I. Sendo realizados suprimentos em favor de sociedade por quotas da qual ambos os cônjuges eram sócios, usando dinheiro comum do casal e vindo a haver divórcio com partilha das quotas em favor de um deles, não foram demonstrados nos autos os elementos constitutivos do enriquecimento sem causa do cônjuge a quem a quotas foram atribuídas, mas apenas da sociedade.
II. O suprimento foi realizado com uma causa.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. AA instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, pedindo:
a) A condenação do réu a pagar à autora metade de todos os saldos bancários, aplicações financeiras ou quaisquer outros títulos financeiros existentes nas diversas instituições à data do divórcio;
b) Na eventualidade de os montantes depositados à data da separação de facto (01/07/2011) ser mais elevado deverá ser esse o valor a considerar.
Para fundamentar a respectiva pretensão alegou, em resumo, que casou com o réu em 27 de novembro de 1982.
Separaram-se de facto em junho de 2011 tendo retomado a relação, sendo que se divorciaram em 16 de abril de 2015.
O réu, no âmbito do Proc. n.º 9/17.5T9CNF que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de Cinfães, foi condenado numa pena de 3 anos e 8 meses de prisão suspensa na sua execução e no pagamento de uma indemnização de 8.000 €, pela prática, contra a aqui autora, de um crime de violência doméstica.
Na altura do divórcio, até pelo receio que sentia do réu, a autora assinou tudo quando este lhe mandou, o que fez sob coação.
Na altura da partilha dos bens comuns do casal não foram partilhadas as contas bancárias, sendo que existiam várias: uma da autora e outras do réu.
A autora tem direito a obter metade do valor depositado nas contas bancárias à data do divórcio.
2. Citado, o Réu contestou (ref.ª ...898 - cfr. fls. 37 a 48), por impugnação, por excepção e, subsidiariamente, por reconvenção, pedindo, a título reconvencional, o reconhecimento do seu crédito sobre a autora correspondente a metade dos montantes dos saldos de contas bancárias e de aplicações e títulos financeiros titulados pela autora, sozinha ou com terceiros, existentes à data da apresentação na Conservatória do Registo Civil da Maia do requerimento de divórcio, entre ambos, em 6 de março de 2015, operando-se a compensação do crédito invocado pela autora com o crédito do réu sobre ela, declarando-se a extinção da sua dívida na parte correspondente ao seu contra crédito sobre ela, se os montantes titulados por ela forem superiores, condenando-se a autora a pagar-lhe o remanescente do seu crédito não compensado.
Em abono da sua defesa alegou, em síntese, ter existido uma partilha verbal dos saldos das contas bancárias, uma vez que os saldos existentes nas contas tituladas pela autora e pelo réu eram equivalentes.
O réu era titular de duas contas bancárias nas agências da Maia da CGD e do BCP, cujos saldos totalizavam a quantia aproximada de 25.000,00 € e a autora é titular de duas contas bancárias nas agências de Cinfães da CGD e do BCP cujos saldos rondavam um valor aproximado.
Acordaram que cada um deles faria seus os saldos existentes nas contas que titulavam.
Actua a autora em abuso de direito.
3. A autora requereu a ampliação da causa de pedir e do pedido (ref.ª ...713 - cfr. fls. 57 a 60), peticionando que:
«Na eventualidade de o pedido formulado na al. B ser inadmissível ou improcedente, subsidiariamente;
A- Deve o R. ser condenando a restituir à A. a quantia de sessenta e sete mil e quinhentos euros acrescida dos juros legais de mora à taxa legal desde a notificação até integral pagamento».
4. O réu pugnou pela inadmissibilidade da ampliação do pedido (ref.ª ...901 - cfr. fls. 63 e 64).
5. A autora apresentou réplica (ref.ª ...044 - cfr. fls. 65 e 66), concluindo pela improcedência das excepções invocados pelo Réu.
6. A 2/08/2021, foi proferido despacho (ref.ª...636 - cfr. fls. 74) em que:
- foi admitida a ampliação da causa de pedir e do pedido;
- foi admitida a reconvenção deduzida pelo réu;
- foi fixado o valor da causa;
- foi elaborado despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a excepção de erro na forma de processo e procedente a excepção peremptória invocada pelo réu de inamissibilidade legal do pedido formulado sob a al. b), da petição inicial, com a consequente improcedência deste pedido.
- foi proferido despacho delimitando o objeto do litígio e enunciando os temas de prova.
7. A 17/12/2021, a autora requereu nova ampliação do pedido (ref.ª ...361 - cfr. fls. 157 e 158), peticionando a condenação do R. a restituir à A. a quantia de trinta e um mil quinhentos e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos acrescida dos juros legais de mora à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento.
8. O réu pugnou pela inadmissibilidade da ampliação do pedido (ref.ª ...296 - cfr. fls. 159).
9. Por despacho de 14/01/2022, foi admitida a ampliação do pedido (ref.ª....5151 - cfr. fls. 160).
10. Procedeu-se a audiência de julgamento (ref.ªs ....5959 e ....668 - cfr. fls. 184 e 195).
11. Posteriormente, a 7/10/2024, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...488 - cfr. fls. 196 a 200), nos termos da qual, julgando parcialmente procedente, quer a acção quer a reconvenção, condenou o réu a pagar à autora a quantia de:
- 11.767,41 € (referentes aos saldos bancários, feita a correspondente compensação pelo valor de 713,47 €);
- 65.000,00 € (referente ao valor incorporado na sociedade «Açomoreira, Lda).
Sobre as quantias mencionadas acrescem juros à taxa legal desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
12. Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso de apelação o Réu (ref.ª ...750 - cfr. fls. 201 a 243).
13. A autora apresentou recurso subordinado (ref.ª ...172 - cfr. fls. 243 a 249)
14. Contra-alegou o Réu, pugnando pelo não provimento do recurso subordinado (ref.ª ...725).
15. O Tribunal da Relação conheceu do recurso e decidiu:
“Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
i) - Julgar procedente o recurso de apelação independente interposto pelo réu e, em consequência, revogando a sentença recorrida, decidem:
i. a) julgar improcedente a ação, absolvendo o réu dos pedidos;
i. b) julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenam a Autora/reconvinda a pagar ao réu/reconvinte a quantia de 713,47 € (setecentos e treze euros e quarenta e sete cêntimos), correspondente a metade do saldo bancário de cuja conta era titular.
ii) - Julgar improcedente o recurso subordinado interposto pela Autora;
Custas do recurso independente e do recurso subordinado a cargo da Autora/recorrida.
Custas da ação a cargo da Autora; custas da reconvenção da responsabilidade de ambas as partes na proporção do respetivo decaimento, tudo sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza a Autora.”
16. Não se conformando a A. apresentou recurso de revista, onde conclui:
I. A Recorrente não pode aceitar a afirmação constante de Douto Acórdão de que não ocorreu enriquecimento do Recorrido por se tratar de uma quantia utilizada a título de suprimentos, porquanto, ao tempo a Açomoreira Lda. era do Recorrido com 95% do capital social e da Recorrente com 5% do capital social.
II. Sendo as percentagens distintas, beneficiavam, diferentemente, quer da distribuição de dividendos quer de valores diversos quando se procedesse à liquidação da sociedade.
III. A Recorrente, no âmbito da partilha extrajudicial, por divórcio, cedeu a sua quota pelo valor do capital social sem conhecer a dimensão dos factos que se discutem nos autos, (que não se conheciam aliás à data da entrada da petição inicial), não se sabia de suprimentos nem do seu montante, muito menos que eram constituídos por capital do casal.
IV. Também não se sabia da posterior dissolução com liquidação do património da sociedade e correspetiva entrada no património do Recorrido de todo o património da sociedade, incluindo o armazém que se fala nos autos, com o valor patrimonial de aproximadamente trezentos mil euros.
V. Deste modo, com toda esta estratégia o Recorrido enriqueceu o seu património, não no dia em que procedeu à separação de meações com a Recorrente, mas mais tarde, na conclusão da estratégia por si arquitetada.
VI. A Recorrente AA deu entrada de ação de processo comum em janeiro de 2021, peticionando do Recorrido BB metade de todos os saldos bancários, aplicações financeiras ou quaisquer outros títulos financeiros existentes nas diversas instituições bancárias à data do divórcio, porquanto após o divórcio veio a descobrir que este possuía contas bancárias.
VII. Apenas e só no decurso deste processo, soube do uso de dinheiro comum do agora ex casal para compra do armazém propriedade da empresa Açomoreira Lda., como confessou na sua Contestação datada de 24/03/2021.
VIII. Tendo o divórcio ocorrido a 16/04/2015, não lobriga a Recorrente outro tipo de ação judicial para reclamar da Injustiça ocorrida com violação grave, da separação de meações, que não seja o recurso ao instituto do Enriquecimento Sem Causa.
IX. Não só porque resulta à evidência dos autos que a Recorrente empobreceu num montante da sua meação, no valor confessado pelo Recorrido e do qual se apropriou, introduzindo-o sem qualquer aviso à Recorrente na sociedade Açomoreira Lda. a titulo de suprimentos e enriquecendo injustamente, uma vez que, e como supra se referiu, na estratégia por si arquitetada, adquiriu a quota da Rrecorrente no âmbito da separação de meações a apropriou-se da totalidade do valor dos suprimentos incorporados no valor do armazém, mas também porque, no âmbito da liquidação da sociedade reverteu tal armazém para o seu património.
X. Como se vê do exposto é uma estratégia complexa, que não permitia nem permitiu à Recorrente divisar ouro meio processual e que o Tribunal de Primeira Instância avisadamente assim decidiu.
XI. Aliás a Jurisprudência do STJ, partilha este entendimento como resulta evidente do sumário do acórdão do Processo 593/14.5TBTNV.E2.S2 que acima se transcreveu.
XII. O Douto Acórdão de que se recorre refere duas possibilidades processuais que se impunham prévias à do enriquecimento sem causa, mas entende-se que nenhuma delas era a apropriada e é certo que na eventualidade de descortinar algum mecanismo processual, sempre se irá debater com o caso julgado que a presente ação com a sua improcedência gera.
XIII. Quanto às possibilidades previstas nos artigos 247º, 251º, 255º e 256º do C.C., além de tudo o que já se deixou dito, que se reitera, existem questões que este Tribunal não pode olvidar, prazos prescricionais e interesse na demanda.
XIV. Já quanto à hipótese de nulidade do negócio por simulação previsto no art.º 240º do C.C., nada tem que ver com o enriquecimento através do uso dos capitais comuns, e não lobriga, a Recorrente, como possa com tal pretensão ajustar os factos ocorridos ao cumprimento da Lei e ao respeito pela distribuição das meações entre Recorrente e Recorrido.
XV. Relembre-se que o Recorrido adquiriu aquando da partilha por divórcio, as quotas da sociedade Açomoreira Lda. na separação de meações pelo valor patrimonial das mesmas, quando do imobilizado da empresa constava (pelo menos) o armazém.
XVI. Aquando da liquidação da sociedade, o recorrido, ficou na titularidade do património social que tinha sido adquirido, em parte com dinheiro comum, sem que a Recorrente tenha sido ressarcida da sua parte, não olvidando que, “… o empréstimo constituído pela sociedade “Açomoreira Lda” destinado à aquisição de um armazém, acabou por ser liquidado com dinheiro que se encontrava depositado numa conta comum do casal, no total de 130.000,00 € (129.616,38 € na liquidação do mútuo e o remanescente ficou numa conta da sociedade) e na partilha já realizada, a sociedade Açomoreira Lda. foi na sua totalidade adjudicada ao Recorrido, inequívoco, que, dinheiro do casal foi integrado na sociedade, a fim de liquidar dividas desta.
XVII. O Recorrido não restituiu à Recorrente os suprimentos que fez constituir na mesma com o dinheiro do casal, ou seja incorporou parte do preço paga com capitais do casal no valor de cento e trinta e cinco mil euros, como se deu como provado, enriquecendo em sessenta e sete mil e quinhentos euros com o empobrecimento da Recorrida em igual valor.
XVIII. Não merece, pois, qualquer reparo a douta Sentença da Primeira Instância que bem ajuizou e avisadamente decidiu, recolocando os factos em análise naquilo que a justiça impõe, ou seja, a separação das meações no respeito escrupuloso da divisão do património comum do casal em partes iguais.
XIX. Face à revogação do douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância que se impõe, sempre o Recurso Subordinado deverá ser procedente, uma vez que ele resulta manifestamente da correção às quantias objeto de suprimentos à Açomoreira Lda. e os pressupostos do enriquecimento sem causa se mostram preenchidos.
XX. Reitera-se, pois, toda a alegação a esse propósito produzida no Recurso Interposto e não posta em cauda no douto Acórdão de que se recorre.”
17. O Réu apresentou contra-alegações, nas quais conclui:
1ª) O douto acórdão recorrido que, quanto à decisão sobre a matéria de facto, julgou parcialmente procedentes as impugnações que dela foram feitas pelo recorrido e pela recorrente nos respectivos recursos, julgou procedente, quanto à decisão de mérito, o recurso de apelação independente interposto pelo ora recorrido e, revogando a sentença apelada, julgou a acção improcedente, absolvendo este dos pedidos formulados, e a reconvenção parcialmente procedente, condenando a ora recorrente a pagar ao primeiro a quantia de 713,47 €, mais julgando totalmente improcedente o recurso de apelação subordinada interposto pela ora recorrente.
2ª) A recorrente não se conforma com o douto acórdão recorrido, dele interpondo o presente recurso de revista, peticionando a sua revogação, com a sua substituição por outro que mantenha na sua íntegra a sentença da 1ª instância e que julgue procedente o seu recurso de apelação subordinado.
3ª) Porém, o douto acórdão recorrido que, respeitando rigorosamente a prova dos autos, as regras da experiência comum e da lógica, fixou definitivamente a matéria de facto e que, não incorrendo em violação da lei, substantiva ou processual, nem padecendo de qualquer nulidade, decidiu de acordo com os princípios normativos e jurídicos aplicáveis e com as linhas doutrinais e jurisprudenciais chamadas à colação, não é passível de qualquer censura, mormente a que lhe é assacada pela recorrente, pelo que deverá ser integralmente confirmado.
4ª) Na presente acção, além do pedido inicial da condenação do ora recorrido no pagamento de metade dos saldos bancários por ele titulados à data do divórcio, por não terem sido incluídos na subsequente partilha, a ora recorrente veio posteriormente ampliar o pedido e a causa de pedir, peticionando também condenação daquele no pagamento de metade do montante de dinheiros comuns utilizados em suprimentos de capital a uma sociedade de que ambos eram os únicos sócios, destinados ao reembolso parcial de um empréstimo bancário que esta contraíra para a aquisição de um armazém, fundando a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa.
5ª) A douta sentença da 1ª instância, considerando que se impunha a partilha dos saldos bancários indicados nos factos provados 5. e 6. e, operando a competente compensação peticionada a título reconvencional pelo ora recorrido, decidiu pela condenação deste no pagamento à ora recorrente do montante de 11.767,41 €, acrescido de juros moratórios.
6ª) Por outro lado, na questão dos suprimentos de capital à sociedade com a utilização de dinheiros comuns, considerando que existiram dinheiros do casal integrados na Açomoreira, Lda, para pagar dívidas desta, que as quotas sociais foram adjudicadas ao ora recorrido na partilha subsequente ao divórcio e que, na liquidação da sociedade, a ora recorrente não recebeu qualquer valor daqueles dinheiros comuns, concluiu que o ora recorrido enriqueceu no montante de metade dos aludidos suprimentos, condenando-o na sua restituição à ora recorrente.
7ª) Na sequência das apelações interpostas, o douto acórdão recorrido perfilhou entendimento diverso do sufragado na 1ª instância e, por um lado, alterando a redacção do facto provado 6., decidiu que, não se tendo demonstrado que o ora recorrido era titular de qualquer saldo bancário à data do divórcio, a sentença apelada devia ser revogada nessa questão, julgando improcedente o pedido inicialmente formulado pela ora recorrente, dele absolvendo o ora recorrido, e julgando procedente a reconvenção, condenando a ora recorrente a pagar ao ora recorrido metade do saldo bancário indicado no facto provado 5., mais considerando prejudicada a apreciação da nulidade invocada quanto ao segmento em que, a propósito desta questão, se havia condenado o ora recorrido no pagamento de juros moratórios não peticionados.
8ª) Por outro lado, na questão dos suprimentos de capital, concluindo que no caso sub judice não se verificam, não tendo sido demonstrados pela ora recorrente, a quem incumbia o ónus da respectiva alegação e prova, os pressupostos do enriquecimento sem causa previstos no artº 473º CC, e que esta dispunha de outros específicos meios processuais para ser restituída ou indemnizada, não podendo, sem mais, ter recorrido a este instituto que, de acordo com o preceituado no artº 474º CC, tem natureza subsidiária ou residual, revogou a sentença apelada, julgando o pedido formulado na ampliação improcedente, dele absolvendo o ora recorrido, mais julgando improcedente o recurso subordinado interposto pela ora recorrente.
9ª) Aora recorrente não aceita esta douta decisão, afirmando que é inequívoco que ocorreu enriquecimento sem causa do ora recorrido e que não divisa outro meio processual para ser ressarcida que não seja o recurso a este instituto.
10ª) Para o efeito, trazendo aos autos uma versão fáctica bem diversa da que subscreveu na acção: ali, afirmando que, previamente à dissolução da sociedade, o recorrido comprou para si o armazém adquirido, em parte, com dinheiros comuns; aqui, aduzindo que, aquando da liquidação da sociedade, ele ficou na titularidade do património social, incluindo o dito armazém, que nem uma nem outra resultou minimamente demonstrada.
11ª) E olvidando que, de acordo com as disposições conjugadas dos arts 342º, nº 1 e 346º CC e 414º CPC, era a ela que competia alegar e demonstrar factualidade integradora de todos e de cada um dos requisitos cumulativos do enriquecimento sem causa previstos no artº 473º CC, o que não fez minimamente.
12ª) Finalmente, escamoteando que, contrariamente ao por si pugnado, dispunha de vários institutos jurídicos de que se podia socorrer para fundamentar o seu alegado direito à restituição – artº 474º CC.
13ª) Com efeito, no que respeita à questão dos suprimentos de capital à Açomoreira, Lda, encontra-se definitivamente assente, não podendo ser aqui sindicada – arts 647º, nº 3 e 682º, nº 2 CPC -, a factualidade, resultante de alterações introduzidas no douto acórdão recorrido, ínsita nos factos provados 7. – que em 2005 a Açomoreira, sociedade de que o recorrido e a recorrente eram os únicos sócios, contraiu empréstimos bancários, assinados por ambos, para a aquisição de um armazém -, 9. – que entre 2005 e finais de 2012 a sociedade liquidou as prestações do empréstimo -, 10. –que, para realizar o reembolso antecipado do empréstimo, os sócios efectuaram suprimentos de capital à sociedade, com a utilização de dinheiros comuns -, 11. – que em finais de 2012 o réu procedeu ao levantamento da quantia total de 135.000,00 € depositada numa conta do casal, tendo liquidado 129.616,38 € do empréstimo, ficando o remanescente para aprovisionamento da conta da sociedade -, 11.a. – que esses dinheiros comuns provieram de uma indemnização pela expropriação de um terreno do então casal onde se encontrava instalado o estaleiro da Açomoreira, Lda -, 12. – que as quotas da sociedade foram objecto de partilha subsequente ao divórcio e adjudicadas ao réu -, 13. e 14. – que a Açomoreira, Lda foi dissolvida e liquidada – e 15. – que a autora, aquando dessa liquidação e encerramento da sociedade, não recebeu qualquer valor relativo às quantias comuns utilizadas nos suprimentos – e, por sua vez, não ficou demonstrado que os suprimentos foram realizados com o conhecimento e consentimento da autora.
14ª) Tendo em atenção estes factos provados e não provados, é incontestável que na situação em litígio não se mostram preenchidos os pressupostos do enriquecimento sem causa.
15ª) Este instituto tem consagração legal no artº 473º CC, das alíneas do qual decorre que a obrigação de restituição nele fundada pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos.
16ª) O primeiro pressuposto é a existência de um enriquecimento, que se deverá traduzir numa melhoria da situação patrimonial da pessoa obrigada à restituição, que deve ser aferida pela comparação entre a sua situação objectiva (real) e a situação em que se encontraria se a deslocação patrimonial não tivesse ocorrido (hipotética): o enriquecimento terá que consubstanciar-se na obtenção de uma vantagem ou benefício de carácter patrimonial e susceptível de avaliação pecuniária.
17ª) O segundo pressuposto é que o enriquecimento careça de causa justificativa dessa deslocação patrimonial, seja porque nunca a teve seja porque, tendo-a tido, a haja entretanto perdido, considerando-se como tal se o direito não o aprovar ou consentir, por não existir uma relação ou facto que, de acordo com as regras do sistema jurídico, justifique ou legitime a deslocação patrimonial a favor do enriquecido à custa do emprobrecido.
18ª) O terceiro pressuposto é que o enriquecimento tenha sido obtido à custa do correlativo empobrecimento de quem pede a restituição, exigindo-se uma correlação ou nexo causal entre a vantagem patrimonial obtida pelo enriquecido e o sacrifício patrimonial sofrido pelo empobrecido.
19ª) Por sua vez, o artº 474º CC estabelece a natureza subsidiária ou residual do instituto do enriquecimento sem causa, prescrevendo que só se pode recorrer a ele quando a lei não disponibilize ao empobrecido outro meio de ser restituído ou indemnizado, o que é comummente considerado como um quarto pressuposto deste instituto.
20ª) Sempre que a situação de facto preenche não só os requisitos do enriquecimento sem causa mas também os de outro instituto ou norma específica que possa ser exercida, o alegadamente empobrecido não pode fundar a sua pretensão no primeiro, pois o legislador faz prevalecer as normas específicas sobre as que têm carácter mais geral ou subsidiário.
21ª) Por último, é incontestável que, de acordo com as regras do onus probandi previstas nas disposições conjugadas dos arts 342º e 346º CC e 414º CPC, a alegação e prova dos factos que integram todos e cada um dos pressupostos do enriquecimento sem causa, que são de verificação cumulativa, incumbe inteiramente ao que pede a restituição, dado tratarem-se aqui de factos constitutivos do direito que se arroga.
22ª) Designadamente, é ao alegadamente empobrecido que impende o ónus de alegar e provar a falta de causa justificativa da deslocação patrimonial e, na dúvida, terá que concluir-se que a deslocação teve justa causa.
23ª) E é também quem pede a restituição que tem que alegar e demonstrar que o enriquecimento sem causa é o único instituto de que pode lançar mão para tal desiderato.
24ª) Por consequência, basta que o alegadamente empobrecido não alegue e, depois, não demonstre, qualquer um dos referidos pressupostos que, reitera-se, são cumulativos, para que a acção por enriquecimento sem causa soçobre necessariamente.
25ª) Revertendo ao caso dos autos, tendo presente o referenciado regime jurídico, que foi devida e correctamente determinado, interpretado e aplicado no douto acórdão recorrido, e os factos materiais fixados na acção, é manifesto que a recorrente, que se apresentou como alegadamente empobrecida, não alegou nem demonstrou a verificação dos requisitos exigidos pelos arts 473º e 474º CC para o enriquecimento sem causa que invocou como causa de pedir na questão dos suprimentos de capital à sociedade, do que necessariamente decorre a improcedência da sua pretensão e a confirmação do douto acórdão recorrido.
26ª) Os suprimentos de capital, que são uma forma de financiamento de uma sociedade, traduzem empréstimos feitos pelos seus sócios, que constituem aquela na obrigação de restituir a estes de outro tanto: à dívida da primeira corresponde o crédito dos segundos – artº 243º CSC.
27ª) No caso sub judice ocorreram suprimentos de capital à Açomoreira, Lda efectuados pelos seus sócios com a utilização de dinheiros comuns, o que configurou a deslocação patrimonial destes a favor da sociedade, que lhes ficou devedora do respectivo montante.
28ª) Esta deslocação patrimonial processou-se a favor da sociedade, por força da qual esta logrou a diminuição do passivo societário, saldando uma obrigação bancária, e aumentou o activo patrimonial, ficando com o remanescente para o aprovisionamento da respectiva conta, isto é, verificou-se uma melhoria da situação patrimonial desta, por comparação entre a sua situação patrimonial objectiva e a que se encontraria se tal deslocação patrimonial não se tivesse verificado, o que traduz o enriquecimento por parte da sociedade e não do recorrido.
29ª) O património eventualmente integrado naquela sociedade, tal como as suas eventuais dívidas, não se confundem, nem podem confundir, com o património comum, tal como com as dívidas, do casal, dado aquela tratar-se de uma pessoa jurídica distinta e autónoma das pessoas dos seus sócios.
30ª) Tendo em devida atenção o princípio da autonomia da personalidade jurídica, do qual decorre que a sociedade e os seus sócios são pessoas jurídicas diversas, com patrimónios autónomos e separados, e sendo imperioso distinguir o património social dos patrimónios individuais dos seus sócios, na situação dos autos não se verificou, e não foi demonstrada pela recorrente, a existência de um enriquecimento por parte do recorrido, mas tão só da sociedade, não se verificando e não tendo sido demonstrado pela recorrente o primeiro dos requisitos do enriquecimento sem causa.
31ª) Não decorre minimamente dos autos que ocorreu enriquecimento ilícito ou indevido do (património) do recorrido, a não ser que, em estrita e directa violação do princípio da autonomia da personalidade jurídica da sociedade em relação à personalidade jurídica do recorrido, se confundam a misturem o património de uma e o património de outro.
32ª) Não se pode, por isso, concluir que houve enriquecimento do recorrido à custa do património da recorrente pois, a ter existido enriquecimento, este foi da sociedade e não daquele.
33ª) Não se verifica, pois, porque não demonstrado, o requisito do “enriquecimento do recorrido”, que é a pessoa a quem a recorrente veio pedir a restituição, o que tanto basta para a total improcedência desta sua pretensão.
34ª) Foi demonstrado que os dinheiros comuns do casal foram utilizados para realizar suprimentos à sociedade, para liquidar dívidas desta, que se constituíu devedora do casal, mas não foi demonstrado nem consta da factualidade assente, que, na data da partilha por divórcio ou na data da liquidação da Açomoreira, esta fosse titular de qualquer património, designadamente o armazém adquirido, em parte, com aqueles dinheiros comuns, ou de outras dívidas, e também não foi demonstrado nem está assente que, previamente à liquidação ou aquando desta, o recorrido adquiriu ou recebeu bens da sociedade.
35ª) É uma temeridade não consentida concluir-se quer que “o réu, previamente a ter dissolvido a sociedade, comprou para si, em 15/02/2016, o armazém”, como a recorrente alegou no requerimento de ampliação do pedido e da causa de pedir, quer que “aquando da liquidação da sociedade, o réu ficou na titularidade do património social, incluindo o armazém”, como alega na revista, afirmações que se fundam em pressupostos fácticos que não se provaram minimamente nem transitaram para a materialidade provada.
36ª) Na partilha subsequente ao divórcio, o que foi efectivamente partilhado e adjudicado ao recorrido foram as quotas da Açomoreira, Lda, que eram património comum do casal, e não o património da sociedade, que era da titularidade desta pessoa jurídica autónoma e distinta: o que ele recebeu na partilha foram as quotas sociais daquela sociedade, que era integrada por património e passivo sociais que permanecem ignorados e não demonstrados no processo.
37ª) Ignorando-se o eventual património e as eventuais dívidas da sociedade e ignorando-se a situação patrimonial do recorrido sempre não se poderia concluir pelo enriquecimento deste, no sentido da “obtenção de uma vantagem ou benefício de carácter patrimonial”.
38ª) Não se tendo demonstrado a materialidade alegada pela recorrente, em qualquer das suas versões fácticas, também não se pode ter por provado qualquer, e muito menos o necessário, nexo causal ou correlação entre o conjecturado e hipotético enriquecimento do recorrido e o alegado empobrecimento daquela.
39ª) Finalmente, também falta o requisito da “falta de causa justificativa” da deslocação patrimonial feita pelo recorrido, pois está assente que os suprimentos de capital feitos com a utilização de dinheiros comuns se destinaram ao reembolso antecipado do empréstimo contraído pela Açomoreira, Lda, ficando o remanescente para aprovisionamento da conta desta.
40ª) Para se concluir pelo enriquecimento sem causa não basta que não se prove a existência de causa justificativa da deslocação patrimonial, sempre seria necessário que o alegadamente empobrecido demonstrasse efectivamente que faltou ou inexistiu causa justificativa, sendo que, na dúvida, teria que considerar-se que a deslocação teve justa causa – arts 342º, nº 1 e 346º CC e 414º CPC.
41ª) Porém, in casu, como se refere no douto acórdão recorrido, nem sequer é necessário resolver a questão pela dúvida, pois está demonstrado, constando da factualidade provada, o fim e o destino dos suprimentos de capital e, por isso, a existência de causa, que foi amplamente justificada para o pagamento de uma dívida da sociedade, que era património comum do casal.
42ª) Há, pois, que concluir que também não se verifica e que não foi demonstrado também o requisito da “falta de causa justificativa”, pelo que sempre a pretensão da recorrente está votada ao insucesso.
43ª) Cabia inteiramente à recorrente os ónus de alegação e de prova de todos os requisitos do enriquecimento sem causa, que são cumulativos, e ela não o fez minimamente, o que impõe a total improcedência do pedido relativo aos suprimentos de capital à sociedade, com a consequente absolvição do recorrido, daí decorrendo a integral confirmação do douto acórdão recorrido.
44ª) Sem prescindir, sempre terá que se concluir que a recorrente não podia, sem mais, ter-se socorrido do instituto do enriquecimento sem causa posto que, para defesa do seu invocado direito de restituição, ela dispunha, efectivamente, de diversos outros meios processuais.
45ª) Desde logo, afirmando que não consentiu nos suprimentos à sociedade, que o recorrido adquiriu as quotas da sociedade pelo respectivo valor nominal e que não sabia que do património desta constava um armazém adquirido em parte com dinheiros comuns do casal, podia ter requerido a anulação da partilha celebrada, com fundamento na falta ou vícios da vontade, podendo ser restituída por esse via – artº 289º CC.
46ª) Entendendo que os suprimentos de capital à sociedade, ou a “estratégia” montada pelo recorrido a visaram prejudicar, ou à sua meação, e/ou em benefício exclusivo dele, podia ter recorrido à acção de indemnização especificamente prevista no artº 1.681º, nº 1 CC.
47ª) Aduzindo que, depois da partilha e previamente à dissolução da sociedade, o recorrido comprou para si o armazém, podia ter ponderado a hipótese de requerer a anulação desse negócio.
48ª) Finalmente, alegando que, com a dissolução da sociedade, o recorrido ficou como único responsável pelos débitos da mesma a terceiros e que, aquando da liquidação, ele ficou na titularidade do armazém, podia ter requerido a acção de restituição ao abrigo do artº 163º CSC.
49ª) Cabendo-lhe a alegação e a prova de que nenhum daqueles institutos esgotava a tutela jurídica da situação ou que nenhum deles podia ser exercido e que, por isso, o enriquecimento sem causa era o único meio de que dispunha para defesa ou reacção do seu pretenso direito à restituição/indemnização, ela não fez minimamente.
50ª) Não podia, por isso, ter-se socorrido, sem mais, do instituto do enriquecimento sem causa, o que também constitui motivo de improcedência da sua pretensão, com a consequente confirmação do douto acórdão recorrido, que determinou, interpretou e aplicou correctamente e sem mácula as regras e os princípios de direito aplicáveis à situação em apreço.
51ª) Ainda sem prescindir, a recorrente peticiona que a revogação do douto acórdão e a sua substituição por outro que “mantenha na íntegra a douta sentença da primeira instância” e a “procedência do recurso subordinado”.
52ª) Ainda que a revista merecesse algum provimento, o que só por exigência de patrocínio se concede, sempre a decisão a proferir por este Venerando Tribunal não poderia acolher a pretensão assim formulada.
53ª) Por um lado, quanto à “manutenção na íntegra da douta sentença da primeira instância”, na qual o recorrido foi condenado a pagar à recorrente a importância total de 76.761,10 €, acrescida de juros moratórios, sempre se deverá atentar que esta totalidade resulta da soma das quantias parcelares de “11.767,41 € (referentes aos saldos bancários, feita a correspondente compensação pelo valor de 713,47 €)” e de “65.000,00 € (referente ao valor incorporado na sociedade «Açomoreira, Lda»)”.
54ª) Na questão dos saldos bancários, aquela douta sentença teve em consideração os factos 5. e 6. que nela foram dados como provados, atinentes a contas bancárias que entendeu serem da titularidade das partes.
55ª) O ora recorrido, no seu recurso de apelação, invocou erro de julgamento na decisão do facto provado 6., o qual fundou em indisputada prova documental produzida nos autos, peticionando a sua eliminação e, por consequência, a alteração da decisão de mérito quanto aos saldos bancários, defendendo a improcedência do pedido deduzido pela ora recorrente e a procedência da reconvenção por si formulada e, por cautela, invocou ainda a nulidade cominada nos arts 609º, nº 1 e 615º, nº 1, al. e) CPC quanto ao segmento em que foi condenado em juros moratórios, porque não foram peticionados.
56ª) O douto acórdão recorrido acolheu o entendimento da ocorrência de erro de julgamento no facto provado 6., procedendo à sua alteração para o seguinte teor: “6. À data em que o divórcio foi decretado – 16 de abril de 2015 -, o réu era o único autorizado da conta CGD ...........30, com o saldo de 24.961,67 €, da qual era titular Transportes Moreira & Azevedo, Lda”.
57ª) E, por consequência, concluindo que não se demonstrou que, à data do divórcio, o ora recorrido fosse titular de qualquer saldo bancário, revogou nessa parte a sentença apelada, julgando improcedente o pedido formulado na acção, dele absolvendo o ora recorrido, e julgando procedente o pedido reconvencional, condenando a ora recorrente no pagamento de metade do saldo apurado no facto provado 5., decisão da qual resultou a prejudicialidade da apreciação da nulidade suscitada quanto aos juros moratórios.
58ª) Nos termos do preceituado nos arts 674º, nº 3 e 682º, nº 2 CPC, não se tratando aqui de caso de prova legal ou vinculada, a decisão da Relação quanto ao ponto de facto provado 6. não pode ser sindicada ou alterada por este Venerando Tribunal, tendo-se por definitivamente fixada.
59ª) Destarte, estando definitivamente assentes os factos provados 5. e 6. e não oferecendo qualquer disputa, que a recorrente não faz minimamente, o acerto da decisão de mérito do douto acórdão recorrido quanto à questão da partilha e divisão dos saldos bancários, a “manutenção na íntegra da douta sentença recorrida” não poderá, em qualquer caso, merecer provimento.
60ª) Por outro lado, quanto à “procedência do recurso subordinado” requerida pela recorrente, que o faz por mera referência às alegações nele produzidas, apesar de podermos deduzir que, nesta parte, apenas se pretende referir à quantia de 2.500,00 € resultante do lapso/erro de cálculo ocorrido no facto provado 11., que foi devidamente rectificado no douto acórdão recorrido, o certo é que, naquele recurso subordinado, ela também pugnava pelo aditamento de novos factos provados relativos à quantia recebida pelo casal em processo de expropriação, pretendendo que dos mesmos, sem mais, se concluísse que o ora recorrido fez sua a totalidade do valor recebido na expropriação e, por isso, que fosse condenado ainda no pagamento da quantia de 31.581,50 €.
61ª) Porém, o douto acórdão recorrido entendeu que nos autos não resultou minimamente demonstrado que todo o dinheiro percepcionado na expropriação foi objecto de levantamento pelo ora recorrido pelo que, na decisão de mérito, decidiu que a pretensão da ora recorrente não podia proceder, por aquele facto não ter tido a resposta de provado.
62ª) Atenta a definitiva fixação da decisão sobre a matéria de facto operada pela Relação, que aqui não pode ser sindicada nem alterada, o que, de resto, a recorrente não inclui no objecto da revista, a “procedência do recurso subordinado” não poderá, em qualquer caso, merecer provimento.
63ª) De todo o modo, porque não se verificam os pressupostos do enriquecimento sem causa, como entendido no douto acórdão recorrido e como defendido nesta resposta, nunca poderia proceder o recurso subordinado interposto pela ora recorrente, não só quanto à quantia peticionada ao abrigo da segunda ampliação do pedido, cuja improcedência se impõe linearmente pela não demonstração do facto em que a fundou, mas também quanto à quantia de 2.500,00 € resultante da correcção do erro de cálculo operada no facto provado 11.
64ª) Atento todo o exposto, o douto acórdão recorrido não violou a lei substantiva, por erro de interpretação, de aplicação ou de determinação da norma aplicável, nem violou ou aplicou erradamente a lei de processo, designadamente as normas contidas nos arts 342º, 346º, 473º e 474º CC e 414º CPC.
65ª) Cabendo a este Venerando Tribunal aplicar definitivamente o regime jurídico adequado aos factos materiais fixados na acção, sendo inelutável que o douto acórdão recorrido interpretou e aplicou correctamente as regras e os princípios aplicáveis ao objecto dos autos, deve julgar-se totalmente improcedente a revista, confirmando-se integralmente o douto acórdão recorrido, assim se cumprindo a Lei e se fazendo Justiça.
18. O recurso foi assim admitido no Tribunal recorrido:
“Considerando que a decisão é recorrível e o(a) recorrente tem, para tanto, legitimidade, e está em tempo, admito o recurso interposto pela Autora AA, através do requerimento apresentado em 18/06/2025 (arts. 627º, 629º, n.º 1, 631º, 637º e 638º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).
O recurso é de revista (normal), com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, para o Supremo Tribunal de Justiça (arts. 627.º, n.º 2, 637.º, 671º, n.ºs 1 e 3, este por interpretação “a contrario”, 674º, 675º, n.º 1, 676º, n.º 1, por interpretação “a contrario”, todos do Código de Processo Civil).”
Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
II. Fundamentação
De Facto
19. As instâncias deram como provados os seguintes factos (com alterações introduzidas pelo Acórdão recorrido):
1. A autora e o réu casaram em 27 de novembro de 1982 no regime de bens de comunhão de adquiridos.
2. O referido casamento terminou por divórcio decretado em 16 de abril de 2015.
3. Durante o casamento a autora vivia subjugada pela vontade do réu, sendo este que tinha a direção da vida familiar.
4. Na partilha subsequente ao divórcio a autora e o réu não procederam à partilha das contas bancárias por si tituladas.
5. À data em que o divórcio foi decretado – 16 de abril de 2015 – a autora era titular da conta existente no Millemium BCP com o n.º .........10 e com o saldo de 1.239,68 € e na Caixa Geral de Depósitos com o saldo de 187,26 €.
6. À data em que o divórcio foi decretado - 16 de abril de 2015 -, o réu era o único autorizado da conta CGD ...........30, com o saldo de 24.961,67 €, da qual era titular Transportes Moreira & Azevedo, Lda. (alteração TRG)
7. Em 19/12/2005, a «Açomoreira, Lda», sociedade de que a autora e o réu eram os únicos sócios contraiu junto da Caixa Geral de Depósitos dois empréstimos destinados à aquisição de um armazém, dos valores de 293.293,16 € e de 125.697,07 €, sendo os contratos então assinados, com reconhecimento notarial das respectivas assinaturas, pelo réu e pela autora. (alteração TRG)
8. Tais empréstimos foram garantidos pela hipoteca do referido armazém sito na freguesia de Baguim do Monte, Rio Tinto, inscrito na matriz sob o art. ...4º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..07, com inscrição da aquisição a favor da sociedade com registo de hipoteca sob a Ap...6 de 2005/11/29.
9. Entre a data do empréstimo e finais de 2012 a sociedade liquidou as prestações devidas pelo empréstimo que ascendiam a cerca de 4.000 €.
10. Para realizar o reembolso antecipado do empréstimo, os sócios efetuaram suprimentos de capital à sociedade, com a utilização de dinheiros comuns do casal.
11. Nos dias 18 e 19 de dezembro de 2012 o réu procedeu ao levantamento das quantias de 35.000,00 €, 25.000 €, 10.000,00 €, 10.000,00 €, 10.000,00 € e 45.000,00 € (total de 130.000,00 €) depositadas numa conta do casal em BCP tendo liquidado os montantes de 3.841,85 €, 47.777,89 € e de 77.996,64 € no total de 129.616,38 €, ficando o remanescente para aprovisionamento da conta da sociedade.
11.a. Os dinheiros comuns do casal depositados na conta do casal em BCP referenciados em 10. e 11. provieram da indemnização recebida no âmbito do processo de expropriação n.º 157/05.4TBCNF de um terreno, propriedade do agora ex-casal, onde então se encontrava instalado o estaleiro da Açomoreira, Lda. (aditado pelo TRG)
12. As quotas da sociedade, com o respetivo património, foram objeto de partilha subsequente ao divórcio e adjudicadas ao réu.
13. Pela Ap....6/20161227 foi inscrita no registo a “dissolução e encerramento da liquidação” da sociedade «Açomoreira, Lda».
14. Pela Ap....6/20161227 foi inscrito no registo o “cancelamento da matrícula”.
15. A autora não recebeu qualquer valor, aquando da dissolução e encerramento da sociedade, relativo às quantias comuns que foram utilizadas e referidas em 11.
20. E foram considerados como não provados os restantes factos, designadamente que:
a) A autora assinou a documentação referente ao divórcio sob coação.
b) A autora e o réu procederam à partilha verbal dos saldos existentes nas contas bancárias tituladas pelos membros do ex-casal.
c) O descrito em 10 e 11 foi realizado com o conhecimento e consentimento da autora.
d) À data do divórcio a autora tinha depositado em contas de que era a única titular cerca de 25.000,00 €.
De Direito
21. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
No presente recurso esse objecto consiste em saber se o instituto do enriquecimento sem causa pode ser aplicado à pretensão da A.
22. Antes de entrar no conhecimento do objecto do recurso, impõe-se fazer uma síntese dos elementos mais relevantes, para o conhecimento desse mesmo objecto.
Síntese:
- Sobre os pedidos e causa de pedir
O pedido inicial foi:
“a) A condenação do réu a pagar à autora metade de todos os saldos bancários, aplicações financeiras ou quaisquer outros títulos financeiros existentes nas diversas instituições à data do divórcio;
b) Na eventualidade de os montantes depositados à data da separação de facto (01/07/2011) ser mais elevado deverá ser esse o valor a considerar” (julgado improcedente em 2/08/2021 através despacho (ref.ª 35673636 - cfr. fls. 74)
O pedido foi ampliado – e aceite a ampliação e alteração da causa de pedir – passando a contemplar ainda:
“c) Na eventualidade de o pedido formulado na al. B ser inadmissível ou improcedente, subsidiariamente:
1. Deve o R. ser condenando a restituir à A. a quantia de sessenta e sete mil e quinhentos euros acrescida dos juros legais de mora à taxa legal desde a notificação até integral pagamento».
Em 17/12/2021, a autora requereu nova ampliação do pedido (ref.ª ...61 - cfr. fls. 157 e 158), peticionando a condenação do R. a restituir à A. a quantia de trinta e um mil quinhentos e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos acrescida dos juros legais de mora à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento.
Esta ampliação também foi aceite pelo Tribunal - despacho de 14/01/2022
- Sobre as decisões:
- A Sentença (ref.ª ...88 - cfr. fls. 196 a 200) julgou parcialmente procedente, quer a acção quer a reconvenção, condenou o réu a pagar à autora a quantia de:
- 11.767,41 € (referentes aos saldos bancários, feita a correspondente compensação pelo valor de 713,47 €);
- 65.000,00 € (referente ao valor incorporado na sociedade «Açomoreira, Lda).
Sobre as quantias mencionadas acrescem juros à taxa legal desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
- O Acórdão do TRG – revogou a sentença e decidiu:
“Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
i) - Julgar procedente o recurso de apelação independente interposto pelo réu e, em consequência, revogando a sentença recorrida, decidem:
i. a) julgar improcedente a ação, absolvendo o réu dos pedidos;
i. b) julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenam a Autora/reconvinda a pagar ao réu/reconvinte a quantia de 713,47 € (setecentos e treze euros e quarenta e sete cêntimos), correspondente a metade do saldo bancário de cuja conta era titular.
ii) - Julgar improcedente o recurso subordinado interposto pela Autora;
Custas do recurso independente e do recurso subordinado a cargo da Autora/recorrida.
Custas da ação a cargo da Autora; custas da reconvenção da responsabilidade de ambas as partes na proporção do respetivo decaimento, tudo sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza a Autora.”
23. Para o desfecho indicado no acórdão recorrido foram fundamentais as questões colocadas e conhecidas na apelação, e que foram as seguintes:
I. Quanto ao recurso independente (apresentado pelo Réu BB):
i) - Da impugnação da decisão da matéria de facto - parcialmente procedente;
ii) – Da partilha dos valores monetários ou dinheiros - procedente;
iii) – Da nulidade da sentença com fundamento na al. e) do n.º 1 do art. 615º do CPC – questão que ficou prejudicada;
iv) - Dos suprimentos à Açomoreira, Lda - procedente;
II. Quanto ao recurso subordinado (interposto pela Autora AA);
iv) - Da impugnação da decisão da matéria de facto – parcialmente procedente;
v) - Da reapreciação de direito – veio a redundar numa alteração da decisão recorrida.
24. Com um novo elenco de facto provados – cf. supra – a questão suscitada pela recorrente há-de ser vista a partir dos elementos de facto apurados a final, e à luz dos pedidos e causa de pedir.
E foi isso que conduziu à primeira mudança na decisão favorável à A. que a sentença continha e foi revogada, como consta do acórdão recorrido, que passamos a citar:
“Com efeito, no que concerne à questão em apreço, ficou tão só provado que, à data em que o divórcio foi decretado – 16 de abril de 2015 –, o réu era o único autorizado da conta CGD ...........30, com o saldo de 24.961,67 €, da qual era titular Transportes Moreira & Azevedo, Lda.
Sendo o titular de uma conta o proprietário dos fundos depositados ou o devedor no caso de operações de um empréstimo, o autorizado é a pessoa que tem a assinatura para movimentar a conta em nome do proprietário, mas não é o proprietário da conta.
O que significa que, mostrando-se provado que a referida conta n. º ...........43 não era titulada pelo réu, que dela era meramente autorizado, mas antes pela sociedade Transportes Moreira e Azevedo, Lda, o pressuposto fáctico que serviu de base à procedência daquela pretensão tem-se por inverificado.
Consequentemente, será de revogar nessa parte o decidido na sentença recorrida, improcedendo o pedido objeto do item a) da petição inicial.
Correlativamente, não se tendo apurado a existência de qualquer saldo bancário titulado pelo réu à data do divórcio, a reconvenção terá de proceder, condenando-se a autora/reconvinda a pagar ao réu/reconvinte o montante de 713,47 €, correspondente a metade do saldo bancário de cuja conta era titular (ponto 5 dos factos provados2).”
25. Bem se sabe que não é esta a questão que a recorrente agora coloca, mas importa ter a visão de conjunto do processo.
26. Sendo a grande divergência da recorrente discordar do tribunal por este não considerar aplicável aos factos provados o enriquecimento sem causa, vejamos porque o Tribunal o entendeu não ser aplicável e que são razões do seguinte tipo: i) atinentes ao tipo de acção, pedido e causa de pedir; ii) atinentes à separação patrimonial de enferas jurídicas entre pessoas singulares e sociedades comerciais; iii) atinentes aos elementos de facto pressupostos não alegados/não provados e direito aplicável.
Um dos primeiros argumentos do Tribunal é este:
“… na causa de pedir delineada na presente ação a autora não colocou em causa a validade da partilha do património conjugal subsequente ao divórcio, celebrada em 16/04/2015, e que teve por objeto, entre o mais, a partilha das quotas das sociedades comerciais, as quais foram adjudicadas ao réu pelo valor nominal.”
- … não está em causa a eventual responsabilização do Réu nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1681º do Código Civil (CC).”
Este argumento visava responder à questão da A., que aduziu:
- que o empréstimo constituído pela sociedade destinado à aquisição de um armazém acabou por ser liquidado com dinheiro comum do casal, o que foi realizado sem o seu conhecimento e consentimento, não lhe tendo sido restituído até a dissolução da sociedade qualquer capital referente a esses suprimentos.
- que, previamente a ter dissolvido a sociedade Açomoreira, o R. comprou para si, em 15/02/2026, o armazém, o qual havia sido (parcialmente) pago em finais de 2012, através de suprimentos de capital com utilização de dinheiros comuns do casal.
- R. adquiriu as quotas da sociedade na separação de meações pelo valor patrimonial das mesma, quando do imobilizado da empresa constava (pelo menos) o referido armazém – o que não era do conhecimento da autora –, adquirido em parte com capital do casal.
- após ter adquirido o armazém, o réu procedeu à dissolução da sociedade, sem que tenha restituído à A. os aludidos suprimentos.
- com a dissolução da sociedade, o R. ficou como único responsável pelos débitos da mesma a terceiros, nomeadamente à A., no valor de metade do capital por este aplicado para amortização do empréstimo à entidade mutuante para pagamento parcial do armazém e pelos suprimentos feitos.
Porém, a pretensão da A. não foi acolhida no acórdão recorrido – e bem!!!
O primeiro ponto que importa deixar claro é exactamente o do pedido e causa de pedir: com a configuração apresentada – e com os factos provados – não há como considerar que o Réu enriqueceu à custa da A., sem causa justificativa.
27. Um ponto de realismo social, leva-nos a saber que muitas vezes as pessoas procuram caminhos jurídicos para certas soluções/projectos que se lhe afiguram correctas e desejáveis, mas apenas por razões estratégicas (como acontece muitas vezes na criação de sociedades comerciais com os cônjuges a serem os únicos sócios) - legítimas- , certamente. Só que essas opções têm as suas consequências e quando elas aparecem o resultado não é satisfatório face ao que se pretendia.
A história contada nos presentes autos (a contada) parece aderir a esta descrição sociológica: os cônjuges constituíram uma sociedade na qual eram únicos sócios, mas não compreenderam as implicações dessa constituição e riscos, porque acreditavam que sendo eles os donos tudo lhe correria de feição, podendo pôr e dispôr do património da sociedade.
Depois, para uns, a verdade é num sentido e, para outros, noutro. Só que no processo judicial a verdade é aquela que resulta dos factos provados, a partir do qual se aplicará o direito.
28. Vejamos a situação dos suprimentos (com os poucos dados de facto existentes).
Os suprimentos são caracterizados por empréstimos de dinheiro (ou coisa fungível) que os sócios fazem à sociedade, na qualidade de sócio (art.º 243.º do CSC). Quando o dinheiro do sócio é entregue à Sociedade, passa a integrar o seu património próprio (e já não do sócio); e o sócio fica com um crédito sobre a sociedade, pelo valor emprestado. Mas esse crédito tem um regime específico, que limita, em muito o reembolso do mesmo pela sociedade, sobretudo em situações mais complicadas financeiramente e patrimonialmente falando. Há situações em que o seu reembolso só pode ser realizado depois de pagas as demais dívidas da sociedade a outros credores (cf. 245.º do CSC). Ou seja, não é fácil saber se a sociedade terá possibilidades de devolver o empréstimo quando os sócios querem, ou precisam.
E estes não podem a todo o momento exigir a sua devolução (cf. 245.º do CSC).
Uma vez entrado o valor no património da sociedade passa a ser seu e já não há disposição arbitrária por parte do sócio.
29. Outro ponto relevante – e sem factos no processo que pudesse conduzir ao resultado pretendido pela A. – é que o suprimento foi realizado em certo momento por existir uma causa, quer fosse o pedido da sociedade, a obrigação do sócio, ou a vontade do sócio, reconhecida como válida pela lei para aceitar a deslocação patrimonial.
E ainda que para a sociedade referida nos autos se saiba que existiam dois sócios, e portanto duas quotas, nada veio referido sobre se as quotas são bens comuns do casal ou bens próprios de cada um deles ao tempo da constituição da sociedade – situação que é possível de se verificar ou não, porque pode a quota estar em nome de um e ser bem comum do casal, ou não. A ser bem comum do casal, o crédito de suprimento também o seria. E, ao ter sido partilhado o património dos cônjuges que incluía essas quotas, o crédito de suprimento acompanha a transmissão do bem partilhado, porque é suposto que os cônjuges façam a avaliação dos bens antes de os dividir e tenham atenção ao tipo de bem em causa.
Que elementos foram oferecidos - e se encontram provados – sobre estes aspectos?
Na versão da A. ela foi enganada na partilha. Não há factos provados sobre isso.
A ser assim, o meio de reagir a esse “engano” não é certamente o que usou e com o que usou só poderia obter a resposta do acórdão recorrido: quem ficou beneficiado com o suprimento foi a sociedade. Sociedade e sócio são coisas diversas e envolvem patrimónios distintos.
E também sem se saber o porquê da dissolução da sociedade e seu encerramento - e se porventura o suprimento foi a forma de fazer extrair dos bens comuns um bem em proveito de um dos cônjuges, não há forma de acolher o “grito” de injustiça da A., fundado na sua versão dos factos.
Há assim que dizer que não estamos em condições de aplicar o art. 1681º do CC, no seu n.º 1, ao estabelecer que o «cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 1678.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge».
No caso em apreço, não se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil, nem a autora aduziu essa causa de pedir.
Certo é que o tribunal não pode decidir por verosimilhança.
30. Também se acompanha o acórdão recorrido quando diz:
“Se, por um lado, a autora logrou provar que as quantias utilizadas pelo réu para liquidar o empréstimo da sociedade constituíam bem comum do casal, não se provando que essa utilização foi feita com o conhecimento e o consentimento da autora, a verdade é que, por outro lado, o réu também conseguiu provar o uso dado às quantias objeto de levantamento, traduzido em suprimentos feitos à sociedade, parte do qual destinado ao reembolso antecipado do empréstimo contraído pela sociedade e ficando o remanescente para aprovisionamento da conta da sociedade, da qual eram os únicos sócios.
Por outro lado, também não está em causa o preenchimento da previsão dos arts. 162º, n.º 1 e 163º, n.º 13, ambos do Código das Sociedades Comerciais.”
“Aduz o recorrente que, uma vez que a restituição de metade do dinheiro comum emprestado (suprido) à Açomoreira vem exigido depois da extinção da sociedade, ela deveria ter sido deduzida nos termos do art. 163º, n.º 1, CSC, na qual lhe cabia alegar e demonstrar a responsabilidade pessoal do apelante no respectivo pagamento, designadamente que este era o seu único sócio à data daquela extinção, que, nessa data, a sociedade era titular de bens e que, na partilha do património societário, este recebeu bens ou valores.
Sucede que a causa de pedir delineada pela autora não se ajusta a esse enquadramento jurídico, pois não indica sequer os bens ou o montante recebido pelo réu na partilha resultante do encerramento da liquidação e extinção da sociedade.
O ónus da alegação e prova de que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens foram partilhados e distribuídos pelos sócios, recairia sobre o credor, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do CC, dado que a existência de bens e a sua partilha entre os sócios são elementos constitutivos do seu direito.
Não sendo a ação subsumível ao estatuído nos arts. 255º e 256º, nem no art. 1681º do CC, nem tão pouco nos arts. 162º, n.º 1 e 163º, n.º 1, do CSC, resta por fim aferir da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa, oportunamente invocado pela autora no requerimento de ampliação da causa de pedir e do pedido4.”
31. E também se acompanha o acórdão recorrido na decisão de não aplicação do regime do enriquecimento sem causa.
Diz-se, aí:
“constitui entendimento predominante, na jurisprudência e doutrina, no sentido de que, de harmonia com o regime estabelecido no art. 342º, n.º 1, do CC, é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende não só o ónus de alegação como de prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos, ou seja, de todos aqueles pressupostos legais que integram o referido instituto5. Acresce que, segundo as regras do ónus da prova, a mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar que efetivamente a causa falta6.
In dubio, deve considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve justa causa7.
No caso em apreciação, resulta provado dos autos que:
- Em 19/12/2005, a «Açomoreira, Lda», sociedade de que a autora e o réu eram os únicos sócios contraiu junto da Caixa Geral de Depósitos dois empréstimos destinados à aquisição de um armazém, dos valores de 293.293,16 € e de 125.697,07 €.
- Entre a data do empréstimo e finais de 2012 a sociedade liquidou as prestações devidas pelo empréstimo que ascendiam a cerca de 4.000 €.
- Para realizar o reembolso antecipado do empréstimo, os sócios efetuaram suprimentos de capital à sociedade, com a utilização de dinheiros comuns do casal; concretamente, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2012 o réu procedeu ao levantamento das quantias de 35.000,00 €, 25.000 €, 10.000,00 €, 10.000,00 €, 10.000,00 € e 45.000,00 € (total de 135.000,00 €) depositadas numa conta do casal em BCP tendo liquidado os montantes de 3.841,85 €, 47.777,89 € e de 77.996,64 € no total de 129.616,38 €, ficando o remanescente para aprovisionamento da conta da sociedade.
Resulta destes factos que o réu efectuou suprimentos de capital à sociedade, com a utilização de dinheiros comuns do casal, no valor total de 135.000,00 €, não se mostrando provado que tais suprimentos foram realizados com o conhecimento e consentimento da autora.
(…)
Tendo presente os factos apurados, dir-se-á que os suprimentos efetuados – consubstanciado no levantamento pelo réu, nos dias 18 e 19/12/2012, das quantias de 35.000,00 €, 25.000,00 €, 10.000,00 €, 10.000,00 €, 10.000,00 € e 45.000,00 € (total de 135.000,00 €), depositadas numa conta do casal em BCP, tendo liquidado os montantes de 3.841,85 €, 47.777,89 € e de 77.996,64 €, no total de 129.616,38 €, para realizar o reembolso antecipado do empréstimo, ficando o remanescente para aprovisionamento da conta da sociedade – configuram um acto de deslocação patrimonial a favor da sociedade «Açomoreira, Lda».
Tal traduz a existência de um enriquecimento (a quantia de € 135 000,00€) por parte da sociedade «Açomoreira, Lda» – e não do Réu –, por força do qual em parte logrou a diminuição do passivo societário – na parte em que saldou uma obrigação da sociedade – e noutra aumentou o ativo patrimonial (quanto ao remanescente para aprovisionamento da conta).
Dúvidas não subsistem de que se mantém a distinção entre o património social e os patrimónios individuais dos sócios. Juridicamente, a sociedade e os sócios são pessoas diversas, com patrimónios separados.
Não se verificando a existência de um enriquecimento por parte do R., mas tão só daquela sociedade, fica por demonstrar o primeiro requisito do enriquecimento sem causa.
Ocorre, sim, a obtenção do enriquecimento à custa de outrem (o enriquecimento da sociedade à custa do dinheiro comum do casal).
Contudo, não se mostra provada a falta de causa justificativa dessa valoração patrimonial feita pelo recorrente/réu (os suprimentos foram destinados a realizar o reembolso antecipado do empréstimo e o remanescente ficou afecto ao aprovisionamento da conta da sociedade).
Acresce que a Autora tinha ao seu dispor outros meios a fim de ser indemnizada ou restituída.
É assinalado na sentença recorrida que na partilha já realizada entre o casal, a sociedade «Açomoreira, Lda» foi, na sua totalidade, adjudicada ao réu, sendo que o seu património incluía o armazém para cuja aquisição foi utilizado dinheiro comum do casal. Acrescenta que «foi deste modo dinheiro do casal integrado na sociedade, a fim de liquidar dividas desta».
Ou seja, por força da partilha dos bens do casal – e não da liquidação da sociedade, como sem propriedade é referido na sentença – as quotas da sociedade, com o respetivo património, foram adjudicadas ao réu, sendo que parte desse património social havia sido adquirido com dinheiro comum do casal, sem que a autora tenha sido ressarcida da sua parte.
Ora, afirmando desconhecer e não ter consentido nos suprimentos feitos pelo R. com o dinheiro comum do casal e tendo este adquirido as quotas da sociedade na separação de meações pelo valor patrimonial das mesmas, quando do imobilizado da empresa constava (pelo menos) o referido armazém, com o valor de mercado superior a quatrocentos mil euros, adquirido em parte com capital do casal, factos estes que não eram do seu conhecimento, com vista a acautelar os seus interesses a autora poderia ter requerido a anulação da partilha com fundamento em falta ou vícios da vontade, designadamente ao abrigo do disposto nos arts. 247º, 251º, 255º e 256º do CC.
Pois bem, ocorrendo nulidade ou anulabilidade da partilha celebrada, a empobrecida podia ser restituída desde logo por outro modo, que não o enriquecimento sem causa. Neste caso, e por força da lei (art. 289º do CC), não só se tem que contar com o efeito retroactivo da declaração de nulidade ou da anulação, como, por via disso, vai ter lugar a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, em todo o caso, do respetivo valor.
Por outro lado, se, porventura, pretendia impugnar a ulterior compra pelo Réu do armazém à sociedade – feita, alegadamente, em 2016, posterior à partilha, mas antes da liquidação e dissolução da sociedade –, nomeadamente por simulação8, poderia ter requerido a nulidade desse negócio, ao abrigo do regime previsto nos art. 240º do CC.
Para a hipótese de propugnar que os suprimentos efetuados pelo cônjuge administrador visaram prejudicar a autora ou a sua meação e/ou beneficiar o réu, poderia requerer a necessária indemnização pelos prejuízos causados ao abrigo do regime indicado no art. 1681º do CC.
Fazendo menção ao facto de, com a dissolução da empresa em 2017, o R. ter ficado como único sócio da empresa responsável pelos débitos da mesma a terceiros, nomeadamente à A., no valor de metade do capital por aquele aplicado na mesma para amortização do empréstimo à entidade mutuante para pagamento parcial do armazém e ainda pelos suprimentos feitos e que nunca foram restituídos, tinha a Autora ao seu dispor o meio específico previsto no art. 163º do CSC.
Assim, malgrado o empobrecimento da autora resultante da comprovada deslocação patrimonial, tal não é suficiente para que o recorrente fique obrigado à restituição de metade do valor dos suprimentos, posto não ter havido enriquecimento do mesmo.
Ora, cabendo à recorrida que pede a restituição com base no enriquecimento do recorrente à sua custa sem causa justificativa, por força do preceituado no art. 342º, n.º 1, do CC, o ónus de alegação e prova dos referidos pressupostos, e não se mostrando provado o enriquecimento do recorrente/réu, nem a falta de causa, e havendo outros meios para tutelar a sua pretensão, quer o pedido de verificação do enriquecimento sem causa do recorrente à custa da recorrida, quer os correlativos pedidos de restituição baseados no referido instituto jurídico não podem deixar de ser desatendidos.”
III. DECISÃO
Pelos fundamentos indicados, é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.
Custas do recurso de revista pela autora, sem prejuízo do apoio judiciário.
Lisboa, 2 de Outubro de 2025
Relatora: Fátima Gomes
1º adjunto: Rui Machado e Moura
2º adjunto: Oliveira Abreu
________________
1. Da responsabilidade da relatora.↩︎
2. Está provado que, à data em que o divórcio foi decretado - 16 de abril de 2015 -, a autora era titular da conta existente no Millemium BCP com o n.º .........10 e com o saldo de 1.239,68 € e na Caixa Geral de Depósitos com o saldo de 187,26 €.
3. Cujo teor se reproduz:
“Artigo 162.º
(Acções pendentes)
1 - As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5.
2 – (…).
Artigo 163.º
Passivo superveniente
1 - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.
4. Cfr. ref.ª...713 - cfr. fls. 57 a 60.
5. Cfr, entre outros, Acs. do STJ de 24/03/2017 (relator António Piçarra), de 5/12/2006 (relator João Camilo), de 29/05/2007 (relator Azevedo Ramos), de 4/10/2007 (relator Santos Bernardino) e Ac. da RC de 02/11/2010 (relator Isaías Pádua), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
6. Cfr, Antunes Varela, obra citada, p. 456 e Acs. do STJ de 16/09/2008 (relator Serra Baptista) e de 19/02/2013 (relator Alves Velho), in www.dgsi.pt.
7. Cfr, Ac. do STJ de 2/02/2010 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. e Ac. do STJ de 23/11/2011 (relator Gregório Silva Jesus), in CJSTJ, n.º 235, Ano XIX, T. III/2011, pp. 133/137, L.P. Moitinho de Almeida, Enriquecimento Sem Causa, Almedina, p. 101.
8. Pondera-se para o efeito a hipótese de, através desse acto, o réu ter logrado excluir o armazém do património da sociedade, prevenindo assim o não recebimento de bens pelo único sócio aquando da sua ulterior liquidação – colocando-o a salvo da sua responsabilização nos termos do disposto no art. 163º do CSC –, com o fito de prejudicar os credores societários, como era o caso da Autora.