ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
UNIÃO DE FACTO
FILIAÇÃO
SUSPEIÇÃO
DEFERIMENTO
Sumário


I. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
II. A finalidade do instituto da escusa – como, de resto, da recusa – será a de impedir que o juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
III. Numa perspectiva objectiva, onde relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – há que ponderar, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, nas circunstâncias que segundo o senso e a experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade.
IV. O facto de um dos Juízes sorteados para conhecer de determinado recurso, manter com a Magistrada do MP que na 1.ª instância subscreveu a resposta, uma relação de união de facto, desde há mais de 20 anos do que resultou uma filha em comum, por si só, pode ser ida como potencialmente influenciadora do sentido da decisão sobre o recurso.

Texto Integral


Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

AA, Juiz Desembargador da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 43.º/4 CPPenal, veio formular pedido de escusa a fim de não intervir, como 2.º adjunto, no julgamento do recurso interposto no processo em epígrafe identificado, alegando, para tanto, em resumo que,

- o recurso foi distribuído no dia 18.09.2025 sendo o signatário sorteado para intervir como 2.º Adjunto;

- o processo é proveniente do Juízo Central Criminal de Lisboa, J24;

- no processo, e no exercício das suas funções, teve intervenção em sede resposta ao recurso (em turno), a Digna Procuradora da República BB, à qual coube a representação do Ministério Público;

- o signatário e a identificada Procuradora da República vivem em situação de união de facto há mais de vinte anos e têm uma filha em comum;

- entende o signatário que tal situação constitui motivo sério e grave que justifica a potencial desconfiança quanto à sua imparcialidade.

Instruiu o pedido com cópia da resposta ao recurso.

Não se afigura necessário ordenar outras diligências de prova.

Colhidos os vistos, remeteram-se os autos à conferência.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação.

1. Factos

Os factos relevantes são os que constam do requerimento e se deixaram sintetizados em I, que antecede, e aqui se dão por reproduzidos, a fim de evitar desnecessárias repetições.

2. O direito

Nos termos do artigo 44.º/1 CPPenal o pedido de escusa é admissível até ao início da conferência nos recursos.

Assim, o pedido de escusa em apreço é tempestivo, uma vez que foi deduzido antes daquele momento, no caso, logo após o sorteio do recurso.

Dispõe o artigo 45.º/1 alínea a) CPPenal que “o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior”.

Assim, estando em causa o pedido de escusa de um Sr. Juiz Desembargador, foi correctamente apresentado perante o Supremo Tribunal de Justiça.

Nada obsta, pois, ao conhecimento do mérito do incidente.

Compete aos tribunais, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo, cfr. artigo 202.º/1 da Constituição da República Portuguesa.

Dispondo o artigo 203.º os Tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.

O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, cfr. artigo 216.º, qualidades, igualmente, asseguradas pela lei ordinária, cfr. artigo 4.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

O artigo 20.º/1 e 4 da Constituição da República Portuguesa garante a todos os cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como, a decisão das causas em prazo razoável e mediante processo equitativo.

O que tem como pressuposto a imparcialidade de quem julga pois que, sem ela, é impossível a realização do direito no caso concreto.

Tendo por fim assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o CPPenal prevê e regula, no que ao caso releva, o regime das escusas do juiz.

E, assim, dispõe o artigo 43.º, sob a epígrafe de “recusas e escusas”, que,

“1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.

A finalidade do instituto da escusa – como, de resto, da recusa – será a de impedir que o juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

A diferença, entre ambas as figuras, reside na legitimidade para a sua dedução.

Enquanto que a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz, cfr. n.º 4 do artigo 43.º, já a recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, cfr. n.º 3 da mesma norma.

A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, deve ser analisada numa dupla perspectiva, subjectiva e objectiva.

Subjectiva, que respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão.

O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa, cfr. Professor Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, I, 5ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 151.

Esta imparcialidade presume-se. Só a existência de provas da parcialidade determina a elisão de tal presunção.

E, objectiva, onde relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade.

A dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta, assim, de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo.

O motivo sério e grave a que se refere o artigo 43.º/1 CPPenal, deve resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem objectivamente adequados a fazer nascer e suportar a dúvida sobre a imparcialidade do juiz.

O deferimento de qualquer pedido de escusa constitui, sempre, uma derrogação do princípio do juiz natural e, por isso, a concordância prática entre o princípio do juiz natural e a suspeita fundamentadora da escusa exige uma especial gravidade desta, suportada em factos objectivos, por forma a que o afastamento do juiz não resulte de motivos menores.

Com efeito, o princípio do juiz natural, constitucionalmente previsto no artigo 32.º/9 da Constituição da República Portuguesa, constitui uma das garantias de defesa em processo penal visando, ao proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso concreto, assegurar a imparcialidade e isenção da decisão a proferir.

E, assim, na avaliação da seriedade e gravidade do motivo que suporta a suspeição, deve ser adoptado um critério exigente, que partindo do caso concreto, deve ser conjugado com as regras da experiência e do senso comum, conforme o juízo do bonus pater familiae.

3. Baixando ao caso concreto.

Na citada perspectiva subjectiva de imparcialidade, resulta, no caso, evidente e manifesto, que que não está em causa qualquer concreto comportamento do aqui requerente, Exmo. Sr. Juiz Desembargador, susceptível de levantar suspeita, por mínima que seja, sobre a sua imparcialidade.

Não se questiona, pois, a imparcialidade subjetiva do requerente, que sempre se presume até prova em contrário e de que não há quaisquer razões para duvidar.

O que importa é avaliar o pedido formulado na perspetiva da imparcialidade objectiva, a partir da valoração das circunstâncias segundo o senso e a experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade.

No caso sub judice, o pedido deduzido funda-se na existência de uma relação pessoal entre o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, requerente e a magistrada do MP que, no turno de férias judiciais, apresentou o requerimento de resposta ao recurso, que aquele aqui foi chamado, por sorteio, a decidir, como 2.º Adjunto, inserido num Colectivo formado por 3 Juízes Desembargadores.

A relação pessoal aqui invocada traduz-se na circunstância de o requerente e a Magistrada do MP, há mais de 20 anos viverem em união de facto, tendo uma filha em comum.

A lei faz depender a deferimento da escusa da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

Não estando definidos os conceitos de seriedade e gravidade, devem ser densificados, caso a caso, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum, tendo em conta a perspectiva do homem médio, do cidadão comum representativo do sentir da comunidade.

A situação mais ostensiva como susceptível de gerar suspeita relevante para efeitos de pedido de escusa decorre de circunstâncias ou contingências de relação pessoal (amizade ou inimizade) com algum dos intervenientes processuais.

Que, consoante a natureza e intensidade podem justificar a escusa com fundamento na afetação da imparcialidade objetiva.

A par do casamento, ainda que dissolvido, também a actual ou pretérita situação de vida em condições análogas às dos cônjuges, está prevista, ela própria, em sede de impedimento, no que se refere às relações do Juiz com o arguido, ofendido, ou pessoas com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil, cfr. artigo 39.º/1 CPPenal.

É certo, contudo, que estas mesmas relações, conjugal ou similar, entre quem deve participar do julgamento do recurso e o magistrado do Ministério Público que a ele respondeu, não está expressamente prevista na referida norma que prevê os impedimentos.

Mas cremos bem não restarem grandes dúvidas de que, na perspectiva do homem médio, esta real, actual, precisa e concreta circunstância, por si só, pode ser ida como potencialmente influenciadora do sentido da decisão sobre o recurso.

Daqui se pode/deve afirmar a existência de motivo sério e grave que possa gerar quaisquer dúvidas sobre a imparcialidade do julgador.

A demandar, a aceitação do seu pedido de escusa, como meio de reforço da confiança que os tribunais devem merecer dos cidadãos.

Se, como vimos já, o afastamento do princípio do juiz natural, de consagração constitucional, só deve ocorrer perante motivos que, face à sua seriedade e gravidade, sejam objetivamente aptos a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, então, manifestamente, que este será um exemplo paradigmático.

E, assim, entendemos que a situação delineada nos autos terá que ser tida, por si só, objetivamente, como susceptível de traduzir a existência de motivo sério e grave de modo a fazer nascer o receio ou apreensão, razoavelmente fundada pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do Sr. Juiz Desembargador.

Com efeito participar no conhecimento de um recurso em que a magistrada do MP que a ele respondeu é a pessoa com que vive em união de facto desde há mãos de 20 anos e que é a mãe da sua filha, permite afirmar estarmos, de facto, perante uma concreta e real situação que de forma séria permite considerar que a intervenção no julgamento do recurso – ainda que como 2.º adjunto - possa correr o risco de ser considerada suspeita.

4. Em conclusão.

A circunstância invocada pelo Sr. Juiz Desembargador, requerente, é de molde a traduzir a existência de risco sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Por isso, se justifica, se impõe, mesmo, a necessidade de afastar qualquer suspeita sobre a isenção da decisão sobre o recurso, aqui em causa.

E, assim, nos termos do disposto no artigo 43.º/1 e 4 CPPenal, deve ser concedida a peticionada escusa.

III. Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o pedido de escusa formulado pelo Exmo. Juiz Desembargador da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, Dr. AA, relativamente à intervenção, como 2.º adjunto, no âmbito do recurso interposto no processo 1129/23.2SGLSB.L1.

Sem tributação.

O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do artigo 94.º/2 CPPenal.

Supremo Tribunal de Justiça, 2025.OUT01

Ernesto Nascimento (Relator)

Vasques Osório (1.º Adjunto)

Jorge Gonçalves (2.º Adjunto)