RECLAMAÇÃO
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
INSOLVÊNCIA
ADMISSIBILIDADE
RECURSO DE REVISTA
ERRO DE JULGAMENTO
PRESSUPOSTOS
CONTRADIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VALOR DA AÇÃO
ALÇADA
SUCUMBÊNCIA
INDEFERIMENTO
Sumário


I. O recurso de revista de decisões proferidas no processo de insolvência apenas é admissível com fundamento na contradição ou colisão jurisprudencial e este regime específico especialíssimo afasta o regime geral da revista excecional.
II. Um erro na qualificação jurídica do meio processual não determina a irrefragável rejeição do recurso de revista, tendo por única consequência a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado.
III. No caso em apreço, ambos os acórdãos interpretaram, com inteira isonomia, a norma adjetiva aplicável e extraíram dela um critério de decisão absolutamente homótropo que concretizaram de modo homogéneo: que no caso de colisão de decisões sobre um mesmo objeto, cumpre-se, sempre a passada em julgado em primeiro lugar, encontrando-se a proferida posteriormente ferida com o desvalor da ineficácia.
IV. Este Tribunal Supremo tem decidido, consistente e repetidamente, que a admissibilidade da revista das decisões proferidas no processo de insolvência, exige, além da contradição de acórdãos, a verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade relativos ao valor da causa e à sucumbência do recorrente. Não basta, pois, para que a revista seja admissível a verificação do pressuposto específico da colisão de jurisprudência: é, ainda indispensável, que a causa tenha valor superior ao da alçada do tribunal de que se recorre e que a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade daquela alçada.

Texto Integral

Acordam em Conferência na 6ª. Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1-Relatório:

A Sra. Administradora da Insolvência de Hauteville – Imobiliária SA requereu ao Sr. Juiz de Direito da Insolvência a notificação da credora SMFDG – Invest, SA, para devolver a quantia de € 15 000,00.

Fundamentou o requerimento no facto de àquela credora ter sido paga, indevidamente, a quantia de € 165 000,00, uma vez apenas lhe foi reconhecido um crédito de € 150 000,00.

A credora, com fundamento no trânsito em julgado da sentença que julgou prestadas as contas da administração, recusou a devolução daquela quantia, mas o Sr. Juiz de Direito condenou-a a restituir à massa insolvente o respetivo valor.

Aquela credora interpôs deste despacho recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, mas esta, por acórdão proferido no dia 8 de Maio de 2025, com fundamento em que o pagamento indevido da verba de € 15 000,00, que excede o montante exarado na sentença de verificação e graduação de créditos transitada em julgado, implica o dever de reembolso dessa quantia pela credora à massa insolvente, a tanto não obstando a circunstância de terem sido aprovadas as constas onde está lançado o pagamento da verba indevida, pois, nos termos do disposto no art.º 625.º do CPC, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão recorrida.

A apelante interpôs deste acórdão recurso de revista excecional, concluindo as suas alegações:

A. O presente recurso de revista incide sobre o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que confirmou a decisão da 1.ª instância determinando a restituição à massa insolvente da quantia de € 15.000,00, alegadamente paga em excesso à Recorrente no âmbito de rateio parcial.

B. A decisão recorrida assenta na tese de que a sentença de verificação e graduação de créditos (que reconheceu o crédito da Recorrente em €150.000,00) prevalece sobre a posterior sentença de aprovação de contas, que validou o pagamento de €165.000,00.

C. Tal entendimento incorre em erro de julgamento, porquanto não estamos perante decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, mas antes perante decisões com objetos distintos: a verificação do crédito, por um lado, e a aprovação jurisdicional dos pagamentos efetivamente realizados, por outro.

D. A sentença de aprovação de contas foi proferida a 18.07.2022, transitou em julgado em 02.08.2022, e validou expressamente, com contraditório e parecer favorável do Ministério Público, o pagamento de € 165.000,00 à Recorrente.

E. Nos termos dos artigos 62.º, n.º 3, e 64.º do CIRE, a aprovação das contas constitui decisão jurisdicional com força de caso julgado, considerando por “devidos” os pagamentos nela inscritos, e impedindo nova apreciação, salvo por via de revisão excecional (art. 614.º CPC).

F. A decisão recorrida viola os artigos 613.º, 620.º e 625.º do CPC ao permitir, por despacho superveniente e em sede de incidente anómalo, a reversão de um pagamento aprovado judicialmente e não impugnado, esvaziando o valor da sentença de aprovação de contas.

G. O artigo 173.º do CIRE visa impedir o pagamento de créditos não verificados, mas não legitima a devolução de quantias cuja legalidade foi sindicada e aprovada por sentença transitada. A sua aplicação extensiva ao presente caso distorce a sua ratio e o seu alcance normativo.

H. O crédito da Recorrente encontrava-se integralmente verificado por sentença transitada, e o eventual excesso pago foi incluído, apreciado e validado pelo tribunal no âmbito da prestação de contas. A ausência de impugnação operou a consolidação definitiva do ato.

I. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.02.2010 (Proc. 137/07.5TVLSB-6) afirma expressamente que “o credor não tem de devolver à massa falida o que recebeu a mais, nem o tribunal da insolvência lho pode impor”, quando tal resulta de contas aprovadas judicialmente.

J. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.02.2018 reforça que “o trânsito em julgado dessa aprovação sana qualquer vício de legalidade que pudesse afetar tal despesa”, reconhecendo o valor preclusivo da sentença que julga boas as contas do administrador.

K. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.03.2025 (Proc. 5261/15.8T8VNF-K. G1) vem reafirmar que qualquer decisão posterior sobre matéria já coberta por decisão transitada é ineficaz, não podendo produzir efeitos nem justificar nova apreciação do mérito.

L. A tentativa de reversão da quantia paga, sem revisão da sentença de contas, sem nulidade arguida e sem recurso tempestivo, viola o caso julgado, o princípio do contraditório, a segurança jurídica e a estabilidade das decisões judiciais.

M. O sistema de insolvência assenta nos princípios da celeridade, previsibilidade e unidade processual (arts. 1.º e 14.º do CIRE), sendo inadmissível a reabertura informal de matérias decididas com contraditório e transitadas em julgado.

N. A sentença de aprovação de contas não revogou, nem contrariou, nem excedeu os limites da sentença de verificação de créditos: validou a conduta do administrador e os pagamentos concretamente efetuados, no exercício da função jurisdicional de fiscalização.

O. Ao admitir a prevalência da sentença de verificação de créditos sobre a sentença de aprovação de contas, sem que entre ambas haja verdadeira contradição sobre a mesma pretensão, o acórdão recorrido incorre em aplicação errónea do artigo 625.º do CPC.

P. A decisão agora recorrida viola, de forma manifesta:

i. O princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no artigo 613.º, n.º 1, do CPC, uma vez que ao admitir uma decisão superveniente que contradiz os efeitos de uma sentença transitada — sem invocação de nulidade, revisão ou erro material — o Tribunal a quo reabre, de forma ilegítima, o ciclo jurisdicional já encerrado;

ii. A autoridade do caso julgado, regulada nos artigos 620.º a 625.º do CPC, uma vez que ao permitir que se declare “indevido” um pagamento aprovado por sentença com trânsito, viola-se não só o efeito positivo do caso julgado (que impede reapreciação do decidido), como também o seu efeito negativo (que obsta à formulação de decisões incompatíveis);

iii. O princípio da segurança jurídica, pedra angular do Estado de Direito democrático, com dignidade constitucional (artigo 2.º da CRP), que exige a previsibilidade das consequências jurídicas dos atos processuais, a estabilidade dos efeitos das decisões dos tribunais e a tutela da confiança legítima das partes na estanquicidade dos atos consolidados.

Q. Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com revogação do acórdão recorrido e confirmação da plena eficácia da sentença de aprovação de contas proferida a 18.07.2022, que validou, de forma definitiva, o pagamento à Recorrente da quantia agora em causa.

Na resposta, a Massa Insolvente de Hauteville – Imobiliária, Lda., e o Ministério Público, depois de observarem que o recurso é inadmissível, concluíram pela sua improcedência.

Sobre o requerimento de interposição do recurso recaiu despacho da Srª. Desembargadora Relatora, a indeferir o requerimento de interposição de recurso – art. 641º, nº 2 al. a) do CPC.

A recorrente reclamou deste despacho para a conferência.

O Sr. Desembargador, por despacho de 25 de julho de 2025, com fundamento em erro da recorrente sobre o meio processual, converteu a reclamação para a conferência, em reclamação contra a não admissão do recurso.

Neste STJ. foi em 18-8-2025 proferida decisão, com o seguinte teor a final:

«Pelos fundamentos expostos:

1. Convolo a revista interposta de excecional, para normal ou comum;

2. Não determino, por inutilidade, a notificação da recorrente para proceder à demonstração do trânsito em julgado do acórdão-fundamento, através da junção de certidão dele com nota desse trânsito;

3. Julgo a reclamação improcedente.

Custas pela recorrente».

Veio, ainda, a recorrente reclamar para a conferência, concluindo:

A. A decisão singular que indeferiu liminarmente o recurso de revista excecional, com fundamento na alegada inaplicabilidade do regime da revista excecional ao processo de insolvência, por força do disposto no artigo

14.º, n.º 1, do CIRE.

B. Contudo, tal entendimento enferma de erro de julgamento, uma vez que o artigo 14.º, n.º 1, do CIRE apenas afasta o regime geral da revista ordinária, não afastando a possibilidade de revista com fundamento em oposição de acórdãos.

C. A Recorrente demonstrou, de forma circunstanciada, a existência de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, a qual incide sobre a mesma questão fundamental de direito: o valor preclusivo da sentença que aprova as contas do administrador de insolvência e a impossibilidade de ulterior censura jurisdicional dos pagamentos nela inscritos.

D. O despacho reclamado não apreciou substancialmente a invocada contradição de julgados, limitando-se a afirmar a inaplicabilidade do regime de revista excecional, incorrendo em violação do dever de exame e decisão fundamentada.

E. Ainda que se entendesse existir imprecisão na indicação do regime de revista, impunha-se a convolação do recurso excecional em recurso normal, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, do Código de Processo Civil, não podendo a mera invocação de meio impróprio obstar ao conhecimento da pretensão de revisão, sob pena de denegação da justiça.

F. A sentença de aprovação de contas, uma vez proferida e transitada em julgado, faz nascer uma legítima expectativa de estabilidade dos pagamentos aí validados. A Recorrente recebeu a quantia de € 165.000,00 com base nesse título jurisdicional, não havendo qualquer impugnação ou irregularidade formal que justificasse a posterior revogação do pagamento.

G. Diametralmente, o acórdão-fundamento entende que, tendo transitado o despacho que validou o pagamento, a reapreciação posterior dessa mesma matéria é juridicamente ineficaz, sob pena de colapso da estabilidade dos atos jurisdicionais.

H. Trata-se de uma aplicação direta dos princípios da certeza jurídica, do esgotamento do poder jurisdicional e da intangibilidade do caso julgado, os quais se revelam indispensáveis para a previsibilidade das consequências jurídicas dos atos processuais e para a confiança das partes nos efeitos das decisões dos tribunais.

I. O indeferimento da interposição do recurso, sem convolação, constitui uma compressão desproporcionada e ilegítima do direito de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa.

J. Pelo exposto, deve a presente reclamação ser julgada procedente, determinando-se a revogação do despacho reclamado e a admissão do recurso de revista interposto pela Recorrente, com consequente remessa ao Supremo Tribunal de Justiça para apreciação da oposição de acórdãos invocada.

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar:

O despacho reclamado proferido neste STJ., tem o seguinte teor, que se reproduz:

«Pressupostos de admissibilidade da revista.

Já se adquiriu à certeza a norma reguladora da admissibilidade do recurso rejeitado (art.º 14.º, n.º 1, do CIRE). E face a essa norma, a primeira conclusão que se impõe é a inadmissibilidade do recurso concretamente interposto pela recorrente: o de revista excecional.

Realmente, este Tribunal Supremo tem decidido, de forma reiterada e consistente, que o recurso de revista de decisões proferidas no processo de insolvência apenas é admissível com fundamento na contradição ou colisão jurisprudencial e que este regime específico especialíssimo afasta o regime geral da revista excecional. Em face esta orientação jurisprudencial, é patente que a recorrente, ao interpor o recurso como revista excecional, errou quanto ao meio processual.

Mas um tal erro na qualificação jurídica do meio processual não determina a irrefragável rejeição do recurso de revista, tendo por única consequência a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado, solução que surge claramente ordenada por uma ideia de máximo aproveitamento dos atos processuais, (art.º 193.º, n.º 3, do CPC). Diz-se em princípio, dado que aquela convolação está naturalmente sujeita a limites, uma vez que é necessário que a ela não obstem quaisquer outras circunstâncias, de que se destacam, desde logo, três: a extinção por caducidade do direito de praticar o ato convolado e a inaproveitabilidade do ato objeto de convolação, por não reunir os requisitos específicos exigidos para o ato para o qual seria convolado, ou por implicar o agravamento da posição processual da parte contrária aquela a quem a convolação aproveitaria.

O poder de convolação é um poder oficioso que pertence também ao tribunal de recurso, por força do qual, por exemplo, o relator deve convolar a interposição de revista, que tenha por fundamento a nulidade substancial do acórdão reclamado. para reclamação para a conferência, ou como, aliás sucedeu no caso, a convolação da reclamação para a conferência da decisão que indeferiu o recurso em reclamação, para o tribunal ad quem, dessa decisão de rejeição.

Considerando que, na espécie sujeita, nada obsta à convolação ou conversão da revista de excecional para revista normal ou comum, embora especial, tudo está em saber se se verifica, o fundamento específico de admissibilidade desta revista: a contradição ou colisão jurisprudencial. O despacho reclamado concluiu pela não verificação deste fundamento específico de admissibilidade da revista e, foi, aliás, essa – e não o facto de a recorrente ter errado quanto à modalidade competente da revista, ao interpô-la como revista excecional – a ratio decidendi conspícua de rejeição do recurso. Constatação que deixa sem valor o argumento da reclamante de que o indeferimento da interposição do recurso, sem convolação, constitui uma compressão desproporcionada e ilegítima do direito de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa.

A leitura da norma processual reguladora deste caso especial de admissibilidade da revista, inculca, sem erro, que, para além do requisito negativo da inexistência de jurisprudência uniformizada com que o acórdão recorrido seja conforme, são os seguintes os requisitos ou pressupostos, materiais e formais, dessa admissibilidade (art.º 14.º, n.º 1, do CIRE):

- A contradição entre a decisão impugnada e a decisão contida no acórdão, transitado em julgado, deduzido o como acórdão-fundamento, colisão que deve consistir numa oposição frontal e não apenas pressuposta ou meramente implícita com aquele acórdão; a oposição de decisões deve ser expressa;

- A divergência relativamente à mesma questão de direito, sendo irrelevantes as eventuais divergências quanto à questão de facto;

- A essencialidade da questão de direito para o resultado numa e noutra das decisões;

- A identidade da questão de direito que foi objeto de decisão no acórdão-fundamento e a que foi objeto da decisão recorrida: a questão que é decidida pelos duas decisões deve ser idêntica e não apenas análoga, o que pressupõe uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria de facto litigiosa subjacente a cada uma das decisões, que devem conter interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental:

só pode recorrer-se com fundamento na colisão de acórdãos por oposição entre soluções direito, não entre questões de facto, exigência que, mais que conforme, é imposta pela função do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista (art.ºs 682.º, n.º 1, do CPC, e 46.º da LOSJ);

- A diversidade da resposta encontrada pela decisão recorrida e da dada pelo acórdão-fundamento:

as duas decisões devem conter decisões opostas, embora não necessariamente contraditórias.

- A identidade substancial do quadro normativo em que se regista a divergência: a contrariedade entre as decisões deve verificar-se no domínio da mesma legislação;

- A alegação, fundamentada e concludente, do recorrente, da divergência essencial da decisão impugnada relativamente à contida no acórdão-fundamento.

Para que a revista, com fundamento na contrariedade de acórdãos seja admissível exige-se, assim, que os dois acórdãos alegadamente em contradição se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito. Há-de, realmente, haver uma contradição de decisões, contradição que deve ser explícita. E exigindo-se uma contradição entre decisões, exclui-se a relevância da contradição entre fundamentos das decisões; e reclamando-se uma contradição explícita, excluiu-se a relevância de uma contradição implícita ou pressuposta.

Todas as contas feitas, a admissibilidade do recurso depende, aqui, da existência de uma contradição entre o acórdão ora recorrido e o acórdão deduzido como acórdão-fundamento; o fundamento específico da recorribilidade assente na contradição de acórdãos decompõe-se em três requisitos: que o acórdão recorrido esteja em contradição com um acórdão anterior, transitado em julgado - o denominado acórdão-fundamento - que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito (art.º 14.º, n.º 1, do CIRE); a contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança ou divergência entre os resultados da interpretação e/ou integração das normas legais relevantes em face das situações de facto consideradas.

No tocante ao acórdão-fundamento exige-se, além da sua unidade - dado que o recorrente deve indicar um só e só um acórdão-fundamento – que o impugnante junte, logo com o requerimento de interposição do recurso, cópia ainda que não certificada dele, i.e., do acórdão que, proferido no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito, está em contradição com o acórdão de que se pretende recorrer (art.ºs 637.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC). Como o acórdão-fundamento deve ter transitado em julgado – dado que, antes desse trânsito não se verifica, evidentemente, a contradição de decisões que constitui pressuposto de admissibilidade da revista – se esse acórdão provir de uma qualquer Relação, o recorrente deve ainda demonstrar esse trânsito em julgado, que, de resto, deve ser anterior ao proferimento do acórdão recorrido. Na falta de junção, com o requerimento da interposição da revista, da cópia do acórdão-fundamento, com a certificação do respetivo trânsito em julgado, se este consistir num acórdão da Relação, não se justifica, porém, o indeferimento liminar dessa revista, mas antes, em princípio, que se dirija ao recorrente convite para que supra a omissão.

Concretização.

Um primeiro aspeto que se impõe à atenção, é a falta de demonstração, pela recorrente, do trânsito em julgado do acórdão que invocou como acórdão-fundamento. Dado que esse trânsito, por o acórdão-fundamento provir da Relação se não presume, é evidente que a junção de simples cópia dele, extraída de uma base jurídico-documental digital, é inidónea para o demonstrar. Embora esta omissão seja suprível nos termos apontados, considera-se inútil diligenciar pelo seu suprimento.

O princípio da economia processual, que se orienta por um critério de eficiência do processo, considerado num plano individual – i.e., no plano de cada ato processual – proíbe a prática de atos objetivamente inúteis ou supérfluos (art.ºs 130.º e 534.º, n.º 1, do CPC). A economia processual fundamenta, por isso, a irrelevância virtual de um ato, i.e., a irrelevância de um ato que, apesar de admissível, é considerado supérfluo antes mesmo de ser praticado. É isso que sucede no nosso caso, dado que ainda que a recorrente suprisse a apontada omissão, a reclamação sempre será de julgar improcedente, pelo aquele suprimento se deve ter por inútil e, como tal, proibido.

A nossa lei adjetiva define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão – despacho, sentença ou acórdão – decorrente do seu trânsito em julgado (art.º 628.º do CPC).

O caso julgado é, evidentemente, uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.

A partir do âmbito da sua eficácia, há que fazer um distinguo entre o caso julgado formal e o caso julgado material: o primeiro tem um valor estritamente intraprocessual, dado que só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida; o segundo é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão, mas também pode sê-lo em processo distinto (art.ºs 620.º, nº 1, e 621.º do CPC).

O caso julgado resolve-se, assim. na inadmissibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer tribunal – mesmo por aquele que proferiu a decisão. Todavia, o caso julgado não se limita a produzir um efeito processual negativo – traduzido na insusceptibilidade de qualquer tribunal, mesmo também daquele que é o autor da decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma decisão. Ao caso julgado deve também associar-se um efeito processual positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais, ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada por aquele tribunal, ou seja, ao conteúdo da decisão desse mesmo tribunal.

É claro que é sempre possível a violação destes efeitos e, portanto, a situação patológica da existência de casos julgados contraditórios – tanto no mesmo processo, como em processos distintos. Para resolver o conflito, a lei socorre-se de um critério ou princípio de prioridade: vale a decisão contraditória sobre o mesmo objeto que tiver transitado em primeiro lugar (art.º 625.º, n.º 1, do CPC). Este critério de remoção da contradição de casos julgados vale, igualmente, para as decisões que, num mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta (art.º 625.º, n.º 2, do CPC). Assim, por exemplo, se tiver sido interposto recurso da segunda decisão, o recurso tem necessariamente de improceder, dada a vinculação – do tribunal e das partes – ao caso julgado da primeira decisão. Aplicação particular deste critério de prioridade, é a representada pela colisão entre decisões que apreciem a questão da competência relativa do tribunal: a decisão que primeiro transitar em julgado resolve definitivamente aquela questão (art.º 105.º, n.º 2, do CPC). A segunda decisão sobre o mesmo objeto – a competência relativa do tribunal – depois do trânsito da primeira não é nula, mas, simplesmente, formalmente ineficaz: cumpre-se, por isso, a primeira que tiver passado em julgado.

Seja como for, isto mostra que a decisão que se pronuncie sobre uma questão sobre a qual se tenha formado caso julgado, não incorre no vício grave da nulidade, v.g., por excesso de pronúncia, antes determina a ineficácia formal da segunda decisão. Realmente, ao considerar que, havendo duas decisões contraditórias sobre, por exemplo, a mesma questão concreta da relação processual, se cumprirá a que primeiramente tiver passado em julgado, mostra que a extinção do poder jurisdicional provocada pelo proferimento da decisão, não constitui causa de nulidade da segunda decisão sobre o mesmo objeto, antes origina, simplesmente, a ineficácia formal da última das decisões conflituantes.

Na espécie sujeita é garantida a identidade de legislação e a essencialidade da questão decidida: tanto o acórdão recorrido como o acórdão-fundamento aplicaram, como fundamento de direito, na essência, a mesma norma jurídico-processual – o art.º 625.º do Código de Processo Civil – e as questões decididas nos dois acórdãos são fundamentais, dado que assumem um carácter essencial para a solução do caso – a ineficácia de uma decisão conflituante com outra passada em julgado – ou, seja, integram a verdadeira ratio decidendi - e não um mero obiter dictum ou um argumento meramente lateral ou adjuvante de uma solução já alcançada por outra via, dos acórdãos em confronto.

Mas também é seguro que não se verifica a diversidade entre as decisões, i.e., que os dois acórdãos contenham decisões opostas, que ambos, situando-se ou movendo-se no âmbito da mesma regra de direito sejam continentes de interpretações divergentes do mesmo regime jurídico, que para resolver o conflito ou contradição de decisões sobre um mesmo objeto, um tenha aplicado o critério ou princípio da prioridade e outra um critério diverso ou que, tendo-se socorrido do mesmo critério, v.g., o da prioridade, o tenham aplicado de modo diferente, um julgando ineficaz a decisão posterior à que transitou em julgado, outro, diferentemente, considerando ineficaz a primeira decisão que adquiriu a qualidade de res judicata.

O cotejo do acórdão impugnado na revista rejeitada com o acórdão-fundamento torna patente que ambos interpretaram – e concretizaram - de modo homogéneo a norma processual indiscutivelmente aplicável ao caso: que havendo duas decisões contraditórias sobre uma mesma pretensão cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, como aliás, se acentuou no despacho de rejeição do recurso, sublinhado que torna infundada – e injusta – a alegação da reclamante de que o despacho reclamado não apreciou substancialmente a invocada contradição de julgados, limitando-se a afirmar a inaplicabilidade do regime de revista excecional, incorrendo em violação do dever de exame e decisão fundamentada.

E foi por aplicação do art.º 625.º do Código de Processo Civil, assim interpretado, que tanto o acórdão recorrido como o acórdão-fundamento concluíram que, no caso de colisão de decisões prevalece a que tiver passado em julgado em primeiro lugar, razão que explica que o primeiro daqueles acórdãos tenha julgado improcedente o recurso de apelação, visto que a decisão que transitou em primeiro lugar foi, não a que apreciou ou julgou as contas da administração, mas a que verificou o crédito da recorrente por valor inferior àquele que, por erro, logo indevidamente, lhe foi pago.

É, assim, a patente, quer a convergência das interpretações da mesma norma jurídico-processual aplicada contidas no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, quer a sua coincidência do ponto de vista da decisão, em sentido estrito, dado que ambos, confrontados com decisões contraditórias sobre a mesma questão, concluíram, nemine discrepanti, por aplicação de uma mesmo critério de decisão - o critério da prioridade - que a proferida em segundo lugar é ineficaz, devendo ser cumprida a que passou em julgado em primeiro lugar.

Não existe, pois, dissemelhança alguma entre os resultados da interpretação e/ou integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas. Uma tal dissemelhança só se verificaria se, face a uma situação fáctica homogénea de colisão de decisões, um dos acórdãos tivesse interpretado a apontada norma adjetiva no sentido de que a decisão prevalecente é a que primeiro transitou em julgado- sendo a proferida em segundo lugar, ineficaz - e o outro, diferente e contraditoriamente, desse àquele norma o significado – que patentemente ela não comporta - de que a decisão que deve ser cumprida é a que foi proferida em segundo lugar, sendo a primeira, transitada em julgado, ineficaz. Não é garantidamente o nosso caso: ambos os acórdãos interpretaram, com inteira isonomia, a norma adjetiva aplicável e extraíram dela um critério de decisão absolutamente homótropo que concretizaram de modo homogéneo: que no caso de colisão de decisões sobre um mesmo objeto, cumpre-se, sempre a passada em julgado em primeiro lugar, encontrando-se a proferida posteriormente ferida com o desvalor da ineficácia.

Como, com correção, concluiu o despacho reclamado, a revista não é admissível por, no caso, não existir o conflito de jurisprudência que constitui o pressuposto imprescindível dessa admissibilidade, dado que os critérios enunciados pelo acórdão recorrido não contradizem os critérios enunciados no acórdão-fundamento e seria necessário que os contradissessem – aberta e explicitamente – para que estivesse preenchido a conditio sine qua non daquela admissibilidade: a oposição de decisões.

De resto, ainda que ex-adverso o contrário se devesse entender, a conclusão da inadmissibilidade da revista sempre se deveria ter por correta, ainda que por um fundamento distinto do utilizado pela decisão reclamada para ter o recurso por inadmissível. Fundamento outro que, pela sua clareza e objetividade, torna mesmo desnecessário ouvir previamente sobre ele a recorrente, dado que, fosse qual fosse o ponto de vista que sobre ele expusesse, a procedência de tal fundamento sempre se deveria ter como corolário que não pode ser recusado (art.º 3.º, 1.ª parte, do CPC).

Este Tribunal Supremo tem decidido, consistente e repetidamente, que a admissibilidade da revista das decisões proferidas no processo de insolvência, exige, além da contradição de acórdãos, a verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade relativos ao valor da causa e à sucumbência do recorrente. Não basta, pois, para que a revista seja admissível a verificação do pressuposto específico da colisão de jurisprudência: é, ainda indispensável, que a causa tenha valor superior ao da alçada do tribunal de que se recorre e que a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade daquela alçada (art.º 629.º, n.º 1, do CPC). O valor da alçada – e, em certa medida, o da sucumbência do recorrente - representa a summa gravaminis: as decisões proferidas em processos cujo valor caiba na alçada do tribunal onde correm ou que sejam desfavoráveis para o impugnante em valor igual ou inferior a metade dessa alçada são, em regra, irrecorríveis. Esta exclusão da recorribilidade encontra a sua justificação na proporcionalidade entre aqueles valores e a suficiência e adequação da atividade dos tribunais: nesta perspetiva, abstrata e formal, parte-se do princípio de que as causas ou as sucumbências de maior valor são aquelas que justificam um maior dispêndio da atividade dos tribunais e abstrai-se da importância da decisão para as partes – em especial, para o recorrente – e da relevância dos fundamentos da sua impugnação.

No caso, a recorrente foi condenada a repor ou a reembolsar a massa insolvente da quantia de € 15 000,00, que indevidamente recebeu e com a qual, de resto, com um fundamento puramente processual, se quer locupletar. Ora, um tal valor da sucumbência da recorrente não é superior – antes é igual – a metade da alçada da Relação que se cifra em € 30 000,00 (art.º 44.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto). Ergo, ainda que se verificasse o pressuposto específico da admissibilidade da revista representado pela contradição de jurisprudência, aquele recurso sempre se deveria ter por inadmissível pela falta do pressuposto – geral – dessa admissibilidade em que o valor da sucumbência da impugnante se traduz.

Em absoluto remate: a revista é, patentemente. inadmissível. E face a esta inadmissibilidade a improcedência da reclamação é meramente consequencial.

Dada a inadmissibilidade do recurso rejeitado e a consequente sucumbência do recorrente na reclamação, a impugnante é objetivamente responsável pela satisfação das respetivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC)».

Ora, o despacho que se acaba de reproduzir, pela sua completude, dá total cobertura à presente reclamação da recorrente, já que a mesma nada de inovatório introduziu.

Todos os aspetos foram devidamente dissecados, sem qualquer afronta a direitos legítimos da recorrente, ou seja, o despacho reclamado apenas se louvou em preceitos consagrados no nosso regime legal e jurisprudencial aplicável à situação concreta.

Sumário:

- O recurso de revista de decisões proferidas no processo de insolvência apenas é admissível com fundamento na contradição ou colisão jurisprudencial e este regime específico especialíssimo afasta o regime geral da revista excecional.

- Um erro na qualificação jurídica do meio processual não determina a irrefragável rejeição do recurso de revista, tendo por única consequência a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado.

- No caso em apreço, ambos os acórdãos interpretaram, com inteira isonomia, a norma adjetiva aplicável e extraíram dela um critério de decisão absolutamente homótropo que concretizaram de modo homogéneo: que no caso de colisão de decisões sobre um mesmo objeto, cumpre-se, sempre a passada em julgado em primeiro lugar, encontrando-se a proferida posteriormente ferida com o desvalor da ineficácia.

- Este Tribunal Supremo tem decidido, consistente e repetidamente, que a admissibilidade da revista das decisões proferidas no processo de insolvência, exige, além da contradição de acórdãos, a verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade relativos ao valor da causa e à sucumbência do recorrente. Não basta, pois, para que a revista seja admissível a verificação do pressuposto específico da colisão de jurisprudência: é, ainda indispensável, que a causa tenha valor superior ao da alçada do tribunal de que se recorre e que a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade daquela alçada.

3- Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em Conferência indeferir a reclamação, mantendo-se a decisão reclamada.

Custas a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em duas ucs.

Lisboa, 7-10-2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Maria Olinda Garcia

Anabela Luna de Carvalho