RECURSO DE REVISTA
INADMISSIBILIDADE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
DUPLA CONFORME
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
ANULAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
ABUSO DO DIREITO
QUESTÃO NOVA
FUNDAMENTOS
DEFERIMENTO
Sumário


I. A procedência da impugnação de facto não releva na averiguação da “dupla conformidade decisória”, enquanto obstáculo ao conhecimento do objeto da revista previsto no art. 671º nº 3 do CPC, se a alteração factual daí adveniente nenhuma repercussão tem na decisão de direito.
II. A Relação ao reconhecer a nulidade da sentença da 1.ª instância por omissão de pronúncia relativamente ao abuso de direito e, ao conhecer da questão em substituição ao tribunal recorrido (art. 665º nº 1 do CPC), conhece da questão ex novo, em 1º grau.
III. Desse modo, a decisão quanto ao abuso de direito que apenas no acórdão recorrido foi apreciado, não se mostra afetada pela dupla conformidade, impeditiva de recurso de revista.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Banco Comercial Português, S.A., com sede no Porto, veio, ao abrigo dos artigos 23º, nº 4, 58º, nº 1, alª a), 59º e 60º, todos do Código das Sociedades Comerciais (doravante “CSC”), intentar ação de anulação de deliberação social contra Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., com sede em Setúbal.

2. Pedindo ao tribunal que:

1) Declare a anulação das deliberações sociais tomadas na assembleia geral da Ré no dia 23 de junho de 2023.

Sustentando o pedido no facto de lhe ter sido “ilicitamente” recusado participar na referida assembleia (pois que tem/tinha direito de voto e o seu representante presente dispunha de um título válido para o efeito, porque emitido por quem tinha poderes para o emitir, ao contrário do invocado no ato de recusa da sua participação).

2) Declare a anulação da deliberação respeitante ao ponto 2 da ordem de trabalhos, tomada na mesma assembleia geral.

Sustentando este pedido no facto de ter sido deliberado “a não distribuição dos lucros em exercício”, com a aprovação de apenas 66,45% do capital social, em desrespeito da maioria qualificada de três quartos, imposta por lei.

3. A ação foi contestada.

4. A 1ª instância proferiu saneador-sentença, julgando a ação parcialmente procedente por provada e, em concreto, decidiu:

- a improcedência do pedido de anulação das deliberações sociais com fundamento em injustificada recusa da participação da Autora, na assembleia;

- a procedência do pedido de anulação da deliberação social que aprovou a “não distribuição dos lucros em exercício”, sem respeito pela maioria qualificada de votos.

Desse modo, anulou apenas a deliberação respeitante à proposta de aplicação do resultado líquido do exercício findo a 31 de dezembro de 2022.

5. A Ré Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., interpôs recurso de apelação, no qual invocou a nulidade da sentença por ausência de fundamentação e omissão de pronúncia, impugnou parcialmente a factualidade e pediu a reapreciação de direito.

6. O Autor interpôs recurso de apelação subordinado na parte em que foi julgado improcedente o primeiro pedido, de anulação do conjunto das deliberações com fundamento na violação do seu direito de participação na assembleia.

7. Conhecendo de ambos os recursos, o Tribunal da Relação, por acórdão de 16-01-2025, sem voto de vencido, decidiu:

1 – Julgar improcedente a apelação da Ré Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., mantendo a sentença recorrida na parte em que anulou a deliberação tomada na assembleia geral ordinária da ré no dia 23 de junho de 2023 relativa ao ponto 2 da ordem de trabalhos, concretamente sobre a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício findo em 31 de dezembro de 2022.

2 – Julgar procedente o recurso subordinado interposto pelo Autor Banco Comercial Português, SA, revogando a sentença de primeira instância na parte em que julgou improcedente o pedido de anulação das demais deliberações tomadas na referida assembleia geral anual da Ré (com fundamento em injustificada recusa de participação do Autor) e, em conformidade, declarou a anulação das mesmas ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 58.º, n.º 1, alínea a), 21.º, n.º 1, alínea b), 23.º, n.º 4, e 379.º todos do Código das Sociedades Comerciais.

Desse modo, através da apelação, o Banco Autor logrou total provimento das suas pretensões.

8. De novo inconformada, a Ré Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., veio recorrer de Revista pretendendo que a decisão do Tribunal da Relação seja revogada na totalidade.

Para o efeito deduziu as seguintes conclusões de recurso:

A. Com o presente processo peticionou o Recorrido a anulação das deliberações tomadas na Assembleia Geral da Recorrente do dia 23 de Junho de 2023, pelo facto de ter sido (i)legalmente impedido de aceder e intervir na mesma.

B. O que a decisão da 1ª instância, datada de 06.03.2024, considerou – e bem – improcedente.

C. Já, em articulado superveniente, tinha sido peticionada pelo Autor a anulação da deliberação relativa ao ponto dois da ordem de trabalhos pelo facto de a mesma ser contrária à lei e ao contrato de sociedade.

D. A este respeito, a decisão da 1ª instância determinou a anulação da respectiva deliberação do ponto 2 da ordem de trabalhos.

E. A aqui Recorrente recorreu desta decisão por esta padecer, desde logo, de duas nulidades e bem assim, a decisão sobre a matéria de facto e requereu a reapreciação da decisão.

F. A este Recurso veio o Recorrido apresentar Recurso Subordinado com o qual recorria da decisão da 1ª instância e pugnava pela anulação das demais deliberações tomadas na mesma Assembleia Geral pela alegada violação do direito de participação do Autor/Recorrido na mesma.

G. Sobre estes dois recursos pronunciou-se a aqui Decisão Recorrida, considerando:

a) procedente a nulidade relativa à omissão de pronúncia alegada pela aqui Recorrente;

b) procedente a impugnação sobre a matéria de facto feita pela aqui Recorrente;

c) tendo por base a reapreciação do mérito da decisão face ao conhecimento do abuso de direito invocado pela Recorrente, e alteração da matéria de facto, julgou improcedente o recurso da Recorrente quanto à deliberação do ponto 2 da ordem de trabalhos; e

d) procedente o recurso subordinado do Autor/Recorrido, determinando a anulação de todas as deliberações tomadas na assembleia geral da Recorrente do dia 23 de Junho de 2023, pela violação do direito de participação do Autor nessa Assembleia.

H. Quanto à impugnação da anulação de todas as deliberações pela alegada violação do direito de participação do Autor/Recorrido na Assembleia Geral, a Decisão Recorrida sustenta a sua decisão em quatro vectores fundamentais, por adesão ao recurso do Recorrido, desde logo:

I. i) que a Recorrente não devia ter verificado se os poderes conferidos pela carta mandadeira, o tinham sido por quem estivesse para tal habilitado; entendimento que é, salvo o devido respeito, não só totalmente inaceitável como contrário à lei e à segurança e certeza jurídicas.

J. É essa verificação que certifica que quem está a conferir poderes tem poderes para tanto, e o que se refere na Decisão Recorrida é contrário ao espírito de todo o sistema jurídico em termos de vinculação em matéria societária.

K. Seria contrário à ordem jurídica aceitar representantes cujos documentos conferentes de poderes de representação não fossem subscritos por quem obrigasse a entidade (administrador, procurador do acionista e/ou do credor pignoratício, etc).

L. Nem o que está disposto no regime legal referido pela Decisão Recorrida, dispensa que o documento mediante o qual são atribuídos poderes de representação, seja assinado por quem validamente está habilitado a conferir esses poderes.

M. É necessário recordar que, no entendimento, correcto, da 1ª instância, não consta dos estatutos do BCP, nem da lei, a possibilidade de a Secretária da Sociedade subscrever uma carta mandadeira, pelo que não poderia a Bacalhôa admitir a participação na sua Assembleia Geral das pessoas indicadas em tal carta mandadeira subscrita pela Secretária da Sociedade.

N. Algo como uma participação em Assembleia Geral deve exigir, incondicionalmente, o cumprimento do disposto na lei e nos estatutos, nos termos dos quais, o Autor, BCP, tinha que ter enviado carta mandadeira, sendo pessoa colectiva, por quem obriga a sociedade: dois administradores, um administrador e um procurador, dois procuradores ou um procurador com poderes especiais.

O. A carta mandadeira vinha assinada, não por nenhuma dessas pessoas, mas pela secretária da sociedade - Secretária da Sociedade que não é procuradora da sociedade nem, nos termos do 446º/B do CSC (Competências do Secretário), estão incluídos poderes para esta representar a Sociedade.

P. Assim, e porque a Senhora Secretária da Sociedade não invocou poderes de procuradora mas apenas a sua qualidade de Secretária da Sociedade, não estava a carta mandadeira apta a legitimar a intervenção daqueles que se apresentaram no local da assembleia para participar na mesma

Q. Como muito bem decidiu a 1ª instância. É que não é em face do que se sabe hoje que a Mesa tinha que ter decidido a participação do Autor na Assembleia Geral, como, erradamente se refere na Decisão Recorrida.

R. Sucede que a avaliação que compete ao tribunal é avaliar se, em função da informação que detinha e que foi facultada pelo Autor, podia ou não a Recorrente ter impedido a sua participação.

S. Era, assim, em face da informação que detinha naquele momento, que lhe tinha sido facultada pelo Autor/Recorrido, e que era do conhecimento público.

T. Naquele momento, e com base no que sabia nesse então, a Recorrente não podia ter permitido a representação do Autor por via daquele instrumento, como muito bem entendeu a 1ª instância, e cuja reposição se reputa da mais elementar justiça e se peticiona com o presente recurso.

U. Mas a Decisão Recorrida entendeu ainda que tinha existido, por parte da Recorrente:- a criação da convicção de que a recorrente aceitou a regularidade do instrumento quando permitiu a consulta dos elementos preparatórios anteriormente à Assembleia Geral.

V. Não só não é verdade que a Recorrente tenha prestado a aludida informação com base no instrumento apresentado - até porque semelhante conclusão apenas seria susceptível de confissão por parte da Ré, o que não sucedeu.

W. Como porque a Recorrente alegou precisamente o contrário na sua contestação, que, nos serviços relevantes da sociedade ninguém ignora que o penhor das acções a favor do BCP abrange os direitos de informação tendo instruções para permitir a consulta de modo a evitar este tipo de litigância.

X. Por último, tendo a Decisão Recorrida julgado procedente a impugnação que a Recorrente fez da matéria de facto relativamente ao ponto (o ponto) 56, não se pode aceitar esta conclusão, porquanto foi excluída dos factos provados que “Tal consulta foi realizada com base na carta mandadeira de 16 de junho de 2023, que a Bacalhôa aceitou”

Y. Também a propósito do que refere a Decisão Recorrida, de que:- anteriormente já tinha o Autor participado com um instrumento de representação conferido nos mesmos termos, tal foi totalmente esclarecido nos autos e desconsiderado: todas as participações foram esclarecidas e um erro pontual não constitui regra para o futuro.

Z. Por fim, a Decisão Recorrida sustenta que o Autor: - fez prova da regularidade desses poderes em tempo de à Recorrente ter sido possível permitir a sua participação na aludida Assembleia

AA. É falso que tenham sido, ou pudessem ter sido, ou devessem ter sido verificados os poderes posteriormente ao início da Assembleia, pelo que não houve qualquer “manutenção na recusa” e não está provado que assim o pudesse suceder, afinal, havia uma Assembleia em curso; e, por último, e contrariamente ao referido na Decisão Recorrida, está sim alegado, que tal ocorreu em momento em que já não podia ser verificada a regularidade do instrumento de representação.

BB. O que realmente sucedeu no dia – e foi relatado nos autos – foi que, antes de se iniciarem os trabalhos, a Mesa verificou a regularidade da participação dos diversos accionistas. Foi antes, como deveria ser: a anterioridade dessa verificação, que ocorreu antes de declarada aberta a Assembleia, como deveria ser, sob pena de a mesa nem poder organizar a lista de presenças que ontologicamente, no sistema jurídico português, antecede sempre a abertura dos trabalhos.

CC. Conforme dispõe o n.º 1 do art.º 382 do CSC, o intérprete tem que presumir que o legislador se soube exprimir, nomeadamente quanto ao tempo verbal (“estiverem” e não “estiveram”) e à utilização do substantivo “início” (sinónimo de começo e princípio) e não “no decorrer ou mesmo após o início da reunião”. Tudo o que, conforme decisão da 1ª instância, se veio revelar acertado.

DD. Mas mais, a aludida comunicação não era subscrita, sequer, pela dita.

EE. Secretária da Sociedade, arrogando-se finalmente poderes de procuradora com poderes para o acto, mas sim um email enviado pelos escritórios da Sociedade de Advogados AA.

FF. Conforme foi alegado e resulta dos autos (da Contestação, das contra-alegações de recurso da Recorrente, etc.), estando os trabalhos a decorrer, a Mesa nem analisou, nem tinha condições de analisar, na altura, o documento chegado por correio electrónico.

GG. Quanto à anulação da deliberação do ponto 2 da ordem de trabalhos pela alegada violação da maioria legalmente exigida, apesar de, tanto a decisão da 1ª instância, como a Decisão Recorrida terem considerado anulável a deliberação do ponto 2 da ordem de trabalhos, não existe uma sobreposição de decisões.

HH. Desde logo porque é só um pedido relativamente a uma das deliberações em causa e, também, apenas um dos vícios apontados, sendo que os entendimentos de ambas as decisões tendo, um objecto comum, são decisões díspares na mesma matéria.

II. Mas mais, a aqui Decisão Recorrida, julgando a Apelação da aqui Recorrente, considerou: a) procedente a arguição de nulidade relativa à omissão de pronúncia alegada pela aqui Recorrente, relativamente ao não conhecimento da excepção peremptória invocada de abuso de direito; e b) procedente a impugnação sobre a matéria de facto feita pela aqui Recorrente, modificando-a ou eliminando-a nos exactos termos peticionados pela Recorrente

JJ. Pelo que se trata de uma decisão inteiramente nova, com fundamentação distinta – nomeadamente na improcedência da excepção do abuso de direito - ao invés de uma decisão meramente confirmada

KK. Mas mais. Também em matéria de facto, a decisão foi reapreciada, pelo que, conforme consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1:3

IV – Efectivamente, em tais circunstâncias, ainda que simultaneamente a Relação tenha confirmado a decisão recorrida no que respeita à matéria de direito, não se verifica uma situação de dupla conformidade no que concerne ao modo como foi reapreciada a matéria de facto.»

LL. Pelo que, e chegando, não obstante, a uma decisão de improcedência, não estamos perante duas decisões idênticas e, nem sequer, confirmadoras, como se pretende.

MM. Ainda que assim não se entenda, o que por mero dever de cautela e patrocínio sempre se aventa sem conceder, sempre haveria lugar, neste ponto, a uma revista excepcional, porquanto sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito sendo o tema de particular relevância social;

NN. Quanto à anulação, e não julgando procedente a alegação de uma determinada conjuntura económico financeira apontada pela Recorrente como justificativa para a não distribuição de dividendos, a Decisão Recorrida vem referir que, justificações à parte, a maioria exigida era a legal.

OO. Ainda, a propósito do abuso de direito invocado pela Recorrente e conhecido pelo douto tribunal a quo, pela circunstância de o direito de voto não ter sido exercido, mas apenas manifestado o interesse no seu exercício pela banda do Recorrido, o douto tribunal a quo entendeu não existir interesses conflituantes.

PP. Recusando-se a perceber que o facto de o Recorrido ter vindo, precisamente, impugnar essa deliberação em sede de articulado superveniente é a prova provada da sua oposição a essa deliberação.

QQ. A Recorrente não concebe que utilidade económica teria a presente acção para o Recorrido, que não a de poder vir numa Assembleia Geral futura votar contra a não distribuição de dividendos por parte da Recorrente.

RR. E a prova provada de que esse conflito entre o benefício do Recorrido e o prejuízo da Recorrente, não só existe, como também é no sentido de posteriormente votar contra a aludida deliberação, no momento em que a mesma se repita, é precisamente o surgimento do articulado superveniente em que peticiona, adicionalmente à anulação de deliberações em que o Recorrido não tenha participado, e independentemente da sua participação, peticiona pela sua anulação por violação da maioria legalmente exigida.

SS. Como é bom de ver, o Recorrido não pretende ser admitido a votação para exercer o seu voto num sentido favorável, para isso não pretendia a anulação da mesma – mesmo em caso de improcedência da anulação por violação do seu direito a estar presente.

Requerendo a final que a decisão do Tribunal a quo seja revogada na sua totalidade.

9. O Autor contra-alegou em Revista, invocando a irrecorribilidade da decisão do tribunal a quo de anulação da deliberação de não distribuição de lucros, com fundamento na dupla conforme prevista no nº 3 do art. 671º do CPC,.

Segundo o recorrido “a alteração de dois factos pontuais da matéria de facto e a nulidade conhecida acerca do invocado abuso de direito não são aptas, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, a manter o acesso ao terceiro grau de jurisdição. Para além de não ter havido voto vencido, o Tribunal a quo não recorreu a uma fundamentação essencialmente diferente para confirmar a decisão da Primeira Instância de anulação da Deliberação de Não Distribuição de Lucros”.

10. Foi cumprido o art. 655º nº 1 do CPC, apenas quanto à Recorrente Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., que nada disse.

11. Por decisão singular da Relatora de 20/06/2025 foi julgado não admissível o recurso de revista quanto ao fundamento: anulação da deliberação respeitante “a não distribuição dos lucros em exercício”, por desrespeito da maioria qualificada de três quartos, estabelecida na lei.

Fundamentou a Relatora a sua decisão do seguinte modo:

“O art. 671º do CPC estabelece as regras essenciais respeitantes à admissibilidade do recurso de revista dos acórdãos da Relação.

Assim, nos termos do nº 1:

“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.”

O nº 3 do art. 671º do CPC prevê uma restrição de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça assente na «dupla conforme»:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

Não haverá “dupla conforme” seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação confirmando embora a decisão da 1ª instância o faça com uma “fundamentação essencialmente diferente”.

Sendo linear que o presente recurso de revista preenche a regra estabelecida no nº 1 do art. 671º, quanto a qualquer dos seus fundamentos importa apurar se, no caso, quanto ao específico fundamento recursório que visa impugnar a decisão que anulou a deliberação respeitante “a não distribuição dos lucros em exercício, por desrespeito da maioria qualificada de três quartos, estabelecida na lei”, se verifica ou não uma situação de “dupla conforme” impeditiva da admissibilidade da Revista normal.

No caso, a Relação decidiu:

Julgar improcedente a apelação da Ré mantendo a sentença recorrida na parte em que anulou a deliberação tomada na assembleia geral ordinária da ré no dia 23 de junho de 2023 relativa ao ponto 2 da ordem de trabalhos, concretamente sobre a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício findo em 31 de dezembro de 2022.

Tal decisão foi tomada sem voto de vencido e sem divergência essencial de fundamentação.

É certo que o acórdão da Relação conheceu ainda:

- da arguição de nulidade por falta de fundamentação, julgando-a improcedente;

- do vício de omissão de pronúncia sobre o invocado abuso de direito, admitindo que tal vício ocorreu e, no suprimento do mesmo, em conformidade com a regra da substituição contemplada no artigo 665.º do CPC, decidiu que o abuso de direito tal como invocado pela ré perante a primeira instância nunca poderia proceder. Não procedendo igualmente a exceção de abuso de direito invocada pela apelante nas suas alegações de recurso;

- da impugnação da matéria de facto, tendo eliminado dois factos da matéria de facto (nºs 56 e 71), sem que tal eliminação viesse a ter qualquer influência no decidido quanto ao apontado fundamento recursivo (confirmação de improcedência).

Assim, tal fundamento está afetado pela dupla conformidade decisória, sendo a revista normal inadmissível quanto ao mesmo.

Sucede ainda que, a mera referência na alínea MM das conclusões de recurso de que “sempre haveria lugar, neste ponto, a uma revista excepcional, porquanto sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito sendo o tema de particular relevância social”, não oferece a concretização necessária para se perspetivar o seu conhecimento a título de revista excecional, nos termos do art. 672º nº 1 alª a) do CPC.

A recorrente limitou-se a recorrer de revista “ao abrigo do disposto nos artigos 671.º n.º 1, 675.º n.º 1 e 676.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil (CPC)”, não aludindo no seu requerimento ao art. 672 do CPC que prevê a revista excecional.

Pelo que a não requereu.»

12. Notificada de tal decisão veio a Recorrente Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., reclamar para a Conferência, invocando, no essencial os seguintes pontos de divergência:

- A decisão do Tribunal da Relação, julgando a apelação da aqui Recorrente, considerou: a) procedente a arguição de nulidade relativa à omissão de pronúncia alegada pela aqui Recorrente, relativamente ao não conhecimento da exceção perentória invocada de abuso de direito; b) procedente a impugnação sobre a matéria de facto feita pela aqui Recorrente, modificando-a ou eliminando-a nos exatos termos peticionados pela Recorrente.

- Assim, trata-se de uma decisão inteiramente nova, com fundamentação distinta, nomeadamente a que julgou pela primeira vez a exceção do abuso de direito, julgando-a improcedente, ao invés de uma decisão meramente confirmada.

Requer, por isso, que o recurso de revista seja julgado na sua integralidade, nomeadamente conhecendo (também) o ponto ii) do seu objeto.

II. Fundamentação

Importa decidir da questão da admissibilidade da revista quanto ao fundamento «anulação da deliberação respeitante “a não distribuição dos lucros em exercício”, por desrespeito da maioria qualificada de três quartos, estabelecida na lei», que havia sido declarado não admissível de revista, na decisão reclamada.

Centremo-nos, por ora, no acórdão recorrido.

O acórdão da Relação definiu como questões a decidir as seguintes: nulidade da sentença; impugnação da decisão de facto; reapreciação do mérito da decisão.

Vejamos se quanto às duas primeiras questões existe fundamento para afastar a dupla conformidade decisória, obstativa da revista, que resulta do decidido a final.

Começando pela apreciação da impugnação ao julgamento de facto, o acórdão julgou procedente tal impugnação e, em consonância, decidiu:

- Eliminar do elenco dos factos provados o enunciado no nº 71 ( do seguinte teor: Já o Vice-presidente da mesa da assembleia geral da Ré, Dr. BB, é administrador e representante da Associação de Coleções) – passando este a integrar o elenco dos factos não provados;

- Eliminar do elenco dos factos provados o enunciado no nº 56 por conter apenas juízos de valor não extraíveis sequer de qualquer factualidade contida no mesmo.

Sucede que, tal alteração factual, por irrelevante, nenhuma repercussão vem a ter na decisão de direito, nomeadamente quanto ao fundamento recursivo sob impugnação, pelo que a procedência da impugnação de facto não afasta a “dupla conformidade decisória”, que impede o conhecimento em revista, como previsto no art. 671º nº 3 do CPC.

Nesse sentido o acórdão do STJ de 07-07-2021, P. 5835/18.5T8BRG.G1.S1, in wwwdgsi.pt, assim sumariado:

“I - Na averiguação da “dupla conformidade decisória” na matéria de direito (competência regra do STJ: art. 682.º, n.º 1, do CPC), enquanto obstáculo ao conhecimento do objecto da revista para o STJ, não releva a alteração da decisão sobre a matéria de facto operada pela Relação ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, do CPC se essa não coincidência decisória não tiver apresentado impacto na motivação jurídica crucial do litígio que funda a reiteração em 2.ª instância do decidido em 1.ª instância, nem contrariar o resultado declarado pela sentença apelada e a construção que está na base da parte dispositiva da decisão.

(…)”.

Improcede, assim, a reclamação quanto à decidida irrelevância da impugnação de facto para contrariar a dupla conformidade decisória, impeditiva da revista.

Apreciando da questão da nulidade da sentença, o acórdão da Relação ponderou e decidiu:

“A - Do vício de falta de fundamentação

(…)

Desde logo dir-se-á que a falta de fundamentação de facto só ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar a solução jurídica adotada (…). O que não sucede, in casu, pois que na sentença são enunciados os fundamentos de facto relevantes para a integração das normas jurídicas que foram aplicadas no caso concreto.

(…)

Por todo o exposto, julga-se improcedente a arguição da nulidade de falta de fundamentação.

B- Do vício de omissão de pronúncia

(…)

In casu, a apelante afirma que o tribunal não se pronunciou sobre a questão por ela suscitada na resposta ao articulado superveniente, a saber, a de o recorrido ter agido em abuso de direito.

Na resposta ao articulado superveniente apresentado pela autora, veio a ré dizer, nomeadamente, o seguinte:

«Na assembleia também se justificou a não distribuição de dividendos com a situação atual – o que o BCP maliciosamente desconsidera: inflação e taxa de juro pelo forte aumento da Euribor. É que, se na perspetiva bancária tal traz grandes benefícios, às empresas industriais e agrícolas cumpre serem cautelosas e adotar medidas para se defenderem, até dos maiores encargos de um recurso ao crédito bancário em alternativa ao autofinanciamento que a não distribuição de resultados permite. O que, acrescenta-se, sempre se enquadraria no abuso de direito na modalidade do desequilíbrio no exercício das posições jurídicas. (…) Neste caso existiria uma desproporção grave entre o benefício do titular exercente (o autor, exercendo o seu direito de voto) e o sacrifício por ele imposto a outrem: fragilizar a sociedade contra os acionistas da mesma numa situação de incerteza financeira em que a prudência é aconselhável na gestão das empresas. E tudo isto, porque tratando-se de uma entidade bancária, o autor se beneficia com a conjuntura, o que não se pode admitir.»

Resulta do segmento transcrito supra que a ré invoca o instituto do abuso de direito. Ora, a invocação de abuso de direito como forma de deter o exercício de um direito por parte do autor, constitui uma exceção perentória, logo uma questão sobre a qual o julgador tem de se pronunciar sob pena de nulidade da sentença.

(…)

Por conseguinte, ao não se pronunciar sobre o invocado abuso de direito o julgador a quo omitiu a pronúncia sobre questão suscitada pela ré, omissão de pronúncia que cumpre suprir em sede própria em conformidade com a regra da substituição contemplada no artigo 665.º do CPC.”

Conhecendo da questão (abuso de direito), nos termos do art. 665º nº 1 do CPC o acórdão da Relação desenvolveu a seguinte fundamentação:

“O segundo argumento da apelante/ré prende-se com uma suposta conduta abusiva do autor, a qual foi invocada perante a primeira instância em sede de resposta ao articulado superveniente do autor e também nas alegações de recurso.

Na resposta ao articulado superveniente apresentado pelo Banco autor, a ré alegou que a conduta do autor «sempre se enquadraria no abuso de direito na modalidade do desequilíbrio no exercício das posições jurídicas» e que «neste caso existiria uma desproporção grave entre o benefício do titular exercente (o autor, exercendo o seu direito de voto) e o sacrifício por ele imposto a outrem: fragilizar a sociedade contra os acionistas da mesma, numa situação de incerteza financeira em que a prudência é aconselhável na gestão das empresas. E tudo isto porque, tratando-se de uma entidade bancária, o autor beneficia com a conjuntura, o que não se pode admitir» (sic) (cfr. artigos 12.º, 14.º e 15.º da resposta ao articulado superveniente).

Nas suas alegações de recurso, a ré alegou, a propósito, o seguinte: «Também por tudo o que consta na matéria provada relativamente aos financiamentos e garantias dadas ao recorrido este não pode ignorar que o recurso ao crédito em entidades que possam ser associadas à figura do Presidente da Mesa é substancialmente mais difícil. Porque não só não pode ignorar, como está perfeitamente ciente de tal – tem, inclusivamente mais informação a esse respeito que qualquer credor financeiro, é que se reitera que deve ser, mais uma vez considerada a figura do abuso de direito. Como se percebe, o recorrido está numa posição duplamente privilegiada: por um lado, tem informação financeira e de “rating” de mercado desta sociedade e de outras que possam ser relacionadas com a figura do seu Presidente, por outro, não se coíbe de, não obstante essa noção – que deveria facilitar a compreensão da postura precavida da recorrente – pretender obter vantagens pressionando para decisões no seio da recorrente que fazem perigar a sua subsistência».

Quid juris?

O abuso do direito, cuja base jurídico-positiva reside no artigo 334.º do Código Civil, consiste num exercício disfuncional de uma posição juridicamente tutelada - posição essa que pode ser um direito, uma faculdade ou um poder potestativo - na medida em que tal exercício exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

(…)

Note-se, por fim, que não obstante o abuso de direito poder ser de conhecimento oficioso, os factos consubstanciadores do mesmo têm de ser alegados e provados pelas partes.

No caso sub judice, na resposta ao articulado superveniente que foi apresentado pelo autor – e no qual este invocou um novo fundamento para o pedido de anulação da deliberação reportada ao ponto n.º 2 da ordem de trabalhos relacionado com uma proposta de não distribuição de dividendos aos sócios – a ré escreveu o seguinte: «Neste caso existiria uma desproporção grave entre o benefício do titular exercente (o Autor, exercendo o seu direito de voto) e o sacrifício por ele imposto a outrem: fragilizar a sociedade contra os acionista da mesma, numa situação de incerteza financeira em que a prudência é aconselhável na gestão das empresas» (cfr. artigo 14.º) (negritos nossos).

O direito cujo exercício abusivo a ré invocou na resposta ao articulado superveniente foi, por conseguinte, o direito de voto (no que respeita ao ponto n.º 2 da ordem de trabalhos). O voto constitui a forma pela qual o membro da assembleia da sociedade, titular desse direito, exprime a sua posição pessoal acerca da proposta de deliberação. Tal direito está contido no direito de participar nas deliberações de sócios, este previsto no artigo 21.º, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais.

A expressão do voto pode reconduzir-se a um posicionamento a favor ou contra a proposta, mas também a uma posição de neutralidade, se o titular do direito de voto se abstiver, conformando-se, qualquer que seja, com o ponto de vista que fizer vencimento, embora nos termos do disposto no artigo 386.º/1 do CSC as abstenções não sejam contadas como votos emitidos.

Ora, no caso em análise resulta da factualidade julgada provada que o autor foi impedido de participar na assembleia geral da ré realizada no dia 23 de junho de 2023 e, por conseguinte, de exprimir a sua posição individual sobre cada uma das propostas de deliberação, pelo que não se vê como se possa considerar que “aquele direito de voto foi exercido de forma abusiva”! Aliás, desconhecendo-se, porque não foi alegado ou provado, qual seria o sentido de voto do autor caso aquele tivesse sido autorizado a participar na dita assembleia geral por via do instituto de representação voluntária, pergunta-se: como se pode afirmar, como fez a ré na sua resposta ao articulado superveniente, que o autor pretende «fragilizar a sociedade contra os acionistas da mesma, numa situação de incerteza financeira em que a prudência é aconselhável na gestão das empresas»?

É que a manifestação de vontade de participação na assembleia geral da ré, que implica a possibilidade de ali exercer o direito de voto (para além de discutir os assuntos sobre os quais se deliberará), não pode, por si só, ser considerado um exercício abusivo do direito de voto.

Aduzir-se-á que no seu articulado superveniente o autor BCP veio exercer, tão só, um direito que lhe é conferido por lei, qual seja, o direito de impugnar deliberações sociais contrárias à lei e aos estatutos da sociedade (artigos 58.º, n.º 1, al. a) e 59.º, n.º 1, ambos do CSC) e o fundamento de impugnação ali invocado não foi sequer a preterição do direito do autor a participar na assembleia geral da ré e a manifestar na assembleia geral da ré a sua vontade através do voto, mas sim a violação do disposto no artigo 294.º, n.º 1, do CSC, ou seja, a votação de uma deliberação de retenção dos lucros distribuíveis por uma maioria de votos inferior àquela que era exigida por lei, não se vislumbrando de que forma pode constituir abuso de direito o exercício de tal direito de impugnação com o fundamento invocado e a ré tão pouco explica de que forma é que o exercício de tal direito pode gerar uma desproporção grave entre benefícios para o autor (também não concretizados) e o sacrifício (o qual a ré também não concretizou) por ele imposto à sociedade-ré. Por conseguinte, a invocação de abuso de direito tal como invocada pela ré perante a primeira instância nunca poderia proceder.

Na motivação do seu recurso a ré volta a invocar o instituto do abuso de direito, dizendo que o recorrido «não pode ignorar que o recurso ao crédito em entidades que possam ser associadas à figura do Presidente da Mesa é substancialmente mais difícil», que «não só não pode ignorar, como está perfeitamente ciente de tal – tem inclusivamente informação a essa respeito (…)» e que «(…) o recorrido está numa posição duplamente privilegiada: por um lado tem informação financeira e de “rating” de mercado desta sociedade e de outras que possam ser relacionadas com a figura do seu Presidente, por outro, não se coíbe de, não obstante essa noção – que deveria facilitar a compreensão da postura precavida da recorrente – pretender obter vantagens pressionando para decisões no seio da recorrente que fazem perigar a sua subsistência».

Para além do que se referiu supra a propósito do alegado exercício abusivo do direito de voto quando se desconhece qual seria o sentido de voto do Banco autor sobre a proposta n.º 2 da ordem de trabalhos, dir-se-á que a alegação da recorrente acima transcrita se traduz na formulação de meros juízos de natureza valorativa e conclusiva (“não pode ignorar que o recurso ao crédito em entidades que possam ser associadas à figura do Presidente da Mesa é substancialmente mais difícil”, “pretende pretender obter vantagens pressionando para decisões no seio da recorrente que fazem perigar a sua subsistência”) os quais não podem fundamentar uma conclusão de que o autor atua em abuso de direito, seja por ter impugnado a deliberação social relativamente ao ponto n.º 2 da ordem de trabalhos, seja por ter pretendido exercer o seu direito de participação na assembleia-geral da ré de 23.06.2023, o qual inclui o direito de exprimir a sua vontade através do voto. E, em face da factualidade julgada provada e do enquadramento jurídico da figura do abuso de direito supra exposto quanto a este instituto também não se vislumbra que se pudesse concluir que o autor/apelado agiu em abuso de direito.

Por conseguinte, não procede a exceção de abuso de direito invocada pela apelante nas suas alegações de recurso.”

No recurso de revista a recorrente Bacalhôa – Vinhos de Portugal, S.A., desenvolveu a sua reação quanto ao abuso de direito, referindo que:

A decisão recorrida, julgando a apelação por si interposta, considerou: a) procedente a arguição de nulidade relativa à omissão de pronúncia relativamente ao não conhecimento da exceção perentória invocada de abuso de direito.

Pelo que trata-se de uma decisão inteiramente nova, com fundamentação distinta – nomeadamente na improcedência da exceção do abuso de direito - ao invés de uma decisão meramente confirmada.

Devendo o Supremo, em revista, pronunciar-se sobre o alegado nas conclusões de recurso:

“Ainda, a propósito do abuso de direito invocado pela Recorrente e conhecido pelo douto tribunal a quo, pela circunstância de o direito de voto não ter sido exercido, mas apenas manifestado o interesse no seu exercício pela banda do Recorrido, o douto tribunal a quo entendeu não existir interesses conflituantes.

Recusando-se a perceber que o facto de o Recorrido ter vindo, precisamente, impugnar essa deliberação em sede de articulado superveniente é a prova provada da sua oposição a essa deliberação.

A Recorrente não concebe que utilidade económica teria a presente ação para o Recorrido, que não a de poder vir numa Assembleia Geral futura votar contra a não distribuição de dividendos por parte da Recorrente.

E a prova provada de que esse conflito entre o benefício do Recorrido e o prejuízo da Recorrente, não só existe, como também é no sentido de posteriormente votar contra a aludida deliberação, no momento em que a mesma se repita, é precisamente o surgimento do articulado superveniente em que peticiona, adicionalmente à anulação de deliberações em que o Recorrido não tenha participado, e independentemente da sua participação, peticiona pela sua anulação por violação da maioria legalmente exigida.

Como é bom de ver, o Recorrido não pretende ser admitido a votação para exercer o seu voto num sentido favorável, para isso não pretendia a anulação da mesma – mesmo em caso de improcedência da anulação por violação do seu direito a estar presente.”

Aqui chegados cumpre decidir:

A Relação reconheceu a nulidade da sentença da 1.ª instância por omissão de pronúncia relativamente ao invocado abuso de direito na atuação do Autor e, conhecendo da questão por imposição do art. 665º nº 1 do CPC (regra da substituição ao tribunal recorrido) fê-lo, conhecendo da questão ex novo, em 1º grau.

Esta questão está integrada na impugnação ao pedido de anulação da deliberação que aprovou a não distribuição dos lucros em exercício, com apenas 66,45% do capital social.

O abuso de direito apenas no acórdão recorrido foi apreciado, o que afasta a possibilidade de terem sido proferidas duas decisões conformes, não se verificando, assim, a dupla conformidade impeditiva de recurso de revista.

Desse modo, nos exatos limites factuais e jurídicos em que a figura do abuso de direito foi invocada e decidida, como fundamento (in)válido para não proceder o pedido de anulação da deliberação que aprovou a não distribuição dos lucros em exercício deverá a questão ser conhecida em revista.

Nestes limites deixa de haver obstáculo à admissibilidade da revista quanto ao fundamento que a decisão reclamada invalidara.

Pelo que, quanto a esta questão, se atende à reclamação.

Sumário:

- A procedência da impugnação de facto não releva na averiguação da “dupla conformidade decisória”, enquanto obstáculo ao conhecimento do objeto da revista previsto no art. 671º nº 3 do CPC, se a alteração factual daí adveniente nenhuma repercussão tem na decisão de direito.

- A Relação ao reconhecer a nulidade da sentença da 1.ª instância por omissão de pronúncia relativamente ao abuso de direito e, ao conhecer da questão em substituição ao tribunal recorrido (art. 665º nº 1 do CPC), conhece da questão ex novo, em 1º grau.

- Desse modo, a decisão quanto ao abuso de direito que apenas no acórdão recorrido foi apreciado, não se mostra afetada pela dupla conformidade, impeditiva de recurso de revista.

III. Decisão:

Pelo exposto, defere-se a reclamação e admite-se a revista quanto ao segmento reclamado, nos exatos limites definidos na presente decisão.

Custas pelo Reclamado.

Lisboa, 7 de outubro de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Maria do Rosário Gonçalves

Luís Correia de Mendonça