USUCAPIÃO
REQUISITOS
DIREITO DE PROPRIEDADE
ANIMUS POSSIDENDI
CORPUS
POSSE
POSSE PACÍFICA
PRAZO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
PRESCRIÇÃO AQUISITIVA
IMOVEL
PROVA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário


I - A usucapião, como forma de aquisição originária da propriedade, exige a posse pública, pacífica e duradoura, com “animus possidendi”.
II - O Código Civil português adopta uma concepção subjectivista da posse, exigindo intenção de agir como titular do direito.
III – A não demonstração pela Autora do animus, a partir de 2007, inviabiliza a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel por usucapião, uma vez que o tempo de posse com os requisitos legais foi insuficiente para completar o prazo que, no caso, se mostrava exigido para o efeito: 20 anos.

Texto Integral



Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça

I – relatório

1. AA propôs contra Bolsimo – Gestão de Activos, S.A acção declarativa sob a forma comum pedindo:

- que seja proferida sentença a declarar transmitida para si, por prescrição aquisitiva, a propriedade do prédio do prédio sito na Rua 1 Santa Maria da Feira, destinado a habitação, inscrito na matriz predial urbana da União da freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo, do concelho de Santa Maria da Feira, sob o n.º ..19, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n.º 00151 de 20/12/1991, inscrito a favor da demandada pela inscrição G-3, apresentação 20/12/1991;

- que seja cancelada, em conformidade, a referida inscrição G-3.

Fundamenta a acção na aquisição do imóvel por usucapião, alegando para o efeito e essencialmente:

- ter celebrado, juntamente com o marido, entretanto falecido, contrato promessa de compra a e venda com a “Espargo – Operações Imobiliárias, Lda.”, tendo por objecto o imóvel supra identificado, pelo preço de vinte mil e quinhentos contos, por si integralmente pago.

- ter, em finais de 1992, passado a viver no referido imóvel (primeiramente com o marido e até ao falecimento deste, ocorrido em Julho de 1998) fruindo e usando a referida moradia de forma pública e pacífica, como sua proprietária, sem a oposição de ninguém.

2. Após citação, a Ré apresentou contestação, defendendo-se por excepcão (arguindo a sua ilegitimidade passiva) e por impugnação, concluindo pela improcedência da acção. Deduziu pedido reconvencional pretendendo:

- ser declarada dona e legítima proprietária do imóvel;

- condenação da Autora:

i. a restituir-lhe o imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

ii. no pagamento de uma indemnização de 800 euros mensais, correspondente ao valor pela ocupação do imóvel, desde 03-10-2023 e até à efectiva restituição do mesmo livre e devoluto de pessoas e bens;

iii. no pagamento de uma indemnização a título de eventuais danos causados pela utilização e deterioração do imóvel.

3. Em resposta a Autora invocou a ineptidão da reconvenção e a improcedência da mesma. Peticionou, também, a declaração da nulidade da venda invocada pela Ré, por simulação e a condenação desta por litigância de má fé, em multa e indemnização, em montante não inferior a €33.450,00.

4. A Autora desistiu do pedido de declaração de nulidade da venda por simulação, desistência que foi homologada em conformidade.

5. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador onde foram julgadas improcedentes as invocadas ilegitimidade passiva e a ineptidão da reconvenção.

Foi ainda identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, não tendo havido qualquer reclamação.

6. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e parcialmente procedente o pedido reconvencional, tendo em consequência:

declarado a Ré dona e legítima proprietária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º .51 e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ..19.º, da união das freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo;

- condenado a Autora a restituir à Ré o referido imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, no estado em que se encontra;

- condenado a Autora a pagar à Ré quantia que vier a ser liquidada, a título de ocupação indevida, desde a notificação do pedido reconvencional até à sua efectiva entrega;

- absolver a Autora do demais peticionado.

7. Inconformada apelou a Autora, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido acórdão que julgou procedente a apelação e, em consequência:

- reconheceu a Autora titular do direito de propriedade sobre o prédio em referência por o haver adquirido por usucapião;

- ordenou o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré que impende sobre o mesmo prédio;

- julgou improcedente o pedido reconvencional, absolvendo a Autora em conformidade.

8. Veio agora a Ré interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

“A) Vem o presente Recurso de Revista interposto de Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que revogou a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.

B) A Recorrente não concorda com esta decisão, por não estarem verificados os requisitos da usucapião, previstos no artigo ..96.º, do código civil, por a posse não ser pacífica, principalmente por ter sido enviado um requerimento em outubro de 2003 na ação de execução específica n.º ..55/2001e por nem sequer existir animus a partir de março de 2007.

C) O Tribunal da Relação do Porto entendeu que aquele requerimento não é suscetível de interromper o prazo por não ter sido notificado à demandante e tendo sido determinado o seu desentranhamento dos autos nem se extrai um claro propósito de exercitar o seu direito.

D) Para um correto enquadramento da questão, a Recorrente pretende ver reconhecida a sua propriedade pela Autora e ocupante do imóvel e alega a sua posse de acordo com o artigo 7.º do Código Registo Predial e artigo 1251.º do Código Civil defendendo que a sua posse sempre foi contínua e ininterrupta, tendo inclusive celebrado um contrato de locação financeira com o Sr. BB no dia 30/04/2001 e tendo a certidão predial e caderneta predial urbana a seu favor.

E) A recorrida sempre teve uma posse precária e se aplicarmos a matéria dada como provada e repercutir os mesmos nos pressupostos da posse e usucapião compreendemos que sempre agiu enquanto detentora.

F) Do ponto 17 da matéria dada como provada, consta um documento particular, junto PI que é um contrato-promessa de compra e venda do imóvel aqui em discussão, e no ponto 9 a Autora coloca uma ação de execução específica com o n.º ..55/2001, para conseguir a seu favor a transmissão da propriedade, sendo que no decorrer desta ação, o Finibanco SA vem defender a sua propriedade com um requerimento, ponto 10 da matéria dada como provada.

G) O locatário para defender a sua posição coloca uma ação declarativa com o n.º de processo 5776/03.0TBVFR, constando do ponto 12 da matéria dada como provada, que a aqui Recorrida contestou pugnando que tem “direito a receber o valor pago em dobro, com juros e o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel.

J) Considera a Recorrente que deveria ter sido aplicado o n.º 4 do art.º 323.º do Código Civil, que determina que qualquer outro meio judicial seria idóneo contra quem o direito pode ser exercido, concretamente o requerimento apresentado nos autos.

L) Sem prescindir, considera a Recorrente que o Acórdão da Relação do Porto coloca em causa o princípio da segurança jurídica, normas essenciais e princípios constitucionais.

M) A aqui Recorrente questiona se é possível reconhecer a posse plena à Autora quando na ação n.º ..55/2001, ação n.º 5776/03.0TBVFR e ação n.º3434/23.9T8VFR, transitadas em julgado, litigou sempre como retentora e promitente compradora dado que o Tribunal a quo apenas considerou que o requerimento não é suficiente para interromper o prazo prescricional.

N) Todas estas ações devem ser interpretadas no sentido de como a aqui Autora olha para a sua posse e de que forma pode deduzir do comportamento da mesma, artigo 236.º, n.º 1,do Código Civil. Da forma como litigou deverá ser definida como de mera detenção ou posse precária.

O) Da matéria dada como provada, ponto 9, 10, 12 e 13 consta esta mesma posse precária nessas ações e conforme dispõe o artigo 1253.º, alínea a), do Código Civil “os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, são considerados detentores ou possuidores precários. Igualmente o artigo 1290.º do Código Civil de que os detentores e possuidores precários não podem adquirir por usucapião.

P) E ainda o artigo 1265.º do Código Civil, pois não existe a inversão do Titulo da posse defendendo ainda a aqui Recorrente a aplicação do artigo 334.º (Abuso de Direito), quando a Autora sempre agiu como retentora e posteriormente é-lhe concedida a usucapião.

Q) Estas são as normas que a Recorrente considera que o Acórdão viola e o sentido que deviam ter sido aplicadas seria em considerar e reconhecer que a Autora sempre teve uma posse precária ou mera detenção em virtude da litigância que a mesma efetuou nas várias ações.

H) No ponto 13 da matéria dada como provada fica estipulada a decisão na ação 5776/03.0TBVFR, transitada em julgado, entre o locatário e a aqui Autora que reconhece a locação, reconhece a propriedade do Finibanco e reconhece o direito de retenção da aqui Autora sobre o sito imóvel até que seja pago o sinal em dobro do contrato.

I) O Tribunal da Relação do Porto entendeu que o requerimento não tem o efeito de interromper a prescrição aquisitiva porque não foi notificado à demandante, nem tem o conteúdo do titular querer exercer o direito e deveria sempre respeitar o artigo 323.º do Código Civil, ou seja, notificação judicial.”.

7. Nas contra alegações a Autora defende a improcedência do recurso.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:

Da (in)verificação dos requisitos da usucapião

1.1 Os factos provados

1. A Autora casou com CC em 24 de Agosto de 1997;

2. CC faleceu em 9 de Julho de 1998, no estado de casado com a Autora;

3. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da União de freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo, do concelho de Santa Maria da Feira, sob o artigo ..19.º, o prédio sito na Rua 1 Santa Maria da Feira;

4. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º .51/......20 o prédio inscrito na matriz sob o art.º ..19.º-U, sito na Rua 1, Santa Maria da Feira;

5. Tal prédio encontra-se inscrito a favor da aqui Ré mediante a Ap. ..05, de 03/10/2023;

6. Mediante escritura pública outorgada, em 28 de Setembro de 2023, no Cartório Notarial de DD, sito em Lisboa, na Rua 2, EE e FF, na qualidade de procuradores, em representação da sociedade “Montepio Investimento, S.A.”, na qualidade de 1.ºs Outorgantes e Vendedor, GG e HH, na qualidade de administradores, em representação da sociedade “Bolsimo – Gestão de Activos, S.A.”, na qualidade de 2.ºs Outorgantes e Compradora, declararam:

Declararam os 1.ºs outorgantes na qualidade em que intervêm:

Que, pela presente escritura, em nome da Vendedora, pelo preço de noventa e seis mil e quinhentos euros, que para a mesma declaram já ter recebido, vendem à Compradora, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano actualmente sito na Rua 1, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o número .51, da dita freguesia, com aquisição registada a favor da Vendedora pela inscrição resultante da Ap. 25 de 2001/01/26, inscrito na matriz da união das freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo sob o artigo ..19 (o qual provém do artigo .75 da freguesia de Travanca (extinta), com o valor patrimonial de € 108.422,30.

- Que a Vendedora se responsabiliza pelos custos de obtenção do certificado energético relativo ao prédio acima identificado, aquando da sua obtenção pela Compradora.

Declararam os 2.ºs Outorgantes na qualidade em que intervêm:

- Que, para a Compradora, aceitam a presente venda nos termos exarados e que o indicado prédio se destina a revenda.

Mais declararam os Outorgantes na qualidade em que intervêm:

- Que o indicado preço foi pago na presente data, por transferência bancária da conta (…) para a conta (…).

Que para a transacção não houve mediação imobiliária.

- Que as suas representadas cumpriram plenamente as obrigações declarativas e/ou de rectificação relativas ao Registo Central do Beneficiário Efectivo.”;

7. Mediante escritura pública outorgada em 27 de Abril de 2001, no 1.º Cartório Notarial do Porto, II, como sócio e gerente, em representação da sociedade “Espargo – Operações Imobiliárias, Limitada”, e na qualidade de 1.º Outorgante, e JJ, como procurador, em representação da sociedade “Finibanco, S.A.” Sociedade Aberta, na qualidade de 2.º Outorgante, declararam:

Declarou o 1.º Outorgante em nome da sociedade sua representada

- “Que, pela presente escritura, e pelo preço de Vinte Milhões de Escudos, que já recebeu, vende ao “Finibanco, S.A.”, representado do 2.º outorgante, livre de quaisquer ónus ou encargos, o prédio urbano destinado à habitação composto por edifício de rés-do-chão e primeiro andar e anexo, sito no lugar do ..., da freguesia de ..., concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo .75, com o valor patrimonial de 9.792.000$00;

- Que o prédio está descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o número .51, freguesia de ..., registado a favor da sociedade vendedora por inscrição G-três;

- Sobre o identificado prédio está já registada provisoriamente a referida aquisição a favor do Finibanco pela inscrição G-quatro, existindo também sobre o mesmo, um ónus de hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, cujo cancelamento se encontra assegurado.

Declarou o 2.º Outorgante:

- Que para o Finibanco, S.A., que representa, aceita a presente venda nos termos exarados.”;

8. A aqui Autora, em 29/01/2001, instaurou procedimento cautelar de arresto contra “Espargo – Operações Imobiliárias, Lda.”, peticionando fosse decretado o arresto do prédio urbano descrito na matriz predial da freguesia de ..., Santa Maria da Feira, que correu termos sob o n.º ..55/2001 no entretanto extinto 2.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, tendo tal procedimento sido indeferido liminarmente por decisão proferida em 02/02/2001;

9. A aqui Autora instaurou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra “Espargo – Operações Imobiliárias, Lda.”, que correu termos sob o n.º ..55/2001 no entretanto extinto 3.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, no qual, não tendo sido apresentada contestação, por sentença proferida em 10 de Novembro de 2003, transitada em julgado em 24 de Novembro de 2003, foi julgada a acção procedente e, em consequência, foi declarada transmitida para a demandante a propriedade do prédio constituído de rés-do-chão, 1.º andar e anexo, destinado a habitação, (…), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., deste concelho de Santa Maria da Feira, sob o n.º .75, implantado no anterior artigo urbano n.º .19 daquela mesma freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n.º .51 de 20/12/1991 e inscrito a favor da demandada pela inscrição G-3, apresentação 20/12/1991;

10. No âmbito dessa acção n.º ..55/2001, o “Finibanco, S.A.” apresentou requerimento onde, alegando ter adquirido o imóvel em 27/04/2001 à sociedade “Espargo”, tendo registado tal aquisição, ter celebrado em 30/04/2001 com BB contrato de locação financeira nos termos do qual deu tal imóvel em locação por 180 meses, encontrando-se registada a locação financeira, requer que se atenda a tal factualidade na sentença a proferir nessa acção, considerando que o pedido aí deduzido se tornou impossível;

11. E, por despacho proferido em 03/10/2003, considerando que o requerente não é parte nos autos, foi determinado o desentranhamento do requerimento apresentado pelo “Finibanco”;

12. BB instaurou contra a aqui Autora acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 5776/03.0TBVFR no entretanto extinto 1.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, peticionando a condenação da aí Ré a reconhecê-lo como locatário do prédio e a desocupá-lo, entregando-o livre de pessoas e bens e a pagar-lhe a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença pelos prejuízos causados, desde a citação. A aqui Autora e aí Ré contestou, pugnando pela improcedência da acção, deduzindo ainda pedido reconvencional, para o caso de a acção vir a ser julgada procedente, peticionando seja declarado que tem o direito a receber o valor pago em dobro, com juros, e o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel em causa;

13. No âmbito dessa acção n.º 5776/03.0TBVFR, por sentença proferida em 18/07/2007, confirmada pela Relação do Porto e pelo STJ, foi decidido: a) Julgar a acção parcialmente procedente, assim se condenando a Ré a reconhecer o Autor como legítimo locatário do prédio urbano destinado a habitação, composto por edifício de rés-do-chão e primeiro andar, sito no lugar do ..., freguesia de ..., concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz sob o art.º .75 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº .51, no mais se absolvendo a Ré; b) Julgar a reconvenção totalmente procedente, assim se condenando o Autor/Reconvindo a reconhecer o direito de retenção da Ré/Reconvinte sobre o dito imóvel, até que seja paga pela sociedade “Espargo – Operações Imobiliárias, Lda.” a quantia de € 254.386,93;

14. A Autora ocupa o prédio;

15. Mediante a Ap. 25 de 26/01/2001, foi registada a aquisição do prédio a favor do “Finibanco, S.A.”, por compra a “Espargo – Operações Imobiliárias, Limitada”;

16. A Espargo, em finais de 1991, inícios de 1992, tinha em construção, no Lugar do ..., em ..., Santa Maria da Feira, quatro moradias;

17. Foi junto com a p.i. um documento particular, datado de 3 de Fevereiro de 1992, do qual consta que II, na qualidade de sócio-gerente da “Espargo – operações imobiliárias, Lda.” e 1.º outorgante, e KK, na qualidade de gestor de negócios de CC e da Autora e 2.º outorgante, declararam que:

A 1.ª outorgante é dona e legítima possuidora de uma urbanização, sita no lugar do ..., freguesia de ..., concelho de S.M.Feira, onde se encontram, em construção, quatro moradias de r/c e andar.

O 2.º outorgante é dono e legítimo possuidor de uma parcela de terreno, destinada à construção urbana, sita na Zona Industrial do Cavaco, em S.M.Feira.

Pelo presente contrato, a 1.ª outorgante promete vender ao 2.º, pelo preço de 25.500.000$00 (…) a moradia designada pelo nº 3, da dita urbanização, e o 2.º promete vender à 1.ª, pelo preço de 9.000.000$00 (…) a parcela de terreno acima identificada.

A quantia de 25.500.000$00 (…), será paga da forma seguinte:

a) A quantia de 12.000.000$00 (…) como sinal e princípio de pagamento no acto da escritura de venda da parcela, a celebrar até ao dia 7/2/92, sendo 9.000.000$00 (…) o valor da parcela vendida, e 3.000.000$00 (…) em dinheiro;

b) A quantia de 3.000.000$00 (…), no dia 31 de Maio de 1992;

c) A quantia de 10.500.000$00 (…), em dez prestações mensais, sendo as primeiras nove, de 1.000.000$00 (…) cada, com vencimentos no dia 30 dos meses de Junho/92 a Fevereiro/93, e a última, de 1.5000.000$00 (…), a vencer-se no dia 30 do mês de Março de 1993.

A 1.ª outorgante compromete-se a fazer a entrega da moradia ao 2.º, até ao dia 31 de Maio do corrente ano, com a faculdade de a mesma entrega se efectuar somente no dia 30 de Junho/92.

A 1.ª outorgante compromete-se a fazer a entrega da referida moradia, com as alterações seguintes, e por conta da mesma:

(…). A escritura de venda da moradia, cuja marcação ficará a cargo da 1.ª outorgante, realizar-se-á durante o mês de Julho próximo.

No caso de incumprimento por parte da 1.ª outorgante, esta pagará ao 2.º, o dobro do sinal recebido, ou seja, a quantia de 24.000.000$00 (…), e em caso de incumprimento pelo 2.º outorgante este perderá o valor do sinal entregue, bem como quaisquer prestações que já tenha pago.

A 1.ª outorgante tem perfeito conhecimento de que o presente contrato, embora celebrado com o outorgante KK, o é no interesse e na qualidade de gestor de negócios do Sr. CC e esposa AA, (…)”;

18. Tal documento não se mostra assinado pelas partes, nem dele consta qualquer assinatura;

19. Em Setembro de 1992, a Autora e o marido, juntamente com a filha de ambos, foram viver para a moradia em questão, já acabada, que lhes foi entregue pelo legal representante da Espargo, com as alterações pretendidas por aqueles;

20. Ficaram aí os três a viver até ao falecimento do marido da Autora;

21. Após o falecimento do marido da Autora, a Autora e a filha foram viver para a Irlanda;

22. A partir daí, a Autora vem uma/duas vezes por ano a Portugal e a filha vem duas/três vezes por ano a Portugal, de férias, permanecendo cada uma delas, em cada uma

dessas vezes, por períodos entre uma semana e um mês na moradia, desta cuidando, nela dormindo, fazendo a higiene, preparando e comendo as refeições e recebendo amigos;

23. A Autora, através de KK, participou às finanças o imóvel em 07/10/1992;

24. Pagou a Sisa em Maio de 1996 e a contribuição autárquica nos anos de 1996 a 1998;

25. A Autora contratou uma empregada doméstica que, desde o ano de 2001, trata da casa e seu arejamento, possuindo uma chave da mesma;

26. E, contratou uma pessoa que, há cerca de vinte anos, trata da jardinagem, indo à moradia, da qual possui chave, quase todos os dias para regar;

27. Desde que foi viver para a moradia e até ao presente, a Autora tem feito diversas obras na moradia, como reparação do telhado, pintura da casa, substituição de electrodomésticos e caldeiras;

28. E, tem suportado todas as despesas com consumos de água, gás e luz;

29. A Autora praticou os actos referidos em 19. a 28. à vista de todas as pessoas;

30. Até Março de 2007, praticou tais actos na convicção de estar a exercer um direito próprio, como sendo dona única e exclusiva da moradia;

31. Desde Setembro de 1992 até Outubro de 2003 e desde o acórdão proferido na acção n.º 5776/03.0TBVFR do STJ de 31/03/2011 até ao presente, praticou esses actos sem oposição de quem quer que seja;

32. A Autora enviou ao II a carta junta com a p.i. como doc. 22 e aqui dada por reproduzida, a solicitar a marcação da escritura, relativamente à qual não obteve resposta;

33. Em Novembro de 2020, a Autora remeteu a carta junta com a p.i. como doc. 37 ao Montepio e aqui dada por reproduzida, relativamente à qual obteve as respostas juntas com a p.i. como docs. 38 a 40 e aqui dadas por reproduzidas;

34. Em 31 de Julho de 1998, mediante escrito particular, denominado de “cessão da posição contratual”, KK, na qualidade de 1.º outorgante, e a aqui Autora, na qualidade de 2.º outorgante, declararam:“1.º O 1.º outorgante celebrou, em 3 de Fevereiro de 1992, com “Espargo – Operações Imobiliárias, Lda.”, contrato promessa de aquisição de uma moradia designada pelo Rua 3, na Urbanização sita no Lugar do ..., freguesia de ..., concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial urbana sob o Artigo n.º .75.

2.º Fê-lo no interesse e por conta da 2.ª outorgante e do falecido marido, CC, que para tanto o mandataram, sendo certo que deles recebeu os meios necessários à referida promessa de compra, naquilo que necessitou, muito embora, em rigor, os pagamentos tivessem sido feitos directamente pela 2.ª outorgante à promitente vendedora.

3.º Encontra-se assim o 1.º outorgante quite de tudo o que por via da sua intervenção naquele contrato poderia ter a receber ou a exigir da 2.ª outorgante, ou do seu defunto marido.

4.º Cabendo-lhe agora, nos termos do n.º 1 do art. 1181º do C. Civil, porque de um mandato sem representação, embora com pleno conhecimento da promitente vendedora no aludido contrato, efectivamente se tratou, transferir para a 2.ª outorgante os direitos adquiridos em execução do mandato.

5.º O que faz por via desta cessão da posição contratual, dando total quitação à 2.ª outorgante de todos os direitos que por vida da execução do mandato lhe poderiam competir.

6.º Por sua vez, a 2.ª outorgante aceita a presente cessão da posição contratual, e, por via dela, dá total quitação ao 1.º outorgante de todos os direitos que a ele competiam, decorrentes do mandato que em tempo lhe conferiu.”;

35. Em 30/03/2001, o Finibanco, S.A. declarou ceder a BB o gozo do prédio em questão, pelo prazo de 180 meses, mediante o pagamento da quantia mensal de 186.271$00, com a opção de comprar o imóvel através do pagamento de 2.106.991$00;

36. Mediante carta data de 15 de Janeiro de 2016, o Montepio Investimento, S.A. comunicou a BB que considera resolvido o contrato referido em 36.;

37. Desde pelo menos finais de Setembro/inícios de Outubro de 2003, o Banco Finibanco/Montepio sabia que a Autora ocupava o imóvel;

38. A Ré faz parte do Grupo Montepio;

39. Até à presenta data, o Finibanco/Montepio e a Ré não interpelaram a Autora para desocupar o prédio;

40. Em virtude da ocupação do imóvel pela Autora, a Ré fica impossibilitada de o gozar plenamente, de fazer uso e dispor da fracção, de proceder ao seu arrendamento e/ou retirar qualquer proveito/rentabilidade económica do imóvel;

41. Mediante a Ap. 13 20/12/1991, foi registada a aquisição do prédio a favor da “Espargo – Operações Imobiliárias, Limitada”.

1.2 Os factos não provados

a) KK, colaborador do CC, adquirira por conta e em representação do marido da A. e da A., com mandato sem representação, um terreno destinado à construção urbana, sito na Zona Industrial do Cavaco, em Santa Maria da Feira;

b) A A., o seu marido e o II, este, na qualidade de legal representante da Espargo e da Fábrica de Calçado Fianjo, acordaram no seguinte:

b.1. A A. e o marido entregariam à Espargo o terreno referido em a), a que foi atribuído o valor de esc.: 9.000.000$00 e mais esc.: 3.000.000$00 em dinheiro no acto da escritura da venda do mesmo terreno;

b.2. esse montante total de esc.: 12.000.000$00 constituiria o sinal e princípio de pagamento da compra de uma moradia sita no Lugar de ..., identificada pelo n.º 3 que a Espargo ali estava a construir e que se propôs vender à A. pelo valor global de esc.: 25.000.000$00, hoje melhor identificada como prédio sito ao n.º Rua 1, em ..., Santa Maria da Feira, constituído de rés-do-chão, 1.º andar e anexo, destinado a habitação;

b.3. o restante preço, ou seja, esc.: 13.500.000$00, seria pago através de comissões que a Fianjo tinha a pagar ao marido da Autora, e que este autorizara fossem entregues à Espargo para pagamento da casa que a mulher comprara;

c) Em 03/02/1992, a A. e o marido ordenaram ao KK, nos termos do n.º 1 do art.º 1181.º do C. Civil que celebrasse a escritura de venda do terreno que possuíam à Espargo, o que este fez;

d) E entregaram-lhe (a ela Espargo) um cheque de esc. 3.000.000$00;

e) No mesmo dia e conforme fora acordado, a Espargo celebrou com o referido KK, este, no exercício de mandado sem representação que a A., para o efeito lhe outorgou, o contrato promessa de compra e venda junto como doc. 3 com a p.i., cujo original, subscrito pelas partes, se encontra na posse da Espargo, conforme ela própria desde sempre confirmou e reconheceu;

f) Não obstante do contrato não constar o que supra o referido em b.3. acerca do modo de pagamento do restante preço, tal deveu-se apenas a questões formais, alegando o legal representante da Espargo que não iria fazer intervir a Fianjo no contrato, mas que faria as respectivas transferências, de acordo com o crédito que o marido da A. ali detivesse, de comissões;

g) E efectivamente assim se foram passando as coisas, com o legal representante da Espargo a inserir em conta corrente as despesas que ia tendo com os extras na moradia, nomeadamente a instalação de um elevador, e a creditar este pelas comissões que ele tinhas a receber da Fianjo, conforme se ilustra da conta corrente manuscrita por aquele;

h) Acabando o restante preço da moradia por ser pago, desse modo, em meados de 1994;

i) O legal representante da Espargo sempre reconheceu a Autora como proprietária da moradia e quem lhe disse para participar o negócio às Finanças;

j) Após Março de 2007, a Autora praticou os actos referidos na matéria provada na convicção de estar a exercer um direito próprio, como sendo dona única e exclusiva da moradia;

k) Entre Outubro de 2003 e o acórdão do STJ de 31/03/2011, a Autora praticou esses actos sem oposição de quem quer que seja;

l) O legal representante da Espargo sempre foi protelando a realização da escritura definitiva do contrato promessa, até que em 1996 exigia mais Esc.: 10.000.000,00;

m) Desde pelo menos finais de Setembro/inícios de Outubro de 2003, o Banco Finibanco/Montepio sabia que a Autora e marido tinham prometido comprar e o legal representante da Espargo tinha prometido vender a moradia, recusando-se este a celebrar a correspondente escritura definitiva de compra e venda, apesar de já ter sido integralmente pago o respectivo preço;

n) A Ré solicitou várias vezes à Autora para proceder à imediata entrega do imóvel, informando-a que, com a sua conduta, estava a lesar o seu direito de propriedade;

o) Caso fosse arrendado, o imóvel poderia render uma quantia mensal mínima de € 800,00;

p) A Autora provocou danos no imóvel, pela sua utilização e deterioração;

q) O prédio está em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

r) A Ré, conscientemente, faltou à verdade, alegando factos que sabe serem falsos;

s) A Ré deduziu oposição e pretensão cuja falta de fundamento não só ignorava, como o fez com premeditação, usando de intenso dolo;

t) A ré omitiu o dever de cooperação e fez uso reprovável dos meios processuais.

2. O direito

No âmbito dos presentes autos encontra-se sob apreciação a verificação dos requisitos legais da usucapião, enquanto forma de aquisição originária do direito de propriedade.

Em discussão está a titularidade do direito de propriedade de um imóvel (prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º .51/......20) ocupado pela Autora desde 1992.

O acórdão recorrido, ao invés do decidido em 1.ª instância (que havia julgado a acção improcedente, dando procedência parcial à reconvenção, declarando a Ré dona e legítima proprietária do imóvel em causa, com condenação da Autora a entregar o mesmo e a pagar indemnização por ocupação indevida), reconheceu à Autora o direito de propriedade sobre o referido prédio urbano1, por o haver adquirido por usucapião; consequentemente, ordenou o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré, que impendia sobre o mesmo prédio, julgando improcedente o pedido reconvencional.

A linha argumentativa tecida sustenta-se nas seguintes premissas:

i. A posse da Autora iniciou-se em 1992, de forma pacífica e pública;

ii. Não ocorreu qualquer causa legal de interrupção da usucapião em curso desde 1992;

iii. A posse da Autora, ainda que se tenha tornado de má-fé em 2003, completou o prazo necessário de 20 anos em 2012.

iv. A Autora manteve o animus e os actos de posse até a data da propositura da acção;

v. O registo da Ré cede perante essa aquisição originária.

Insurge-se a Ré relativamente a tal decisão defendendo que Autora sempre exerceu uma posse precária, inidónea a usucapir, de acordo com o artigo 1290.º do Código Civil, argumentando que nas acções n.os ..55/2001 e 5776/03.0TBVFR e, mesmo nestes autos, sempre litigou como retentora e promitente compradora do imóvel em discussão.

Alega ainda a Ré que a posse da Autora não é pacífica e que, a partir de Março de 2007, nem sequer existiu o animus

Vejamos.

2.1 Da matéria de facto fixada nas instâncias decorre a seguinte realidade fáctica com particular relevância na apreciação da questão sub judice:

• a Autora, desde Setembro de 1992, passou a ocupar a moradia em discussão nos autos, que lhe foi entregue pelo legal representante da sociedade Espargo – Operações Imobiliárias, Lda., a quem a mesma pertencia, sem que ficasse demonstrado que entre si e aquela sociedade tivesse sido celebrado um contrato-promessa de venda do imóvel (cfr. pontos 14, 19 a 28 e ponto e);

• tal imóvel veio a ser adquirido, em 27-04-2001, pela sociedade Finibanco, tendo esta, em 30/03/2001, declarado ceder a BB o gozo do prédio em questão, pelo prazo de 180 meses, mediante o pagamento de uma quantia mensal, contrato que, em 2016, foi declarado resolvido (pontos 7, 35 e 36);

• posteriormente, o mesmo imóvel foi adquirido pela Ré mediante escritura pública, outorgada em 28 de Setembro de 2023, encontrando-se tal aquisição inscrita registalmente a seu favor (pontos 5 e 6);

• no âmbito do processo instaurado pela Autora contra a sociedade Espargo – Operações Imobiliárias, Lda., que correu termos sob o n.º ..55/2001, e no âmbito do qual esta sociedade não contestou, foi declarada transmitida para a demandante a propriedade do prédio em discussão nos autos; nesse processo, a sociedade Finibanco apresentou requerimento alegando ter adquirido o imóvel, em 27/04/2001 à sociedade Ré em tais autos, requerimento que foi mandado desentranhar (pontos 9 a 11);

• BB instaurou uma acção contra a Autora, que correu termos sob o n.º 5776/03.0TBVFR, em que, por sentença proferida em 18/07/2007, confirmada pela Relação do Porto e pelo STJ, aquela (aí ré) foi condenada a reconhecer o referido autor como legítimo locatário do imóvel em discussão. Nessa mesma acção foi julgada procedente a reconvenção, condenando BB a reconhecer o direito de retenção da aqui Autora sobre o referido imóvel até que fosse paga pela sociedade Edespargo – Operações Imobiliárias, Lda. a quantia de € 254.386,93 (pontos 12 e 13).

2.2 Como é consabido, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei (artigo 1316.º do Código Civil). Destas formas legítimas de aquisição, uns meros actos translativos do direito (aquisição derivada), como são os contratos e a sucessão “mortis” causa; outros, constitutivos do próprio direito (aquisição originária), como o é a usucapião (artigo 1287.º do Código Civil), a ocupação (artigos 1318.º e ss. do Código Civil) e a acessão (artigos 1325.º e seguintes do Código Civil).

A usucapião produz a aquisição, por efeito da posse (em sentido próprio) reiterada, do direito real ou seu modificado conteúdo, a cujo exercício corresponda - posse mantida em termos pacíficos e públicos, durante um período mais ou menos longo no tempo, no desempenho de uma capacidade de gozo do correspondente direito, salvo convenção em contrário - cfr. artigos 1289.º, 1297.º e 1300.º, n.º1, todos do Código Civil.

Da definição de usucapião prevista no artigo 1287.º, do Código Civil, conjugada com o regime do artigo 1297.º, do mesmo Código, retira-se que a usucapião depende da verificação de dois elementos estruturantes: posse caracteristicamente pública e pacífica e decurso efectivo de um certo lapso de tempo, o qual varia em conformidade com as restantes características da posse manifestada.

De acordo com o estatuído no artigo 1296.º, do Código Civil, “não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé.

A posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa-fé a posse titulada e a não titulada de má-fé (artigo 1260.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Já a posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 2162.º, do Código Civil).

Todavia e no que se reporta à posse “boa para usucapir”, debatem-se duas concepções doutrinárias básicas. Uma, qualificada de subjectivista, ligada ao nome de LL, sustenta que a posse envolve, para além da materialidade da situação em que consiste, um elemento de cariz subjectivo, que se estriba numa intenção; uma outra tese, propugnada por MM, que se basta com a materialidade da situação.

A corrente subjectivista divide-se numa pluralidade de entendimentos, que encontram como denominador comum a existência de dois elementos de verificação necessária para afirmar a posse: o “corpus” e o “animus”. No seio destas correntes, os conceitos também não parecem unívocos. Uns entendem que o objeto do “animus” se reconduz a agir como proprietário (“animus domini”), agir como possuidor (“animus possidendi”) ou ter a coisa, independentemente de qualquer qualificação jurídica (“animus sibi habendi”).

Por outra lado, existem igualmente divergências na qualificação do “corpus”, entendido por uns como “actos materiais”, enquanto que, para outros, trazendo à colação o n.º 1 do artigo 1257.º do Código Civil (“a posse mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”), defendem que a posse poder-se-á não revelar por actos materiais.

Parte significativa da doutrina2 e a jurisprudência maioritária, com destaque para a jurisprudência do STJ (cfr., entre outros, acórdãos de 17-04-2007, Processo n.º 07A480, de 13-09-2011, Processo n.º 1027/06.4TBSTR.E1.S1, de 21-06-2016, Processo n.º 7487/11.4TBVNG.P2.S1, de 12-09-2019, Processo n.º 1333/15.7T8LMG.C1.S1, de 13-10-2020, Processo n.º 439/18.5T8FAF.G1.S1, de 16-11-2021, Processo n.º 2534/17.9T8STR.E2.S13) entendem que o Código Civil acolhe uma concepção subjectivista da posse recorrendo, sobretudo, aos artigos 1251.º (“Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” e 1253.º, em especial, a alínea a) deste normativo (“São havidos como detentores ou possuidores precários: a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”)4 .

De qualquer forma, como observa Rui Pinto Duarte, “a própria lei retira alcance à exigência de intenção, na medida em que, no n.º 2 do artigo 1252.º, estabelece uma presunção de posse a favor dos que exercem o poder de facto.”5 Tal presunção tem sido, de resto, interpretada em termos amplos pelos tribunais6, sendo que no assento (hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência) proferido a 14-05-1996, o STJ estabeleceu, a partir do artigo 1252.º, que a existência do “corpus” faz presumir o “animus”, estabelecendo que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa7.

2.3 No caso sob apreciação, há que acompanhar o entendimento do tribunal a quo ao considerar que a posse não titulada da Autora nunca deixou de ser pacífica, no sentido jurídico do termo. (uma vez que não foi utilizada violência, física ou psicológica, na sua obtenção – cfr. artigo 1261.º do Código Civil), tendo, porém, deixado de ser uma posse de boa-fé a partir de 2003 (data em que a mesma foi citada para a acção n.º 5776/03.0TBVFR8), devendo aplicar-se o critério previsto no artigo 297.º, n.º2, do Código Civil para computar no prazo de 20 anos, necessário para que a posse de má-fé conduza à usucapião (artigo 1296.º, do Código Civil).

Efectivamente, o requerimento que o Finibanco apresentou no âmbito do processo n.º ..55/2001, alegando ter adquirido o imóvel à sociedade Espargo, não foi notificado à Autora – a quem, por isso, não foi dado conhecimento do respectivo teor –, o que obsta ao preenchimento da previsão da norma ínsita no n.º 4 do 323.º do Código Civil (aplicável por remissão do estatuído no artigo 1292.º, do Código Civil) e à afirmação do efeito interruptivo pretendido relativamente ao prazo de usucapião em curso.

No entanto, ainda que não se detecte na factualidade assente uma causa de interrupção da posse ocorrida desde o início da prática dos respectivos actos materiais pela Autora, não pode ser ignorada uma circunstância factual, realçada nas alegações de recurso e na sentença, mas desconsiderada pelo Tribunal a quo, que constitui um obstáculo à afirmação de uma verdadeira posse por parte da recorrida a partir de Março de 2007: o ter resultado não provado que, após tal data, a Autora tenha praticado os actos materiais na convicção de exercer um direito próprio, como sendo dona única e exclusiva da moradia (cfr. ponto j da matéria de facto não provada).

Esta materialidade fáctica, que resultou não demostrada – e cuja configuração se manteve no recurso de apelação, que rejeitou a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – afasta a presunção de posse a favor da Autora, que exerceu o poder de facto decorrente do n.º 2 do 1252.º do Código Civil, deixando por preencher o elemento intelectual ou volitivo. É este “animus possidendi” integrante da posse em sentido próprio que, na perspectiva subjectivista acolhida pelo legislador, se mostra apto a suportar a aquisição originária do direito de propriedade cuja presunção legal foi ilidida pela Ré (artigo 350.º, n.º2, do Código Civil).

A partir de Março de 2007 (ou de Julho do mesmo ano, já que, como salienta o acórdão recorrido na nota de rodapé n.º 7, parece ter existido um lapso manifesto na indicação da data em que a Autora deixou de actuar na convicção de exercer direito próprio, coincidente com a prolação da sentença no âmbito do processo 5776/03.0TBVFR), a Autora passou a ser, como bem nota a Recorrente, mera detentora do imóvel (artigo 1253.º, alínea a), do Código Civil), pelo que, desde aí – e não se tendo verificado qualquer causa de inversão do título da posse (artigo 1265.º, do Código Civil) –, se encontra inviabilizada a aquisição originária do direito de propriedade na sua esfera.

Cumpre realçar que o período temporal, contabilizado nos termos do artigo 279.º, alínea c), do Código Civil (aplicável por remissão do artigo 296.º, do mesmo diploma), decorrido entre Setembro de 1992 e Março (ou Julho) de 2007, no decurso do qual a Recorrida exerceu sobre a coisa actos materiais acompanhados de “animus possidendi” é insuficiente para completar o prazo de usucapião de vinte anos a ter em conta, nos termos do artigo 1296.º, do Código Civil, por inexistir registo do título ou da mera posse e ser de qualificar de má-fé (como passou a ser posse da Autora a partir de 2003).

Perante a não demonstração dos factos constitutivos da aquisição originária do direito de propriedade invocada pela Autora, não podemos deixar de concluir que não foi ilidida a presunção “iuris tantum” (artigo 350.º, n.º2, do Código Civil) que para a Ré decorre da inscrição da aquisição do direito no registo predial a seu favor, resultante do artigo 7.º, do Código do Registo Predial.

Procedem, por isso, as conclusões das alegações.

IV. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente, repristinando-se, nessa medida, a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Custas pela Autora.

Lisboa, 7 de Outubro de 2025

Graça Amaral (Relatora)

Anabela Luna de Carvalho

Luís Espírito Santo

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1. O n.ºRua 1, em ..., Santa Maria da Feira, constituído de rés-do-chão, 1.º andar e anexo, destinado a habitação, a confrontar do Norte com Lote n.º 22, do Sul com lote n.º 20, do Nascente com caminho e do Poente com Rua, inscrito na matriz predial urbana da União da freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo, concelho de Santa Maria da Feira, sob o n.º ..19, implantado no anterior artigo urbano n.º .19, da extinta freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º ...51 de 20/12/1991↩︎

2. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 5; Henrique Mesquita, Direitos Reais – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, p. 75; Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, Coimbra, Almedina, 1975, pp. 189 e 190; Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3780, ano 122, Coimbra, Coimbra Editora, 1990, p. 68; Paula Costa e Silva, Posse ou Posses, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pp. 29-30; A. Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 155.↩︎

3. Todos acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎

4. Neste sentido, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4. ª edição, Lisboa, Principia, 2020, pp. 475-477.↩︎

5. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4. ª edição, Lisboa, Principia, 2020, p.477.↩︎

6. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4. ª edição, Lisboa, Principia, 2020, p. 477.↩︎

7. Processo n.º 85204, publicado no Diário da República n.º 144/96, II Série, de 1996-06-24.↩︎

8. Com efeito, a partir de 2003, através de citação em processo judicial, a Autora ficou ciente de que o imóvel estava formalmente registado em nome de outrem (Finibanco). Essa nova realidade torna a posse de má-fé, a partir desse momento, pois o desconhecimento deixou de ser justificado.↩︎