SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
DETERMINAÇÃO DA PENA
TRIBUNAL DE RECURSO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I. «Não tendo havido impugnação em sentido amplo da matéria de facto nos termos do art. 412º/3/4 CPP, do recurso interposto e não havendo vícios do art. 410º/2 CPP, o Tribunal da Relação não pode modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1.ª instância, face ao disposto no artigo 431º/b. Se, apesar dessa falta de impugnação em sentido amplo, apreciar as provas e alterar a matéria de facto, a conclusão a retirar é que o acórdão do Tribunal da Relação pronunciou-se sobre matéria sobre a qual não podia tomar conhecimento, o que constitui nulidade da sentença prevista no art. 379.º1/c, aplicável ex vi do art. 425.º/4, do mesmo código».
II. O recorrente pretende que seja aditado um facto que não consta da acusação, da contestação, nem da sentença revidenda (como provado ou não provado) pelo que nunca seria em sede de impugnação da matéria de facto, pela via do erro de julgamento, possível proceder à rogada sindicância.
III. Na verdade, no erro de julgamento, a impugnação da matéria de facto está necessariamente circunscrita aos factos que foram dados como assentes e não assentes na decisão recorrida, mostrando-se legalmente arredada a possibilidade de, por esta via, vir a ser aditada facticidade alheia à naquela vertida.
IV. «O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/ não verificação — o que pressupõe a sua indagação —, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível».
V. À pretensão recursiva de aditamento do predito facto, subjaz aquela outra que reclama a valoração de anterior decisão de suspensão provisória do processo, pela prática de idêntico ilícito criminal, na determinação da medida da pena.
VI. Se é certo que a doutrina e a jurisprudência não são unânimes quanto à possibilidade/obrigatoriedade de se proceder a tal valoração na determinação da medida da pena, não é de descurar que se trata, inolvidavelmente, de um entendimento jurídico plausível.
VII. Assim sendo, verificando-se que na sentença recorrida se deu apenas como assente que o arguido não tem condenações registadas, sem que, a par, se tivesse averiguado se o mesmo havia já beneficiado do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática de idêntico tipo criminal, circunstância que, para parte da doutrina e da jurisprudência, a verificar-se, consentirá e reclamará a devida valoração na determinação da medida da pena, é de inferir que a sentença recorrida padece, no descrito contexto, do vício de insuficiência da matéria de facto.
VIII. Estando em crise somente prova documental, tal insuficiência, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 431º, al. a) do C.P.P., será, pois, suprida neste Tribunal ad quem.
IX. O facto aditado à materialidade assente cinge-se ao seguinte: O arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática do mesmo tipo de crime, no âmbito do inquérito 301/24.2...
X. Isto é, «(…) o facto provado (que mais não é do que um facto processual relativo a outros autos que terminaram sem a prolação de sentença condenatória) é absolutamente irrelevante. Seria perversa a tentação de ver na aceitação da suspensão provisória do processo pelo arguido uma confissão da culpa e não apenas uma iniciativa com vista a conseguir, por via do consenso, uma solução aceitável de justiça negociada, que conduz ao arquivamento do processo, sem condenação. Essa visão não é autorizada pelos princípios mais basilares na matéria». «(…) não sendo dissociável a suspensão provisória do processo do facto criminoso (indiciado) que lhe deu origem, a sua valoração contra o arguido em sede de medida da pena não é admissível, por força do princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2 da Constituição».
XI. Em suma, não pode ser valorada na determinação da medida da pena a circunstância de o arguido ter já beneficiado anteriormente do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática de crime idêntico ao ora em causa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, precedendo audiência de julgamento, a Senhora Juíza do Tribunal a quo, por sentença de ... de ... de 2025, decidiu:
«Condenar o arguido AA, pela prática, em ...-...-2025, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de janeiro, na pena de 65(sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), no montante global de 325,00€ (trezentos e vinte cinco euros), descontando-se o dia da detenção, ao abrigo do artigo 80º do Código Penal, totalizando a quantia de 320,00€ (trezentos e vinte euros)».
2. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público interpôs recurso da sentença condenatória. Aparta da motivação as seguintes conclusões:
«Nos presentes autos o arguido AA foi condenado, pela prática do crime de condução de condução sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do artigo3.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de janeiro, com referência aos artigos 121.º, n.º 1, 122.º e 123.º do Código da Estrada, numa pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros) euros, perfazendo assim o montante global de € 325,00 (trezentos e vinte e cinco euros).
Pese embora não se discorde da escolha da pena de multa e respetivo quantitativo diário, não pode o Ministério Público, em face da factualidade dada como provada e por razões de prevenção geral e especial, concordar com a dosimetria da pena de multa em que o arguido foi condenado.
O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.
As exigências de prevenção geral neste tipo de criminalidade são muito elevadas, pois importa acautelar as muito recorrentes situações de infração à lei, in casu, potenciadoras da elevada sinistralidade que ocorre nas estradas nacionais e das nefastas consequências daí advenientes, bem como a proteção do bem jurídico violado, elevando, portanto, a necessidade de, através da pena aplicada, repor a confiança dos cidadãos na norma violada e nos valores que lhe estão subjacentes.
Não concordamos com a sentença quando afirma que as exigências de prevenção especial são baixas, porquanto, se por um lado, a favor do arguido milita o facto de ter confessado (sendo também certo que neste tipo de criminalidade a prova sempre seria de fácil obtenção) e nada ter averbada no seu CRC, por outro lado, em seu desfavor milita, desde logo, o facto de o veículo ser de sua propriedade, mas principalmente por ter já beneficiado do instituto da suspensão provisória do processo pela prática do mesmo crime no âmbito do inquérito 301/24.2... (cujo prazo terminou a 23.02.2025 - cf. print junto aos autos), pelo que, a nosso ver, sendo este o segundo contacto do arguido com o aparelho judicial, as exigências de prevenção especial afiguram-se-nos médias/altas.
Por fim, situa-se a culpa do arguido no patamar elevado, pois que, para além de esta ser reflexo da ilicitude elevada, o arguido agiu com dolo direto.
Refira-se que se é certo que a suspensão provisória do processo não é uma condenação transitada em julgado, não pode deixar de ser ponderado o facto de o arguido ter beneficiado de uma suspensão provisória do processo pela prática anterior do mesmo crime, facto este que não deixa de ser revelador para a determinação da personalidade do arguido no que concerne à sua propensão para a prática de futuros ilícitos, pelo que deve ser valorada em sede de determinação da medida da pena, ao abrigo do disposto no artigo 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal.
O tribunal de recurso pode modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base [al. a) do art.º 431º do C. P. Penal].
Por conseguinte, devendo ser aditado aos factos dados como provados que o arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo pela prática do mesmo crime no âmbito do inquérito 301/24.2..., nos termos do artigo 71.º do Código Penal, entendemos que ao arguido deverá ser aplicada uma pena de multa nunca inferior a 100 dias, por se mostrar perfeitamente adequada, proporcional e legalmente aceitável, em face do estatuído como critério da sua atribuição, designadamente em face das elevadíssimas exigências de prevenção geral e das médias exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir.
Face ao exposto, nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal deve a Douta Sentença ser parcialmente revogada e o arguido AA condenado na pena de multa de 100 (cem) dias à taxa diária €5,00 (cinco euros), numa quantia total de € 500,00 (quinhentos euros)».
3. O recurso foi admitido, por despacho de ... de ... de 2025, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.
5. Nesta instância, a Ex.ma Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada no recurso interposto, é de parecer que o mesmo deve ser julgado procedente.
6. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P. não houve reacção.
7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame das questões (alinhadas segundo um critério de lógica e cronologia) de saber se, nos termos do art. 431º do C. P. Penal, deve o Tribunal ad quem aditar aos factos dados como provados que o arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo pela prática do mesmo crime e se a Sra. Juíza incorreu em erro de jure na determinação da pena de multa, na parte atinente aos dias fixados.
2. A decisão trazida da instância sobre a matéria de facto (resultante da audição da sentença proferida oralmente) é do teor que aqui se transcreve:
«No dia ........2025, pelas 23h30, o arguido seguia ao volante do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-VU, na ..., no Carregado, sem para tal estar habilitado com carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir aquele veículo na via pública.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de conduzir aquele veículo automóvel sem a devida habilitação legal, que sabia não ser possuidor, sendo ainda conhecedor das características da via em que circulava, consciente que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
O arguido vive com a esposa, trabalha na agricultura auferindo por dia €40€, não paga despesas, nem prestação de casa.
O veículo automóvel ligeiro de passageiro, com a matrícula ..-..-VU é propriedade do arguido.
Não tem condenações registadas».
3. Do recurso interposto
3.1. Da alteração da matéria de facto pelo Tribunal ad quem nos termos previstos no art. 431º do C.P.P.
Neste segmento recursivo, o recorrente reivindica que seja aditado o seguinte facto «o arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo pela prática do mesmo crime no âmbito do inquérito 301/24.2...» no pressuposto singelo de que «o tribunal de recurso pode modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base [al. a) do art.º 431º do C. P. Penal]».
Ou seja, percorrida a motivação e as conclusões recursivas, constata-se que o recorrente roga ao Tribunal ad quem a adição de um facto à materialidade dada por assente, arrimando-se apenas e exclusivamente no citado art. 431º, al. a) do C.P.P., sem a mais ténue invocação de erro de julgamento quanto à matéria de facto e/ou de algum dos vícios de procedimento a que alude o art. 410º, n.º 2 do C.P.P.1
Como refere Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo V, p. 366 «Não tendo havido impugnação em sentido amplo da matéria de facto nos termos do art. 412º/3/4 CPP, do recurso interposto e não havendo vícios do art. 410º/2 CPP, o Tribunal da Relação não pode modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1.ª instância, face ao disposto no artigo 431º/b. Se, apesar dessa falta de impugnação em sentido amplo, apreciar as provas e alterar a matéria de facto, a conclusão a retirar é que o acórdão do Tribunal da Relação pronunciou-se sobre matéria sobre a qual não podia tomar conhecimento, o que constitui nulidade da sentença prevista no art. 379.º1/c, aplicável ex vi do art.
425.º/4, do mesmo código».
Ademais, in casu, o recorrente pretende que seja aditado um facto que não consta da acusação, da contestação, nem da sentença revidenda (como provado ou não provado) pelo nunca seria em sede de impugnação da matéria de facto, pela via do erro de julgamento, possível proceder à rogada sindicância.
Na verdade, no erro de julgamento, a impugnação da matéria de facto está necessariamente circunscrita aos factos que foram dados como assentes e não assentes na decisão recorrida, mostrando-se legalmente arredada a possibilidade de, assim, vir a ser aditada facticidade alheia à naquela vertida.
Vale por dizer que, a impugnação da matéria de facto e a reapreciação a efectuar pelo tribunal de recurso, pela via do erro de julgamento, não poderá ter por objecto, nem por finalidade, a introdução na factualidade provada de factos não incluídos na decisão recorrida.2
Como se refere no Acórdão n.º 312/2012 do Tribunal Constitucional, processo n.º 268/12, in www.tribunalconstitucional.pt., «(…) É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não incluiu tais factos, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso da prova produzida na primeira instância».
Ante o concreto dissenso, restar-nos-á indagar, então, da existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410º do C.P.P.3
«Os vícios da decisão – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos, por esta ordem, nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, constituem fundamento para recurso da matéria de facto [e isto, independentemente de a lei o restringir à matéria de direito] e são de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Estamos perante defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. No âmbito da revista alargada– comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, antes limita a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto].
Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo e relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69)»4
Como refere Francisco Mota Ribeiro, Processo e Decisão Penal Textos, CEJ, 2019, p. 39/40 «(…) Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz.
Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição»5
Ou seja, «O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/ não verificação — o que pressupõe a sua indagação —, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível.
É que em impugnação por via de recurso pode vir a ser considerado pelo tribunal ad quem que o facto sobre o qual o tribunal a quo especificadamente não se pronunciou por entender ser irrelevante, é afinal relevante para a decisão, o que determinará a necessidade de novo julgamento, ainda que parcial, com todas as maléficas consequências consabidas. Sejamos claros: indagam-se os factos que são interessantes de acordo com o direito plausível aplicável ao caso; dão-se como provados ou não provados os factos conforme a prova produzida. A pronúncia deve ser inequívoca: em caso algum pode ficar a dúvida sobre qual a posição real do tribunal sobre determinado facto»6.
No caso, à pretensão recursiva de aditamento do predito facto, subjaz aquela outra que reclama a valoração de anterior decisão de suspensão provisória do processo, pela prática de idêntico ilícito criminal, na determinação da medida da pena.
Ora, se é certo que a doutrina e a jurisprudência não são unânimes quanto à possibilidade/obrigatoriedade de se proceder a tal valoração na determinação da medida da pena, não é de descurar que se trata, inolvidavelmente, de um entendimento jurídico plausível.
Assim sendo, verificando-se que na sentença recorrida se deu apenas como assente que o arguido não tem condenações registadas, sem que, a par, se tivesse averiguado se o mesmo havia já beneficiado do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática de idêntico tipo criminal, circunstância que, para parte da doutrina e da jurisprudência, a verificar-se, consentirá e reclamará a devida valoração na determinação da medida da pena, é de inferir que a sentença recorrida padece, no descrito contexto, do vício de insuficiência da matéria de facto.
E, de facto, estando em crise somente prova documental, tal insuficiência, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 431º, al. a) do C.P.P.7, será, pois, suprida neste Tribunal ad quem.
Na procedência deste segmento recursivo, nos explanados termos e fundamentos, adita-se à matéria de facto dada por assente o seguinte:
O arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática do mesmo tipo de crime, no âmbito do inquérito 301/24.2...
3.2. Da medida da pena
Neste conspecto, invoca o recorrente, em suma, que: «(…) não pode o Ministério Público, em face da factualidade dada como provada e por razões de prevenção geral e especial, concordar com a dosimetria da pena de multa em que o arguido foi condenado.
O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.
As exigências de prevenção geral neste tipo de criminalidade são muito elevadas, pois importa acautelar as muito recorrentes situações de infração à lei, in casu, potenciadoras da elevada sinistralidade que ocorre nas estradas nacionais e das nefastas consequências daí advenientes, bem como a proteção do bem jurídico violado, elevando, portanto, a necessidade de, através da pena aplicada, repor a confiança dos cidadãos na norma violada e nos valores que lhe estão subjacentes.
Não concordamos com a sentença quando afirma que as exigências de prevenção especial são baixas, porquanto, se por um lado, a favor do arguido milita o facto de ter confessado (sendo também certo que neste tipo de criminalidade a prova sempre seria de fácil obtenção) e nada ter averbada no seu CRC, por outro lado, em seu desfavor milita, desde logo, o facto de o veículo ser de sua propriedade, mas principalmente por ter já beneficiado do instituto da suspensão provisória do processo pela prática do mesmo crime no âmbito do inquérito 301/24.2... (cujo prazo terminou a 23.02.2025 - cf. print junto aos autos), pelo que, a nosso ver, sendo este o segundo contacto do arguido com o aparelho judicial, as exigências de prevenção especial afiguram-se-nos médias/altas».
Como se extrai das conclusões apresentadas, o recorrente pretende, assim, ver agravados os dias de multa aplicados, concluindo que o Tribunal a quo incorreu em erro de jure por deficiente interpretação do disposto nos art. 40.º e 71.º do C.P. e, em especial, porque a Sra. Juíza não valorou a circunstância de o arguido já anteriormente ter beneficiado da suspensão provisória do processo, pela prática, também, de um crime de condução sem habilitação legal.
Preliminarmente, no que concerne à específica contrariedade exposta pelo recorrente, como já atrás deixámos anunciado, a doutrina e a jurisprudência não são unânimes quanto à possibilidade/obrigatoriedade de se proceder a tal valoração na determinação da medida da pena.
Com efeito, como dá nota o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de Janeiro de 2020, processo n.º 250/19.6GASEI.C1, in www.dgsi.pt. «I – O facto de um arguido ter beneficiado da suspensão provisória do processo no âmbito de um inquérito, sobretudo pela prática do mesmo tipo legal de crime pelo qual se encontra a ser julgado, não deve ser considerada, para alguns, como circunstância anterior atendível na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, alínea e), ab initio do CP [cfr., v.g., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, nota 14 ao artigo 71.º].
II - Já para o Prof. Figueiredo Dias [in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, fls. 253], não podendo, decerto, o juiz equiparar estas situações às de “condenações” anteriores, nada parece impedir em definitivo, que ele possa valorar estes elementos, em sua livre convicção, para determinar a medida da culpa e (ou) as exigências da prevenção».8
Em abreviada síntese, para aqueles que sustentam a necessidade de ponderação de anterior suspensão provisória do processo, estará em crise uma circunstância desfavorável indiciadora de uma culpa agravada e/ou a determinar acrescidas exigências de prevenção.
Cremos, no entanto, que tal argumentário não pode, de todo em todo, merecer acolhimento pela seguinte ordem de razões.
É de ressaltar, desde logo e prima facie, que, no caso, o facto aditado à materialidade assente cinge-se ao seguinte: O arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática do mesmo tipo de crime, no âmbito do inquérito 301/24.2...
Isto é, «(…) o facto provado (que mais não é do que um facto processual relativo a outros autos que terminaram sem a prolação de sentença condenatória) é absolutamente irrelevante.
Seria perversa a tentação de ver na aceitação da suspensão provisória do processo pelo arguido uma confissão da culpa e não apenas uma iniciativa com vista a conseguir, por via do consenso, uma solução aceitável de justiça negociada, que conduz ao arquivamento do processo, sem condenação.
Essa visão não é autorizada pelos princípios mais basilares na matéria.
Esbarra frontalmente com a proteção constitucional dos direitos e garantias do arguido em processo criminal e com os mais elementares princípios que informam o nosso direito processual penal. Em termos de culpabilidade, ou mesmo de indiciação, nada se pode colher da circunstância de, enquanto arguido, o cidadão ter decidido aceitar a suspensão provisória do processo, no uso dos seus direitos de defesa (que vigoram também nos mecanismos alternativos de resolução dos litígios penais)»9.
Dito de outro modo «(…) não basta que se verifique um comportamento criminoso anterior aos factos em juízo, torna-se ainda necessário que tal antecedente criminal esteja estabelecido por condenação transitada em julgado, sob pena de violação do princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2 da Constituição: «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, …».
E é por força do princípio da presunção de inocência que um comportamento criminoso constante duma acusação ou pronúncia e até duma sentença desde que ainda não transitada em julgado não pode nunca ser considerado como antecedente criminal para efeitos de valoração desfavorável como fator de medida da pena.
Aliás, mesmo no caso das condenações transitadas em julgado, caso o registo criminal tenha sido cancelado, tenha caducado por força da reabilitação, também elas não podem ser valoradas para efeito de medida de pena.
(…) O ponto fulcral que nos parece fornecer a solução do problema é o de que a aplicação da suspensão provisória do processo e da injunção que dela resulta é indissociável do facto criminoso que lhe deu origem.
Com efeito não se afigura possível pensar ou pelo menos compreender adequadamente a injunção sem o facto que lhe deu origem. Não vemos como dar como provado no processo apenas a injunção aplicada, abstraindo do facto criminoso indiciado e depois considerar em sede de medida de pena que o arguido cumpriu a injunção x ou y e por isso demonstrou uma maior culpa ou exigências preventivas maiores.
É por isso, por força da referida indissociabilidade entre a injunção e o facto que a gerou, que na jurisprudência citada a injunção nunca aparece por si só, mas sempre ligada ao facto criminoso que a gerou, como por exemplo: «o arguido já beneficiou da suspensão provisória do processo no âmbito do inquérito …, pela prática de um crime de …». E é assim que também surge no caso dos autos o facto provado (…) relativo à suspensão provisória do processo anterior.
Não é possível relacionar a injunção aplicada ou cumprida com a maior ou menor culpa ou exigência preventiva sem que se saiba qual o facto criminoso que lhe deu origem.
Na suspensão provisória do processo prescinde-se da certeza da existência do facto criminoso e do seu cometimento pelo arguido, mas a presunção de inocência mantém-se, nem sequer há acusação, quanto menos pronúncia ou condenação, transitada ou não em julgado. E o arguido não pode ver valorado contra si um facto que não passou a barreira da presunção de inocência.
Concluindo, nesta parte, diremos que não sendo dissociável a suspensão provisória do processo do facto criminoso (indiciado) que lhe deu origem, a sua valoração contra o arguido em sede de medida da pena não é admissível, por força do princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2 da Constituição»10
Em suma, e em sentido contrário ao sufragado pelo recorrente, afigura-se que, efectivamente, não pode ser valorada na determinação da medida da pena a circunstância de o arguido ter já beneficiado anteriormente do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática de crime idêntico ao ora em causa.
De tal asserção, porém, não se pode inferir que se impõe a improcedência deste segmento recursivo e in totum.
Na verdade, desde logo e consabidamente, a condução de veículos é, de per si, uma actividade perigosa e a concomitante inabilitação para a levar a cabo potencia exponencialmente a perigosidade, conhecido, ademais, o desfecho, demasiadas vezes trágico, de um tal binómio.
Conforme resulta dos mais recentes relatórios de sinistralidade da A.N.S.R.11:
- Nos sete primeiros meses de 2024, face a 2023, verificaram-se aumentos em quase todos os principais indicadores: mais 626 acidentes (+3,1%), mais 49 feridos graves (+3,5%) e mais 647 feridos leves (+2,8%);
- Comparativamente a 2019 (ano de referência para a análise da evolução na década, conforme estabelecido pela Comissão Europeia), registou-se no Continente um agravamento na sinistralidade, reflectida em: aumentos nos acidentes (+639; +3,2%) 20.561; nas vítimas mortais (+7; +2,7%) e nos feridos graves (+191; +15,2%).
Ou seja, as necessidades de prevenção geral são, inequivocamente, muitíssimo elevadas.
Acresce, no que às razões de prevenção especial respeita, que o arguido, inabilitado que se encontra para a condução de veículos automóveis, paradoxalmente, é proprietário do veículo automóvel que conduzia na data dos factos.
E se é certo que, como uniformemente tem sido defendido na jurisprudência, «(…) em sede de escolha e medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normação que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei»12, não será de olvidar que, no caso, numa moldura legal de 10 (dez) a 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, o Tribunal a quo quedou-se pela fixação da pena em 65 (sessenta e cinco) dias.
Ante todo o exposto, e sem desconsideração pela sensibilidade da Sra. Juíza do Tribunal a quo, afigura-se que o contexto delituoso, em particular a circunstância de o arguido, apesar de inabilitado para a condução, ser proprietário do veículo automóvel que conduzia aquando dos factos, conjugado com as veementes razões de prevenção geral, justificam e reclamam a aplicação da pena em medida menos próxima do limite mínimo da moldura aplicável, concretamente em 85 (oitenta e cinco) dias de multa.
Termos em que, nesta parte, o recurso merece parcial procedência.
III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência:
a) Aditar à matéria de facto dada como provada que O arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, no âmbito do inquérito 301/24.2...;
b) Revogar, na parcela atinente à pena, a sentença recorrida, que se substitui pela decisão de condenar o arguido AA, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3/1, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), no montante global de €425,00 (quatrocentos e vinte cinco euros) e, descontado o dia da detenção, conforme art. 80.º do Código Penal, num total de €420,00 (quatrocentos e vinte euros).
Notifique.

Lisboa, 23 de Outubro de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Jorge Rosas de Castro (vencido, conforme declaração que junta)

Voto vencido
Nada tenho a opor a que se reconheça relevância ao aditamento de um facto relativo à suspensão provisória do processo (SPP).
Porém, discordo do acórdão em três aspetos:
1) Quanto ao enquadramento processual do aditamento
A ideia que resulta sustentada pelo acórdão é a de que a ausência de menção, no texto da decisão condenatória, a se o Arguido beneficious ou não de alguma SPP, configura um vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto pelo art. 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP).
Discordo.
Essa posição leva, desde logo, a uma consequência bizarra, que é esta: considerando que é muito raro, como todos sabemos, que uma decisão condenatória de 1ª instância contenha uma referência a se o arguido beneficiou ou não de alguma SPP, então praticamente todas as decisões condenatórias de 1ª instância, repito, praticamente todas as decisões condenatórias de 1ª instância, padecem de um vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão (vício este, aliás, que seria de conhecimento oficioso). Não pode ser.
Os vícios do art. 410º, nº 2 do CPP têm de resultar do texto da decisão, em si mesmo ou à luz das regras da experiência comum, o que manifestamente não é o caso. A matéria de facto considerada provada pelo Tribunal recorrido, e da qual o mesmo partiu para decidir, era inteiramente idónea a tanto; de nada mais carecia o Tribunal para proferir uma decisão segura sobre o mérito da causa, nada mais se lhe impunha que investigasse – insista-se, à luz do texto da decisão.
A considerar-se relevante a SPP de que o Arguido beneficiou, o que aqui aconteceu foi outra coisa.
O Tribunal tem o dever de tomar posição sobre os factos com relevância para a decisão, à luz das soluções plausíveis, venham eles alegados pela acusação, pela defesa ou resultem da prova produzida em audiência e da discussão da causa [arts. 339º, nº 4, 368º, nº 2, 369º e 374º, nº 2 do CPP].
Ora, se resulta da discussão da causa, no sentido em que está documentado no processo (mas exterior ao texto da decisão), que o arguido beneficiara de uma SPP; e se se entende que este é um aspeto passível de ter relevância, à luz das soluções plausíveis da causa, então há que reconhecer que devia o tribunal recorrido ter-se pronunciado sobre essa realidade, descrevendo-a como provada. Não o tendo feito, e entendendo-se que a falta não pode ser ultrapassada no contexto da impugnação ampla da matéria de facto, o que há, então, é uma nulidade, prevista pelo art. 379º, nº 1, alínea c), a suprir pelo próprio tribunal recorrido (vide, a título exemplificativo, o Ac. da RL de 10/01/2013, relatado por João Abrunhosa, e as referências doutrinárias e jurisprudenciais que aí constam, in www.dgs.pt). Nulidade, acrescente-se, que é logicamente prévia a uma qualquer ideia de insuficiência da matéria de facto para a decisão do art. 410º, nº 2, alínea a) do CPP.
O que o acórdão faz é isto: para além de ficcionar a existência de um vício no texto da decisão condenatória a partir de um elemento que lhe é externo; para além de fazer emergir sobre a generalidade das decisões condenatórias proferidas pelos tribunais portugueses o anátema de uma quase sempre presente insuficiência da matéria de facto para a decisão, de conhecimento oficioso; para além de tudo isso, acaba por determinar a introdução na matéria apurada de um dado de facto novo, que é ponderado pela Relação em primeira e última instância, pelo caminho suprimindo-se um grau de jurisdição sobre a questão de saber se a SPP anterior deve interferir, e em que sentido, nas tarefas de escolha e/ou determinação da medida da pena.
*
2) Os termos em que o facto se encontra redigido no projeto
O facto que o acórdão adita tem este formato: «O arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, pela prática do mesmo tipo de crime, no âmbito do inquérito 301/24.2...» (sublinhado meu).
Ora, o arguido, quanto aos factos que se discutiam no Inquérito 301/24.2..., presume-se inocente. O texto do facto a aditar deveria pois apresentar-se com uma redação conforme a essa presunção de inocência, como esta: «O arguido já beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, no âmbito do inquérito 301/24.2...,no qual se lhe imputava a prática do mesmo tipo de crime».
Tal como se encontra redigido, o texto afirma que o arguido praticou o crime (e o sistema de justiça a ele reagiu mediante uma SPP). Do que se trata, então, é de uma autoridade pública (esta Relação) a referir-se a alguém como tendo praticado um crime pelo qual nunca foi condenado; incongruentemente, aliás, com a presunção de inocência que logo a seguir se invoca, no acórdão, para rejeitar a relevância do facto.
O princípio da presunção de inocência tem várias projeções; uma delas é como regra de tratamento, mesmo perante processos ulteriores. O modo como o facto consta do acórdão fere-a nessa vertente (cfr. Acs. do TEDH Allen v. The United Kingdom [GC], nº 25424/09, de 12/07/2013, §§ 103/104; Nealon and Hallam v. The United Kingdom [GC], nºs 32483/19 e outro, de 11/06/2024, § 122; e McCann and Healy v. Portugal, nº 57195/17, de 20/09/2022, §§ 106-108 – in https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22docname%22:[%22allen%22],%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]}).
*
3) As consequências do aditamento do facto na medida da pena
É óbvio que não questiono a persistência da presunção de inocência do arguido quanto ao facto que se lhe imputava no Inquérito anterior. Não podemos na verdade considerar que este é um segundo crime que o arguido pratica. Mas podemos, e na minha ótica devemos, entender que o arguido teve na data um contacto efetivo com o sistema de justiça, do qual resultou uma advertência formal e solene, provinda de uma autoridade pública, sobre a importância dos valores subjacentes à incriminação que aí se lhe apontava, advertência essa que se revelou insuficiente para que o arguido pautasse o seu comportamento ulterior em termos de respeito para com tais valores.
Não é inócuo que o arguido tenha tido o apontado contacto com o sistema de justiça nesta área e ao qual, pelo seu comportamento, claramente não deu a atenção devida. O grau de censura a que se presta, por não ter agido como devia, pese embora aquele contacto, é objetivamente superior; como superior demonstrou que é, pela mesma razão, a necessidade de intervenção numa vertente ressocializadora.
O reflexo desse contacto anterior na medida da pena não há de ser obviamente tão intenso como seria se houvesse sido condenado, decerto; mas ainda assim não pode ser irrelevante.
Esclareça-se.
Confiro relevância à SPP não porque considere que o arguido praticou aqueles anteriores factos – o arguido presume-se incontornavelmente inocente, quanto a eles;
e não, também, porque considere que o arguido, ao aceitar a SPP, de algum modo admitiu a sua culpa – essa inferência de uma suposta admissão de culpa e, por essa via indireta, de que o arguido praticou efetivamente os factos em causa naquele outro Inquérito, é ilegítima e não a faço.
Confiro relevância à SPP porque esta objetiva um alerta formal dirigido individualizadamente ao arguido, provindo do sistema de justiça, quanto à valia e vigência dos valores que aquele, entretanto, lamentavelmente, veio a violar depois. Não compreendo por que não há de essa realidade ser ponderada como mais um elemento definidor da personalidade do arguido, das suas circunstâncias anteriores de vida e da sua preparação (ou falta dela) para manter uma conduta lícita, tudo aspetos que cabem perfeitamente no art. 71º, nº 2 do Código Penal, e nomeadamente e desde logo nas suas alíneas a), parte final, b), d), primeira parte e f).
***
Dito isto, e em síntese, entendo que, a reconhecer-se na decisão recorrida um vício não ultrapassável pela impugnação ampla, deveria ele ser categorizado como uma nulidade, a suprir pela 1ª Instância; e que, a ser apreciada a substância da matéria, o recurso deveria ser julgado totalmente procedente.
Jorge Rosas de Castro
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1. Da motivação, com a epígrafe Do objecto do recurso, consta até que: «O Ministério Público concorda integralmente com a apreciação que foi feita da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e, consequentemente, com factualidade dada como provada na decisão ora recorrida.
No entanto, embora não se discorde da escolha da pena de multa e respetivo quantitativo diário, na opinião do Ministério Público, tal factualidade e razões de prevenção geral e especial, impunham que fosse outro quantum da pena multa em que o arguido foi condenado».
2. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/5/2018, processo n.º 134/16.0GAVF.G1 e do Tribunal da Relação de Évora de 26/4/2016, processo n.º 371/14.1TATVR.E1, in www.dgsi.pt.
3. Liminarmente arredados que se mostram os especificamente prevenidos nas alíneas b) e c) do referido normativo.
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/5/2016, processo n.º 1/14.1GBMDA.C1, in www.dgsi.pt.
5. A propósito, neste sentido, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do S.T.J. de 4/10/2006, processo n.º 06P2678, do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/3/2011, processo n.º 288/09.1GBMTJ.L1-5, do Tribunal da Relação do Porto de 10/7/2019, processo n.º 93/16.6PIVNG.P1 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 5/62024, processo n.º 3593/16.7T9CBR.C1, todos in www.dgsi.pt.
6. SÉRGIO POÇAS, DA SENTENÇA PENAL — FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO, JULGAR - N.º 3 – 2007, p. 24/25, com sublinhado nosso.
7. «A vantagem da norma aqui em apreciação é precisamente evitar que o processo vá para a primeira instância (por via do reenvio), em casos em que é possível suprir a deficiência de factos pelo tribunal superior (Relação) resolvendo o caso em apreciação no recurso sem delongas e com eficiência», Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo V, p. 354.
8. Na jurisprudência, confrontar a resenha efectuada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/9/2023, processo n.º 688/21.9GBVRF.P1, in www.dgsi.pt.: «no sentido da negação da possibilidade de valoração os Acs. TRP de 04-05-2016 proc. 1009/15.5PCMTS.P1 (Artur Oliveira), TRL de -08-11-2022, proc.1078/21.9GAMTA.L1-5 (Jorge Antunes); no sentido da possibilidade de valoração os Acs. TRC de 29-01-2020, proc. 250/19.6GASEI.C1 (Luís Teixeira); TRE de 29-03-2016, proc. 499/15.0PAPTM.E1 (Ana Barata Brito); TRG de 8-10-2012 proc. 190/11.7GCVVD.G1 (Fernando Monterroso); TRG de 12-10-2020, proc. 91/19.0GTVRL.G1 (Cândida Martinho); TRG de 07-03-2022, proc. 132/21.1GBTMC.G1 (Anabela Varizo Martins), TRP de 12-07-2023, proc. 78/23.9GCVFR.P1 (João Pedro Pereira Cardoso), com um voto de vencido».
9. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/11/2022, processo n.º 1078/21.9GAMTA.L1-5, in www.dgsi.pt.
10. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/9/2023, processo n.º 688/21.9GBVRF.P1, in www.dgsi.pt
11. Consultáveis in www.ansr.pt.
12. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/5/2021, processo n.º 88/16.2PASTS.S2, in www.dgsi.pt.