ESCRITURA PÚBLICA
NOTÁRIO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
DOAÇÃO
ANIMUS DONANDI
TESTAMENTO
BONS COSTUMES
AUTONOMIA DA VONTADE
PETIÇÃO DE HERANÇA
USUCAPIÃO
ABUSO DO DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ININTELIGIBILIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


I. A eliminação do Código de Processo Civil da figura da aclaração das decisões foi acompanhada da inclusão da sua obscuridade ou ambiguidade entre as causas de nulidade, se impedirem a respectiva intelegibilidade.
II. A arguição de nulidade por excesso de pronúncia pressupõe que a decisão excedeu o âmbito de cognição que lhe é permitido.
III. Ao prever a possibilidade de a Relação, apreciando o recurso da matéria de facto, alterar o julgamento da 1.ª instância, ali efectuado com observância dos princípios da imediação e da oralidade, mas controlado na Relação com base em registos, o legislador fez prevalecer a possibilidade de recurso sobre as vantagens da imediação.
IV. Pese embora a falta de imediação, vale também para a Relação o princípio da livre apreciação da prova.
V. Só pode ser considerada a causa de pedir alegada pelos autores da acção ou da reconvenção.
VI. Uma escritura pública é lavrada pelo notário, oficial público que, nessa qualidade, confere especial autenticidade aos actos particulares que adoptam essa forma.
VII. O notário tem o dever de explicar aos declarantes o significado do acto que praticam e não deve lavrar a escritura se tiver “dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos outorgantes”.
VIII. Não é estranha à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a consideração de que a ofensa aos bons costumes pode resultar dos meios utilizados para alcançar um determinado fim em si mesmo não ilícito”.
IX. A celebração de um contrato de doação em vez da elaboração de testamento não é, por si só, reveladora da utilização de um meio desconforme com os bons costumes.
X. A intervenção de notário exclui que se possa falar em secretismo na realização de uma escritura pública.
XI. Só é possível concluir que a vontade de doar se encontra condicionada pelas circunstâncias pessoais do doador com base na prova.
XII. A autorização para movimentar depósitos bancários não altera a titularidade do direito à restituição do dinheiro depositado.
XIII. Pretendendo os autores de uma acção de petição da herança a restituição à herança dos valores movimentados pelos réus, não faz sentido a aplicação, neste contexto, do instituto da usucapião como forma de aquisição do direito à restituição do dinheiro depositado.
XIV. A falta de prova do animus donandi impede que se conclua pela existência de doação.
XV. A acção só pode proceder quanto aos bens que integravam a herança à data da morte do seu autor.
XVI. O tribunal só pode decidir que os autores de uma acção agiram em abuso de direito se a prova o permitir.
XVII. Ainda que, na revista, os recorrentes voltem a referir nas alegações alguns factos que não lograram provar, a clareza da prova definitivamente assente é susceptível de excluir a condenação por litigância de má fé, pretendida pela parte contrária.

Texto Integral


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, BB e Herança de CC instauraram uma acção contra DD e EE, pedindo que o Tribunal:

“A) Admita a presente petição de herança.

B) E apreciando-a condene os RR. a reconhTecerem nos termos e para os fins do art.º 2075.º do CC a sua qualidade sucessória como únicos herdeiros da herança, ‘Herança de CC’ Nif. ... ... .92,

C) E com fundamento na falsidade da declaração de compra e venda, V. Exa declare nos termos do art. 374.º e art. 220.º do CC nula a venda do veículo RL-..-..,

D) E, em consequência, emita decisão judicial bastante para o cancelamento do registo – Insc. Ap.7107 de 10.08.2016, relativo à aquisição desse bem pelo R. DD;

E) Mais declarando nula a doação de 07.10.2013, relativamente aos prédios descritos na CRP Portalegre sob os artigos 1476 e 375 da Freguesia de Fortios

- Nos termos do art. 70.º n.º 1 alínea e) do CN e art.22.º [220.º] do CC, por falta da forma legalmente exigível;

- E nos termos do art. 280.º n.º 2 por ofensiva dos bons costumes;

F) E em consequência profira decisão bastante para o cancelamento dos registos de aquisição a favor dos RR., sobre os bens doados,

- Ap.1035 de 2013/10/08 que recaiu no prédio ...913

- Ap.1035 de 2013/10/08 que recaiu no prédio ...23.

G) Vindo a final a condenar os RR. a restituir nos termos do art. 2075.º do CC os bens que tem na sua posse pertencentes a esta herança:

1. Veículo automóvel ligeiro, matrícula RL-..-.. marca Nissan modelo Sunny, de cor cinzento, com o valor atribuído de 1.000,00€, registado em nome do de cujus em 10.07.2016.

2. 2.980,74€ – Saldo bancário existente na conta n.º ...........30 da Caixa Geral de Depósitos na data da morte do de cujus em 10.07.2016.

3. 7.000,00€ – movimentados na Caixa Geral de Depósitos em 2016.06.07, pelo R. DD a seu favor, através do cheque n.º ........40 da conta do de cujus, com o IBAN OT50 .... .... .... .... .30;

4. 50.000,00€ – que o R. DD em 15.04.2026 movimentou a seu favor da conta do de cujus, n.º .........75 da Caixa Montepio Geral através do cheque n.º........27;

5. 20.894,12€ – que o R. DD movimentou a seu favor em 2016.05.24 da conta do de cujus, com o n.º .........75 da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º ........28;

6. Prédio misto, denominado “Estacal”, situado em Monte Velho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º .....913, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano 806 e rústico artigo 11 da secção F, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de 40.922,33€;

7. Prédio misto, denominado “Gorgulha”, situado em Fortios, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º ....23, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano ..65 e rústico artigo ... da secção C, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de 88.363,15€,

(...)”.

O pedido veio a ser ampliado, passando a integrar a condenação na obrigação de restituir € 6.100,0,0 referentes a cheque com o número n.º ...........30. A ampliação foi admitida pelo despacho de 3/4/2004.

Os réus contestaram e deduziram pedidos reconvencionais, concluindo nestes termos:

“(...) deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada e os Réus absolvidos dos respectivos pedidos consubstanciados em A) B) C) D) E) F) G), 1. 2. 3. 4. 5. 6 e 7; mais deve ser julgada procedente a reconvenção e, por via dela, os Autores reconvindos condenados a reconhecerem que as quantias em dinheiro identificadas nos pontos G. 1. 2. 3. 4. 5. 6 e 7 do pedido formulado na p.i., bem como, a viatura automóvel, de matrícula RL-..-.., de marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzenta são propriedade dos Reconvintes, seus possuidores, há mais de 3, 6, 7 e 10 anos, por vontade dos tios e, também pela via da usucapião, com as legais consequências.”.

Os Autores replicaram, sustentando a improcedência da reconvenção e da defesa por excepção. A réplica foi admitida no despacho saneador, na sua totalidade: “No caso, e porque é de admitir o articulado da réplica, aceito desde já, por razões de economia processual, a resposta à excepção”.

A sentença julgou a acção parcialmente procedente, nestes termos:

“A) Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

a) Condena-se os Réus a reconhecerem nos termos e para os fins do art.º 2075.º do CC a qualidade sucessória de AA e BB como únicos herdeiros da herança, “HERANÇA DE CC” Nif. ... ... .92;

b) Declarar nulo o registo de propriedade do veículo de matrícula RL-..-.., no que concerne à forma de aquisição da propriedade, e, em consequência, ordena-se o seu cancelamento no que concerne à dita causa e substituído por outro de onde conste como causa da transmissão da propriedade “doação”;

c) Absolve-se os Réus do demais peticionado.

B) Julga-se o pedido reconvencional parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência condenam-se os Autores a reconhecerem que:

a) Os valores:

- 2.980,74€ - Saldo bancário existente na conta n.º ...........30 da Caixa Geral de Depósitos na data da morte do de cujus em 10.07.2016;

- 7.000,00€ - movimentados na Caixa Geral de Depósitos em 2016.06.07, pelo R. DD a seu favor, através do cheque n.º ........40 da conta do de cujus, com o IBAN OT50 .... .... .... .... .30;

- 50.000,00€ - que o R. DD em 15.04.2026 movimentou a seu favor da conta do de cujus, n.º .........75 da Caixa Montepio Geral através do cheque n.º ........27;

- 20.894,12€ - que o R. DD movimentou a seu favor em 2016.05.24 da conta do de cujus, com o n.º .........75 da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º ........28;

b) O veículo de matrícula RL-..-..;

São pertença dos Réus.

B) Custas na proporção do decaimento que se fixam em 9/10 para os Autores e 1/10 para os Réus, nos termos do disposto no art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.”

Para assim decidir, e em muito curta síntese, a sentença entendeu que os bens não integravam a herança de CC, por terem sido adquiridos pelos réus em sua vida (doação, quanto ao automóvel e aos imóveis, doação e ou usucapião quanto aos depósitos bancários e movimentações da conta em benefício dos réus); e que as doações não eram nulas por ofensa dos bons costumes.

A sentença veio a ser revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que alterou alguns dos pontos da matéria de facto que foram impugnados (como se assinala adiante) e julgou desta forma:

“a) Declara-se a nulidade da declaração de compra e venda, ordenando-se o cancelamento do registo efetuado sob a Ap. 7107, de 10.08.2016;

b) Declara-se a nulidade da doação de 07.10.2013, relativa aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º .....913 e sob o n.º ....23, da freguesia de Fortios, por ofensa dos bons costumes, ordenando-se o cancelamento dos registos de aquisição efetuados sob as Ap. 1035, de 2013/10/08, relativa ao prédio .....913, e Ap. 1035, de 2013/10/08, relativa ao prédio ....23;

c) Ordena-se a restituição, por parte dos RR., dos bens que têm na sua posse, pertencentes à Herança de CC:

- Veículo automóvel ligeiro, matrícula RL-..-.., marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzento;

- 2.980,74€ - Saldo bancário existente na conta n.º ...........30, da Caixa Geral de Depósitos, na data da morte do de cujus, em 10.07.2016;

- 7.000,00€ - movimentados na Caixa Geral de Depósitos, em 07.06.2016, pelo R. DD a seu favor, através do cheque n.º ........40, da conta do de cujus, com o IBAN OT50 .... .... .... .... .30;

- 50.000,00€ - que o R. DD, em 15.04.2016, movimentou a seu favor da conta do de cujus n.º .........75, da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º ........27;

- 20.894,12€ - que o R. DD movimentou a seu favor, em 24.05.2016, da conta do de cujus com o n.º .........75, da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º ........28;

- 6.100,00€ - que o R. DD movimentou, em 14.04.2016, através do cheque n.º ...........30, sacado da conta do de cujus com o n.º ...........30;

- Prédio misto, denominado “Estacal”, situado em Monte Velho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º .....913, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano 806 e rústico artigo 11 da secção F, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de 40.922,33€;

- Prédio misto, denominado “Gorgulha”, situado em Fortios, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º ....23, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano ...5 e rústico artigo 299 da secção C, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de 88.363,15€.”

Entendeu a Relação que, no que toca à doação dos imóveis, “(…) a realização da escritura de doação no contexto em que ocorreu e nas circunstâncias pessoais em que os doadores se encontravam, ofende os bons costumes”, quanto ao automóvel, que não está provado ter sido celebrado um contrato de compra e venda; quanto aos depósitos bancários, distinguindo os movimentos efectuados em momento anterior e em momento posterior à morte do autor da sucessão, o tribunal entendeu que, em qualquer caso, também integravam a herança.

2. Os réus recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações que apresentaram, formularam as conclusões seguintes:

I - O recorrente desde criança manteve uma relação filial com os seus tios, CC e FF, esta era irmã da sua mãe; na infância com eles habitou e eles dele tomaram conta; as contas bancárias, enquanto os tios estiveram em Inglaterra o recorrente era delas co-titular e esteve presente na vida dos tios sempre no Natal, Páscoa, aniversários e doença, acompanhando-os ao longo da vida nos hospitais, clinicas, consultas, tratamentos, intervenções cirúrgicas, foi sempre sua visita e acompanhante, cuidador, a figura securizante, movimentador de contas, tudo conforme vem provado nos factos 39 a 53.

II - Os autores e recorridos desta acção nunca visitaram os tios CC e FF, sendo que eram filhos de um meio irmão do CC, com quem este não conviveu ao longo da vida e que faleceu 6 anos após o CC e que nunca reclamou o que quer que fosse da herança do meio irmão, conforme factualidade provada nos factos 54 a 59.

III - Por sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, a Senhora Juíza julgou procedente a reconvenção e absolveu os recorrentes do pedido formulado na petição da herança pelos recorridos.

IV - Subsequentemente, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora aqui sob crítica, veio proferir sentença que contraria a sentença da primeira instância, não dando razão aos recorrentes, isto é, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o contrário do Tribunal da 1ª Instância.

V - Usando os poderes ao seu alcance, em pontos concretos da matéria de facto provada e não provada, julgando-os por forma a contrariar princípios essenciais como os da imediação e oralidade, violando a lei substantiva por erro de interpretação e aplicação aos factos, tornando o próprio acórdão, ambíguo e obscuro, senão mesmo ininteligível, face à prova produzida, mesmo quando alterada, pronunciando-se sobre questões que não devia apreciar ou que não podia delas tomar conhecimento, com erro notório na apreciação da prova.

VI - O acórdão sob crítica manteve inalterada a matéria constante dos factos 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58 e 59, bem como, os factos respeitantes à outorga da escritura em causa nos autos, outorgada no dia 7/10/2013, factos esses consubstanciados em sede de prova em 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 38.

VII - Não foi suscitado na acção qualquer incidente de falsidade ou qualquer perícia que pudesse pôr em causa tais factos, sendo que, os doadores como vem provado, tinham perfeita consciência do acto que realizaram e quiseram realizar, pois que estavam lúcidos, doaram os prédios de livre vontade e iniciativa – facto 37.

VIII - Face ao exposto, o que nos veio dizer o acórdão do Tribunal da Relação de Évora para pôr em causa a decisão da 1ª instância? que a realização da escritura de doação, no contexto em que a leu e, ao arrepio dos princípios da oralidade e de imediação ou proximidade, ofende os bons costumes.

IX - Os recorrentes questionam: Quais? Porquê? É que, dos factos articulados pelos recorridos na acção, deles não resulta qualquer situação de necessidade e de dependência em que ficaram os tios dos recorrentes ao outorgarem a escritura, tão pouco que houve erro na formação da vontade dos doadores, ou coação, ou qualquer outra matéria de facto alegada e/ou provada, que indicie ainda que ao de leve, qualquer dolo ou abuso por parte do recorrente.

X - Na verdade, De acordo com o vertido no Volume I de Contratos Privados, de Fernando Baptista de Oliveira, Coimbra Editora, 1ª Edição, Abril de 2014, quando se abordam os bons costumes a pág. 207 e 208 consigna-se que “os bons costumes constituem um princípio jurídico que compreende todas as regras que, não estando explicitadas em normas, são, no entanto, observadas como jurídicas em determinada sociedade. Trata-se de “conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento, sendo certo que tal noção é variável, com os tempos e os lugares. Ou, nas palavras de Almeida Costa, do conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente. O negócio ofensivo dos bons costumes: “é o que tem por objecto actos imorais, podendo estes ser imorais em si mesmos ou repugnar à consciência moral apenas pelo nexo que se cria entre eles e a prestação da outra parte”. É diferente do negócio contrário à lei. Este é “o negócio cuja realização material se não pode impedir, mas que a lei reprova, considerando-o ferido de nulidade (por ex: venda de herança de pessoa viva; certas cláusulas testamentárias consideradas restritivas da liberdade do chamado; assunção de obrigações contrárias a deveres impostos por Lei: não educar o filho, não conviver com a mulher, etc.)”. A contrariedade à lei é susceptível de se verificar de modo directo ou indirecto, sendo esta última vertente qualificada de fraude à lei, situação que ocorre quando a lei proíbe certo resultado, mas os sujeitos, através de um ou mais negócios jurídicos, que ela, em regra, não proíbe, conseguem o resultado legalmente proibido. Segundo a lei, são nulos os negócios jurídicos contrários à lei ou ofensivos dos bons costumes, nos termos do artº 280º, nºs 1 e 2, do CC.” Pág. 210 “Os bons costumes referidos no artº 334 do Código Civil, são, pois, uma cláusula geral que preserva a sensibilidade jurídica em áreas onde falhem outros princípios, mas cuja regulamentação a sociedade exige. A razão da existência destes bons costumes é a mesma que é exigida para a boa fé. O limite dos bons costumes não respeita à função, mas ao modo de exercício. Não afasta comportamentos disfuncionalizados, mas comportamentos incorretos.”

XI - Como assim, o acórdão em análise e de que se discorda proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, violou o disposto nos artºs 280 nºs 1 e 2 e 334 do Código Civil, pois que, está em desacordo com a factualidade provada, sendo que, os recorridos que nunca visitaram ou conheceram o tio/avô e de meio irmão, poder-se-á dizer que ao actuarem como actuam no processo, o fazem com abuso de direito.

XII - O trajecto de vida dos recorrentes com os tios escalpelizado na factualidade constante dos factos provados de 39 a 59, não habilitam o Tribunal à luz de tudo quanto se expôs, a considerar a realização da escritura de doação, no contexto em que ocorreu, como ofensiva dos bons costumes.

XIII - A escritura de doação representa a prática de um acto lícito, válido, e, não é censurável; inexistem factos que permitam (nem foram objecto de prova porque não foram alegados) invocar dolo, coação, simulação, etc, não há em toda a matéria de facto provada e alegada, vícios que afectem a vontade de quem outorgou a escritura.

XIV - Porquê? Nem o próprio acórdão o explica. Efectivamente, os tios do Réu e recorrente não ficaram em situação de dependência ou necessidade – nem tal matéria foi alegada e consubstanciada em factos – nem há indícios mínimos de coação, vícios de vontade ou quaisquer outros factos que não tragam à colação apenas e só a relação filial que o recorrente manteve ao longo de toda a vida com os tios. Por isso, dizer-se como se diz que a escritura ofende os bons costumes, é para o recorrente, absurdo e ininteligível.

XV - Violar os bons costumes, Venerandos Juízes Conselheiros, é outrossim não ter em consideração a vontade dos tios do recorrente (referiram por diversas vezes a estes e a pessoas mais chegadas, que tudo seria para eles, conforme vem provado), nunca os ter visitado, não ter respeitado o facto do próprio pai dos Autores durante mais de 6 anos, não ter reclamado qualquer herança do meio irmão.

XVI - Por outro lado, a factualidade provada em 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, toda ela decorre da autorização que o recorrente tinha dos tios para movimentar até em seu proveito, os dinheiros e os bens, devido ao relacionamento filial existente entre os tios e o sobrinho desde a tenra idade deste.

XVII - A reconvenção deduzida na acção pelos recorrentes, foi julgada procedente, nomeadamente quanto às quantias em dinheiro identificadas em G.1. 2. 3. 4. 5. 6. 7., bem quanto à viatura automóvel, pois que, é consabido que só os bens que à morte do falecido se encontram na sua esfera jurídica, são susceptíveis de integrar o fenómeno sucessório – artºs 2032 e 2050 do Código Civil e, os bens em causa nestes autos, à morte do tio do recorrente – a tia já havia falecido há alguns anos -, já não se encontravam na titularidade dele, quer por força da escritura (artº 947 do Código Civil), quer por força dos movimentos bancários efectuados pelo recorrente em 7/6/2016, 15/4/2016, 24/5/2016, que autorizam a invocação da figura da usucapião; ademais, os títulos de crédito e/ou contas bancárias, foram ao longo dos anos, movimentados pelo recorrente e o dinheiro delas retirado (de acordo com a vontade dos tios), dinheiro esse, objecto de posse por parte do recorrente, que dele se apropriou e, portanto, atento o tempo decorrido, foi por ele usucapido, cabendo aqui a figura da usucapião.

XVIII - Assim o reconheceu o Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, em sede de 1ª Instância, que desvalorizou o acto registral do veículo, sustentando valor indicativo do mesmo, valorizando antes a vontade manifestada pelo tio ao longo de anos.”.

Os autores contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso, concluindo desta forma as suas alegações:

“I - QUESTÃO PRÉVIA

I.

O propósito destas contra alegações, é apresentar contra fundamentos, ao recurso de revista dos Recorrentes, que impugnam o Acórdão do TRE, proferido por unanimidade pelo coletivo de três Juízes Desembargadores, qualificando-o de puramente especulativo e absurdo, com o único propósito, de o STJ o revogar., ( v. ref. Citius...80 de 05.05.2025).

II.

Porém, analisada a revista, e espremido o seu conteúdo, nada justifica a utilização de tais termos, muito menos a revogação do acórdão do TRE, pelo não cumprimento mínimo do rigor técnico exigível; utilização de linguagem brejeira e descuidada, quase ofensiva; não combaterem as questões essenciais decididas; e com imensas dúvidas, questionam o STJ, sem invocarem a nulidade do acórdão do ponto de vista da sua falta de fundamentação; e na nulidade por ininteligibilidade, e omissão ou excesso de pronuncia, não o adjetivam corretamente, impedindo a sua apreciação; demonstram ainda uma enorme dificuldade na interpretação do acórdão, quando ele é claro aos olhos do homem comum, e está devidamente sustentado na decisão de facto na doutrina e na jurisprudência

III.

Os Recorrentes só por teimosia, insistem em questões por todos há muito aceites, como o não funcionamento da usucapião nos bens fungíveis, ou nulidade das doações por morte, e na prevalência da moral sobre o direito.

IV.

Insurgem-se, ainda os Recorrentes, contra a subsunção dos factos ao direito, mas induzem o STJ em erro, quando pretendem fazer crer que o TRE decidiu as mesmas questões de direito, com base nos mesmos factos, que a 1 instância, afirmando que o TRE não alterou a decisão de facto, quando é mentira, e utilizam ou omitem entre outros, os factos não provados w), nn), e provados 37, 38, e 52 nomeadamente este último, que contém factos essenciais e bastante relevantes, com o teor dado pela 1ª instância, o que é claramente demonstrativo da sua má-fé.

V.

Os recorrentes no cumprimento do art.698.º n.º1 do CPC, apresentam no seu requerimento de interposição, como fundamentos legais da revista, os indicados no art.674.º, n.º1, alínea a), b) e c), e art.615.º n.º1 alínea c) e d) do CPC(v. ref. Citius...80 de 05.05.2025 e art.638.º, art. 674.º e art. 615.º CPC

VI.

Do que antecede e percorridas as alegações dos recorrentes, resulta evidente, que delas não resulta qualquer uso ou pedido de alteração à decisão sobre matéria de facto, ficando assim definitivamente assentes, os factos provados e não provados tal como fixados pelo TRE ( v. ref. Citius...80 de 05.05.2025 art.682.º e art.674.º CPC

VII

Com isto quer dizer-se que a mera alegação de erro notório sobre a apreciação da prova, e a violação dos princípios da imediação e oralidade, não só não supre, a sua preclusão por falta de pedido, como por ser genérica, e não indicar qualquer violação concreta, de disposição expressa na lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto dado por provado e não provado, ou que fixe a prova de determinado meio prova, não pode sequer ser apreciada e decidida (v. ref. Citius...80 de 05.05.2025 e art.682.º e art.674.º CPC).

VIII.

Nestas circunstâncias, e nos termos do art.682.º n.º2 e art.674.º n.º3 do CPC, a referida decisão sobre a matéria de facto, não pode mais ser alterada, e os eventuais erros na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, não podem ser objeto de recurso de revista, restando agora, com o devido respeito, ao STJ, nos termos do n.º1 do art.682.º do CPC, aplicar-lhe definitivamente o regime jurídico que julgue mais adequado, ( v.art.682º e art.674.º CPC).

IX

Ao presente recurso de revista, aplicam-se salvo melhor opinião, as normas especiais dos artigos 679.º e ss., e o regime das disposições relativas ao recurso de Apelação, com exceção dos art.662.º e art.665.º do CPC, e bem assim as disposições gerais aplicáveis aos recursos, ( v. art.679.º e art.639.º CPC).

X

Ao STJ só cumpre conhecer de questões formuladas pelos recorrentes contempladas nas conclusões, as quais limitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso como é natural, (artigos 635.º, n.º2, art.632.º n.º1 e n.º2, art.663, n.º2, e art.608.º n.º2, do CPC).

XI

Os fundamentos da revista, são assim os especificadamente previstos nas alíneas a) b) e c) do nº1art.674.º do CPC, que por sinal os Recorrentes invocam, no requerimento de interposição, (v. ref. Citius...80 de 05.05.2025).

XII

Versando o recurso sobre matéria de direito, como é o caso, os recorrentes têm de dar cumprimento ao estatuído nas alíneas a), b) e c), dessa disposição legal, (v. art.639.º CPC).

XIII

Fica desde logo, afastado o conhecimento de eventuais erros processuais, com fundamento na alínea a) do n.º 2 do art.639.º do CPC, na medida em que, apesar desse fundamento legal ser indicado no requerimento de interposição, não consta das alegações nem das conclusões, a eventual ou errada aplicação de uma qualquer norma de direito adjetivo, (v. art.674.º n.º 1, alínea b) e art.639.º n.º2 alínea a) CPC)

XIV.

Fica também afastado, o conhecimento por parte do STJ, das nulidades invocadas no requerimento de interposição, com base nas alíneas c) e d) do art.615.º do CPC, na medida em que apesar de poderem constituir um fundamento da revista, conforme previsto na alínea c) do n.º1 do art.674.º e art.615.º ex vi art.665.º do CPC, essas nulidades, não constam das conclusões, nem tão pouco, as razões e fundamentos constam do requerimento, para que o tribunal a quo, as possa apreciar e dar cumprimento ao art.637.º do CPC, nem é formulado o pedido de nulidade do acórdão, (v. art.615.º, art.674.º e art.637.º CPC).

XV.

Os fundamentos da revista in casu, apenas se poderão enquadrar na alínea a) do n.º1 do art.674.º do CPC, dada a sua indicação no requerimento de interposição, nas alegações e nas conclusões, com indicação das concretas normas substantivas ditas violadas – em particular os artigos 280.º e art.334.º do Código Civil – e enquadram-se no pedido formulado de revogação do acórdão recorrido, (v. ref. Citius...80 de 05.05.2025)

DO ABUSO DO DIREITO

XVI.

O abuso de direito, está previsto no art.334.º do CC, é uma questão nova, que não foi apreciada pelas instâncias, dependendo agora de terem sido alegados e provados factos que se consubstanciem os pressupostos legais exigidos, e das consequências estarem compreendidas no pedido (v. art.334.º CC, e Litigância de Má-fé Abuso de Direito da Ação e Culpa in agendo” Almedina 3ªed. António Menezes Cordeiro, pag.132 e 133 e jurisprudência referida).

XVII.

A referência ao instituto do abuso de direito, foi aqui invocada pelos recorrentes pela primeira, nesta revista, e com fundamento no exercício ilegal de direitos dos recorridos, ao abrigo do art.2075.º do CC, sendo inoportuna, por respeitar a questão já encerrada e transitada em julgado, decorrente do reconhecimento da sua qualidade de únicos e exclusivos herdeiros do de cujus.

XVIII

Ademais, os recorrentes afirmam que o TRE violou o disposto 280.º n.º 1 e n.º 2 e o art.334.º do CC, por estar em desacordo com a factualidade provada, mas procuram induzir o STJ em erro, alegando que os Recorridos nunca conheceram o tio/avô, quando sabem e não podem ignorar que esses factos foram dados por não provados,

“Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:

(…) w) Os autores da presente ação nunca contactaram com os tios dos aqui Réus; nem nunca, os tios dos Réus os conheceram nem nunca tiveram qualquer contacto com eles;” (v. ref. Citius ...38 de 27.03.2025)

XIX

De todo o modo, o STJ não pode apreciar esta questão do abuso de direito, exceto se o fizer no exercício dos seus poderes oficiosos, na medida em que não foram alegados nem provados factos que preencham os pressupostos do abuso de direito, nem foi indicada a(s) modalidade(s) do abuso de direito, tão pouco formulado um pedido concreto, bastando-se os Recorrentes com a manutenção da decisão da 1ª instância, que por sinal não a apreciou.

DOS BONS COSTUMES

XX.

Os recorrentes vêm impugnar esta decisão respeitante à nulidade da doação de 7/10/2013, defendendo novamente e por teimosia, que a tutela do direito, deve ser analisada na perspetiva do mérito ou demérito de uns ou de outros sucessores ou beneficiados e os preteridos do ponto de vista da justiça ou adequação do réu ser beneficiado patrimonialmente pelos tios, pela dedicação e cuidados que prestou (v. ponto 4, do sumário do Acórdão recorrido – ref Citius ...38 de 27.03.2025).

XXI.

Mas o TRE entendeu antes indagar a questão no sentido de saber se foi correto o modo de proceder, ou seja, ainda que fosse justo ou adequado o R. ser beneficiado patrimonialmente pelos tios, com fundamento na dedicação e cuidados que lhes prestou, saber se a via utilizada para alcançar essa finalidade é socialmente ajustada e merece a tutela do direito. “(v. ponto 4, do sumário do Acórdão recorrido – ref Citius ...38 de 27.03.2025).

XXII.

E decidiu a questão analisando-a do ponto de vista que enunciou, decretando nula a doação de 7/10/2013, por ofensa dos bons costumes, mas sustentando-se nos factos provados e não provados, que sumariou e bem, no ponto 5 do acórdão, (v. ponto 5, do sumário do Acórdão recorrido – ref Citius ...38 de 27.03.2025 e facto não provado 70 e factos provados 28, 29,46,69,23,1, 2,3,6,51,25).

XXIII.

O TRE fez ainda a análise critica das provas e a correta subsunção dos factos ao direito, no art.280.º do CC, apoiando-se na Lei e em diversos entendimentos doutrinais, ( v. ref. Citius ...38 de 27.03.2025, art.280.º CC ; Elsa Vaz de Sequeira, Comentário…, p. 694; Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português: Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra, 2024, p. 599; Elsa Vaz de Sequeira, ibidem, p. 695; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed., Coimbra, 2010, p. 587; (Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, ibidem, p. 600).

XXIV.

E para além de cumprir o estatuído no art.607.º do CPC, o TRE teve ainda em consideração os arestos que tratam de casos análogos ao dos autos, todos eles disponíveis aos Recorrentes e a todos os que lhe queiram aceder, em http://www.dgsi.pt/, - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.04.2009 (Graça Mira) (Processo n.º 0825355); - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2021 (Lina Batista) (Processo n.º 632/18.0T8AVR.P1): - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.06.2023 (João Venade) (Processo n.º 1571/19.3T8AVR.P1):

XXV.

Ora, se os Recorrentes, não pretendem que o STJ altere a decisão de facto assente nas instâncias, e se o TRE, cumpriu escrupulosamente o art.607.º do CPC, apoiou-se nos factos provados e não provados, fez a sua análise critica, e a devida subsunção ao art.280.º do CC, e sustentou a decisão de nulidade da doação na doutrina e na jurisprudência, sem que os Recorrentes minimamente o contestem, apenas discordando do Acórdão por lhe ser desfavorável, então não estamos perante um acórdão ABSURDO, mas antes perante um pedido ABSURDO feito pelos Recorrentes ao STJ, para que revogue um Acórdão justo e devidamente fundamentado.

XXVI

Pode-se assim concluir com segurança, que a via utilizada pelo Recorrido DD, para alcançar a finalidade de ser beneficiado patrimonialmente pelos tios, com fundamento na dedicação e cuidados lhe prestou, não é socialmente ajustada e não merece a tutela do direito

DA LITIGANCIA DE MÁ-FÉ

XXVII.

Os Recorrentes litigam de má-fé, quando alteraram a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, e procuraram com esse comportamento, induzir o STJ em erro, com clara violação da alínea b) do n.º2 do art.542.º do CPC, Relativamente à decisão de facto fixada pelo TRE, ( v. ref. Citius ...38 de 27.03.2025 e...80 de 05.05.2025, e art.542.º CPC).

XXVIII.

Os Recorrentes litigaram de má-fé, por procurarem induzir em erro o STJ, ao terem alterado a verdade dos factos provados no ponto 37,38, e 52, e omitido os factos não provados em nn) e w), , relevantes para decisão da causa, e bem assim omitirem de forma clara e grave que o TRE alterou a decisão de facto, violando o seu dever de cooperação para a descoberta da verdade, violação esta prevista respetivamente nas alíneas b) e c) do n.º1 do art.542.º do CPC, e art.8.º e art.7.º do CPC,

XXIX.

Por conseguinte deverão vir a ser condenados os Recorrentes, nos termos e ao abrigo do art.542.º n.º1 e art.543.ºn.º1, alínea a) e n.º4 do CPC, em multa a fixar pelo STJ e numa indemnização aos Recorridos, de €3.500,00, por honorários devidos e a pagar diretamente ao mandatário”.

3. Vem provado da Relação o seguinte (indicam-se as alterações introduzidas no julgamento de facto da 1.ª Instância):

“1) Em 15.02.2014 faleceu FF;

2) Sem ascendentes ou descendentes sucedeu-lhe o seu marido, CC que veio a falecer em 10.07.2016

3) Também CC, faleceu sem descentes nem ascendentes sucedendo-lhe o seu irmão consanguíneo GG, ambos filhos de HH;

4) GG faleceu em 15.11.2022;

5) São descendentes de GG os ora Autores;

6) Nenhum dos falecidos supra indicados deixou testamento;

7) A “HERANÇA DE CC” encontra-se registada sob o numero de identificação fiscal ... ... .92, em que é cabeça de casal, AA, NIF ... ... .11, residente na Rua ..., n.º..., ..º andar, ... Portalegre;

8) Em 28.02.2023, os ora Autores formalizaram o “PROCEDIMENTO SIMPLIFICADO DE HABILITAÇAO DE HERDEIROS E REGISTOS”, no qual aceitaram expressamente a referida herança;

9) Em 04.04.2023 o cabeça de casal, AA participou à Autoridade Tributária, como bens da herança: Veículo automóvel ligeiro, matrícula RL-..-.. marca Nissan modelo Sunny, de cor cinzento, adquirido em 08.06.1989, com o valor atribuído de 1.000,00€; e o Saldo bancário de 2.980,74€ na conta n.º...........30 da Caixa Geral de Depósitos;

10) O Réu DD apenas autorizado a movimentar a conta bancária, fez seus, em data posterior à do óbito de CC, os 2.980,74€ que se encontravam depositados na conta n.º ...........30 da Caixa Geral de Depósitos, em proveito também da sua esposa, a ora Ré, EE;

11) Em 10.08.2016, o Réu DD registou o veículo RL-..-.. a seu favor;

12) Apesar de ter declarado que adquiriu o veículo através de contrato verbal de compra e venda, não procedeu ao pagamento de qualquer montante a título de preço; (1.ª Instância: Apesar de ter declarado que adquiriu o veículo através de contrato verbal de compra e venda, não procedeu ao pagamento de qualquer montante a título de preço, na medida em que o veículo havia-lhe sido oferecido e entregue, em data não concretamente apurada, mas anterior a 10 de Julho de 2016, por CC”; a parte eliminada passou a jj) dos factos não provados);

13) Venda essa que foi registada tendo por base um formulário intitulado “Requerimento de registo automóvel”, do qual constava, sob o título “Declarações”, uma declaração com o seguinte teor: “O contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 04-07-2016 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e por isso confirma-o sem quaisquer restrições (preencher caso se trate de contrato verbal de compra e venda com ou sem reserva de propriedade)”. 1.ª Instância: “Venda essa que foi registada tendo por base uma declaração de venda datada de 04.07.2016, anterior em 6 dias relativamente à data da morte do proprietário ocorrida depois em 10.07.2016”. Foi eliminado b) dos factos não provados: “A assinatura constante da declaração de venda mencionada em 13 dos factos provados não corresponde à do de cujus CC”);

14) O registo foi realizado na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa através da Ap. 7107 de 10-08-2016;

15) Em 07.06.2016 o Réu o DD, através do cheque n.º ........40 da conta do de cujus, com o IBAN PT50 .... .... .... .... .30 da Caixa Geral de Depósitos, movimentou a seu favor a quantia de 7.000,00€;

16) Os RR. DD e a esposa EE mantêm na sua posse e em proveito comum esses 7.000,00€;

17) O Réu DD, sem ser titular, estava autorizado a movimentar a conta do de cujus, com o n.º .........75 da Caixa Montepio Geral;

18) Em 2016.04.15 emitiu o cheque n.º ........27 a favor da Allianz Portugal SA. (cfr. facto 67);

19) E posteriormente movimentou os 50.000,00€ a seu favor;

20) Os RR. DD e a esposa EE têm na sua posse os 50.000,00€, que utilizam em benefício do casal;

21) Em 2016.05.24, o Réu emitiu o cheque n.º ........28 no valor de 20.894,12€ a seu favor (cfr. facto 68);

22) Os RR.DD e esposa EE tem assim na sua posse os 20.874.12€ que utilizam em benéfico comum do casal;

23) Desde 06.09.2013 que FF e CC eram utentes do lar de idosos da Associação ... na freguesia de Fortios;

24) Em 07.10.2013 DD residia na Rua.... n. º ..., também na freguesia de Fortios;

25) DD tinha sido eleito para a Direcção da ..., tomado posse e exercia de facto em 07.10.2013 funções de Vice-Presidente da Direcção da ...;

26) II tem Cartório Notarial na Av. ... n. º ..., loja 1 em Portalegre;

27) No dia 07.10.2013 DD levou FF e CC do lar, levando-os para sua casa na Rua ... n. º ..., na freguesia de Fortios;

28) Na data FF com 84 anos de idade, tinha-lhe sido recentemente amputado parcialmente o membro inferior esquerdo, motivado por má circulação;

29) CC tinha 83 de idade,

30) Aí chegados nesse dia 07.10.2013 os idosos sozinhos e nas circunstâncias supra descritas, apenas na presença do donatário e da notária II, celebraram uma escritura pública de doação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, na casa e a favor do R. DD de dois imóveis, a saber: Prédio misto, denominado “Estacal”, situado em Monte Velho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º .....913, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano 806 e rústico artigo 11 da secção F, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de 40.922,33€; e Prédio misto, denominado “Gorgulha”, situado em Fortios, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º....23, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano ...5 e rústico artigo ...9 da secção C, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de 88.363,15€;

31) Dessa escritura não consta qualquer razão ou justificação para que a mesma tenha sido celebrada na casa do donatário e não no cartório, e sem a presença de qualquer testemunha;

32) Sendo que por via dessa doação os idosos ficaram completamente despidos de qualquer imóvel incluindo a sua própria habitação;

33) Da escritura não resulta: as datas de validade dos documentos de identificação; d) E não constam esses documentos de identificação como documentos arquivados ou exibidos;

34) Da mencionada escritura consta que a senhora notária advertiu os doadores no ato da falta do certificado energético;

35) Da escritura consta a assinatura da doadora FF na última folha, sem que as restantes se encontrem rubricadas;

36) Constando da última folha, “Esta escritura foi lida e explicada aos outorgantes. O primeiro não assina por não poder, conforme declarou.”, e mais constando uma impressão digital aposta na margem direita (1.ª Instância: “Esta escritura foi lida e explicada aos outorgantes. O primeiro não assina por não poder, conforme declarou”);

37) Os doadores tinham perfeita consciência do acto que realizaram e quiseram realizar, pois estavam lúcidos, doaram os prédios de livre vontade (1.ª Instância: “Os doadores tinham perfeita consciência do acto que realizaram e quiseram realizar, pois estavam lúcidos, doaram os prédios de livre vontade e iniciativa”. A parte eliminada passou a constar dos factos não provados, como mm));

38) A escritura consta do livro de escrituras diversas número onze, de folhas vinte e três a vinte e cinco do Cartório de Portalegre, a cargo da Notária, II (1.ª Instância: As folhas da escritura não foram rubricadas porque a mesma foi efectuada em Livro de escrituras diversas número onze, de folhas vinte e três a folhas vinte e cinco do Cartório de Portalegre, a cargo da Notária, II);

39) O Réu desde criança que manteve uma relação filial com os seus tios, CC e FF; esta, era irmã da sua mãe;

40) Na infância do Réu, em data não concretamente apurada, aquele com eles habitou porque os seus pais trabalhavam e não podiam tomar conta dele;

41) Na década de 60 do século passado, os tios do Réu, emigraram para Inglaterra e ali estiveram durante cerca de 30 anos;

42) Enquanto estiveram em Inglaterra, os assuntos que lhes diziam respeito eram tratados pelo Réu; as contas bancárias que detinham em Portugal, nesse período o Réu era delas co-titular com os tios;

43) Quando os tios regressaram a Portugal foi nos Réus que se apoiaram, eram a sua família, com eles partilhavam a vida;

44) Estando presentes em ocasiões festivas como Natal, Páscoa, aniversários de membros da família;

45) Entre os Réus e os tios havia uma relação de família, de amizade, carinho e, de confiança recíproca;

46) No decurso dos anos de 2009/2010, a tia dos Réus começou a ter problemas de saúde; neoplasia da mama, mastectomia total da mama esquerda, problemas musculares ao nível do membro inferior esquerdo, o qual sofreria três amputações;

47) Até ao seu falecimento, durante vários anos, foram os Réus que a apoiaram nos hospitais, nas clínicas em Portalegre, nas consultas em Lisboa, nos tratamentos, intervenções cirúrgicas, transportando-a em viagens;

48) Numa fase terminal a tia dos Réus, por necessitar de estar sempre acompanhada, esteve internada na Unidade de Cuidados Continuados de Vila Viçosa, na Unidade de Cuidados Continuados de Arronches, vindo a falecer a 15 de Fevereiro de 2014, no Hospital de Portalegre;

49) Os Réus foram sempre suas visitas, acompanhantes, cuidadores;

50) Ambos estiveram na ... – Associação ... e, ao longo dos anos sempre manifestaram a vontade de transmitirem aos Réus todo o seu património após a morte de ambos;

51) As dificuldades de saúde porque passaram, nomeadamente a tia, determinou-os a que ingressassem no Lar dos Fortios em 5 de Setembro de 2013;

52) O R. tinha autorização dos tios para movimentar os seus dinheiros; todo o dinheiro uma vez satisfeitas as necessidades deles, era para os Réus e referiram-no por diversas vezes aos Réus e a pessoas mais chegadas. 1ª Instância: “O R. tinha autorização dos tios para movimentar os seus dinheiros como quisesse e entendesse, já que todo o dinheiro uma vez satisfeitas as necessidades deles, era para os Réus e referiram-no por diversas vezes aos Réus e a pessoas mais chegadas, tendo sido nesse contexto que efectuou as movimentações bancárias supra e infra indicadas”. O que foi eliminado passou para os factos não provados, como nn));

53) Após o internamento da tia dos Réus em Vila Viçosa e após o seu falecimento, foi o R. que emitiu e assinou cheques, nomeadamente os constantes de fls. 79 a 81, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

54) O tio dos Réus, CC era filho de HH e JJ; seus pais separaram-se era ele criança; seu pai, juntou-se com outra mulher, da qual teve um filho, GG;

55) Estes irmãos não se visitavam regularmente;

56) Não conviviam regularmente;

57) Mas sabiam da existência um do outro;

58) Os ora Autores nunca visitaram os tios, CC e FF;

59) O pai dos aqui Autores, entre 10 de Julho de 2016 e 15 de Novembro de 2022, data da sua morte, não reclamou a herança do irmão;

60) Os Réus pagaram à Agência Funerária Marmelo as despesas do funeral que foram de 1.802,20€;

61) O cheque nº ........28, no valor de 20.894,12€, foi emitido pelo Réu a 24.05.2016 a seu favor (1ª Instância: “O cheque nº ........28, no valor de 20.894,12€, emitido pelo Réu a 24.05.2016 a seu favor, mediante autorização, de CC, destinou-se ao Réu, como o tio queria e pretendia

62) DD movimentou, em 14.04.2016, o cheque n.º ...........30 no valor de €6.100,00, sacado da conta ...........30, pertença de CC;

63) O cheque foi movimentado a favor da empresa de construção civil, “Bilé Constrói – Sociedade de Construções Lda” e destinou-se ao pagamento de obras realizadas em casa dos Réus;

64) O R., sabia e não podia ignorar que ao retirar o valor de 2.980,74€ da conta do de cujus e transferir o veículo para o seu nome, esvaziava totalmente a herança (1ª Instância: constava, parcialmente, do facto não provado d));

65) O R. DD sabia e não podia ignorar que o valor descrito em 15 dos factos provados não era seu, sem que o tenha declarado à AT na data morte de CC ou informado qualquer interessado da sua existência (1.ª Instância: constava dos factos não provados como e));

66) Nas circunstâncias descritas em 19 dos factos provados, o Réu aproveitou-se da qualidade de mediador da Allianz Portugal SA., e reteve o referido cheque existência (1.ª Instância: constava dos factos não provados como f));

67) O R. DD sabia e não podia ignorar que o valor de 50.000,00€ descrito nos factos provados não era seu, e, sem que os tenha declarado à AT na data morte de CC ou informado qualquer interessado da sua existência (1.ª Instância: constava dos factos não provados como g); foi ainda eliminada a parte inicial do facto provado 18 (No uso desses poderes, em 2016.04.15 emitiu o cheque n.º ........27 a favor da Allianz Portugal SA), que passou a constar como facto não provado kk), para evitar contradições);

68) O R. DD sabia e não podia ignorar que o valor descrito em 22 dos factos provados não era seu, e que a autorização de movimentar a conta bancária não lhe permitia movimentar valores a seu favor sem qualquer justificação (1ª Instância: constava dos factos não provados como h); para evitar contradições, foi eliminado do facto 21. o segmento “no uso desses poderes”, passando a constituir o facto não provado ii);

69) Na data descrita em 27) dos factos provados CC já apresentava sintomas de Alzheimer (1ª Instância: constava dos factos não provados como i));

70) A escritura descrita em 30) dos factos provados, foi realizada sem o conhecimento de ninguém (1ª Instância: constava dos factos não provados como k)).

E foram considerados não provados os seguintes factos:

a) O Réu tem o veículo descrito em 11 dos factos provados na sua posse desde essa data;

c) O R. DD, sempre manteve o referido veículo em garagem sem circular e sem que possa ser visto por qualquer pessoa interessada;

i) Na data descrita em 27) dos factos provados CC já era medicado para auxiliar o esquecimento;

j) O Réu tivesse agido, nas circunstâncias descrita em 30) dos factos provados, beneficiando dos seus poderes de vice-presidente da direcção da ..., sem autorização e o consentimento de ninguém;

l) A escritura foi celebrada de surpresa e em situação de erro ou engano sem que os doadores se tivessem apercebido do que realmente iam efectivamente fazer na casa do donatário;

m) Não consta da escritura que os doadores tenham sequer exibido os seus bilhetes de identidade; que foi verificada a sua identidade por esses documentos de identificação; e que foi explicado aos idosos o significado e efeitos da doação nomeadamente que por via dela ficavam sem a propriedade e o uso desses 2 imóveis, incluindo o da sua própria habitação, e que os outorgantes declaram ser essa a sua vontade;

n) DD aproveitou-se da sua situação de vice-presidente da direcção da ... e de surpresa e através de uma estratégia concertada com a notária II de forma enganosa e astuciosa levaram os idosos de 83 e 84 de idade a celebrarem escritura pública de doação;

o) Decorria o ano de 1977, após terem passado férias em Portugal, os tios do Réu levaram-no a passar férias em Inglaterra, as quais custearam; ofereceram-lhe a primeira aparelhagem de música, ainda eram os discos em vinil;

p) Deram à sua mãe um aparelho auditivo, porque esta era surda;

q) Uma vez em Portugal, eram os tios dos Réus que iam levar e buscar à escola o filho destes, sempre que os Réus não o podiam fazer por razões profissionais;

r) A Ré, passou a tratá-los como se seus pais ou sogros fossem;

s) Aos Hospitais de Santa Maria e Santa Marta em Lisboa, os Réus deslocaram-se dezenas de vezes, transportando e acompanhando a tia às consultas dos Drºs KK, LL, MM, NN e, outros;

t) Na pendência dos internamentos da tia nos hospitais de Portalegre, Santa Maria, Santa Marta, os quais, alguns, foram longos no tempo – de trinta e mais dias – eram os Réus que davam apoio ao tio em Portalegre, confeccionando-lhe as refeições diárias, lavando-lhe a roupa, cuidando dele;

u) CC e GG nunca tiveram qualquer tipo de relacionamento, convivência, afecto; não se conheciam e, ao longo de toda a vida, um com o outro não se relacionaram;

v) Eram e foram toda a vida dois estranhos, um para o outro;

w) Os Autores da presente acção nunca contactaram com os “tios” dos aqui Réus; nem nunca, os tios dos Réus os conheceram nem nunca tiveram qualquer contacto com eles;

x) A declaração para transferência da titularidade da viatura para o Réu foi assinada por CC;

y) O valor de 2.980,74€ destinou-se a pagamento do funeral e outras despesas do tio dos Réus;

z) A entrega da viatura RL-..-.. ao Réu ocorreu antes de 2016, pois o tio do R. há vários anos que não conduzia;

aa) No que tange ao movimento operado da quantia de 7.000,00€ da conta IBAN PT50 .... .... .... .... ..0 da Caixa Geral de Depósitos, tal verificou-se para pagamento de despesas várias do tio dos Réus;

bb) Os Réus acertaram as contas no Lar (com a ...), mês de Julho de 2016 que foram de 148,68€;

cc) Os 50.000,00€ supra descritos resultam de um resgate de 4 aplicações financeiras “Allianz Rendimento”, que se iniciaram em 29/03/2011 e, com vencimento a 30/03/2016 (Ap....39 – 20.000,00€; Ap. ...96 – 10.000,00€ Ap. ...77 – 20.000,00€; Ap. ...92 – 10.000,00€);

dd) Todas as apólices foram objecto de acta adicional a 4/4/2013, com alteração do ponto 4. do artº 1º das condições contratuais, estipulando-se como beneficiário em caso de morte: - o Réu, DD;

ee) Todas as apólices, as quatro, vigoraram pelo prazo contratado;

ff) E, no vencimento delas, a 30/03/2016, foram resgatadas e, o R. creditou o seu valor na conta que lhes deu origem, a conta dos tios dos Réus;

gg) Depois, com o consentimento e conhecimento do tio, CC, o Réu procedeu à emissão em seu nome, de uma proposta de aplicações financeiras no produto “Allianz Garantia Mais”, com início em 29/02/2016 e cobrança no mês de Abril após o vencimento (30/03/2016) das mesmas;

hh) Esta proposta, nas referidas condições, originou a Ap. Nº ...66 que foi liquidada em 15 de Abril de 2016, por depósito na conta da Allianz, tendo sido, tal movimento sugerido e autorizado pela representante da própria Allianz, OO, que validou todo o procedimento;

ii) Os cheques mencionados em 53) dos factos provados destinavam-se a suportar despesas correntes dos tios, nomeadamente, lar, medicamentos, despesas correntes;

jj) Na medida em que o veículo havia-lhe sido oferecido e entregue, em data não concretamente apurada, mas anterior a 10 de Julho de 2016, por CC;

kk) No uso desses poderes, o R. emitiu o cheque de € 50.000,00;

ll) No uso desses mesmos poderes, o R. movimentou os € 20.894,12;

mm) A iniciativa da doação dos prédios foi dos doadores;

nn) Os doadores autorizaram o R. a movimentar as contas como quisesse e entendesse; tendo sido nesse contexto que efectuou as movimentações bancárias supra e infra indicadas.”.

4. Tendo em conta o requerimento de interposição de recurso e as conclusões das alegações dos recorrentes (cfr. n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil), cumpre conhecer das seguintes questões:

– Nulidade do acórdão recorrido, por ininteligibilidade (al. c) do n.º 1 do artigo 615.º e n.º 1 do artigo 666.º do Código de Processo Civil) e por excesso de pronúncia (al. d) do n.º 1 do artigo 615.º e n.º 1 do artigo 666.º do Código de Processo Civil);

– Violação dos princípios da imediação e da oralidade e “erro notório na apreciação da prova”;

– Erro de julgamento por se ter julgado nula a doação dos imóveis, com fundamento na violação dos bons costumes (artigo 280.º do Código Civil);

– Erro de julgamento quanto à aquisição dos “(...) títulos de crédito e/ou contas bancárias (...) movimentados pelo recorrente e o dinheiro delas retirado”;

– Erro de julgamento por não ter reconhecido aos recorrentes a propriedade de veículo automóvel ligeiro, matrícula RL-..-.., marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzenta;

– Actuação no processo “em abuso de direito” (artigo 334.º do Código Civil);

– Litigância de má fé.

5. Nas contra-alegações, os recorridos sustentam que, ao não adjectivarem correctamente as nulidades do acórdão recorrido por ininteligibilidade e por omissão de pronúncia, os recorrentes impedem a sua apreciação.

Entende-se, todavia, que este Supremo Tribunal não está impedido de as conhecer, seja porque da leitura conjunta do requerimento de interposição de recurso (que indica os preceitos legais que as preveem) e das conclusões das alegações (que apontam ao acórdão recorrido ser ininteligível, por ser obscuro e ambíguo, e ter apreciado questões das quais não podia ter tomado conhecimento) resultam os vícios que as provocam e os preceitos legais que os cominam com nulidade, seja porque, ainda tais preceitos não fossem indicados, encontrar-se-iam suficientemente identificados nas conclusões das alegações, não sendo condição da sua apreciação uma mais completa adjectivação.

É sabido que a eliminação do Código de Processo Civil da figura da aclaração das decisões foi acompanhada da inclusão da sua obscuridade ou ambiguidade entre as causas de nulidade, se impedirem a respectiva intelegibilidade (cfr. l. c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil) – O Código de Processo Civil de 2013 eliminou a possibilidade de pedido de esclarecimento das decisões (cfr. o artigo 613.º). A obscuridade ou ambiguidade passou a possibilitar apenas a arguição de nulidade, se tornar “a decisão ininteligível” (al. c)) do n.º 1 do artigo 615.º), escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 1084/12.4TBPTL.G1.S1).

Ora os recorrentes não apresentam qualquer causa que torne ambíguo ou incompreensível o sentido do acórdão recorrido, tornando impossível determinar o seu sentido. Na verdade, da leitura atenta das alegações de recurso resulta antes que estão a manifestar a sua discordância quanto à solução de direito que o acórdão recorrido fez corresponder à matéria de facto parcialmente alterada na apelação, alegando que em face da prova produzida, o acórdão é “(...) ambíguo e obscuro, senão mesmo ininteligível (...])” (concl. V).

Também não procede a arguição de nulidade por excesso de pronúncia, por não se encontrar no acórdão recorrido qualquer questão que tenha sido apreciada sem que a Relação dela pudesse conhecer, por exceder o âmbito de cognição que lhe é permitido (basicamente, questões julgadas na 1.ª instância e incluídas pelos então recorrentes no objecto da apelação ou questões de conhecimento oficioso); nem os recorrentes a identificam. Note-se, aliás que, no caso, a alegação de nulidade com fundamento em excesso de pronúncia se relaciona, uma vez mais, com a decisão em matéria probatória, exprimindo, também mais uma vez, o inconformismo dos recorrentes quanto ao sentido decisório final.

Improcede, porém, a arguição de nulidade do acórdão recorrido.

6. Os recorrentes alegam ainda que o acórdão recorrido violou os princípios da imediação e da oralidade, pese embora a ausência de concretização das alegações. Limitam-se a afirmar a ocorrência de erro notório na apreciação da prova.

Ora o Supremo Tribunal de Justiça já teve a ocasião de afirmar por diversas vezes que, ao prever a possibilidade de a Relação, apreciando o recurso da matéria de facto, alterar o julgamento da 1.ª instância, ali efectuado com observância dos princípios da imediação e da oralidade, mas controlado na Relação com base em registos, o legislador fez prevalecer a possibilidade de recurso sobre as vantagens da imediação (cfr., por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. n.º 07B3434, no qual se escreveu, a propósito do regime do recurso da matéria de facto resultante do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, que “É inevitável reconhecer que, com o sistema assim introduzido, a lei fez prevalecer a garantia do segundo grau de jurisdição sobre as vantagens da imediação na produção da prova testemunhal; e que aceitou que, para a 2ª Instância, esta falta de imediação não prejudicava a efectividade do princípio da livre apreciação da prova.”).

Igualmente afirmou, repetidamente, que, pese embora a falta de imediação (não vem agora ao caso referir a possibilidade de renovação de meios de prova ou de produção de nova prova no recurso, cfr. als. a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil), vale também para a Relação o princípio da livre apreciação da prova; e recordou que o Código de Processo Civil de 2013 o veio afirmar expressamente, ao remeter para o n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil no n.º 2 do artigo 663.º (cfr., a título de exemplo, o acórdão de 8 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1).

Não tendo sido concretizado o alegado erro notório na apreciação da prova, nada mais há a dizer quanto a este ponto. Nem importa agora recordar os limites dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça no que respeita à apreciação de erros na apreciação das provas (cfr. n.º 3 do artigo 674.º e n.º 2 do artigo 682.º do Código de Processo Civil e, por exemplo, o acórdão de 3 de Julho de 2025, www.dgsi.pt, proc. n.º 50/21.3T8STR.E1.S1: “Quanto à decisão de facto, todavia, apenas se admite um grau de recurso. Com efeito, mesmo nos casos ressalvados da impossibilidade de apreciação de matéria de facto – “salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil e n.º 2 do artigo 682.º do mesmo Código) – está em causa a aplicação de regras de direito (sobre a admissibilidade dos meios de prova ou o seu valor”), apenas se lembrando que só podem ser exercidos quanto a provas de valor tabelado ou vinculado – e não quanto a provas de livre apreciação.

7. Os recorrentes sustentam ainda que, ao julgar nulas as doações dos imóveis, por violação dos bons costumes, o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento.

Recorda-se que os autores, agora recorridos, haviam sustentado a nulidade das doações por falta de forma (o que foi desatendido pelo acórdão recorrido) e por ofensa dos bons costumes.

E lembram-se, ainda, as alterações introduzidas pela Relação na sequência da procedência de parte da impugnação da decisão de facto da 1.ª Instância, acima identificadas; em particular, no que respeita ao aspecto agora em apreciação, as que conduziram aos pontos 37 (alterado), 69 (acrescentado) e 70 (acrescentado) dos factos tidos como provados pela Relação.

Para concluir pela ofensa dos bons costumes, resulta do acórdão recorrido que foram especialmente ponderados o “contexto da doação”; as “circunstâncias pessoais dos doadores”, a prova de que quiseram doar, “lucida e conscientemente”, as relações entre doadores e donatário e o significado patrimonial, para os doadores, das doações efectuadas (transcreve-se parte do acórdão):

“Relativamente ao contexto da doação, dos factos indicados decorre que não está provado que a sua iniciativa tenha pertencido aos doadores; que está provado que estes foram transportados ao local onde a escritura foi celebrada pelo donatário; que esse lugar foi a casa do donatário; que na assinatura da escritura apenas estiveram presentes, além dos doadores, o donatário e a Notária que celebrou o ato; que ninguém teve conhecimento da escritura.

Quanto às circunstâncias pessoais dos doadores, está provado que eram duas pessoas com mais de 80 anos de idade; a doadora teve cancro, sofreu mastectomia total da mama esquerda, e foi amputada parcialmente ao nível do membro inferior esquerdo; o doador tinha sintomas de Alzheimer e tomava medicação para a memória; estavam, à data, a residir no lar.

O primeiro bloco de factos aponta no sentido de que o domínio da situação pertenceu ao donatário, tendo os doadores essencialmente comparecido no ato da celebração da escritura.

Por outro lado, resulta também daí que a escritura se realizou de forma sigilosa, no interior de uma casa de habitação, sem a presença de outras pessoas para além dos diretamente envolvidos e sem que dela se viesse a ter conhecimento público.

No segundo bloco de factos assoma a ideia de que os doadores eram pessoas frágeis, atenta a sua idade e falta de saúde.

Todavia, está provado que a atuação dos doadores foi lúcida e consciente, correspondendo à sua vontade (facto 37.).

No que tange depois ao facto de os doadores terem disposto de todo o seu património imobiliário a favor dos RR., os AA. Sublinham que o R. era o vice-presidente da instituição onde os tios foram internados (facto 25.), mas o R. não é um estranho, é da família, pois é sobrinho da doadora (facto 39.), e, mais do que isso, é uma pessoa que com os tios conviveu a vida toda e que sempre deles cuidou e lhes deu afeto, bem como os auxiliou na gestão dos seus interesses, tanto enquanto eles estiveram emigrados, como quando regressaram a Portugal, até ao fim dos seus dias (factos 40. A 45., 47. E 49.).

Por outro lado, como diz o Tribunal a quo, é comum que os casais sem filhos disponham do seu património a favor de quem deles cuida, como uma manifestação de gratidão e reconhecimento.

Todavia, no facto provado 50. Diz-se que a intenção publicitada pelos tios não era a de que pretendessem desfazer-se do seu património em vida, mas apenas após a sua morte, o que colide com esta doação.

Aliás, não se julgou provado que os tios tenham doado em vida o veículo, nem o dinheiro que lhes pertenciam.

E não se pode afirmar que isto não faz sentido, pelo contrário, não tendo os RR. filhos, dependiam financeiramente, em exclusivo, deles próprios.

Veja-se, com efeito, que não consta da matéria de facto provada que algum familiar, áxime o R., tenha colocado os seus próprios recursos financeiros ao dispor dos tios, antes o princípio era o de que os tios se sustentavam a si próprios (facto 52.).

Ora, sem prejuízo da consideração de que aquilo que é essencial, em primeira linha, é a liquidez, a qual reside nas contas bancárias, é também habitualmente encarado o imobiliário como uma reserva de valor, que pode permitir acudir a uma necessidade mais grave.

Tudo visto, o maior valor que os tios tinham eram, precisamente, os dois imóveis da sua propriedade.

Por outro lado, se o R. era para os tios uma figura securizante, na medida em que era o seu cuidador, não deixava também de ser, por isso mesmo, alguém com forte influência na vida dos tios, considerando que não tinham filhos, que era o R. quem geria toda a sua vida financeira e, por último, que estavam dependentes dos cuidados prestados no lar, onde o R. era o vice-presidente.

Acentuamos também que esses cuidados eram imprescindíveis para os tios, porquanto a sua entrada para o lar foi motivada pelo facto de terem perdido condições para estarem sozinhos na sua residência, em virtude da idade avançada e das doenças (facto 51.).

Assinalamos, ainda, que o contexto em que decorreu a assinatura da doação reforçou o papel dominante exercido pelo R., pois os tios nunca deixaram de estar exclusivamente sob a alçada deste, saindo do lar onde era vice-presidente para sua casa.

Não entendemos, por outro lado, que a questão deva ser analisada sob a perspetiva do mérito ou demérito de uns ou de outros sucessores, não é disso que se trata aqui, mas antes de indagar sobre o correto modo de proceder, isto é, ainda que fosse justo ou adequado o R. ser beneficiado patrimonialmente pelos tios, com fundamento na dedicação e cuidados que lhes prestou, saber se a via utilizada para alcançar essa finalidade é socialmente ajustada e merece a tutela do direito.

À luz de tudo quanto acabámos de expor, consideramos que a realização da escritura de doação no contexto em que ocorreu e nas circunstâncias pessoais em que os doadores se encontravam, ofende os bons costumes.

Relativamente ao conhecimento das circunstâncias relevantes para este efeito, afigura-se ser o mesmo inequívoco, considerando que era o R. quem geria toda a vida financeira e prestava cuidados aos tios, sendo, além disso, o vice-presidente da instituição onde foram internados e acabaram por vir a falecer.

Deve, pois, ser declarada a nulidade da escritura e cancelado o respetivo registo de aquisição a favor dos RR..”.

8. Antes de prosseguir na análise deste fundamento, convém ter presente o seguinte:

– Deixada de lado a alegação inicial de falta de forma, a causa de pedir alegada pelos autores (e recorde-se que só pode ser considerada a causa de pedir invocada pelos autores da acção – n.º 1 e n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil) – a ofensa dos bons costumes–, não se reconduz a qualquer forma de incapacidade ou de coacção;

– Uma escritura pública é lavrada pelo notário, oficial público que, nessa qualidade, confere especial autenticidade aos actos particulares que adoptam essa forma (cfr. artigo 1.º do Estatuto do Notariado, aprovado pela Lei n.º 155/2015, de 15 de Setembro). É por isso que, nos limites do disposto no n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, ficam plenamente provados os actos por ele praticados e os que são atestados com base nas suas perceções. O mesmo não sucede quanto aos “meros juízos pessoais” que formule, como se recorda no acórdão recorrido, que ficam sujeitos à regra da livre apreciação. A força probatória plena não abrange, assim, nem a veracidade das declarações cuja emissão atesta, nem a ausência de vícios da vontade ou de coincidência entre essas declarações e a vontade dos declarantes, inacessíveis ao notário.

No entanto, o notário tem o dever de explicar aos declarantes o significado do acto que praticam (cfr. n.º 3 do artigo 50.º do Código do Notariado e n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto do Notariado) e não deve lavrar a escritura se tiver “dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos outorgantes” (al.b) do n.º 2 do artigo 11.º do Estatuto do Notariado).

9. Como resulta da transcrição parcial do acórdão recorrido, a Relação entendeu que a doação dos imóveis é nula, por ofensa dos bons costumes, em consequência da “via utilizada” para a alcançar: em suma, porque “a realização da escritura de doação no contexto em que ocorreu e nas circunstâncias pessoais em que os doadores se encontravam ofende os bons costumes.”

Não é estranha à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a consideração de que a ofensa aos bons costumes – e, portanto, a nulidade – pode resultar dos meios utilizados para alcançar um determinado fim em si mesmo não ilícito” (expressão retirada do acórdão de 10 de Julho de 2008, www.dgsi.pt, proc. n.º 07B1994, citado como exemplo: “este Supremo Tribunal já considerou nulos, por ofensa aos bons costumes (nº 2 do artigo 280º do Código Civil), contratos cuja contrariedade às “regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas e de boa fé” (acórdão de 28 de Outubro de 1999, citando Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, em afirmação, hoje, constante da 4ª ed., Coimbra, 2005, pág. 559) ou “à moral social dominante” (acórdão de 27 de Janeiro de 2004, disponível in www.dgsi.pt. como proc. nº 03ª3043) se revela nos meios utilizados para alcançar um determinado fim em si mesmo não ilícito – não é ilícito comprar um prédio, mas esse resultado, nas condições em que concretamente foi alcançado, pode ter sido obtido por meios socialmente reprováveis, nomeadamente à custa de prejuízo consciente de direitos alheios (…)”.

Poder-se-ia considerar que o meio seguido – a celebração de um contrato de doação em vez da elaboração de testamento – seria, desde logo e por si só, revelador da utilização de um meio desconforme com o que seria socialmente aceitável, por transferir imediatamente para o património dos réus os bens mais valiosos dos tios; e seria ainda desconforme com o que vem provado no facto 50 – “(…) ao longo dos anos sempre manifestaram a vontade de transmitirem aos Réus todo o seu património após a morte de ambos” e, portanto, sinal de que o réu utilizou a sua “forte influência na vida dos tios” (acórdão recorrido), dele dependentes, para os levar a doar. No entanto, da conjugação deste facto 50 com o n.º 37 – “(…) os doadores tinham perfeita consciência do acto que realizaram e quiseram realizar, pois estavam lúcidos, doaram os prédios de livre vontade”), não pode concluir-se contrariar “as regras éticas pelas quais as pessoas honestas, correctas e de boa fé balizam o seu comportamento na sociedade em que nos integramos”, e que “impedem que se celebre um contrato com vista a prejudicar directa, intencional e deliberadamente terceiro, em proveito próprio” (expressão retirada do acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Fevereiro de 2000 (cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt como proc. nº 99A1061). E nem se diga que se trata de um acto praticado para prejudicar terceiros “directa, intencional e deliberadamente”, como sucedia no caso julgado pelo acórdão de 30 de Abril de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 261/14.8TBVCD.P1.S1: nada na prova o permite afirmar e, de todo o modo, recorde-se que os doadores podiam dispor livremente do seu património (dos factos provados resulta que nem tinham familiares que fossem seus herdeiros legitimários) e que os autores não eram titulares de direitos ou sequer de expectativas juridicamente tuteladas relativas aos imóveis em causa.

Note-se, desde já, que da conjugação entre os factos 50 e 37 resulta que se não pode afirmar que os doadores pretendessem que a transmissão da propriedade só ocorresse após a morte dos doadores, como se de um pacto sucessório se tratasse. E note-se, também, que a realização da doação em vida dos doadores garantia que o seu património (só tratamos, por ora, da doação dos imóveis) passasse para os réus – o que poderia não suceder com a elaboração de testamentos, dependendo da ordem com que viessem a falecer os doadores (uma vez que o cônjuge sobrevivo seria herdeiro forçado do que lhe sobrevivesse, no que toca à legítima, claro).

Não é socialmente invulgar ou censurado que se pratiquem em vida actos de disposição com vista à distribuição dos bens após a morte dos seus titulares. No caso presente, aliás, a ausência de filhos dos doadores, mas a existência de sobrinhos de cada um dos cônjuges, acompanhada com as relações de proximidade e afecto que vêm provadas entre os tios e o réu, não permitem entender que a doação contraria “as regras éticas pelas quais as pessoas honestas, correctas e de boa fé balizam o seu comportamento na sociedade em que nos integramos”, repetindo uma transcrição já feita, ou que se trata de um “negócio eticamente reprovável” (acórdão de 15 de Março de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 1936/5.0T8VFX-R.L1.S1) ou que afecte gravemente o “mínimo ético-jurídico exigido na convivência social” (acórdão de 8 de Setembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 1952/13.6TBPVZ.P1.S1).

Não podemos esquecer que os réus eram sobrinhos da doadora, tal como os autores eram sobrinhos do doador, como a sentença observou. Ora, ainda que se possa chamar a atenção para que a doação afastava os sobrinhos do doador, se este falecesse em segundo lugar, a conformidade com a vontade dos doadores exclui desde logo que se possa ter como verificada uma infracção das referidas regras éticas.

Acresce que a escritura de doação foi realizada por notário, com as garantias que essa presença oferece. Não se tratava de caso em que fosse necessária a participação de testemunhas e a deslocação dos doadores e da notária a casa dos donatários – que em nada ofende as regras de realização dos actos notariais – não vem acompanhada de prova que permita concluir negativamente pela existência de secretismo violador das regras normais de conduta. Repete-se: a intervenção da notária exclui que se possa falar em secretismo.

Resta observar que nada na prova permite concluir que as circunstâncias pessoais em que os doadores se encontravam condicionasse a vontade de doar e concluir que os imóveis identificados no ponto 30 dos factos provados não integravam a herança de CC.

10. No que toca às quantias que os autores pedem que sejam consideradas bens da herança, resultantes da movimentação de contas bancárias dos tios dos réus, os recorrentes pretendem também a repristinação do que foi decidido em 1.ª instância:

“Serve o exposto para concluir que os 6100,00€ movimentados pelo Réu, por cheque emitido a favor da Bilé Constrói – Lda, bem como os 2.980,74 € existentes na Caixa Geral de Depósitos à data do óbito de CC, devem ser tidos como adquiridos por doação e as demais adquiridas por usucapião e, caso assim se não entendesse, por se considerar oculta a posse, por doação, pelo que também não integram a herança aberta por óbito de CC”.

O acórdão recorrido, porém, entendeu que

“[...] na sequência da impugnação da decisão de facto veio a ser alterado o facto 52., dele tendo sido retiradas as menções “como quisesse e entendesse” e “tendo sido nesse contexto que efectuou as movimentações bancárias supra e infra indicadas”, que passaram a constituir o facto não provado nn).

Mais foram transferidos do elenco dos factos não provados para o elenco dos factos provados os factos atinentes aos movimentos efetuados em vida do tio do R., de onde resulta, em especial, a consciência por parte dos RR. de que nessas datas esses dinheiros não lhes pertenciam (factos 65. E 67. A 68.), bem como foi transferido para o elenco dos factos não provados a referência à atuação no âmbito dos poderes conferidos pelos doadores (factos kk) e ll)).

b) Importa, assim, estabelecer a diferenciação entre as duas categorias de movimentos em causa, atendendo às datas em que foram efetuados:

- os movimentos aludidos em 15., 19. E 22. Foram realizados em vida do tio do R.;

- o movimento aludido em 10. É posterior à sua morte.

Apesar do movimento aludido em 19. Ser proveniente de um cheque emitido a favor da Allianz, a sua origem é a conta do tio do R. (factos 17. E 18.), não se mostrando provado que se tratasse de dinheiro do R. (factos não provados cc) a hh)), pelo que deve merecer uma apreciação idêntica aos demais movimentos.”

E decidiu:

“c) Ordena-se a restituição, por parte dos RR., dos bens que têm na sua posse, pertencentes à Herança de CC:

[...]

- 2.980,74€ - Saldo bancário existente na conta n.º ...........30, da Caixa Geral de Depósitos, na data da morte do de cujus, em 10.07.2016;

- 7.000,00€ - movimentados na Caixa Geral de Depósitos, em 07.06.2016, pelo R. DD a seu favor, através do cheque n.º ........40, da conta do de cujus, com o IBAN 0T50 .... .... .... .... .30;

- 50.000,00€ - que o R.DD, em 15.04.2016, movimentou a seu favor da conta do de cujus n.º .........75, da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º ........27;

- 20.894,12€ - que o R. DD movimentou a seu favor, em 24.05.2016, da conta do de cujus com o n.º .........75, da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º ........28;

- 6.100,00€ - que o R.DD movimentou, em 14.04.2016, através do cheque n.º ...........30, sacado da conta do de cujus com o n.º ...........30 [...].”.

Os recorrentes sustentam que “quanto aos depósitos bancários, as movimentações de dinheiro efectuadas ocorreram no respeito da vontade dos falecidos tios dos recorrentes que são os seus proprietários, por vontade e desejo dos tios e, também pela via da usucapião. A factualidade provada dá notícia que os recorrentes devem ser tidos como possuidores desde a data da movimentação a seu favor das quantias enunciadas, como assim, desde 7/6/2016 quanto aos 7.000,00€, 15/4/2016 quanto aos 50.000,00€, 24/5/2016 quanto aos 20.894,12€ (a quantia em dinheiro de 2.980,74€, porque doada). (…) Os 6.100,00€ e, a quantia de 2.980,74€, quantias movimentadas pelo recorrente, enquadradas ambas pela matéria de facto dada como provada, devem ser tidas como adquiridas pelos recorrentes por doação.”

Resulta dos factos provados (cfr. pontos 10 e 17) que o réu estava autorizado a movimentar as contas bancárias dos tios. Como se sabe, «a questão da propriedade do dinheiro depositado (aliás transferida para o banco com a celebração do contrato de depósito, nascendo então da parte do banco a obrigação de “restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”, eventualmente com juros – cfr. artigos 1206º, 1142º e 1144º do Código Civil), é distinta e independente do regime de movimentação dos depósitos (solidária, conjunta ou mista, consoante for acordado) – cfr. por todos os acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Outubro de 2004, disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 04ª3101.», como se escreveu no acórdão de 15 de março de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 492/07.TBTNV.C2.S1.

Mais correctamente, dir-se-á que se não trata de uma questão de propriedade do dinheiro depositado, mas de titularidade do direito à sua restituição. De qualquer modo, o que agora interessa é ter em conta que a autorização para movimentar os depósitos não tornou o réu titular do direito à restituição do dinheiro depositado.

Sustentam os recorrentes que os montantes que o réu movimentou foram, em parte, adquiridos por usucapião, em parte, por doação; subsidiariamente, que todos foram adquiridos por doação dos tios.

Sucede, todavia, que, sobretudo após a alteração do ponto 52 dos factos provados, nada vem provado que permita concluir pela existência de doações – concretamente, de animus donandi.

No que se refere à aquisição por usucapião, cumpre observar que o que os autores efectivamente pretendem é a restituição à herança dos valores movimentados pelos réus, não fazendo sentido a aplicação, neste contexto, do instituto da usucapião.

11. Relativamente ao alegado erro de julgamento, resultante de não ter sido reconhecido aos recorrentes a propriedade de veículo automóvel ligeiro, matrícula RL-..-.., marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzenta, basta observar que não se provou nenhuma causa de aquisição da sua propriedade por parte dos recorrentes, nem compra e venda, nem doação. Assim, o automóvel integra a herança peticionada pelos autores.

12. Os recorrentes sustentam ainda que os autores agem em abuso de direito. Todavia, nada vem provado que o sustente.

13. Finalmente, resta afastar a litigância de má fé que os recorridos atribuem aos recorrentes. A clareza da prova que vem definitivamente assente afastaria qualquer pretensão de induzir o Supremo Tribunal de Justiça em erro sobre o que ficou assente, ainda que os recorrentes voltem a referir nas alegações alguns factos que não lograram provar.

14. Nestes termos, decide-se:

a) Conceder provimento parcial à revista e absolver os réus DD e EE do pedido de restituição à herança de CC do prédio misto, denominado “Estacal”, situado em Monte Velho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º ...913, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano ... e rústico artigo 11 da secção F, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre, e do prédio misto, denominado “Gorgulha”, situado em Fortios, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º....23, freguesia de Fortios, e inscrito com o artigo matricial urbano ...5 e rústico artigo ... da secção Constituição, freguesia de Fortios, concelho de Portalegre;

b) Confirmar o acórdão recorrido quanto ao mais.

Custas por recorrentes e recorridos, na proporção do decaimento.

Lisboa, 2 de Outubro de 2025

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

António Oliveira Abreu

Nuno Pinto de Oliveira