RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
INSOLVÊNCIA
PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONTRADIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
CONHECIMENTO OFICIOSO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário


I. Tendo embora ambos os acórdãos em confronto, passado por uma embrionária ‘etapa teórica jurídica’, com pontos de identidade factual e jurídica (prerrogativas de conhecimento oficioso do plano aprovado), não há oposição de julgados se, o núcleo essencial da matéria litigiosa apreciada, em fase mais madura, no acórdão fundamento (no caso, a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano) não foi conhecido no acórdão recorrido.

II. Logo, não há lugar a revista.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA, na qualidade de devedora e BB, na qualidade de credora, vieram apresentar manifestação de vontade de encetarem processo especial para acordo de pagamento (PEAP), nos termos do artigo 222º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

2. O administrador judicial provisório nomeado apresentou a Lista de Créditos Provisória, que foi publicada no portal Citius na mesma data (nº 3 do art. 222º -D do CIRE).

3. Em 30-03-2023 veio o credor CC, impugnar a lista provisória de créditos. Impugnação que foi considerada extemporânea, pelo que não foi admitida (decisão que transitou em julgado).

4. Em 30-06-2023, concluídas as negociações com um acordo de pagamento sem aprovação unânime de todos os credores, foi dada publicidade ao mesmo, tendo-se iniciado o prazo de 10 dias para votação, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215º e 216º, com as devidas adaptações (nº 2 do artº 222º-F do CIRE).

5. No decurso desse prazo veio o credor CC, ora recorrente, invocar a falsidade e inexistência legal dos créditos de DD, EE e FF, filhos da apresentante devedora.

Alegando, em suma, que tais créditos se fundamentavam num pretenso acordo assinado pela apresentante na qual esta se declarava devedora de tornas aos seus filhos em resultado da partilha dos bens do seu dissolvido casal, mas, no ato daquela partilha ocorrera uma transação judicial na qual o seu ex-marido declarou expressamente ter recebido em mão as tornas que lhe eram devidas.

Apresentou cópia da respetiva ata, protestou juntar o original e requereu que se considerasse a conduta descrita como litigância de má fé e fosse a mesma dada a conhecer ao Ministério Público para efeitos de instauração do competente procedimento criminal.

6. Em 07-07-2023 o mesmo credor CC veio votar contra a aprovação do plano, solicitando a sua não homologação, alegando “na medida em que, de acordo com o disposto no artº 216.º n.º 1 al. a) do mesmo código, a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.”

7. Em 14-07-2023, o plano foi aprovado, com maioria dos votos emitidos favoravelmente.

8. Em 18-07-2023 a Mmª Juíza homologou por sentença o plano de pagamentos.

9. Em 01-08-2023 o credor CC veio juntar certidão judicial respeitante ao documento referido em 5. e, suscitar a nulidade da sentença homologada por falta de pronúncia quanto à “questão da falsidade e consequente inexistência legal dos créditos que invocou nesse seu requerimento, que importa alteração significativa no resultado da votação da proposta de pagamento apresentado pela devedora, não foi apreciada antes de ter sido homologada essa proposta, o que implica a verificação de uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, cujo conhecimento e pronúncia constitui um poder-dever de conhecimento oficioso do Tribunal, nos termos do artº 215º do CIRE”.

10. Na mesma data veio interpor recurso de apelação, com fundamento em: violação das regras procedimentais; indevida inclusão de créditos na lista provisória de créditos; errada qualificação de créditos como comuns que deveriam ter sido qualificados como subordinados, requerendo a revogação da sentença e a sua substituição por “decisão não homologatória e de indeferimento do plano de pagamentos apresentado pela devedora”.

11. A 1ª instância declarou improcedente a nulidade e admitiu o recurso de apelação.

12. Em 01-02-2024 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) que decidiu, não se vislumbrar, qualquer violação não negligenciável das normas aplicáveis e, ser manifesta a nulidade por omissão de pronúncia, pelo que julgou nula a sentença homologatória, por omissão de pronúncia, determinando que o tribunal recorrido “aprecie fundamentadamente todas as questões que lhe foram colocadas, apreciando e valorando a prova oferecida e prolatando nova sentença”.

Dando como prejudicado o conhecimento da questão suscitada quanto ao erro de qualificação de créditos subordinados considerados como comuns e respetivas consequências na aprovação do plano.

13. Baixados os autos à 1ª Instância veio esta proferir nova sentença (21-06-2024) na qual se considerou que o requerimento do credor de 05-07-2024 se limitara a pedir a condenação dos filhos da devedora como litigantes de má-fé e a dar conhecimento da falsificação ao Ministério Público, não tendo sido solicitada a declaração de falsidade e consequente inexistência legal dos créditos, “pois tal invocação já havia ficado vedada ao credor com a inadmissibilidade, por extemporânea, da impugnação por si apresentada, nada justificando que viesse agora introduzir novamente tal temática, ainda que, convenientemente, nada ali seja requerido quanto a tais créditos.

(…)

Isto posto, dir-se-á que os autos não indiciam a existência de má fé dos credores DD, EE e FF. (…)

Finalmente, não se vislumbra qualquer nulidade nem motivos para não homologar o plano. (…).

Além disso, verifica-se que não ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do plano que impeçam a sua homologação- artigo 215º CIRE ex vi artigo 222º-F do CIRE.

Assim sendo, homologo por sentença o plano de pagamentos - artigo 222º-F CIRE.”

14. O credor CC, interpôs novo recurso de apelação pedindo a revogação da sentença, com fundamento no não conhecimento da questão alusiva aos falsos créditos dos filhos da devedora, à revelia do anteriormente determinado pelo Acórdão da Relação, contendo os autos a prova necessária para o efeito.

Alegou ainda que outros créditos, deveriam ter sido classificados como créditos subordinados e não comuns, porque originários em garantia prestada a título gratuito. O que comprometeu a maioria necessária à aprovação do plano.

15. Regressados os autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, aí foi proferido acórdão em 23-01-2025, que decidiu julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

16. Extrai-se da respetiva fundamentação (ponto 14.):

“[o] tribunal recorrido explicou agora devidamente a razão pela qual considerou precludida a possibilidade de apreciação da impugnação atinente à alegada falsidade dos créditos, e a razão pela qual não considerou o requerimento efetuado pelo credor em 5 de julho de 2023, sobre o qual indevidamente não se havia pronunciado na decisão que veio a ser anulada, e sobre o qual agora se pronunciou expressamente.

(…)

Ora, refere o tribunal recorrido no despacho de 21 de junho de 2024 que no requerimento de 5 de julho de 2023 não foi solicitada a declaração da falsidade e consequente inexistência dos créditos, pois tal invocação já havia ficado vedada em momento anterior, por extemporaneidade.

(…)

Mostra-se assim cumprido o ordenado no acórdão anulatório, não havendo qualquer omissão de pronúncia, muito menos a invocada violação do caso julgado.

Improcede, assim, esta alegação dos recorrentes.

17. E sobre o invocado incumprimento pelo juiz do dever oficioso de verificação da violação não negligenciável, refere o mesmo acórdão:

“Não vislumbramos aqui, quanto a esta matéria alegada, qualquer violação não negligenciável das normas aplicáveis. Com efeito, a despeito da junção aos autos da certidão judicial alegadamente comprovativa da inexistência dos alegados créditos, face ao despacho de 4 de abril de 2023, referência citius .......23, transitado em julgado e que havia já julgado extemporânea tal impugnação, ficou tal questão coberta pelos efeitos do caso julgado formal.”

18. De novo inconformado, o credor CC veio interpor o presente recurso de Revista, invocando o disposto nos artºs 14º, nº 6, al. a) e 17º, nº 1 do CIRE, conjugados com os artºs 629º, nº 2, al. d), 638º, nº 1 e 645º e segs., estes do CPC, recurso que o tribunal a quo admitiu com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

19. Culminando as suas alegações de Revista com as seguintes Conclusões:

1ª. Para a plena compreensão da motivação deste recurso importa trazer aqui alguns dos argumentos que foram invocados - pelo mesmo Colectivo de Exmos. Desembargadores que prolataram o Acórdão ora recorrido - no primeiro Acórdão proferido nestes autos, datado de 1 de Fevereiro de 2024, de que se transcrevem os seguintes excertos:

Aí se refere a fls. 15: “Como refere Luís M. Martins, por normas procedimentais entendem-se os atos e procedimentos necessários à tramitação do processo (incluindo o seu conteúdo e forma) até à aprovação pela assembleia. Por violação não negligenciável no que respeita ao conteúdo do plano, entende-se tal vício, cujo conceito a lei não concretiza, como a violação de todas as normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, não existindo violação quando se esteja no âmbito da derrogação de normas legais pelo plano de insolvência (cfr. artºs 1º e 192º).”xxE a fls. 17 dizia-se: “O recorrente insurge-se depois contra os alegados créditos dos filhos da requerente, que reputa de falsos, e que nunca poderiam ter sido reconhecidos como créditos, matéria que o tribunal deveria ter conhecido pela simples análise da prova documental constante dos autos, designadamente pelo confronto entre o documento de suporte a essas reclamações de créditos e a certidão judicial do inventário para partilha dos bens comuns.

Aliás, o agora recorrente levantara já esta questão nos autos, em 5 de julho de 2023, referência citius ......82.xx Sobre a mesma, a sentença recorrida nada apreciou, nada referiu.”

2ª. E a fls. 18 foi ainda referido: “Não pressupõe um especial sentido crítico que, perante alegados créditos de alguém próximo do devedor, suscetíveis de influenciar uma votação, seja formulado uma exegese minimamente aprofundada, mais a mais quando há credores que põem em causa a real existência dos mesmos.

O tribunal recorrido, seguramente por lapso, não o fez.

É assim manifesta a nulidade por omissão de pronúncia, o que se declara.”

3ª. Por consequência do assim considerado, aquele douto Acórdão concluiu que: “No caso, o tribunal recorrido não só não se pronunciou sobre o pedido formulado como nem sequer apreciou os factos invocados. Assim, deve a 1ª instância elencar os factos e conhecer das questões apresentadas pelo aqui recorrente credor.

Fica por isso prejudicado o conhecimento do remanescente objeto do recurso interposto da dita sentença, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, nº 2 do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma, designadamente ficando prejudicado o conhecimento das alegações relativas ao erro de qualificação de créditos subordinados considerados como comuns e respetivas consequências na aprovação do plano.”

4ª. Baixaram os autos à primeira instância e aí a Exma. Sra. Juiz a quo pronunciou-se, na sentença prolatada em 21/06/2024, nos seguintes termos:xxxx“O recorrente insurge-se depois contra os alegados créditos dos filhos da requerente, que reputa de falsos, e que nunca poderiam ter sido reconhecidos como créditos, matéria que o tribunal deveria ter conhecido pela simples análise da prova documental constante dos autos, designadamente pelo confronto entre o documento de suporte a essas reclamações de créditos e a certidão judicial do inventário para partilha dos bens comuns.

Aliás, o agora recorrente levantara já esta questão nos autos, em 5 de julho de 2023, referência citius ......82.

Refª ......12, de 01-08-2023: Veio o credor CC juntar a certidão judicial que protestou juntar aos autos no requerimento apresentado em 05-07-2023, com a refª ......82.

Refere o referido credor que a questão da falsidade e consequente inexistência legal dos créditos que invocou nesse seu requerimento, que importa alteração significativa no resultado da votação da proposta de pagamento apresentado pela devedora, não foi apreciada antes de ter sido homologada essa proposta, o que implica a verificação de uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, cujo conhecimento e pronúncia constitui um poder-dever de conhecimento oficioso do Tribunal, nos termos do artº 215º do CIRE, inquinando de nulidade a douta sentença proferida, por omissão de pronúncia.”

5ª. Apesar de ter assim exposto essa questão e após se pronunciar sobre os aspectos relativos à tramitação formal e adjectiva dos autos, a Exma. Sra. Juiz de primeira instância referiu o seguinte: “… dir-se-á em primeiro lugar que o pedido efectuado no requerimento apresentado em 05-07-2023, com a refª ......82, refere-se à condenação dos filhos da devedora como litigantes de má-fé, mais sendo peticionado que os factos ali invocados fossem dados a conhecer ao Ministério Público, para efeitos de instauração do competente procedimento criminal.

Na verdade, naquele requerimento não é solicitada a declaração da falsidade e consequente inexistência legal dos créditos, pois tal invocação já havia ficado vedada ao credor com a inadmissibilidade, por extemporânea, da impugnação por si apresentada, nada justificando que viesse agora introduzir novamente tal temática, ainda que, convenientemente, nada ali seja requerido quanto a tais créditos.”

6ª. E depois de explanar as características formais híbridas deste tipo de processo, termina concluindo da seguinte forma: “Assim, de forma muito clara, o que releva para este efeito é, para além da verificação do crédito, propriamente dita, se o crédito tem natureza subordinada ou não – sendo que, não tendo natureza subordinada, irreleva se é comum, privilegiado ou garantido para os efeitos previstos no art. 212.º, n.º 1 e, logo, para os efeitos previstos no art. 222º-F, n.º 3.

Note-se que os créditos em causa foram reconhecidos pelo AJP como subordinados.

Isto posto, dir-se-á que os autos não indiciam a existência de má fé dos credores DD, EE e FF.

Acresce que atenta a natureza dos autos e não decorrendo dos mesmos a ocorrência de infracção criminal, indefere-se a comunicação requerida, cabendo ao requerente, caso assim pretenda, denunciar os alegados factos junto das autoridades competentes.

Finalmente, não se vislumbra qualquer nulidade nem motivos para não homologar o plano.”

7ª. Do acabado de transcrever resulta inequívoco que, apesar de a Relação ter considerado no primeiro Acórdão que, perante a alegação de créditos de alguém próximo do devedor, suscetíveis de influenciar uma votação, deveria ser formulada uma exegese minimamente aprofundada, mais a mais quando há credores que põem em causa a real existência dos mesmos, o que não sucedeu, pelo que era manifesta a nulidade por omissão de pronúncia, assim o declarando.

8ª. Efectivamente, no requerimento de 5 de julho de 2023, referência citius ......82, o aqui recorrente alegou expressamente, nos itens 7º a 25º supra transcritos, que a apresentante se declarou devedora aos seus três filhos de créditos de tornas que, na partilha judicial celebrada por transacção com o seu ex-marido – de que foi junta certidão judicial -, sendo este aí o único credor de tornas, declarou o mesmo expressamente perante o Juiz que já as tinha recebido em mão da sua ex-mulher, não existindo, por isso, nenhum golpe de mágica que permitisse aos filhos da devedora ser credores dessas tornas perante a sua mãe, o que tudo não passou de um plano doloso gizado entre todos eles com manifesta má-fé.

9ª. Com o muito e devido respeito pela Exma. Sra. Juiz de primeira instância e com todo o respeito pela Justiça, pela função jurisdicional e pelo primado da descoberta da verdade, valores estes determinantes do cumprimento do dever da justa composição do litígio, não é, a título algum, aceitável que do teor do assim alegado se possa concluir que tudo o que foi alegado e provado em primeira instância, por recurso à prova documental e aos princípios básicos de Direito substantivo aplicáveis à partilha judicial, a respeito dos falsos créditos dos filhos da devedora, se limita à formulação do pedido de que os filhos da devedora fossem condenados como litigantes de má-fé.

10ª. Muito mais profundo do que isso, por esse requerimento e certidão judicial foi posto a descoberto um plano que constitui uma grosseira falsidade, congeminada entre a devedora e os seus filhos, com intenso dolo e censurável má-fé, através do qual foram construídos créditos fictícios, no valor total de € 216.611,52, que não existiam nem podia existir perante a lei substantiva, os quais foram fundamentais para ser formada uma maioria de aprovação do acordo de pagamentos.

11ª. E o recorrente explicou aí o porquê dessas afirmações, pois que comprovou por certidão judicial que juntou, que os créditos que os filhos da devedora reclamaram com base numa confissão de dívida assinada por eles e pela sua mãe/devedora, onde era dito terem eles origem nas tornas emergentes do Processo de Inventário da partilha dos bens comuns do dissolvido casal da devedora, não existiam!

12ª. E, mais do que isso, não existiam esses créditos de tornas porque na transacção judicial da partilha, o credor das tornas declarou tê-las recebido em mão da ex-mulher, motivo por que os créditos de tornas de que a requerente do PEAP se declarou devedora aos seus filhos não existiam, não só porque o credor dessas tornas – o ex-marido da aqui devedora – declarou em Juízo tê-las “recebido em mão”, como também porque as tornas eram devidas ao ex-marido, não aos filhos da requerente do PEAP!

13ª. Não se concebe e é a todos os títulos inaceitável que possa passar incólume nestes autos a alegação de créditos de tornas dos filhos sobre a sua mãe, quando esta pagou essas tornas ao seu ex-marido e este lhe deu quitação.

14ª. Esses pretensos créditos dos filhos da aqui devedora foram inventados, num plano congeminado entre eles e sua mãe, com dolo grosseiro e muito censurável má-fé, para assim, numa autêntica fraude à lei, criarem votos de capital e com eles se conseguir formar uma maioria de votos que permitiram aprovar o acordo proposto nestes autos!!!

15ª. Note-se que sem os votos favoráveis dos filhos da devedora o acordo de credores nunca seria aprovado!

16ª. É toda esta actuação dolosa, grosseira e assente numa maléfica fraude, que foi desvendada nos autos pelo recorrente, mas que a Exma. Sra. Juiz de primeira instância, com o devido respeito, silenciou e acerca de cuja materialidade substancial não disse uma palavra, tudo isto reduzindo à mera litigância de má-fé e a actuação com contornos criminosos, como se essa alegação não estivesse fundamentada em factos concretos – como estava – mas que disse não existir - “Isto posto, dir-se-á que os autos não indiciam a existência de má fé dos credores DD, EE e FF.”… considerando que tudo o resto são meros actos formais extemporâneos, como refere.

17ª. Não se pode aceitar uma tal afirmação de não se vislumbrar indícios de litigância de má-fé dos credores DD, EE e FF, quando do confronto do documento que sustenta as suas reclamações de créditos com a certidão judicial da partilha dos bens comuns dos seus pais, resultam claros e inquestionáveis os requisitos legais da litigância de má-fé do artº 542º, nº 2 do CPC, de terem deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podem ignorar (al. a) dessa norma), de terem alterado a verdade dos factos (al.b) da mesma norma) e de fazerem do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal (al. d), em seu proveito e consequente prejuízo dos demais credores.

18ª. Essa forma fraudulenta e de actuação com má-fé, da devedora e dos seus filhos, agindo em comunhão de esforços e de interesses, de ficcionarem uma dívida de € 216.611,52, não só faz artificialmente aumentar de forma considerável o seu passivo, como faz diminuir as proporções da satisfação dos créditos dos demais credores, por força de uma operação de rateio, ela também viciada por efeito da falsidade desses créditos, em ostensivo prejuízo dos demais credores.

19ª. A decisão assim proferida pela Exma. Sra. Juiz de primeira instância constitui uma clara violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do procedimento judicial aqui em causa, cujo conhecimento e pronúncia constitui um poder-dever de conhecimento oficioso do Tribunal, nos termos do artº 215º do CIRE, que foi intencionalmente omitido por recurso a mero argumentos de natureza formal.

20ª. Perante o acabado de alegar, tendo o primeiro Acórdão considerado existir uma nulidade por omissão de pronúncia na sentença de primeira instância a respeito da falsidade e inexistência legal dos créditos reclamados pelos filhos da devedora, a verdade é que a nova decisão proferida por força desse Acórdão persistiu na omissão do conhecimento das razões de facto e de Direito que determinam a impossibilidade de aceitar e de reconhecer a real existência desses créditos.

21ª. Não obstante as características híbridas do formalismo processual do PEAP, o Juiz não pode desobrigar-se do dever de conhecimento oficioso das questões de facto e de Direito não só relacionadas com a litigância de má-fé, mas também com as subjacentes a normas imperativas, como sejam as relativas à veracidade da existência dos créditos e da sua qualificação e também não pode desobrigar-se do dever de sindicar os actos de natureza jurídica praticados pelo Sr. AJP nem de confirmar a regularidade e conformidade desses actos perante a lei substantiva aplicável a cada concreto tipo de créditos, sob pena de omitir o dever essencial da sua função judicativa e de sancionar, pela sua omissão, graves erros e injustiças em prejuízo dos credores.

22ª. Como exemplarmente se refere no sumário do Acórdão fundamento,

“III - O C.I.R.E. não define o que seja o conceito de «violação não negligenciável» consagrado no art. 215º, mas em conformidade com a densificação do mesmo que tem vindo a ser realizada pela doutrina e pela jurisprudência, podemos concluir que constituem vícios não negligenciáveis (ou não desculpáveis) aqueles que configurem inequivocamente uma violação de normas imperativas, cujo resultado seja ilegal e insusceptível de ser suprido com o consentimento dos tutelados, ou seja, aqueles que representem violações destas normas imperativas e acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza (veda/impede).

IV - Um dos casos que pode configurar precisamente uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo de pagamento aprovado é a violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores consagrado no art. 194º do C.I.R.E.

V - Este princípio da igualdade de tratamento dos credores consubstancia uma trave mestra e estruturante na regulação do acordo de pagamento e abrange as duas dimensões em que se desenvolve o princípio da igualdade: impõe que se trate como igual o que for necessariamente igual e impõe que se trate como diferente o que for essencialmente diferente; este normativo tem um carácter imperativo, mas não em termos absolutos já que a 2ª parte do nº1 do art. 194º permite que existam «diferenciações justificadas por razões objectivas»; e entre as circunstâncias que podem ser atendidas em concreto para justificar o tratamento diferenciado, relevam as distintas classes de créditos definidas no art. 47º/4 do C.I.R.E., o respectivo grau hierárquico dentro da mesa categoria, e diversidade das suas fontes, mas também o consentimento do credor afectado previsto no nº2.

VI - No apuramento da existência das razões objectivas para um concreto tratamento diferenciado tem que se observar o princípio da proporcionalidade e atentar na proibição do arbítrio.”

23ª. Perante o alegado, atribuir aos filhos da aqui devedora a qualidade de credores de sua mãe, quando consabidamente não o são, por força da falsidade e inexistência dos seus créditos, essa sua equiparação com os demais credores viola de forma acintosa e inaceitável o princípio da igualdade de tratamento dos credores.

24ª. Essa violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores representa uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo de pagamento aprovado, para efeitos do disposto no art. 215º do C.I.R.E., o que conduz obrigatoriamente à recusa oficiosa da homologação do acordo de pagamento aprovado, tal como propugnado no Acórdão fundamento supra citado, solução esta que, para estes autos, deve ser aplicada, em nome da justa composição do litígio e da verdade material.

25ª. É inquestionável que compete sempre ao juiz decidir se homologa ou recusa a homologação do acordo de pagamento, aplicando-se com as devidas adaptações as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos arts. 215º (recusa oficiosa) e 216º (recusa a solicitação dos interessados) do C.I.R.E., como decorre expressamente do estabelecido no nº 5 do art. 222º F: “O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º”.

26ª. A propósito desta remissão para as regras da aprovação e homologação do plano de insolvência, explica Maria do Rosário Epifânio: “Contrariamente ao PER (art. 17.º-F, n.º 7), e ao PEAP previsto no art. 222.º-I, na disciplina do PEAP, o legislador não faz qualquer remissão expressa para o artigo 194.º (que consagra o princípio de igualdade de tratamento dos credores), para o artigo 195.º (quer regula o conteúdo do plano), para o artigo 196.º (sobre as providências com incidência no passivo), ou para o artigo 197.º (disposição com caráter supletivo, face à ausência de disposição expressa do plano). Entendemos que esta omissão não constitui qualquer impedimento à aplicabilidade dos referidos preceitos, pois a mesma está devidamente alicerçada, não só na remissão genérica contida no art. 222.º-A, n.º 3, como também, na remissão operada pelo art. 222.º-F, n.º 5, para o Título IX”.

27ª. Assim, com esta remissão para o disposto nas regras da aprovação e homologação do plano de insolvência, constata-se que o legislador optou e decidiu por submeter o acordo de pagamento aprovado pelos credores à apreciação judicial, nos termos do qual, por um lado, o juiz tem, oficiosamente, que sindicar o cumprimento das regras procedimentais e das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo, assegurando-se que não se verificam nenhuma das situações fundamentadoras de rejeição estabelecidas no art. 215º (função de garante da legalidade) e, por outro lado, o juiz tem que analisar o mérito das oposições à aprovação do acordo que tenham sido deduzidas por algum credor (função de assegurar a tutela mínima das minorias - art. 216º).

28ª. Para além de tudo quanto fica alegado e independentemente de qualquer extemporaneidade de requerimentos dos credores, cabe inquestionavelmente ao Juiz sindicar a existência de condutas subsumíveis às situações litigância de má-fé, como o são as que supra foram invocadas e que permitiram criar artificialmente um universo de passivo e de votos de credores, nos quais se incluíram os votos falsos dos credores que são filhos da devedora e que serviram para obter maioria de aprovação do acordo de pagamento, sem cujos votos esse acordo seria rejeitado.

29ª. Uma outra questão exposta no douto Acórdão sob recurso com a qual o recorrente não pode concordar e que colide com a tese defendida no Acórdão fundamento prende-se com a alegação, a fls. 24, de que “Não vislumbramos aqui, quanto a esta matéria alegada, qualquer violação não negligenciável das normas aplicáveis. Com efeito, a despeito da junção aos autos da certidão judicial alegadamente comprovativa da inexistência dos alegados créditos, face ao despacho de 4 de abril de 2023, referência citius .......23, transitado em julgado e que havia já julgado extemporânea tal impugnação, ficou tal questão coberta pelos efeitos do caso julgado formal.”

30ª. Esta justificação não passa, com a devida vénia, de uma forma de evitar a análise substancial da questão de fundo suscitada, quando o recorrente alegou existir uma litigância de má-fé por parte dos filhos da devedora, DD, EE e FF, ao alegarem ser credores de um direito de crédito a tornas pela partilha dos bens comuns dos seus pais, quando a nenhuns desses filhos cabia qualquer direito de tornas, o que constitui a alegação de um direito de crédito que cada um bem sabia não lhes pertencer e cuja litigância de má-fé é de conhecimento oficioso do Tribunal, conhecimento esse que terá que ser aferido com recurso à materialidade justificativa desse pretenso direito de cada um desses filhos.

31ª. Assim não o fez o Tribunal de primeira instância e assim o deixou passar incólume, com a devida vénia o Acórdão recorrido, com o espúrio argumento de que tal questão ficou coberta pelo caso julgado formal, quando o que está em causa não é nenhuma questão formal mas sim substancial, que tem a ver com a origem, a causa e a natureza desses pretensos direitos de crédito.

32ª. É nesta senda que tem pleno cabimento a tese defendida no Acórdão fundamento, de que cabe ao Juiz averiguar oficiosamente todas as questões que possam influir decisivamente, como é o caso, no princípio da igualdade entre os credores quando os seus direitos são iguais e no tratamento desigual quando os direitos são diversos ou, por outras palavras, quando uns direitos de crédito existem mas outros não existem de todo, como é o caso dos direitos de crédito alegados pelos filhos da aqui devedora.

33ª. Desprezar este argumento equivale a esvaziar de conteúdo o dever de recusa oficiosa de aprovação do plano previsto no artº 215º do CIRE, passando por cima de evidências de factos que correspondem a uma conduta de litigância de má-fé na composição do universo dos créditos e dos credores, como agentes decisivos na aprovação ou rejeição do acordo de pagamentos apresentado. A litigância de má-fé na construção fraudulenta de créditos não pode estar limitada por ciclos processuais delimitados e circunscritos na tramitação processual, sendo matéria que constitui dever de conhecimento oficioso mesmo em sede de recurso.

34ª. Verifica-se, assim, claramente, uma notória e total oposição de julgados, entre a posição defendida no Acórdão fundamento e no Acórdão recorrido, a respeito da mesma questão de Direito, que é a da apreciação substancial da génese e natureza dos direitos dos credores.

35ª. Refere-se seguidamente no Acórdão recorrido que “Como assinala o despacho de 21 de junho de 2024, prévio à sentença recorrida, os créditos em causa foram reconhecidos pelo senhor administrador judicial provisório como subordinados, sendo certo que não foram tempestivamente impugnados, nos termos que já supra expusemos quanto à (in)existência dos créditos, e que motivaram o despacho do tribunal recorrido de 4 de abril de 2023, devidamente transitado em julgado.

Daí que não haja que extrair consequências da alegada errada qualificação do crédito e respetivos reflexos em sede de aprovação do plano de pagamentos.”

36ª. Com a devida vénia pela opinião assim expressa, a mesma traduz uma atribuição de competências jurisdicionais ao Sr. AJP sem qualquer juízo crítico a respeito do acerto ou erro de uma tal decisão, o que significa uma demissão do exercício da função jurisdicional de fiscalização dos actos daquele.

37ª. Como é pacífico na jurisprudência, dentre as normas de conteúdo aplicáveis ao plano, encontra-se o art.º 194.º do CIRE, que consagra o princípio da igualdade entre os credores, e que, em caso de violação, tratando-se de norma imperativa, ter-se-á como não negligenciável conducente assim à recusa da homologação do aludido plano.

38ª. Também quanto ao crédito reclamado pela “GG E ASSOCIADOS - SOCIEDADE DE ADVOGADOS, RL”, de € 180.000,00, alegadamente de honorários pela prestação de serviços jurídicos à “Hidroelétrica S. Pedro, S.A.”, sociedade anónima com o NIPC .......81, reconhecido como crédito comum quando deveria ser um crédito subordinado, ocorre uma errada qualificação da natureza desse crédito, sindicável pela simples leitura da lista de credores, apresentada pela própria devedora, que aí o refere ter origem em aval por si prestado, o mesmo resultando do teor da reclamação de créditos apresentada pela dita sociedade de advogados.

39ª. Foi alegado na reclamação de créditos dessa sociedade de advogados que a aqui devedora, mãe do acionista de referência e administrador único da indicada sociedade, assumiu solidariamente a responsabilidade pelo pagamento dos respectivos honorários, conforme declaração que aí alegou juntar como documento nº 2, mas que, na reclamação disponibilizada publicamente pelo Sr. Administrador Judicial, pura e simplesmente não consta.

40ª. A assunção pela aqui devedora desse passivo constitui um contrato de prestação de garantia do pagamento de dívida de terceiro, ou seja, de fiança, pelo qual a devedora afectou o seu património a responder por dívida alheia, de uma sociedade que, no dizer da credora reclamante, tem como accionista de referência e administrador único um filho da aqui devedora.

41ª. Essa garantia, a existir – o que se desconhece, por não ter sido demonstrada documentalmente, como é devido -, terá sido prestada pela devedora a favor de terceiro, sem que para si tivesse advindo qualquer contrapartida para a autora da garantia, ou seja, terá sido prestada a título gratuito, pelo que este crédito, a existir, não poderia nunca ser qualificado como crédito comum, mas sim e só como crédito subordinado, nos termos previstos nos artºs 48º, als. a) e d) e 49º, nº 1, al. b) e nº 2, als. c) e d), ambos do CIRE.

42ª. Esse erro manifesto na qualificação do crédito dessa sociedade de advogados, resulta do próprio texto do articulado da reclamação de créditos apresentada e também da lista de credores apresentada pela devedora como doc. 7 do seu requerimento inicial (onde relacionou essa sociedade como credora – mas curiosamente, repare-se, com o crédito de € 0,00 - e o seu fundamento como se tratando de um aval), o que tudo permitia e impunha, por si só, o dever de sindicância pelo Tribunal, que foi omitido.

43ª. A errada qualificação deste crédito tem manifesta influência no apuramento da percentagem dos créditos não subordinados, que foi determinante da aprovação do plano de pagamentos proposto pela devedora (sem o que nunca teria sido aprovado, por inexistência da necessária maioria legal para o efeito), pelo que o invocado erro vicia e inquina fatalmente a votação do plano de pagamentos aqui posto em causa, que deve ser conhecido e corrigido oficiosamente, na medida em que esse erro é manifesto, certo, claro, notório, patente e evidente para qualquer pessoa, face aos elementos constantes dos autos, não carecendo de outras diligências, averiguações, produção de prova adicional ou elaboradas considerações jurídicas, antes resulta do teor da própria reclamação de créditos.

44ª. Quer no caso dos créditos reclamados e reconhecidos aos filhos da devedora, quer no caso do crédito da sociedade de advogados, qualificado como crédito comum quando se trata de um crédito subordinado, ocorre em cada um deles erro manifesto, passível de ser conhecido e sindicado pelo tribunal de recurso e de serem corrigidos tais erros relativos à admissão e à qualificação desses créditos.

45ª. Apesar da especificidade da tramitação do PEAP, essa correcção deve operar-se não com base no estatuído nos artºs 613º, nºs 1 e 3, e 614º, nº 1, do CPC (que prevê o erro material), mas em sede de recurso, de acordo com os poderes conferidos pelo nº 1, do artº 662º, do mesmo diploma legal (alteração com fundamento em documentação reveladora de erro manifesto de que padece a lista de créditos apresentada pelo Sr. Administrador Judicial), o que implicará a não homologação do plano de pagamentos.

46ª. De contrário, subsistindo esses erros manifestos e não se procedendo à devida rejeição dos créditos reclamados pelos filhos da devedora nem à correcção da qualificação do crédito da sociedade de advogados, mais não será do que tutelar-se judicialmente a manipulação astuciosa, fraudulenta e censurável destes autos pela devedora e por alguns credores, para alcançar um objectivo manifestamente ilegal e injusto, num abuso manifesto do recurso a este meio processual e numa clara e inaceitável fraude à lei.

47ª. Existe também um rol de outros créditos constantes da relação elaborada pela devedora e pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, aí qualificados como créditos comuns, cujos titulares, curiosamente, não apresentaram reclamação dos seus créditos, mas que, face à lista de credores, apresentada pela própria devedora no seu requerimento inicial como doc. 7, deveriam ter sido qualificados como créditos subordinados e se impõe que, relativamente a cada um deles, se proceda oficiosamente à correcção da sua qualificação, pelos mesmos fundamentos supra invocados, isto é, por se tratarem de garantias prestadas pela devedora a terceiros a título gratuito.

48ª. São eles os créditos da “AYT II - Engenharia, Lda.”, com sede na Rua 1, ... Vila Nova de Famalicão, NIF .......60; da “Empresa Industrial de Negrelos, S.A.”, com sede na Rua 2, ... Aves, NIF .......78; da “Habitat dos Traços, Lda.”, com sede na Rua 3; de “BB”, com sede na Travessa 4, ... Freixo de Cima, NIF .......84; e de “Pimaguir - Gestão Imobiliária e Turística, Lda.”, com sede na Rua 5, ... Aves, NIF .......88, todos e cada um deles que a própria devedora alegou terem fundamento em avales por si prestados e que todos foram erradamente qualificados como créditos comuns, em face do fundamento de cada um desses créditos expressamente invocado pela própria apresentante.

49ª. Sendo o aval um meio de prestação de garantia de cumprimento de dívidas de terceiros, sem que para o avalista decorra qualquer contrapartida ou ganho, como resulta do regime previsto nos artºs 30º e segs. da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, tal implica que todos estes créditos têm por fundamento uma prestação da apresentante a título gratuito, pelo que deverão ser qualificados oficiosamente e pelos mesmos fundamentos supra invocados como créditos subordinados, nos termos previstos nos artºs 48º, als. a) e d) e 49º, nº 1, al. b) e nº 2, als. c) e d), ambos do CIRE, face à manifesta influência no apuramento da percentagem dos créditos não subordinados que foi determinante da aprovação do plano de pagamentos proposto pela devedora.

50ª. Acresce que, mesmo que se admitisse a contabilização dos votos relativos aos créditos falsos e aos créditos que deviam ser qualificados como subordinados e não o foram, nem dessa forma a votação alcançada permite a homologação da votação do plano de pagamento, uma vez que a decisão da sua homologação foi proferida sem que tivesse sido verificado o vício substancial no apuramento da maioria necessária à aprovação do plano, cujo dever de conhecimento oficioso é imposto pelo artº 215º do CIRE, face à violação não negligenciável das regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.

51ª. No caso concreto, o quadro resumo da votação contido no requerimento junto aos autos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório em 14/07/2023, revela que o resultado da votação alcançado não permite, por aplicação de qualquer dos critérios legais invocados, considerar aprovado o plano, tendo em conta que, apesar de ter sido votado por credores cujos créditos representam mais de um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, nem os votos favoráveis são mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, pois os votos favoráveis, incluindo dos créditos subordinados, atingem apenas 52,72% dos votos emitidos, nem a votação favorável é superior a 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto, o que neste caso atinge apenas 36,69% - art. 222º-F, n.º 3, al. a), i) e ii) do CIRE.

52ª. Assim é, igualmente, por aplicação da alínea b) da mesma norma, pois apesar de recolher o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de 50% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto - 52,72%, o que inclui os créditos subordinados - já não recolhe “o voto favorável de mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto”, o que, como se vê, alcança apenas 36,69% dos votos.

53ª. Ou seja, apenas contabilizando créditos subordinados no cômputo das operações de votação - que o legislador pretendeu de forma expressa excluir da votação - é possível formar uma maioria dos votos favoráveis que, de outro modo, não seria alcançada, pois os votos desfavoráveis representam 47,28% dos créditos não subordinados e os votos favoráveis apenas 36,69% dos créditos não subordinados, correspondendo os créditos subordinados a 16,03% dos créditos relacionados, num universo de créditos que ascende ao valor global € 1.351.327,84.

54ª. Neste sentido, não foi respeitada a expressa exclusão, contida no texto legal, dos créditos subordinados para o cômputo da maioria superior a 50% dos votos emitidos, o que, se considerada fosse, conduziria inevitavelmente à não aprovação do plano, o que consubstancia violação não negligenciável do supra invocado normativo legal.

55ª. Os fundamentos supra invocados são determinantes da violação dos artºs 215º e 222º-A a 222º-F, todos do CIRE, bem como os princípios gerais do Cód. Proc. Civil supra enunciados, aplicáveis aos autos por via do artº 17º do CIRE, impondo-se a revogação da sentença recorrida, sob pena deste processo ter subjacente a ele uma manifesta fraude à lei, com propósitos dolosos e altamente censuráveis, com a colaboração da devedora e dos seus familiares directos, desvirtuando claramente a verdadeira génese e objectivo do processo e ofendendo de forma grave o fim último da realização da Justiça.

56ª. O primeiro Acórdão da Relação proferido nestes autos considerou existirem questões cuja substância não tinha sido objecto de conhecimento de mérito pela primeira instância, concluindo pela existência de nulidade por omissão de pronúncia e considerando prejudicado o conhecimento de outras questões, ordenando que os autos baixassem à primeira instância para que se fosse proferida decisão de mérito sobre todas as questões sobre as quais foi considerado existir omissão de pronúncia e sobre as demais que haviam ficado prejudicadas no seu conhecimento.

57ª. Na sequência disso, a Exma. Sra. Juiz da primeira instância proferiu decisões relacionadas com aspectos meramente formais ou procedimentais da tramitação dos autos, escudando-se na extemporaneidade das questões de fundo suscitadas, apenas no que respeitava à matéria que a Relação tinha considerando existir nulidade por omissão de pronúncia, mas omitiu pura e simplesmente o conhecimento das demais questões suscitadas nesse primeiro recurso.

58ª. Inconformado com essa segunda decisão, o aqui recorrente interpôs novo recurso para a Relação, que constitui o Acórdão aqui recorrido, mas a realidade é que, desta vez, os Exmos. Desembargadores aderiram de pleno aos argumentos meramente formais invocados na sentença recorrida relacionados com a anteriormente invocada nulidade por omissão de pronúncia mas, de forma surpreendente, acabaram por não conhecer do mérito das demais questões suscitadas, que quedam sem apreciação desde o primeiro recurso interposto. E o argumento invocado é exclusivamente o que consta do seu sumário, ou seja,

1. O PEAP é um processo judicial especial que se rege, em primeiro lugar, pelas respetivas disposições (artºs 222º-A a 222º-J), de seguida pelas regras previstas no CIRE que não sejam incompatíveis com a sua natureza, com as devidas adaptações (artº 222º-A, nº3), e, por último, pelas disposições gerais e comuns do Código de Processo Civil, também com as necessárias adaptações (artº 17º, nº1, do CIRE, combinado com o artº 549º, nº1, do CPC).

2. Nos termos do artigo 222-D, n.º 3, do CIRE, o prazo de impugnação da lista provisória de créditos é de 5 dias úteis, razão pela qual, não tendo sido impugnada tempestivamente, converteu-se em definitiva, nos termos do nº 4 do mesmo preceito.”

59ª. Em todas as questões suscitadas no recurso interposto para a Relação que deram origem ao Acórdão recorrido se suscitavam questões que faziam apelo à necessidade do conhecimento oficioso de irregularidades que afectavam de forma indelével a possibilidade de homologação do acordo de pagamento, antes impunham a sua rejeição, não por meras questões de forma, mas intimamente relacionadas com o conteúdo dos créditos reclamados e reconhecidos pelo Sr. AJP, bem como com o princípio da igualdade dos credores, ínsito no nº 1 do artº 215º do CIRE, ao dispor que o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo desse plano, qualquer que seja a sua natureza.

60ª. A principal violação que não é de modo nenhum negligenciável quanto às normas aplicáveis ao conteúdo do plano de pagamentos apresentado tem a ver com os créditos que dele constam, com a sua qualificação e com o resultados da sua votação, matérias estas sobre as quais se verifica absoluta omissão de pronúncia e por isso frontal contradição com a tese defendida no Acórdão fundamento.

61ª. Na verdade, o Acórdão fundamento defende uma posição activa e fiscalizadora do Juiz na formulação do juízo de homologação ou rejeição do acordo de pagamento, aplicando-se com as devidas adaptações as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos arts. 215º (recusa oficiosa) sempre que verifique existir violação não negligenciável das normas aplicáveis ao teor desse acordo, designadamente, das normas respeitantes à verificação dos créditos e à sua classificação, considerando constituírem vícios não negligenciáveis ou não desculpáveis aqueles que configurem inequivocamente uma violação de normas imperativas, cujo resultado seja ilegal e insusceptível de ser suprido com o consentimento dos tutelados, ou seja, aqueles que representem violações destas normas imperativas e acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza ou mesmo proíbe e impede.

62ª. São essas violações que supra se deixaram invocadas, que atentam contra essas normas imperativas, em especial a que impõe a igualdade de tratamento dos credores e dos créditos, que impõe que se trate como igual o que for necessariamente igual e que se trate como diferente o que for essencialmente diferente, que devem ser constituir instrumento de uma exegese cuidada quanto à matéria aqui em causa e que seguramente levarão à revogação do segmento decisório do Acórdão recorrido e à consequente rejeição da homologação do acordo de pagamento apresentado nos autos.

63ª. Os fundamentos supra invocados são determinantes da violação dos artºs 194º, 215º e 222º-A a 222º-F, do CIRE, bem como os princípios gerais do Cód. Proc. Civil supra enunciados, aplicáveis aos autos por via do artº 17º do CIRE, cuja consequência legal será a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por douto Aresto que conclua pela não homologação e rejeição do plano de pagamentos apresentado pela devedora.

Requerendo, afinal, que seja revogado o Acórdão da Relação e proferido Aresto pelo qual seja rejeitado e não homologado o plano de pagamentos apresentado pela devedora nestes autos.

20. As contra-alegações de revista foram mandadas desentranhar, por razões tributárias.

21. Distribuídos os autos no STJ e resultando da discussão do Coletivo a possibilidade de o recurso não ser admissível, foi dado cumprimento ao disposto no nº. 1 do art. 655º do CPC (aplicável por remissão do art.º 17.º do CIRE).

22. Veio o Recorrente apresentar requerimento, reafirmando a oposição de julgados fundamentadora da admissibilidade do recurso.

23. Por decisão singular de 22-08-2025 julgou-se não se verificar a oposição de julgados necessária à admissibilidade da Revista, pelo que não foi a mesma admitida (art. 652 nº 1, alª b), do CPC).

24. Contra essa decisão, o Recorrente reclamou para a Conferência e pediu a prolação de acórdão.

25. No seu requerimento e no essencial, contesta o afirmado na decisão singular de que “o núcleo essencial da matéria litigiosa do acórdão fundamento não tem expressão no acórdão recorrido, uma vez que este não conheceu em substância, (…) não se chegou a discutir a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, por violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, em discussão no acórdão fundamento”, defendendo que, a oposição de julgados está patente precisamente aí, pois, enquanto o acórdão fundamento foi ao fundo da substância da questão, através do poder/dever de conhecimento oficioso que cabe ao Julgador, o acórdão recorrido nem sequer entrou no conhecimento da questão, apesar da matéria existente nos autos assim o justificar, numa clara denegação do conhecimento da substância das questões suscitadas e, por consequência, de denegação de justiça.

Defende ainda que, “a frontal e gritante oposição de julgados está precisamente no facto de o acórdão recorrido não ter conhecido em substância da violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, quando o devia ter conhecido, desde logo no exercício do poder/dever de conhecimento oficioso dos falsos créditos dos filhos da devedora, que foram reconhecidos como válidos e que não podiam nem o deviam ser, por falsos e legalmente impossíveis de existir, face à prova documental autêntica existente nos autos”.

Mais afirma que a efetiva e manifesta oposição de julgados se extrai do facto de “no acórdão fundamento se considerar primordial o dever oficioso de averiguação pelo Juiz da violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, ao passo que, no acórdão recorrido, sob o pretexto de um despacho de declaração de extemporaneidade da impugnação dos créditos, com mero efeito de caso julgado formal, se legitima o desprezo desse dever de conhecimento oficioso do mérito da substância que constitui a violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, dever esse que é a essência da função jurisdicional e a garantia da legalidade.”

Importa apreciar.

II. Fundamentação

1. A questão da admissibilidade do recurso

Está em causa um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), regulado nos artigos 222º-A a 222º-J do CIRE, ao qual, nos termos do art. 222º-A, n. 3, in fine, se aplicam “todas as regras previstas no presente Código que não sejam incompatíveis com a sua natureza”.

Dispõe o nº1 do artigo 14 do CIRE:

«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme

Aplica-se ao PEAP o regime especial de recursos previsto no art. 14º do CIRE.

Este o entendimento reiterado na jurisprudência do STJ, de que é exemplo o acórdão do STJ, de 11-07-2019 (Henrique Araújo), no processo n. 1819/17.9T8CHV-A.G1.S2: «O recurso de revista interposto sobre acórdão proferido em processo especial para acordo de pagamento (PEAP) – art. 222.º-C, do CIRE, obedece ao regime específico previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE

Nos termos do AUJ n.º 13/2023: «A regra prevista no art. 14.º n.º 1 do CIRE restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência», devendo o seu âmbito de aplicação ao PEAP ser interpretado nos mesmos termos.

De acordo com o regime previsto no nº 1 do art. 14º do CIRE, a admissibilidade do recurso de revista depende da demonstração de que o acórdão da Relação está em oposição com outro da Relação ou do Supremo e não esteja de acordo com AUJ.

Não prescindindo dos requisitos gerais respeitantes à legitimidade, tempestividade, valor da alçada da Relação e valor da sucumbência.

Assente que o valor da causa fixado para efeitos de custas é de € 30.000,01 (despacho de 01-10-2024) e que, no caso de dúvida, quanto à sucumbência é aquele o valor que importa atender (art. 629º nº1 CPC), atendendo a que quem recorre pode fazê-lo e fê-lo em tempo, mostram-se observados tais requisitos gerais.

Para fundamentar contradição jurisprudencial (oposição de acórdãos) que legitimará a interposição da presente revista, o Recorrente invoca como acórdão fundamento, o acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação de Guimarães, no P. 6921/22.2T8VNF.G1, de que juntou certidão judicial.

Sobre o modo como deve ser apreciada a oposição de acórdãos relevante para efeitos do artigo 14.º do CIRE, tomemos em consideração, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, consultáveis em www.dgsi.pt e, proferidos nos processos:

P. 28751/23.4T8LSB-A.L1.S1: “A oposição entre julgados tem de ser uma oposição frontal e há de determinar-se atendendo à semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas.

P. 25546/23.9T8LSB.L1.S1: “Não ocorre oposição entre acórdãos para efeitos de admissibilidade da revista ao abrigo do disposto no artigo 14.º, do CIRE, se a divergência do sentido das respetivas decisões assentar em distintos pressupostos fácticos.”

P. 24238/20.5T8LSB.L1.S2: “Para efeitos do disposto no art. 672º, nº 1, c), do mesmo diploma, há contradição entre acórdãos que – reportando-se a situações de facto essencialmente idênticas – dão respostas diametralmente opostas quanto à mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação.”

P. 9727/23.8T8SNT.L1.S1: “Em processo de insolvência, para efeitos do artigo 14.º do CIRE, se o acórdão fundamento e o acórdão recorrido não decidem a mesma questão fundamental de direito, não existe a oposição jurisprudencial que justifica a admissibilidade da revista.”

À luz deste enquadramento jurisprudencial, confrontemos o acórdão recorrido com o acórdão fundamento, a fim de apurar da necessária oposição para a admissibilidade da revista.

Resulta do acórdão recorrido, dando acolhimento à decisão da 1ª instância, que, os “falsos créditos” dos filhos da devedora foram alegados pelo Recorrente por duas vias: a primeira, por meio de impugnação que foi considerada extemporânea, logo ficando precludido o seu conhecimento e, a segunda, por meio de requerimento direcionado à condenação daqueles como litigantes de má-fé, que a 1ª instância apreciou e considerou não se vislumbrar, pelo que, nada mais haveria a conhecer.

Lê-se no mesmo acórdão, a propósito do suscitado dever de conhecimento oficioso de verificação dos falsos créditos:

“Não vislumbramos aqui, quanto a esta matéria alegada, qualquer violação não negligenciável das normas aplicáveis. Com efeito, a despeito da junção aos autos da certidão judicial alegadamente comprovativa da inexistência dos alegados créditos, face ao despacho de 4 de abril de 2023, referência citius .......23, transitado em julgado e que havia já julgado extemporânea tal impugnação, ficou tal questão coberta pelos efeitos do caso julgado formal.”

E, no respeitante à indevida qualificação de créditos, nele se lê:

“Os recorrentes insurgem-se depois contra a qualificação do crédito reclamado pela “GG e associados- Sociedade de Advogados, RL”, como crédito comum, quando deveria ser um crédito subordinado. Alegaram que a garantia alegadamente prestada, a existir, terá sido prestada a título gratuito, razão pela qual o crédito terá de ser qualificado como subordinado, nos termos previstos nos artºs 48º, als. a) e d) e 49º, nº 1, alínea b) e nº 2, als. c) e d) do CIRE.

Como assinala o despacho de 21 de junho de 2024, prévio à sentença recorrida, os créditos em causa foram reconhecidos pelo senhor administrador judicial provisório como subordinados, sendo certo que não foram tempestivamente impugnados, nos termos que já supra expusemos quanto à (in)existência dos créditos, e que motivaram o despacho do tribunal recorrido de 4 de abril de 2023, devidamente transitado em julgado.

Daí que não haja que extrair consequências da alegada errada qualificação do crédito e respetivos reflexos em sede de aprovação do plano de pagamentos.

Igual raciocínio vale para os restantes créditos (conclusões 22 a 24) elencados pelos recorrentes, e sobre os quais, por isso, não fazemos considerações adicionais.

Improcede, assim, também esta alegação dos recorrentes, não havendo, nos termos que supra expusemos, qualquer violação não negligenciável das regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.”

O acórdão recorrido declarou, assim, não poder conhecer da existência de créditos fictícios pelos filhos da devedora com vista a influenciar o sentido da votação do plano de pagamentos, porque, tendo tal questão sido suscitada em impugnação considerada extemporânea, não era possível a sua ulterior invocação ou o seu conhecimento oficioso.

Bem como declarou inexistir violação não negligenciável das regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, no respeitante à classificação de créditos pelo AJP, uma vez não impugnados.

No caso apreciado no acórdão fundamento - Ac. TRG, 27-06-2024, P. 6921/22.2T8VNF.G1, o tribunal de 1ª instância decidiu oficiosamente não homologar o acordo de pagamento, ainda que aprovado com o quórum deliberativo de 88,68% de credores com créditos reconhecidos, e destes com os votos favoráveis de 78,75%. Fê-lo, sem dependência de invocação pelos interessados de razões para a não homologação.

Os devedores recorreram de apelação.

A Relação confirmou a decisão da 1ª instância.

Discutiu o acórdão fundamento se o juiz tem, oficiosamente, que sindicar o cumprimento das regras procedimentais e das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo, assegurando-se que não se verifica qualquer das situações fundamentadoras de rejeição estabelecidas no art. 215º (função de garante da legalidade) e, se tem que analisar o mérito das oposições à aprovação do acordo que tenham sido deduzidas por algum credor (função de assegurar a tutela mínima das minorias - art. 216º).

Nele se escreveu ser o PEAP um processo “híbrido em virtude de ser composto por uma forte componente extrajudicial (a fase das negociações, em que não intervém o juiz, mas sim o devedor e os seus credores, sob a alçada, orientação e fiscalização do administrador judicial provisório), mas compensada («temperada») com a intervenção do juiz em momentos chave (máxime no controlo inicial, na decisão da impugnação de créditos, e na decisão de homologação ou recusa de homologação), conditio sine qua non do carácter concursal do mesmo processo em causa.”

E que:

“Decorre do disposto nos nºs. 1 e 2 do art. 222ºF do C.I.R.E. que as negociações podem ser concluídas com a aprovação unânime de acordo de pagamento (…) ou com a aprovação de acordo de pagamento por uma das maiorias previstas no nº3 do referido art. 222ºF (…), sendo que, em qualquer dos casos (aprovação unânime ou maioritária), compete sempre ao juiz decidir se homologa ou recusa a homologação do acordo de pagamento, aplicando-se com as devidas adaptações as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos arts. 215º (recusa oficiosa) e 216º (recusa a solicitação dos interessados) do C.I.R.E. É o que decorre expressamente do estabelecido no nº5 do art. 222ºF: “O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º””.

Fundamentando:

“A propósito desta remissão para as regras da aprovação e homologação do plano de insolvência, explica Maria do Rosário Epifânio: “Contrariamente ao PER (art. 17.º-F, n.º 7), e ao PEAP previsto no art. 222.º-I, na disciplina do PEAP, o legislador não faz qualquer remissão expressa para o artigo 194.º (que consagra o princípio de igualdade de tratamento dos credores), para o artigo 195.º (quer regula o conteúdo do plano), para o artigo 196.º (sobre as providências com incidência no passivo), ou para o artigo 197.º (disposição com caráter supletivo, face à ausência de disposição expressa do plano). Entendemos que esta omissão não constitui qualquer impedimento à aplicabilidade dos referidos preceitos, pois a mesma está devidamente alicerçada, não só na remissão genérica contida no art. 222.º-A, n.º 3, como também, na remissão operada pelo art. 222.º-F, n.º 5, para o Título IX”.

Assim, com esta remissão para o disposto nas regras da aprovação e homologação do plano de insolvência, constata-se que o legislador optou/decidiu por submeter o acordo de pagamento aprovado pelos credores à apreciação judicial, nos termos da qual, por um lado, o juiz tem, oficiosamente, que sindicar o cumprimento das regras procedimentais e das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo, assegurando-se que não se verificam nenhuma das situações fundamentadoras de rejeição estabelecidas no art. 215º (função de garante da legalidade) e, por outro lado, o juiz tem que analisar o mérito das oposições à aprovação do acordo que tenham sido deduzidas por algum credor (função de assegurar a tutela mínima das minorias - art. 216º).” (realce nosso)

Mais refere, na concretização do fundamentado:

“Nestas circunstâncias, não contendo o acordo de pagamento aprovado qualquer fundamento (causa) objetivo, racional, e razoável para explicar o tratamento diferenciado entre os créditos garantidos…) e os créditos comuns e subordinado (…), então tal diferenciação implica um tratamento de enorme e descomunal desfavor dos créditos comuns (e subordinado) em relação aos créditos garantidos, o que se traduz numa medida totalmente desproporcional, discriminatória e até arbitrária e, por via disso, violadora do princípio da igualdade previsto no art. 194º do C.I.R.E.”

Assentando que, no caso, por falta de fundamentos para justificar o tratamento diferenciado entre os créditos garantidos e os créditos comuns e subordinado, ocorreu violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores e que esta representa uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo de pagamento aprovado para efeitos do disposto no art. 215º do C.I.R.E., foi oficiosamente recusada a homologação do acordo de pagamento.

O acórdão fundamento concluiu que, deve ser recusada, oficiosamente, a homologação do acordo de pagamento aprovado e apresentado pelos devedores sempre que se verifique uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo daquele acordo de pagamento, para efeitos do disposto no art. 215º do CIRE.

No caso, a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, decorreu, de forma imediata, da violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores previsto no art. 194º do C.I.R.E..

Do confronto de ambos os acórdãos, resulta que:

O acórdão recorrido recusou-se a conhecer oficiosamente da falsidade dos invocados créditos dos filhos da devedora, e da errada qualificação de outros créditos, suscetíveis de influenciar a votação, com recurso a argumentos formais: a preclusão da sua invocação na fase de impugnação de créditos e, a classificação dos créditos pelo Administrador Judicial Provisório (AJP), sem atempada impugnação, tendo desse modo afastado a possibilidade de reconhecer uma violação não negligenciável das regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do plano.

O acórdão fundamento reconheceu ter o tribunal a prerrogativa de conhecimento oficioso e, no exercício dessa prerrogativa decidiu “oficiosamente” não homologar o acordo de pagamento, ainda que aprovado com o quórum deliberativo e com o número de votos favoráveis, necessários.

Fê-lo, por considerar, não conter o acordo de pagamento aprovado, qualquer fundamento objetivo, racional e razoável para explicar o tratamento diferenciado entre os créditos garantidos e os créditos comuns e subordinado, e que tal diferenciação implicava um tratamento de enorme e descomunal desfavor dos créditos comuns (e subordinado) em relação aos créditos garantidos, o que se traduzia numa medida totalmente desproporcional, discriminatória e até arbitrária e, por via disso, violadora do princípio da igualdade previsto no art. 194º do C.I.R.E.

Tendo sido este o núcleo essencial da matéria litigiosa apreciada no acórdão fundamento.

A discussão e o reconhecimento da prerrogativa de conhecimento oficioso, prévias, constituíram, apenas, a etapa teórica-jurídica necessária para alcançar a resolução do núcleo essencial da matéria litigiosa - a falta de justificação para o tratamento diferenciado entre os créditos, como razão para a não homologação do plano aprovado. Mas não constituiu a questão fundamental de direito.

No caso, o núcleo essencial da matéria litigiosa do acórdão fundamento foi a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, e o seu conhecimento decorreu, de forma imediata, da violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores previsto no art. 194º do CIRE e, apenas de forma mediata, da possibilidade do seu conhecimento oficioso.

Ora, este núcleo essencial da matéria litigiosa do acórdão fundamento não tem expressão no acórdão recorrido, que não conheceu em substância.

Neste não se discute da violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, por violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, em discussão no acórdão fundamento.

As situações materiais litigiosas em confronto não são análogas ou equiparáveis, na sua identidade jurídica essencial.

Não sendo, por isso, possível reconhecer oposição de julgados entre as mesmas.

Não se verificando a oposição de julgados necessária à admissibilidade da Revista, não vai a mesma admitida (art. 652 nº 1, alª b), do CPC).

Inexiste fundamento para revogar a decisão reclamada.

Em suma:

- Tendo embora ambos os acórdãos em confronto, passado por uma embrionária ‘etapa teórica jurídica’, com pontos de identidade factual e jurídica (prerrogativas de conhecimento oficioso do plano aprovado), não há oposição de julgados se, o núcleo essencial da matéria litigiosa apreciada, em fase mais madura, no acórdão fundamento (no caso, a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano) não foi conhecido no acórdão recorrido.

- Logo, não há lugar a revista.

III. Decisão:

Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 07 de outubro de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Luís Espírito Santo (1º Adjunto)

Maria do Rosário Gonçalves (2ª Adjunta)