendimento da Digna Magistrada do despacho do reexame de medidas de coação.
- O arguido, mantém, inalterados os pressupostos, sobre os quais alicerçou o recurso apresentado e os quais se encontram no mesmo devidamente fundamentados, em súmula, entendendo e defendendo, que inexiste uma falta absoluta de preenchimento dos requisitos que se têm legalmente por necessários, para aplicação da medida mais gravosa, sublinhando-se o nosso entendimento, enquanto medida excessiva, desnecessária e desadequada, por violação directa do vertido nos artigos 204º, 202º, 193º, 192º e 191º todos do Código de Processo Penal.
- No demais, não se entende a posição, ora, sufragada pela Digna Magistrada do Ministério Público na douta promoção, quando a Digna Magistrada do Ministério Público, junto do Tribunal a quo, em sede de primeiro interrogatório judicial, defendeu e alegou “que no caso concreto apenas existem indícios, mas não indícios suficientes, pugnando nesta sede, pela aplicação enquanto medida de coação, de apresentações diárias no OPC da residência do arguido”.
- Em face do exposto e do amplamente apresentado e alegado em sede de recurso, consideramos e, entendemos, que o recurso em apreço deve ser julgado totalmente procedente por provado, revogando-se o despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva, substituindo-se o mesmo por outro que decrete medida de coação, no estrito cumprimento de todos os princípios legais, assim se fazendo a tão costumada Justiça.
“
Após exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.
Foram os autos à conferência.
II Fundamentação
1.
Conforme jurisprudência pacífica o Supremo Tribunal de Justiça – vide, por todos e dada a demais jurisprudência nele referida, Ac. de 28.4.99, CJ/STJ, 1999, tomo 2, página 196 -, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, isto sem prejuízo do conhecimento oficioso das questões elencadas no art. 410º, nº2, do C.P.P..
Assim, face à conclusões apresentadas, é (são) a(s) seguinte(s) a(s) questão (ões) que constitui( em) o objecto do recurso:
A- Da (in)existência de indícios fortes do cometimento por parte do arguido de:
-1 (um) crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358.º, alínea b) do Código Penal;
- 2 (dois) crimes de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
- 1 (um) crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal; e
- 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal referidos no requerimento de apresentação do arguido a primeiro interrogatório.
B- Do pedido de revogação da medida de coação de prisão preventiva e da substituição da mesma por diferente medida de coação, designadamente a proibição de contactar com a ofendida e de frequentar os mesmos locais, nos termos do art. 200º do Código Penal ou as apresentações no OPC da zona de residência.
2. A decisão sob recurso:
Transcreve-se a decisão recorrida:
“DESPACHO
A detenção do arguido foi legal porque efectuada fora de flagrante delito ao abrigo de mandados de detenção emitidos nos termos do artigo 257º e 258º do Código de Processo Penal.
Foi respeitado o prazo de apresentação a que se referem os artigos 141º e 254º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma.
*
Tendo em conta a globalidade dos elementos probatórios já carreados para os autos, concretamente os elencados no requerimento que apresentou o arguido a 1ºinterrogatório judicial, considero fortemente indiciado que:--
1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde ..., o arguido AA identifica-se perante terceiros como ... e ..., para tanto, seguindo em consulta um número não apurado de pessoas, em consultório sito na ..., no interior das instalações da ....
2. O arguido não é detentor de qualquer título legalmente válido para o exercício das atividades de Fisioterapia ou Osteopatia.
3. Em ..., em dia não concretamente apurado, o arguido iniciou o seguimento em consulta e práticas terapêuticas de fisioterapia e osteopatia de BB.
4. Em dias não concretamente apurados, mas sempre nos meses de ..., no consultório sito na ..., no interior das instalações da ..., o arguido realizava um tratamento nas costas de BB.
5. Em data não concretamente apurada, mas num desses dias mencionados em 4., o arguido introduziu a sua mão no interior das calças de BB e iniciou movimentos de massagem nas suas virilhas.
6. No dia ........2024, pelas 9h00, o arguido e BB dirigiram-se ao ..., local onde aquele havia previamente combinado encontrar-se com esta, com vista à execução de um tratamento com jatos de água nas costas.
7. Nesse local e ocasião, em hora não concretamente apurada, o arguido e BB dirigiram-se à zona do SPA, onde se introduziram dentro de uma piscina.
8. Depois de ter ligado os jatos de água, o arguido aproximou-se BB e, com a sua mão, tocou na zona da vulva, por cima do fato de banho.
9. Ato contínuo, imprimindo força, o arguido abriu as pernas de BB e, com as suas mãos, desviou o fato de banho que esta trajava e introduziu o pénis ereto no canal vaginal, enquanto a puxava para si com as mãos pelo quadril.
10. Após, o arguido sussurrou a BB que se dirigisse à zona da sauna onde havia chuveiros.
11. Aí chegados, o arguido ligou os chuveiros, beijou BB na boca e, ato contínuo, empregando força, pousou as mãos nos ombros desta e forçou-a a ajoelhar-se no chão, tendo de imediato agarrado na sua cabeça com a mão e introduzido o pénis ereto na sua boca.
12. Em data não concretamente apurada, mas entre os dias ... de ... de 2024, no consultório sito na ..., no interior das instalações da ..., durante a realização de um tratamento, o arguido introduziu a mão no interior das calças de BB e fez movimentos nos lábios vaginais.
13. No dia ........2024, pelas 9h09, o arguido e BB dirigiram-se ao ..., local onde aquele havia previamente combinado encontrar-se com esta com vista à execução de um tratamento com jatos de água nas costas.
14. Nesse local e ocasião, em hora não concretamente apurada, o arguido e BB dirigiram-se à zona do SPA, onde se introduziram dentro de uma piscina.
15. Depois de ter ligado os jatos de água, o arguido aproximou-se BB e, com a sua mão, tocou na zona da vulva, por cima do fato de banho.
16. Ato contínuo, imprimindo força, o arguido abriu as pernas de BB e, com as suas mãos, desviou o fato de banho que esta trajava e introduziu o pénis ereto no canal vaginal, enquanto a puxava para si com as mãos pelo quadril.
17. Após, o arguido sussurrou a BB que se dirigisse à zona da sauna onde havia chuveiros.
18. Aí chegados, o arguido ligou os chuveiros, beijou BB na boca e, ato contínuo, empregando força, pousou as mãos nos ombros desta e forçou-a a ajoelhar-se no chão, tendo de imediato agarrado na sua cabeça com a mão e introduzido o pénis ereto na sua boca.
19. Com as condutas descritas, o arguido agiu com o propósito concretizado de apresentar-se perante o público de qualidades e títulos que sabia não possuir, o que representou e quis, o que ainda assim não o coibiu de tais condutas e da prática dos atos inerentes àquelas profissões, que sabia serem proibidos sem que tivesse a devida titulação.
20. Mais, com as condutas descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos sexuais, representando e querendo constranger BB na sua liberdade sexual, bem sabendo que aqueles atos eram aptos a esse resultado e que eram contra a vontade daquela, o que não o coibiu de adotar tais comportamentos.
21. Ao agir da maneira descrita, o arguido representou e quis iniciar contacto de natureza sexual com BB com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos, que sabia ser contra a vontade desta, o que não o coibiu de adotar tais comportamentos.
22. Em todas as condutas descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
Mais, resulta ainda indiciada a seguinte factualidade, relevante para aferir da necessidade, suficiência e adequação das medidas de coação:
23. A vítima BB apresenta fragilidades emocionais e patologia psicológica ainda não concretamente determinada, derivadas da sua história de vida, conhecidas do arguido e por este exploradas com vista a satisfazer os seus impulsos libidinosos.
24. A vítima BB conheceu o arguido na ..., através do seu pai biológico, de nome CC, por este estar a ser tratado às costas pelo arguido.
25. O arguido possui um gabinete só para si na ..., onde realiza consultas de Osteopatia e Fisioterapia, assim reconhecido por quem frequenta aquele espaço.
26. A vítima apenas pagou a primeira “consulta”, rejeitando o arguido qualquer pagamento da mesma posteriormente, assim criando este um sentimento de dívida na vítima.
27. Pelo menos desde ........2024 a até ........2025, o arguido tem enviado insistentemente mensagens para a vítima com uma cadência quase diária, através do n.º ..., insistindo para que esta se dirija à ... para “consultas”, para o acompanhar ao ... ou para encetar conversas.
28. A última mensagem recebida foi a ........2025, onde o arguido questiona pelo seguro de saúde da vítima para poder ter consultas e exames no privado.
29. No âmbito do Inquérito n.º 733/20.5..., o arguido nestes autos foi constituído como arguido por existirem fortes indícios de ter tocado em várias zonas do corpo de uma “paciente”, inclusivamente em zonas genitais, enquanto no exercício das funções de ....
30. No âmbito do Inquérito n.º 301/22.7..., foi noticiado que o aqui arguido proferiu palavras obscenas de cariz sexual e beijou o pescoço de uma “paciente”, processo encerrado por desistência de queixa.
31. No âmbito do Inquérito n.º 608/23.6..., AA foi constituído como arguido e foi deduzida acusação, datada de ........2024, pela prática de 3 (três) crimes de violação agravada e 1 (um) crime de usurpação de funções, aguardando o processo a audiência de julgamento, a qual está marcada para dia ........2025, pelas 9h15, no Juízo Central Criminal de Cascais.
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Mais ficou indiciado relativamente à condição pessoal do arguido o seguinte: O arguido vive com a atual mulher e com o filho da mesma na casa desta. Anteriormente já foi casado três vezes e tem um filho de 24 anos de idade.
Trabalha como “mestre de reiki”, auferindo um rendimento mensal de cerca de € 1300.
O arguido tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade. Não tem antecedentes criminais.
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Os factos indiciados resultam dos seguintes elementos probatórios: Testemunhal
1. BB, a fls. 28 a 38;
2. DD, a fls. 40 a 45;
Documental
1. Auto de denúncia, a fls. 3 e 4;
2. Aditamento n.º 1, a fls. 2 a);
3. Informação do registo civil de BB, a fls. 18 e 19;
4. Informação do registo civil do arguido, a fls. 25;
5. Auto de informação, a fls. 26;
6. Folha de suporte, com mensagens, a fls. 38 a) a 38 e);
7. Relatório de observação clínica de BB, a fls. 51 a 52;
8. Informação da ..., a fls. 55;
9. Informação da Ordem dos Fisioterapeutas, a fls. 56 e 57;
10. Informação da Ordem dos Médicos, a fls. 58;
11. Relatório intercalar da PJ, a fls. 59 a 68;
12. Informação remetida pelo ..., a fls. 86 e 87;
13. Auto de apreensão, a fls. 95 e 96.
14. Despacho de acusação do Inquérito n.º 608/23.6...;
15. Despacho de marcação de audiência de julgamento do processo n.º 608/23.6...;
16. CRC do arguido.
Declarações do arguido quanto à sua condição pessoal
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Os factos indiciados são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido em autoria material e em concurso real de:
a. 1 (um) crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358.º, alínea b) do Código Penal;
b. 2 (dois) crimes de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
c. 1 (um) crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal; e
d. 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal.
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O arguido prestou declarações admitindo a prática dos atos sexuais descritos no requerimento de apresentação do mesmo a 1.º interrogatório, mas dizendo que tais atos ocorreram por livre e espontânea vontade de ambos.
No entanto não é isso que decorre dos autos, designadamente quando a vítima referiu “De repente, ele começou-me a beijar na boca. E depois pôs-me as mãos nos ombros e fez força pra eu me baixar. Eu lembro-me de fazer força para tentar ficar de pé…. Ele fez mais força e eu fiquei de joelhos. Ele pegou a minha cabeça e obrigou-me a pôr o pénis dele na boca”(cfr. fls. 33).
Por outro lado, a insistência do arguido para a vítima marcar consultas com ele, o não recebimento do dinheiro dessas consultas, o dinheiro que deu à vítima para pagar a inscrição dela no ... a fim de aí efetuar um tratamento de relaxamento muscular, a disponibilidade que manifestou para pagar um seguro de saúde à vítima, o conhecimento de que a vítima tinha uma depressão e que estava vulnerável com o termo de um namoro recente configura todo um enquadramento factual do qual é possível retirar que o arguido se aproveitou da vulnerabilidade da vítima e das suas fragilidades para praticar com esta os atos sexuais descritos nos autos, satisfazendo assim os seus impulsos libidinosos.
Acresce que desde ........2024 a até ........2025, o arguido tem enviado insistentemente mensagens para a vítima com uma cadência quase diária, através do n.º ..., insistindo para que esta se dirija à ... para “consultas”, para o acompanhar ao ... ou para encetar conversas.
Assim, a versão dos factos apresentada pelo arguido não se mostra credível, ao contrário do que acontece com a versão da vítima me que o seu depoimento se apresenta como circunstanciado e claro, descrevendo a mesma de forma estruturada os acontecimentos ocorridos desde que conheceu o arguido.
No caso vertente, considero verificado um concreto perigo de grave da ordem e tranquilidade públicas, dado que crimes de violações geram sentimentos de alarme social e de insegurança na população.
Por outro lado, o facto de o arguido já ter uma acusação pela prática de idêntico crime ao dos presentes autos –três crimes de violação agravada, fazem temer seriamente o perigo de continuação da actividade criminosa.
Em face do disposto no art.º 204.º, do Código de Processo Penal, que contém os requisitos gerais da aplicação da medida de coacção, haverá que ponderar, no caso em concreto o perigo de continuidade da actividade criminosa e de perturbação da ordem e da tranquilidade pública.
As medidas de coacção a aplicar devem respeitar os princípios da necessidade e adequação face às concretas exigências cautelares e o princípio da proporcionalidade face à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (art.º 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Por sua vez, as medidas privativas da liberdade, por fortemente restritivas ao direito à
liberdade, apenas poderão ser aplicadas se nenhuma outra medida de coacção se afigurar adequada (art.º 193.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).
A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelam inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção (art. 193.º n.º 2, do Código do Processo Penal).
Em face do exposto, entende-se que a única medida adequada, suficiente e proporcional às exigências cautelares que o caso requer é a de prisão preventiva - 191.º a 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, alínea a) e 204.º, alínea c), todos do Código de Processo Penal, medida essa cuja aplicação se determina ao arguido.
Passe mandados de condução ao EP.
Dê cumprimento ao disposto ao artº 194º nº 10 do CPP. Notifique.
Remeta os autos aos serviços do Ministério Público.
“
3. Decidindo
A- Da (in)existência de indícios fortes do cometimento por parte do arguido de:
-1 (um) crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358.º, alínea b) do Código Penal;
- 2 (dois) crimes de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
- 1 (um) crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal; e
- 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal referidos no requerimento de apresentação do arguido a primeiro interrogatório.
A doutrina e a jurisprudência têm-se debruçado sobre o conceito de fortes indícios.
“Quando a lei fala em fortes indícios há que ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois o legislador se limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma medida tão gravosa como esta em relação a alguém que pode estar inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade vem há a ser condenado pelo crime imputado.”1
Existirão fortes indícios quando existir “ Uma suspeita veemente em relação ao cometimento do facto punível, isto é, deve existir um grau elevado de probabilidade..”2
“…serão fortes indícios aqueles que, no contexto de um particular estado de desenvolvimento da investigação se apresentam particularmente claros, inequívocos e fiáveis.”3
A análise da existência de fortes indícios da prática pelo recorrente dos crimes em causa tem que ser efectuada analisando as provas de forma global e à luz das regras gerais da experiência comum.
Analisando a decisão recorrida, constata-se que a mesma analisou os diversos meios de prova de forma conjugada e concluiu pela forte indiciação dos factos que sustentaram a imputação ao arguido pelos supra referidos crimes.
Vejamos:
Quanto ao crime de usurpação de funções:
Dispõe o artigo 358, al. b) do C.Penal, com a epígrafe Usurpação de funções, que
“ …
b) Exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possui-lo ou preenche-las, quando o não possui ou não a preenche; ou
(…)
é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”
Analisando os meios de prova apresentados, em concreto os referidos a fls 55 a 58 conjugados com o depoimento da ofendida, não obstante a negação por parte do arguido, conclui-se fortemente indiciada a prática pelo arguido do crime de usurpação de funções, praticado no consultório sito na ..., no interior das instalações da ..., local onde se indicia que o arguido, intitulando-se ..., efectuava tratamento a utentes .
Quanto aos demais crimes:
Dispõe o artigo 163º do C.Penal, com a epígrafe Coacção sexual, que:
“1- Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2- (…)
3- Para efeitos do nº 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vitima.
Dispõe o artigo164º, nº1, do C.Penal, com a epígrafe Violação, que:
“1- Quem constranger outra pessoa a:
a. Sofrer ou praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
(…)
é punido com pena de prisão de um a seis anos .
2- (…)
3- Para efeitos do nº1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vitima.”
Dispõe o artigo 170º do C.Penal, com a epígrafe Importunação sexual, que:
“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de caracter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Está indiciariamente assente, por admitida quer pela ofendida quer pelo arguido, a ocorrência dos contactos de cariz sexual descritos no requerimento apresentado pelo Ministério Público.
Afirma a ofendida que os referidos contactos ocorreram contra a sua vontade e afirma o arguido que todos os aludidos contactos foram consensuais.
Assim, importa analisar a prova indiciária com vista a apurar se o arguido constrangeu a ofendida à prática dos aludidos actos.
Na verdade o constrangimento integra o elemento objectivo de cada um dos três crimes agora em análise e tal conceito terá que ser densificado e interpretado casuisticamente, sempre tendo presente a vontade cognoscível da vítima ( a que alude o nº 3 dos artigos 143º e 163º mas que, assim se entende, terá que ser tida em conta também no crime p. e p. nº artigo 170º, todos do C.Penal).
Sobre o conceito de constrangimento, por esclarecedor, transcreve-se excerto de “As alterações de 2019 ao Código Penal em matéria de crimes sexuais: os crimes de Coação sexual e Violação, Revista Julgar Online, dezembro de 2020 e respectivas notas de rodapé:
“ (…)
Relativamente ao entendimento da Doutrina acerca do termo “constranger”, Figueiredo Dias sustenta que “ a conduta típica (“ constranger”) traduz-se em um acto de coacção imediatamente dirigido à pratica, activa ou passiva, de um acto sexual de relevo”4 Simas Santos e Leal Henriques, por seu tuno, entendem que ”constranger é obrigar, submeter à sua vontade, sem que a vítima tenha liberdade de determinação”5. Por fim, nas palavras de Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, “ o ato de constrangimento pressupõe sempre uma dimensão coativa – ainda que não violenta –que deve ocorrer e que, por isso, deve ser manifestada”6 Não obstante as diversas conceções, seguimos, integralmente, a linha de pensamento de Pedro Caeiro, segundo a qual no âmbito dos crimes sexuais, é obrigar outra pessoa a praticar ou a sofrer um acto sexual contra a sua vontade.7
O referido constrangimento, enquanto elemento típico, pode ser operado tanto pelos meios consagrados no nº 2 do preceito, como por qualquer outro meio não previsto.
Outrossim, a contrariedade da vontade engloba todas as situações em que o ato sexual de relevo não coincide com a vontade real da vitima, seja por ausência de vontade ou porque a vontade estava, de alguma forma condicionada.8 No fundo, existe uma falta de conformidade entre a pratica sexual e a vontade íntima, o que revela uma clara limitação do bem jurídico ( liberdade sexual). Além disso, a vontade contrária da vítima tem de ser cognoscível, ou seja, esta tem de agir de forma a dar a conhecer a sua recusa perante o ato, através da verbalização ( de um não), do choro, da própria linguagem corporal, etc.
A cognoscibilidade prende-se com a existência de factos e/ou circunstâncias que demonstrem – possam demonstrar – conhecimento por parte do agente de que a vitima tem a sua vontade limitada ou que nem sequer tem condições de transmitir a sua vontade real. Não significa que o agente tem de conhecer, significa apenas que tem de poder conhecer.
(…).
É que a vontade não tem de ser cognoscível apenas para o agente: o critério é o do homem médio colocado naquela posição, que se concebe como um ser razoável, prudente, com um mínimo de escrutínio para compreender a situação.
Outro aspeto que devemos levar em consideração é que a associação da vontade cognoscível da vitima ao constrangimento existe “para efeitos do nº1”. Desta forma, e apesar de compreendermos o propósito de consagrar a definição a partir do nº 1 que não implica o emprego de violência, etc, alguns reparos importa fazer.
A cognoscibilidade da vontade, enquanto elemento do tipo objetivo, assume especial relevância em zonas cinzentas. Não se afigura necessário recorrer à figura aquando da utilização dos meios mais gravosos pelo agente ( nº2), os quais já são vistos pela generalidade das pessoas como aptos a condicionar a vontade a da vítima. Ou seja, quanto mais gravoso for o meio empregue, mais cognoscível ( do latim cognosicibile ) será a sua força para constranger a vítima. Isto significa que a peculiar eficácia da cognoscibilidade reside, muito claramente, “nos casos mais dúbios em que existiu interação sexual e os elementos pactuais para apurar a contrariedade da vontade são mais escassos.9 (…)”
Analisemos então a prova indiciária, da qual se destaca a que infra segue:
Os diversos depoimentos prestados pela ofendida.
Do depoimento prestado na PSP em ........2025, destaca-se e transcreve-se o seguinte:
- Confirmou a factualidade referente ao dia ........2024.
“Questionada sobre se em algum momento manifestou não consentimento nesta relação sexual, a mesma informa que “Não”, em virtude de ter ficado sem reação e de ter sentido medo de dizer que não consentia aquela relação sexual a AA.”( transcrição ).
-Confirmou a ocorrência das situações datadas de ........2024 e de ........2024.
“ A vítima disse que após as três situações supra referidas informou o mesmo que não queria que as situações supra mencionadas voltassem a acontecer e que nada do que aconteceu teve o seu consentimento. No entanto, o suspeito continuou a enviar-lhe mensagens de forma frequente.
A vítima informou esta Polícia que apenas compareceu neste ... no presente dia, quase quatro meses apos o primeiro episódio por ter ficado com um “sentimento de culpa “ uma vez que após ter ocorrido a primeira situação voltou a frequentar as consultas no consultório do mesmo, bem como a piscina do ginásio ....
A vítima informou que sentiu receio de sofrer qualquer represália contra a sua pessoa, em virtude de o Suspeito ser ma pessoa muito insistente e que a pressionava através de pressão psicológica a frequentar as consultas, bem como a piscina.”
Do depoimento prestado na P. J. em ........2025 destaca-se e transcreve-se:
- Confirmou a ocorrência dos factos datados de ........2025.
Afirmou que após o ocorrido na piscina entrou em pânico, ficou estática, “estava a tentar assimilar”.
Afirmou que o arguido lhe disse para irem para a sauna e foi atrás dele.
Nada disseram um ao outro.
Perguntada sobre o que sentiu, disse: “ tinha medo do que me fossem dizer, de ser julgada…medo que ele fizesse alguma coisa se eu contasse…eu não queria aquilo”.
O ofendido começou a mandar mensagens, “ parecia preocupado comigo, com a minha saúde, eu não respondia e ele parecia ficar ofendido”.
- Afirmou que, após insistência do arguido, marcou consulta a que compareceu.
- Mais afirmou que, por insistência do arguido, foram, de novo, à piscina do ... no dia ........2025.
“ Eu receava o que pudesse acontecer mas não consegui reagir. Eu sou assim, sofro de ansiedade e também tenho ataques de pânico, reajo assim, bloqueio.
- Referiu sentir um enorme sentimento de culpa por não ter reagido, sobretudo da segunda vez.
Afirma ter a convicção de que, sabendo que estava a passar uma fase vulnerável, o arguido aproveitou-se de si
- Questionada sobre se crê ter sido notório para o suspeito que a ofendida não queria os actos, respondeu: “eu parecia um boneco, sem reação, com o corpo rígido” .
- Afirmou que nunca houve qualquer conversa sobre os actos, nunca disse que queria.
Sentia culpa por não querer e não conseguir impedir.
- Perguntada sobre se o suspeito alguma vez a ameaçou, referiu que não.
O SMS enviado pela ofendida ao arguido em ........2025 e por aquela entregue à PSP:
“Bom dia, eu não ando bem, o natal e a passagem de ano foram horríveis, estou bem pior da ansiedade e da depressão, isto tudo porque a minha mãe descobriu, por isso não sei, ela sabe, ela questionou-me por causa daquela segunda feira, portanto, ela sabe, eu vou ter de cancelar a minha inscrição no …”.
Por fim, a Observação Clínica elaborada em ........2025:
Na mesma conclui-se que a ofendida, dado o seu perfil psicológico, revela vulnerabilidade para relações abusivas.
Tendo presente toda a prova indiciária, cumpre averiguar do preenchimento, a título indiciário, dos elementos objectivos e subjectivos dos mencionados crimes.
Assim:
As referências constantes dos artigos 9, 11, 16 e 18 ( “imprimindo força”, “empregando força” e “pousou as mão nos ombros desta e forçou-a a ajoelhar-se” ) do requerimento apresentado pelo Ministério Público, carecem de melhor concretização.
Cientes de que o constrangimento não exige, necessariamente, uso de força física ou resistência por parte da vítima, e pode ter lugar por qualquer meio, incluindo qualquer forma de pressão física ou psicológica, importa averiguar se se indicia que in casu existiu constrangimento, se o arguido, ciente da oposição da ofendida, perpetrou os actos em análise.
Não consta dos factos imputados que o arguido tenha ameaçado a ofendida ( aliás esta nega expressamente a ocorrência de tal circunstância.).
Mais refere a ofendida que nunca verbalizou qualquer oposição.
Após a ocorrência dos factos datados de ........2024, por duas vezes, em ........2014 e em ........2024, a ofendida foi ao encontro do arguido, ocorrendo novos contactos de natureza sexual.
Refira-se que mesmo o email que a ofendida enviou ao arguido ( já após a ocorrência das três situações ) e supra transcrito, não expressa que não deu o seu consentimento nem que não quer a continuação de tais contactos, referido apenas que a mãe descobriu e, por isso, teria que cessar a inscrição no ....
Os elementos constantes dos autos traduzem alguma vulnerabilidade da ofendida que podem explicar a dificuldade em expressar o não consentimento.
Mas, salvo melhor entendimento, a questão que se suscita é a da existência de fortes indícios de que o arguido percepcionou ( ou tinha elementos para percepcionar ) a oposição da ofendida e, não obstante, actuou como descrito.
Impõe-se que a vontade da vitima seja cognoscível, na medida em que para se preencher o tipo subjectivo é indispensável que o agente actue com dolo – o que só será possível quando o agente tenha condições para representar a oposição da ofendida.
E, não logrou este Tribunal ad quem, como não logrou a Senhora Procuradora que esteve presente no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, concluir pela existência de fortes indícios do preenchimento do elemento subjectivo dos crimes agora em análise, concretamente na vertente do preenchimento do elemento cognitivo ou intelectual do dolo.
Em suma, existindo indícios da prática dos mencionados crimes, não existem fortes indícios, carecendo os autos de aturada investigação.
Procedendo o recurso neste segmento. Do pedido de substituição da medida de coacção aplicada por outra menos gravosa, designadamente a medida de apresentações periódicas.
Excepção feita ao T.I.R., nenhuma medida de coacção pode ser aplicada sem que se verifique, em concreto e no momento, qualquer dos perigos referidos no art. 204º do C.P.P.: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou c) perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Dos factos fortemente indiciados, decorre que o arguido tem uma personalidade avessa ao direito, entendendo-se que existe concreto perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, na vertente de perigo para a aquisição e conservação da prova, perigos a que aludem as alíneas b) e c) do artigo 204º do CPP, perigos que se impõe acautelar.
Assim, nos termos do disposto nos artigos 191º, nº1, 193, nº1, 198º, nº1e 204º, nº 1, al. b) e c), do CPP, determina-se que o arguido seja restituído à liberdade, ficando submetido, para além das obrigações decorrentes do TIR que já prestou, à obrigação de se apresentar no posto policial da área da sua residência três vezes por semana.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em:
Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi imposta e aplicando, em sua substituição, a medidas de obrigação de apresentação periódica ( três vezes por semana ) no posto policial da área da sua residência.
Remeta, de imediato, via fax, cópia da presente decisão ao Estabelecimento Prisional onde o arguido se encontra detido passando mandados de libertação do arguido.
Pela mesma via, comunique ao OPC.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Outubro de 2025
Consigna-se que a presente decisão foi processada e revista pela relatora e a primeira signatária.
Cristina Santana
Ivo Nelson Caires B. Rosa (com voto de vencido que segue)
Eduardo de Sousa Paiva
Voto vencido
Apesar de estar de acordo com a decisão relativa à revogação da medida de coação de prisão preventiva e respetivos fundamentos, não acompanho a decisão da maioria quanto à aplicação da medida de coação de obrigação de apresentação periódica (três vezes por semana) no posto policial da área da sua residência, por entender que não se mostram verificados os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito.
A decisão que fez vencimento fundamentou a presença dos perigos pelo seguinte modo: “Dos factos fortemente indiciados, decorre que o arguido tem uma personalidade avessa ao direito, entendendo-se que existe concreto perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, na vertente de perigo para a aquisição e conservação da prova, perigos a que aludem as alíneas b) e c) do artigo 204º do CPP, perigos que se impõe acautelar”.
Os factos que estão fortemente indiciados dizem respeito ao crime de usurpação de funções e dos quais, por estarmos no âmbito da mera indicação onde o arguido goza da presunção de inocência, não nos permite concluir, sem mais, que ele tem uma personalidade avessa ao direito e, muito menos, que irá continuar com esta concreta atividade criminosa ou que tem em marcha ou pretende colocar em marcha um plano com vista a destruir a prova já adquirida no processo ou tornar difícil ou impossibilitar a aquisição da prova que falta obter.
Como sabemos, a continuação da atividade criminosa terá de ser aferida em função de um juízo de prognose a partir dos factos indicados e personalidade do arguido por neles revelada - “em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido”, nos termos da alínea c) do art. 204º, do CPP.
Quanto ao perigo de perturbação do inquérito, o mesmo terá de fundar-se em factos que indiciem a acuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação.
Assim, perante a ausência dos concretos perigos enunciados não é possível aplicar qualquer medida de coação além do TIR.
Ivo Rosa
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1. Vide Simas Santos e Leal Henriques, in CPP Anotado, vol I, p. 995
2. Vide Claux Roxin, in Derecho Processual Penal, p. 259, Editores Del Puerto, 2000, 25ª Ed.
3. Ac TRE de 22.1.2019, Proc. 2/17.8GBFAR-C.L1
4. J. Figueiredo Dias, Comentário ao artigo 163º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I,
5. M. Simas Santos/:. Leal Henriques, Código Penal Anotado, Vol 3, 4ª Edi, ção, Lisboa, Rei dos Livros, 2006, p. 465.
6. J. Moura Lopes/Tiago Milheiro, Crimes Sexuais: análise substantiva e processual, 1ª Edição, Coimbra Editora, 2015, p. 47
7. Pedro Caeiro, Observações sobre a projectada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Jorge Figueiredo Dias ( Dir ) , Ano 29, nº3, 2019, p. 644.
8. J. Mouraz Lopes/Tiago C. Milheiro, ob supra citada na nota 6, p. 70
9. Neste sentido, J. Mouraz Lopes/Tiago C. Milheiro, op. Citada na nota 6, p. 72