I. A redação da alínea a) do nº. 3 do artigo 186º do CIRE foi alterada pela entrada em vigor da Lei nº. 9/2022, de 11 de janeiro, aplicando-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, nos termos dos seus artigos 10º e 12º.
II. A presunção júris tantum a que alude o nº. 3 daquele artigo, constitui, unicamente, uma presunção de culpa, reportada a um dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, não extensível ao nexo de causalidade.
III. Para concluir pela insolvência culposa, nos termos da alínea a) do nº. 3 do artigo 186º do CIRE, necessário se torna a demonstração do nexo de causalidade entre o facto de não se requerer a insolvência da sociedade e a criação ou agravamento dessa situação de insolvência.
Acordam na 6ª. Secção do Supremo Tribunal de Justiça
1-Relatório:
A sociedade, A Regaleira, Lda. foi declarada insolvente, por sentença proferida em 4.12.2018.
O requerente, AA requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência, concluindo pela sua qualificação como culposa e afetados pela mesma, os sócios-gerentes BB, CC e DD, bem como o sócio EE.
Alegou, para tanto, que as irregularidades na prestação de contas dos últimos 3 anos (2015, 2016 e 2017) equivale à falta de prestação de contas, prejudicando, assim, a análise económico-financeira da sociedade, violando o direito fundamental dos sócios previsto no art.º 21º nº 1 c) e no art.º 214º nº 1, ambos do Código das Sociedades Comerciais. A Regaleira é um restaurante de referência do Porto e com a recente classificação de loja protegida pelo “Porto de Tradição”, aprovado em sessão camarária.
Mais alegou que em 19-12-2017 foi celebrado um acordo de revogação do contrato de arrendamento do estabelecimento da “Regaleira”, no seguimento de uma carta enviada pelo senhorio em 03-10-2017, que o requerente desconhece o teor e quem assinou. A sociedade “A Regaleira, Lda.” apresentou-se à insolvência em 29-11-2018 e encontrou-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, no momento em que celebrou o acordo de revogação do contrato de arrendamento do estabelecimento, ou seja, 19-12-2017. A gerência da sociedade “A Regaleira” também conhecia a sua situação de insolvência, pelo menos desde 2015.
Por despacho proferido em 03.04.2019, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Os autos foram com vista ao M.P., o qual, no seu parecer em 03.10.2022, concluiu pela qualificação como culposa nos termos do disposto no art.186º, n.º 2, al. i) e n.º 3 al. a) do CIRE.
Os requeridos deduziram oposição, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.
Na 1ª. instância foi proferida sentença, com o seguinte teor no seu dispositivo:
«Pelo exposto:
a) qualifico como culposa a insolvência de “A REGALEIRA, LDA.”, declarando afectada pela mesma BB E FF;
b) fixo em 2 (dois) anos para BB E FF o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição dos requeridos para administrar patrimónios de terceiros;
c) determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por BB E FF e condeno-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
d) condeno, ainda, os requeridos BB E FF a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo senhor Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não forem pagos pelo produto da liquidação do activo, até às forças do seu património.
e) absolvo o requerido EE, do pedido contra si formulado».
Inconformados, BB e FF interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação.
O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão, com o seguinte teor a final:
«Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e declarando fortuita a insolvência de “A REGALEIRA, LDA.”».
Inconformado veio o requerente, AA interpor recurso de revista para este STJ., concluindo as suas alegações:
1.No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o Venerando Tribunal entendeu que estando a insolvente incapaz de satisfazer as suas dívidas desde 2015, à partida, torna-se irrelevante o atraso na apresentação à insolvência.
2. Considerou ainda que, não obstante aquela incapacidade desde 2015, para se considerar que os administradores agravaram a situação de insolvência impõe-se a demonstração desse agravamento para que funcione a presunção do nº 3 al. a) do artigo 186º do CIRE.
3. E concluiu decidindo que, não se provando, a insolvência há de considerar-se fortuita.
4. Ora, A M.ma Juíza a quo motivou a matéria de facto por critérios objetivos de que se serviu na avaliação e na aquisição do seu conhecimento.
5. A qualificação da insolvência como culposa deveu-se ao preenchimento de circunstâncias previstas no art.º 186º do CIRE, mais concretamente na alínea a) do nº 3 da citada norma.
6. O primeiro critério para inferir da verificação da situação de insolvência é a incapacidade do devedor de cumprir as suas obrigações vencidas (art.º 3º, nº 1, do CIRE).
7. A sociedade já estava incapaz de pagar as dívidas desde 2015.
8. Em 2015 o valor do passivo era aproximadamente 19 vezes superior ao activo.
Em 2016 o valor do passivo era aproximadamente 26 vezes superior ao activo.
Em 2017 o valor do passivo era aproximadamente 11 vezes superior ao activo.
9. Tendo os recorrentes/apelantes tomado conhecimento da situação da sociedade, pelo menos em 27-11-2017 quando foram nomeados gerentes, em vez de requererem a declaração de insolvência da sociedade como lhes era legalmente exigível, optaram por lhe dar um golpe de misericórdia, celebrando um acordo de revogação do contrato de arrendamento em 19-12-2017, ficando sem local para continuar a exercer a sua actividade, e com ela gerar receitas.
10. Em 27-11-2017, os recorrentes/apelantes sabiam, ou não podiam ignorar com culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
11. Revogaram o contrato de arrendamento do estabelecimento, e com os € 40.000,00 obtidos fizeram uma liquidação informal, procedendo a pagamentos da forma que entenderam, sem observância da graduação que resultaria do processo de insolvência, e a 03/03/2018 deram início ao despedimento coletivo dos trabalhadores, concretizado a 31/05/2018.
12. Entretanto venceram-se novas dívidas, como o IRC vencido a 04/10/2018 (e a insolvência decorre da incapacidade de satisfazer dívidas vencidas), os créditos laborais vencidos após janeiro de 2018 e os decorrentes do despedimento coletivo concluído em maio de 2018, bem como os créditos da segurança social relativos a esse mês, créditos ao fornecedor Naturgy Iberia, SA e à CMPEA, como resulta da sentença de verificação e graduação de créditos e do depósito documental.
13. Não procede o argumento de que tais dívidas sempre se venceriam, fossem ou não respeitados os prazos para cumprimento do dever de apresentação à insolvência, pois que, se o fossem, os valores de compensações, férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de Natal seriam substancialmente inferiores, assim como os valores das respetivas contribuições para a segurança social.
14. Em janeiro de 2018 os Apelantes deviam ter apresentado a sociedade A Regaleira, Lda. à insolvência e, ao fazê-lo apenas a 30/11/2018, agravaram a situação de insolvência, pelo vencimento de novos créditos, que a sociedade não tinha capacidade de honrar, pois que, do valor obtido com a cessação do contrato de arrendamento, fez uma liquidação informal sem observância da graduação decorrente de um processo de insolvência, apenas sendo obtido para a massa o valor de € 809,10.
15. É, assim, patente a demonstração da existência do nexo de causalidade entre a omissão do dever legal consagrado no artigo 18.º n.º 1 do CIRE, e o agravamento da situação de insolvência.
16.Em 27-11-2017, sendo muito grave a situação económico-financeira da sociedade, não se pode aceitar a decisão de adiar a sua apresentação à insolvência, gerando o avolumar das dívidas provocado pelo negócio ruinoso de revogar o contrato de arrendamento, contribuindo para o agravamento da situação em que se encontrava a sociedade.
17. Neste sentido foi proferido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo nº 3157/08.9TBVFR-D. P1, de 28-09-2010, Relator Fernando Samões, in www.dgsi.pt.
18. Há incumprimento do dever de apresentação à insolvência e dessa omissão resultou agravamento da situação de insolvência, daí resultando prejuízo para os credores quando a situação económico-financeira da empresa era de tal modo grave, considerando as dívidas existentes, aliada a uma difícil conjuntura económica e de mercado (que afecta todos os agentes económicos), que não se pode considerar aceitável o protelamento da apresentação à insolvência.
19. Há incumprimento do dever de apresentação à insolvência quando foram celebrados negócios que se revelaram ruinosos para a solvabilidade da empresa, nomeadamente o acordo de revogação do contrato de arrendamento celebrado em 19-12-2017, acabando por ficar sem o espaço necessário à sua actividade, e com ela gerar receitas, e ao promover o despedimento colectivo dos trabalhadores em 14-03-2018.
20. Por isso, verificou-se o condicionalismo fáctico subjacente à presunção de existência de culpa grave do administrador da sociedade, a que alude o n.º 3 do citado art.º. 186.°.
21. E a omissão da apresentação atempada à insolvência contribuiu para o agravamento da situação e criou prejuízo aos credores, existindo nexo de causalidade entre essa omissão e a criação desse agravamento, preenchendo-se, assim, a condição prevista no n.º 1 do mesmo artigo.
22. A decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto violou, assim, o disposto no art.º 186º n.º 3 alínea a) do CIRE, em conjugação com o disposto no nº 1 desse mesmo artigo.
23. Entende o ora recorrente que o art.º 186º n.º 3 alínea a) do CIRE, em conjugação com o disposto no nº 1 desse mesmo artigo, devia ter sido interpretado e aplicado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no sentido de confirmar que os Apelantes, ao apresentarem a sociedade A Regaleira, Lda. à insolvência apenas a 30/11/2018, agravaram a situação de insolvência, bem como no sentido de considerar suficientemente demonstrado esse agravamento.
24. Por outro lado, as referidas normas (que constituem o fundamento jurídico da decisão) deviam ter sido aplicadas pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, no sentido de se considerar demonstrada a existência do nexo de causalidade entre a omissão do dever legal consagrado no artigo 18.º n.º 1 do CIRE, e o agravamento da situação de insolvência.
Por seu turno, contra-alegaram os requeridos, BB e DD, concluindo:
1. Resulta do n.º 1 do artigo 14.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (“CIRE”), que “não é admitido recurso dos Acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o Acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”
2. As alegações do Recorrente não se referem, em nenhum momento, à existência de oposição de julgados entre a decisão recorrida e outra, proferida por algumas das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão de direito, nos termos previsto no artigo 14.º do CIRE;
3. O Recorrido limita-se a “sujeito às devidas adaptações” mobilizar o (sumário) do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n.º 3157/08.9TBVFR-D.P1, de 28-09-2010;
4. Não cumprindo ónus que sobre ele pendia de, por um lado, juntar um Acórdão que estivesse em contradição com o Acórdão Recorrido e, por outro, demonstrar a efectiva oposição de julgados – nomeadamente, demonstrando que à mesma situação fáctica e sob o domínio da mesma legislação, os dois tribunais superiores deram soluções distintas. Ou, melhor dizendo, opostas.
5. Não obstante, sempre se diga que a questão da necessidade de existência de nexo causal entre atraso na apresentação à insolvência e o prejuízo resultante desse mesmo atraso é incontrovertida entre o Acórdão recorrido e o Acórdão a que o Recorrente faz referência.
6. A diferença na decisão resulta da valoração da existência desse prejuízo de um ponto de vista fáctico e consubstanciado em negócios concretos, isto é, na análise do eventual prejuízo resultante do atraso, não no atraso per si.
7. Falhando a exigida identidade fáctica entre as duas decisões.
8. Do que é possível retirar do sumário do Acórdão mobilizado pelo Recorrente, em causa está a existência de um nexo de causalidade entre o atraso na apresentação à insolvência e prejuízo circunstanciado para os credores, consubstanciado, ainda, na celebração de negócios indiscutivelmente ruinosos, com o prejuízo directamente associado e mensurável, o que não sucedeu na situação apreciada pelo Acórdão recorrido.
9. Veja-se a propósito da necessidade de similitude fática, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça datados de 25-03-2025 e 12-11-2024 disponíveis em www.dgsi.pt.
10. Resulta, assim, evidente a inexistência de oposição do Acórdão recorrido com qualquer outro Acórdão proferido pela Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo que o Acórdão indicado pelo Recorrente não tem qualquer similitude fática com o Acórdão recorrido, devendo, nesse sentido, não ser admitido o presente recurso por incumprimento do previsto no artigo 14.º do CIRE.
Caso assim não se entenda, no que não se concede,
11. O Acórdão Recorrido decidiu, em conclusão, “que perante a fluidez da matéria de facto apurada, nem sequer se pode dizer que os créditos aumentaram. Assim, cremos que é de qualificar a insolvência como fortuita.”
12. No entanto, alega aqui o Recorrente que a situação de insolvência já se verificava desde 2015 e que, em 2017, os Recorridos optaram por lhe dar um “golpe de misericórdia, celebrando um acordo de revogação do contrato de arrendamento em 19-12-2017, ficando sem local para continuar a exercer a sua actividade e com ela gerar receias”.
13. Refere ainda que, deste alegado incumprimento, resultou o vencimento de dívidas e que, se tivesse sido respeitado o prazo que o Recorrente entende como devido para a apresentação à insolvência, não se tinham vencido.
14. Conclui que com o alegado atraso na apresentação à insolvência avolumaram-se dívidas provocadas pelo negócio ruinoso de revogar o contrato de arrendamento – que inexplicavelmente continua a ignorar não ser da responsabilidade dos Recorridos, nomeadamente os créditos laborais, existindo, no seu entender, um nexo de causalidade entre o atraso e o agravamento da situação de insolvência.
15. Refere o Recorrente que entre estas dívidas se destacam os valores de IRC e de Segurança Social.
16. Sucede que não assiste qualquer razão ao Recorrido, pelo que andou bem o Tribunal da Relação do Porto ao corrigir a decisão da primeira instância e a considerar a insolvência da sociedade “A Regaleira Lda.” como fortuita.
17. Ora, ao contrário do alegado pelo Recorrente, os aqui Recorridos, assumiram a gerência da insolvente apenas em 27-11-2017;
18. Em 02.11.2017, quando os aqui Recorridos ainda não eram gerentes, realizou-se uma assembleia geral da sociedade que deliberou, por maioria, a celebração de um acordo revogatório dos contratos de arrendamento do imóvel onde a insolvente desenvolvia a sua actividade;
19. Com a assinatura da revogação do contrato de arrendamento, a 19-12-2017, concretizada com a desocupação do imóvel e encerramento do estabelecimento em 31-05-2018, a manutenção da actividade da insolvente revelou-se impossível.
20. Tendo os Recorrentes, neste sentido, e na tentativa de salvaguardar, na maior medida possível, os interesses dos credores, iniciado um processo de
despedimento colectivo ao abrigo do disposto do artigo 359.º do Código do Trabalho em 03-03-2018 e que ficou concluído, atentos os prazos legais, apenas a 31-05-2018.
21. O Acórdão Recorrido decidiu, relativamente a este tema, que “No que toca ao caso dos trabalhadores, o despedimento colectivo envolve encargos relacionados com as indemnizações, salários devidos…..mas esses encargos existem, de igual forma, quando o despedimento é efectuado no âmbito da insolvência.”
Pode em alguns casos, o despedimento colectivo gerar encargos mais elevados devido às indemnizações e procedimentos específicos e do outro lado, a insolvência pode limitar os recursos disponíveis para pagar esses encargos, podendo resultar em encargos menores, mas com o risco de não pagamento integral dos direitos dos trabalhadores, sendo que estes têm prioridade no pagamento dos créditos.
O que se pretende salvaguardar com a apresentação à insolvência é impedir o aumento dos créditos, com o objectivo de, não tendo a sociedade capacidade para pagar as suas dívidas (estando por isso insolvente) os credores vejam cada vez mais longe a possibilidade de ver satisfeitos os seus créditos. O despedimento colectivo, pese embora o tempo de duração em cumprimento das regras legais, permite que os trabalhadores vejam satisfeitos, de forma mais sustentada, os seus créditos.”
22. Andou bem o Acórdão Recorrido. De facto, o valor destes créditos resulta, maioritariamente, das indemnizações devidas pelo despedimento colectivo que, em face da revogação do contrato de arrendamento, configurou uma decisão acertada - e inevitável - dos Recorridos, quer no interesse da insolvente, quer, principalmente, no interesse do trabalhadores-credores.
23. Este procedimento estancou o valor das indemnizações, bem assim como dos valores devidos a título de subsídio de férias, Natal, férias não gozadas e evitou que a resolução dos contratos de trabalho ficasse nas mãos do Administrador de Insolvência com os inerentes prejuízos resultantes do decurso do tempo.
24. Quanto ao alegado prejuízo resultando do vencimento do IRC, importa voltar a esclarecer, tal como já esclarecido no recurso apresentado pelos aqui Recorridos para o Tribunal da Relação no Porto e, no mesmo sentido, pelo Acórdão deste Tribunal.
25. O valor que consta da Lista de Créditos relativo a IRC, e cujo prazo limite de pagamento terminou em 04-10-2018, diz respeito ao exercício do ano de 2017, nos termos do artigo 104.º do Código do IRC.
26. Significa isto que este crédito – constituído durante o ano de 2017 e vencido em 2018 – sempre seria devido, quer a insolvência fosse declarada em Janeiro de 2018, quer, como aconteceu, em 30-11-2018.
27. A este propósito, o Acórdão Recorrido decidiu – como não poderia deixar de ser que: “No que respeita ao pagamento de IRC, aquele que se venceu em Maio de 2018 refere-se ao período de tributação correspondente ao ano de 2017, pois, em Portugal, o IRC normalmente é declarado e pago no ano seguinte ao do exercício fiscal. Não vemos como os administradores tenham agravado um crédito que se refere a um período de tributação no qual não eram gerentes.”
28. Por último, alega ainda o Recorrente que houve prejuízo resultante de uma dívida à Segurança Social.
29. Ora, cumpre esclarecer: no mês de Maio de 2018, e como resulta da documentação relativa ao processo de despedimento colectivo, venceu-se o pagamento das indemnizações devidas aos trabalhadores, correspondendo o valor reclamado pela Segurança Social às contribuições e cotizações relativas a esses valores devidos aos trabalhadores.
30. Também este valor, relativo a contribuições e cotizações da Segurança Social, sempre seria devido, quer a apresentação à insolvência tivesse tido lugar em Janeiro de 2018 ou em Novembro do mesmo ano, porquanto, os valores sobre os quais incidiu eram de constituição inevitável, quer tivessem sido constituídos, como foram, no âmbito de um despedimento prévio, quer este despedimento tivesse ocorrido já no âmbito do processo de insolvência.
31. A este propósito, o Acórdão recorrido, considerou, e bem mais uma vez, que “relativamente ao pagamento à Segurança Social, as mesmas são igualmente devidas perante um processo de insolvência, enquanto os despedimentos não ocorrerem.”
32. O Recorrente alega sem fundamentar, omitindo e ignorando factos, sem estabelecer qualquer nexo de causalidade – que não existe.
33. Com efeito, importa, mais uma vez, deixar claro que a revogação do contrato de arrendamento não foi uma decisão tomada pelos Recorridos; que o despedimento colectivo, sendo inevitável, foi o mecanismo que melhor permitiu salvaguardar aqueles credores e o passivo da insolvente; que a dívida a título de IRC se refere ao ano anterior à declaração de insolvência; e, por último, que a dívida à Segurança Social existiria fosse qual fosse a data de apresentação à insolvência.
34. Quanto à essencialidade de existência de um nexo de causalidade efectivo e culposo veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 11-07-2012 ou, do mesmo Tribunal, datado de 12-07-2017 ou ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12-07-2025, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
35. Resulta evidente, de tudo o que foi exposto que, do eventual atraso na apresentação à insolvência nenhum prejuízo resultou fosse para quem fosse, pelo que, tendo andado bem o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, deve manter-se a decisão de qualificação da insolvência da sociedade “A Regaleira Lda.”, como fortuita.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.
Da admissibilidade do recurso:
Nas contra-alegações do recurso interposto foi questionada a sua admissibilidade, atento o disposto no art. 14º do CIRE.
Ora, nos presentes autos estamos perante o incidente de qualificação de insolvência.
De acordo com o AUJ n.º 13/2023 (publicado no Diário da República n.º 225/2023, Série I de 2023-11-21), o STJ, uniformizou a jurisprudência no sentido de que, a regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência.
O incidente de qualificação da insolvência é processado por apenso, como expressamente prevê o n.º 1 do art. 188.º do CIRE, pelo que, seguindo a interpretação do referido AUJ, no caso concreto dos autos, não é aplicável o regime recursivo previsto no n.º 1 do art. 14.º do CIRE, mas sim as regras gerais do recurso de revista do art. 671.º e segs. do CPC.
É, assim, aplicável ao caso o regime geral previsto no 671.º do CPC, tendo o acórdão recorrido sido proferido sobre decisão da 1.ª instância e conhecido do mérito da causa, não se verificando qualquer situação de dupla conforme, atenta a revogação pela Relação da sentença da 1ª. instância.
Os autos também cumprem o valor da alçada.
O recurso é, assim, admissível.
A questão a dirimir consiste em aquilatar:
- Se a insolvência será de qualificar como culposa, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº. 3 do art. 186º do CIRE.
A matéria de facto delineada e consolidada nas instâncias foi a seguinte:
1 - Em 29.11.2018 veio a sociedade “A REGALEIRA, LDA.” requerer a sua declaração de insolvência, cfr. PI junta ao processo principal.
2 - A insolvente, A Regaleira, Lda. foi constituída por contrato de sociedade registado na Conservatória do Registo Comercial pela Ap.........06, com sede naRua 1, Santo Ildefonso, Porto, com o capital social de 80.000$00, tendo por objeto social a exploração de restaurante e seus derivados, sendo designados gerentes CC, GG, HH e II, cfr. certidão da CRC junta aos autos.
3 - Pela AP. .........28 o capital social foi aumentado para 8.000.000$00, passando a gerência a ser assegurada por CC, GG, JJ e AA, cfr certidão da CRC.
4 - Por renúncia de 26/03/2012, registada pela Ap. .........04 AA cessou as funções de gerente, e pela Ap. .........27 foi registada a nomeação como gerentes de BB e FF, cfr. certidão da CRC.
5 - O gerente JJ faleceu no ano de 2007, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros, a esposa KK e os filhos daquele do 1º casamento, EE, LL, MM e BB, também sucessores da quota que o falecido detinha na sociedade.
6 - As últimas contas depositas na Conservatória do Registo Comercial respeitam ao ano de 2016 (01-01-2016 a 31-12-2016), tendo o depósito sido efetuado a 2017-06-23 pelo Dep. 2363, cfr. certidão da CRC.
7 - Em 04.12.2018 foi proferida sentença a declarar a insolvência da sociedade “a REGALEIRA, LDA.”, nomeado A.I. o Sr. Dr. NN e designada data para realização de assembleia de credores, cfr. processo principal.
8 - Em 21.01.2019 foi junto pelo A.I. o relatório do artº 155º do CIRE o qual conclui pela liquidação do activo, cfr. processo principal.
9 - Na Assembleia de Credores que teve lugar a 24/01/2019, foi proposto pela devedora a apresentação de plano de insolvência, pretensão que foi votada favoravelmente, mas tal plano não se concretizou, tendo sido ordenado por despacho proferido a 13/03/2019 o prosseguimento dos autos para liquidação, cfr. processo principal.
10 - Foi apreendida para a massa insolvente uma viatura automóvel e um saldo no valor de €809,10, cfr. apenso C.
11 - Em 25.06.2021 foi proferido despacho a ordenar a substituição do A.I.
12 - No âmbito da Liquidação apenas foi obtido para a massa insolvente o valor de € 809,10, pelo que o processo foi encerrado ao abrigo do art.º 232º por decisão de 07/06/2022, no processo principal.
13 - Foram reclamados e reconhecidos créditos no valor global de €150.518,11 entre os quais €3.865,29, do qual €3.659,91 respeita a capital e juros de mora de IRC vencido a 04/10/2018, €8.862,39 de cotizações à Segurança Social referentes ao mês de maio de 2018 e €90.967,53 de créditos laborais, nos quais se incluem não apenas as indemnizações do cessação do contrato de trabalho mas também férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de tudo como melhor resulta do Apenso G e do apenso de reclamação de créditos (apenso B).
14 - Em 03.10.2017 os proprietários das instalações onde a insolvente exercia a sua actividade enviou-lhe uma carta comunicando a sua intenção de denunciar o contrato de arrendamento em vigor, solicitando a desocupação do locado em 6 meses contra pagamento de indemnização, cfr. doc. 9 junto ao requerimento de 15.02.2024.
15 - Em 02.11.2017 foi realizada assembleia geral da sociedade para deliberar sobre a proposta de acordo revogatório dos contratos de arrendamento das instalações do restaurante, A Regaleira, onde estiveram presentes, o requerente, GG, CC, KK, EE, LL, MM e BB, tendo votado contra KK e o requerente, os demais (representando a maioria) votaram favoravelmente, pelo que, a proposta foi aprovada por maioria dos votos, cfr. doc. junto ao requerimento de 09.02.2023.
16 - A deliberação não foi impugnada.
17 - Por acordo revogatório do contrato de arrendamento celebrado a 19/12/2017 entre a insolvente e a senhoria do espaço onde aquela laborava, foi acordado revogar os dois contratos de arrendamento, ficando a senhoria obrigada a pagar àquela a quantia de €40.000,00, cfr. doc. junto ao requerimento da insolvente em 19.03.2020.
18 - A A.I. solicitou informação ao mandatário da insolvente, nomeadamente extratos bancários da sociedade desse período (dezembro de 2017 e meses seguintes), assim como a documentação contabilística que comprovasse a utilização desse valor, ao que o mandatário da insolvente informou que “o referido valor foi, em exclusivo, utilizado no âmbito do giro comercial da Sociedade, nomeadamente no cumprimento de obrigações regulares, bem assim como na liquidação de créditos laborais.”, tendo fornecido o IBAN da conta bancária da insolvente (PT50 .... .... .... .... .... 0 – conta no Banco BPI) e o Balancete de Dezembro de 2017, em que resulta a entrada do valor da indemnização (€ 40.000,00) nas contas da Sociedade (conta 78884), cfr. docs. juntos ao requerimento de 06.12.2021 do apenso C.
19 - Por requerimento da A.I. de 18.02.2022 foram juntos os extratos bancários entre 05.12.2017 e 28.02.2018, fornecidos pela insolvente de onde consta que o valor do acordo de revogação, de €40.000,00 foi depositado na conta da insolvente em 21.12.2017, cfr. apenso C.
20 - Em 21.07.2021 o requerente comunicou à A.I. que o restaurante A Regaleira reabriu ao publico em 01.07.2021, cfr. doc. junto requerimento do requerente de 22.07.2022.
21 - A 14/03/2018 a insolvente promoveu o despedimento coletivo dos seus trabalhadores, cfr. docs. juntos ao requerimento de 09.02.2023.
22 - O estabelecimento encerrou em 31.05.2018.
23 - No âmbito do Processo nº 477/12.1TYVNG-J3, deste juízo de comércio (Inquérito Judicial à Sociedade instaurado pelo ora requerente em 19.04.2012), eram sócios, CC, GG, JJ, foi realizada perícia à gestão e contas do exercício da insolvente, da qual resultou que a degradação dos capitais próprios da ora insolvente, demonstrados por:
Ano Ativo Passivo
2015 44.335,12 830.879,92
2016 33.399,30 847.741,99
2017 79.167,10 851.280,38
24 - Deste relatório elaborado pelo Sr. Perito ali nomeado, consta que a contabilidade se encontrava organizada e actualizada, cfr. doc. junto ao requerimento de 09.02.2023.
25 - Tal processo foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide.
26 - Em 05.02.2019, veio AA, casado, contribuinte nº .......20, residente na Rua 2 Porto, sócio do restaurante “A Regaleira, Lda.”, requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência.
27 - Em cartas enviadas à A.I. pelo requerente foi dado conhecimento que o registo da marca “Restaurante A Regaleira” foi requerido em 18.09.2017 por BB e ter o restaurante reaberto ao publico em 01.07.2017, tendo o espaço mudado, mas a carta, as francezinhas, funcionários e mobiliário, não. Cfr. doc. junto ao requerimento de 22.07.2022.
Factos dados como não provados:
- O requerido EE tivesse praticado quaisquer actos de gerência de facto ou de direito, tomado decisões, contratado fornecedores, feito pagamentos.
- Tenha havido ocultação ou dissipação de património por parte dos requeridos.
- Tenha havido falta de colaboração reiterada por parte dos requeridos ao ex-A.I. nem à A.I. em funções.
Vejamos:
Discorda o recorrente do acórdão proferido, dado entender que o Tribunal da Relação violou o disposto na al. a) do nº. 3 do art. 186º do CIRE, devendo a insolvência ser qualificada como culposa, tal como havia sido decidido em 1ª. instância.
Para tanto, alega o recorrente que a omissão da apresentação atempada à insolvência contribuiu para o agravamento da situação e criou prejuízo aos credores, existindo nexo de causalidade entre essa omissão e a criação desse agravamento.
Ora, está em apreço analisar, se a insolvência dos autos será de considerar culposa ou fortuita.
Nos termos do disposto no nº. 1 do art. 186º do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
O nº. 2 do preceito enumera as situações em que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham usado de alguma das elencadas condutas.
Por seu turno, dispõe o número 3 do preceito, que se presume unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência.
(…)
A redação deste preceito foi alterada pela entrada em vigor da lei nº. 9/2022, de 11 de janeiro, aplicando-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, nos termos dos seus artigos 10º e 12º.
Com efeito, a presunção júris tantum a que alude o nº. 3 do artigo, constitui, unicamente, uma presunção de culpa, reportada a um dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, não extensível ao nexo de causalidade.
Antes da alteração legislativa, já era orientação maioritária neste STJ., que a alínea em apreço conduziria a insolvência culposa, se se encontrasse demonstrado o nexo de causalidade entre o facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência, ou seja, a presunção de culpa não era extensível ao nexo de causalidade.
Entre os acórdãos, nomeadamente, Acs. do STJ. de 15-2-2023;17-1-2023; 28-9-2022; 7-6-2022; 8-2-2022, 29-10-2019; 5-4-2022; 7-6-2022, todos consultáveis in www.dgsi.pt.
Também na doutrina, Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, volume I, 4ª. ed., Almedina, pág. 570-572, onde se alude «No art. 186º, 3, encontramos descritas situações que fazem presumir, de forma ilidível, a existência de culpa grave, se os administradores de direito ou de facto de um devedor que não seja pessoa singular não cumprirem o que ali vem previsto.
(…)
Antes da redação dada pela lei 9/2022, o art. 186º, 3, permitia perguntar se a presunção era apenas relativa à culpa grave ou se também era presumida a insolvência culposa. Perante o disposto no art. 186º, 1, considerávamos que as presunções previstas no nº. 3 seguinte apenas diziam respeito à atuação do devedor. A lei 9/2022 veio confirmar essa leitura. Será, ainda, necessário provar que tal atuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência».
De igual modo, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8ª. ed., Almedina, pág. 161-162, «Por força do art. 2º da lei nº. 9/2022, de 11 de janeiro, o proémio do nº. 3 do art. 186º foi alterado, estando agora expressamente previsto que nas alíneas a) e b) do art. 186º, nº. 3, que se presume unicamente a existência de culpa grave. Assim, fica definitivamente sanado o dissenso que dividia a doutrina e a jurisprudência nacionais sobre o âmbito objetivo das presunções previstas no nº. 3 do art. 186º. Para a maioria da jurisprudência e doutrina nacionais (onde se incluem, designadamente, Carvalho Fernandes e João Labareda, Raposo Subtil, Soveral Martins, Menezes Leitão), entendia-se que o que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, nº. 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta».
Em sentido discordante se pronunciava Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, pág. 451, defendendo que se tratava de presunções de insolvência culposa, sob pena de esvaziamento da utilidade destas presunções.
Ora, o nº. 3 do art. 186º do CIRE prevê um elenco de presunções iuris tantum, que podem ser afastadas, só sendo possível concluir-se pela insolvência culposa nos termos da sua alínea a), se demonstrado o nexo de causalidade entre o dever de requerer a declaração de insolvência e a criação ou agravamento desta situação.
O circunstancialismo de a presunção de culpa não ser ilidida, tal não implica, por si só, que se esteja perante uma situação de insolvência culposa, pois, terá de se demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre a omissão subjetivamente imputável e o agravamento da solvabilidade ou da impossibilidade de satisfazer os credores.
E colocados estes parâmetros, analisemos o que se disse no acórdão proferido:
«Parece-nos ter sido seguido, na sentença, o seguinte silogismo:
• o artigo 3.º, nº1, do CIRE estatui: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
• para qualificar a insolvência como culposa, é necessária a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essa conduta dos administradores da insolvente
• no caso sub judice, demonstrou-se que, muito embora a sociedade se tenha apresentado à insolvência em 30.11.2018, pelo que resulta dos autos, deveria tê-lo feito em momento anterior.
• está provado que desde 2015 que a sociedade apresentava um passivo superior ao activo, cfr. ponto 23 dos factos provados.
• em 19.12.2017 acordou na revogação do contrato de arrendamento do espaço onde desenvolvia actividade e promoveu em 14.03.2018 o despedimento coletivo dos trabalhadores, ficando sem actividade que pudesse fazer face às dividas vencidas e às que posteriormente se venceriam, cfr. pontos 17 e 21.
• estava assim a insolvente impossibilitada de pagar as dividas vencidas, pelo menos, desde 19.12.2017, quando deixou de ter disponível o espaço para laborar e obter meios para saldar as suas dividas, ficando sem trabalhadores ao seu serviço desde 14.03.2018, pelo que, deveria ter-se apresentado à insolvência em Janeiro de 2018 e não o fez, só o fazendo em 30.11.2018.
• após 14.03.2018 a situação de insolvência agravou-se com o vencimento de créditos dos trabalhadores, tributários e de cotizações.
Vejamos.
BB e FF foram nomeados gerentes em 27.11.2017. Logo, estando provado que “desde 2015 que a sociedade apresentava um passivo superior ao activo, cfr. ponto 23 dos factos provados” e sabendo nós que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”, facilmente se conclui que não foram estes administradores que, com a sua conduta, criaram a situação de insolvência.
Assim, resta verificar se a terão agravado.
É referido na sentença que “em 19.12.2017 acordou na revogação do contrato de arrendamento do espaço onde desenvolvia actividade e promoveu em 14.03.2018 o despedimento coletivo dos trabalhadores, ficando sem actividade que pudesse fazer face às dividas vencidas e às que posteriormente se venceriam, cfr. pontos 17 e 21”.
Quanto a este aspecto, devemos lembrar que houve uma assembleia geral da sociedade em 02.11.2017 (quando os ora gerentes ainda não o eram) na qual foi deliberado, por maioria, o acordo revogatório dos contratos de arrendamento.
Os actuais administradores apenas formalizaram o acordo revogatório de acordo com a deliberação da Assembleia.
Diz-se na sentença que “Estava assim a insolvente impossibilitada de pagar as dívidas vencidas, pelo menos, desde 19.12.2017, quando deixou de ter disponível o espaço para laborar e obter meios para saldar as suas dividas, ficando sem trabalhadores ao seu serviço desde 14.03.2018, pelo que, deveria ter-se apresentado à insolvência em Janeiro de 2018 e não o fez, só o fazendo em 30.11.2018.”
A sociedade já estava incapaz de pagar as dívidas desde 2015.
Mais se refere que, ao ter “entregue” o espaço onde laborava e tendo procedido ao despedimento colectivo dos trabalhadores, aumentou os créditos, o que não teria acontecido se tivesse requerido, em Janeiro, a insolvência da sociedade.
No que toca ao caso dos trabalhadores, o despedimento colectivo envolve encargos relacionados com as indemnizações, salários devidos…..mas esses encargos existem, de igual forma, quando o despedimento é efectuado no âmbito da insolvência.
Pode em alguns casos, o despedimento colectivo gerar encargos mais elevados devido às indemnizações e procedimentos específicos e do outro lado, a insolvência pode limitar os recursos disponíveis para pagar esses encargos, podendo resultar em encargos menores, mas com o risco de não pagamento integral dos direitos dos trabalhadores, sendo que estes têm prioridade no pagamento dos créditos.
O que se pretende salvaguardar com a apresentação à insolvência é impedir o aumento dos créditos, com o objectivo de, não tendo a sociedade capacidade para pagar as suas dívidas (estando por isso insolvente) os credores vejam cada vez mais longe a possibilidade de ver satisfeitos os seus créditos.
O despedimento colectivo, pese embora o tempo de duração em cumprimento das regras legais, permite que os trabalhadores vejam satisfeitos, de forma mais sustentada, os seus créditos.
Relativamente ao pagamento à Segurança Social, as mesmas são igualmente devidas perante um processo de insolvência, enquanto os despedimentos não ocorrerem.
No que respeita ao pagamento de IRC, aquele que se venceu em Maio de 2018 refere-se ao período de tributação correspondente ao ano de 2017, pois, em Portugal, o IRC normalmente é declarado e pago no ano seguinte ao do exercício fiscal.
Não vemos como os administradores tenham agravado um crédito que se refere a um período de tributação no qual não eram gerentes.
Concluindo, entendemos que perante a fluidez da matéria de facto apurada, nem sequer se pode dizer que os créditos aumentaram. Assim, cremos que é de qualificar a insolvência como fortuita».
Perante o explanado no acórdão recorrido, não vemos motivo para o censurar.
Como se aludiu no Ac. deste STJ. de 6-10-2011, in www.dgsi.pi. «Não se dispensando neste nº. 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais atuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento».
Efetivamente, na situação vertente, não resultou da materialidade fáctica assente, a demonstração da existência de nexo de causalidade entre a conduta do dever de requerer a declaração de insolvência e a criação ou agravação dessa situação de insolvência, como determina o nº. 1 do artigo 186º do CIRE, decaindo o preenchimento da al. a) do nº. 3 do mesmo preceito.
O hipotético atraso na apresentação à insolvência, não criou qualquer situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas ou agravamento desta situação.
A presunção de culpa estabelecida na alínea a) do nº. 3 do art. 186º do CIRE, tem que ser conjugada com o disposto no nº. 1 do mesmo artigo, do qual resulta que a situação de insolvência ou o agravamento dessa situação surge em consequência da atuação do devedor, o que aqui se não demonstrou.
Destarte, improcede o recurso.
Sumário:
-A redação da alínea a) do nº. 3 do artigo 186º do CIRE foi alterada pela entrada em vigor da Lei nº. 9/2022, de 11 de janeiro, aplicando-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, nos termos dos seus artigos 10º e 12º.
-A presunção júris tantum a que alude o nº. 3 daquele artigo, constitui, unicamente, uma presunção de culpa, reportada a um dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, não extensível ao nexo de causalidade.
- Para concluir pela insolvência culposa, nos termos da alínea a) do nº. 3 do artigo 186º do CIRE, necessário se torna a demonstração do nexo de causalidade entre o facto de não se requerer a insolvência da sociedade e a criação ou agravamento dessa situação de insolvência.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista.
Custas a cargo do recorrente.
Lisboa, 7-10-2025
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Maria Olinda Garcia
Anabela Luna de Carvalho